O Rubacão de Fran

Quem leu meu último post sabe que falei de pratos completos como uma maneira de sair da estrutra culinária especista (carne animal + vegetais como acompanhamentos). Apesar de ser a maneira que cozinho no dia-a-dia há muitos anos, porque é mais prático, rápido e suja menos louça, além de reciclar os restos da geladeira, percebi que tem poucas receitas de pratos completos aqui no blog. Vim engrossar a lista com mais uma e não é qualquer uma, não! Hoje vou compartilhar a receita do famoso rubacão de Fran. 

Conheci Fran através de uma amiga de Recife, Camila, que é uma das leitoras mais antigas do blog. E além de ser uma pessoa maravilhosa, Fran é cozinheira e vegana. Ela cresceu entre o Norte e o Nordeste, mas a família dela é da Paraíba. E na Paraíba tem o quê? Rubacão.

Se você nunca ouviu falar nesse prato emblemático da Paraíba, deixa eu começar dizendo que ele é bem controverso. Algumas pessoas pensam que “rubacão” é sinônimo de “baião de dois”, mas são pratos distintos, apesar de parecidos. Enquanto o baião de dois é composto por arroz, feijão verde, carnes e, opcionalmente, queijo, o rubacão tem tudo isso mais uma dose obscena de nata. Ou seja, dá pra resumir dizendo que é um baião de dois cremoso. Mas aí tem gente que coloca nata no seu baião de dois e a coisa fica confusa. 

Outra informação importante sobre o rubacão: ele é feito com arroz da terra (arroz vermelho), um arroz típico da Paraíba. Esse é o meu arroz preferido e além de ter um sabor maravilhoso, ele é muito rico em amido e adquire uma textura ultra cremosa depois de cozido. É por essa razão que, no RN, sempre preparamos arroz da terra no leite (de vaca ou de coco). 

E como se faz um prato tão especista, com tantos pedaços de animais e suas secreções, em versão vegetal (“vegana”)? Fran tem o segredo. 

A cremosidade, que seria dada pela nata, fica por conta de uma mistura de leite de coco e de amendoim (ambos frescos). Como ela defuma o coco antes de fazer o leite, o prato tem um gostinho defumado que, na cozinha especista, é trazido por algumas carnes de animais. E, falando em carne, na versão vegetal tem cogumelos que, pra mim, é a verdadeira carne da terra, tanto pela textura quanto pelo sabor intenso. O resto segue igual: feijão verde, arroz da terra, coentro, cebola, alho…

Fran usa feijão verde, o que é tradicional no rubacão, mas ouso sugerir (que a deusa tape as oiças de Fran pra ela não ouvir isso!) que com feijão macaça fica ainda melhor.  Pra quem não tem acesso a feijão macaça nem ao feijão verde (que é o feijão macaça colhido antes de amadurecer), o fradinho pode ser usado aqui também. 

Rubacão é um dos meus pratos preferidos e uma riqueza da culinária nordestina. É uma receita elaborada, o que contradiz a declaração que fiz no início desse post (“pratos completas são mais simples e sujam menos louça”). Mas entenda que se trata de um prato pra comemorar ocasiões especiais. Como cada passo dado em direção ao fim do especismo e da supremacia humana.

O rubacão de Fran

Use uma proporção de 2/3 de feijão verde pra 1/3 de arroz cru. Ou, se tiver usando feijão macaça, que é seco, use 1 parte de feijão cru pra 1 parte de arroz cru. A diferença é que feijão verde não aumenta quase nada depois de cozido, contrariamente ao feijão macaça (que dobra de volume). No final queremos aproximadamente a mesma quantidade de feijão e de arroz cozidos. O resto vai sem medidas exatas, basta usar um pouco de bom senso culinário e se deixar guiar pelos seus gostos.

Feijão verde (ou macaça ou fradinho)

Arroz da terra (vermelho)

Amendoim cru

Coco seco

Cogumelo shimeji fresco

Cogumelo shitake seco

Cebola

Tomate

Coentro

Alho

Óleo

Sal e pimenta preta

Na véspera: 

– Coloque o amendoim (descascado, mas com a película) de molho em bastante água fria. Ele deve ficar de molho por pelo menos 12 horas. 

-Coloque o feijão macaça, ou fradinho, de molho (Não precisa fazer isso se estiver usando feijão verde).

-Coloque o arroz da terra de molho (Fran não faz isso, mas eu acho importante pro arroz cozinhar mais rápido e de maneira mais homogênea).

No dia seguinte:

Escorra a água da demolha e bata o amendoim com água limpa. Use aproximadamente 1 medida de amendoim (escorrido) pra 2 medidas de água. Deixe o liquidificador funcionando até a mistura ficar bem macia. Coe o leite de amendoim (idealmente usando um voal, mas pode usar uma peneira de metal fina, se não tiver) e leve ao fogo até ferver (essencial, pois esse amendoim aí tá cru!). Você vai perceber que o leite vai engrossar, o que é normal (e desejável). Reserve.

Faça o leite de coco como ensinei aqui. Se quiser fazer como Fran, coloque o coco seco (depois de ter feito um furo pra retirar a água – procure o olho do coco) diretamente na chama do fogão até ele ficar levemente chamuscado. Isso vai perfumar o coco e seu leite vai ficar com um gostinho de defumado. Depois é só seguir as instruções da receita de leite de coco.

Escorra o feijão macaça (ou fradinho) e cozinhe na pressão com um pouco de sal. Se estiver usando feijão verde, cozinhe em bastante água salgada, mas em uma panela comum (feijão verde  é fresco cozinha muito mais rápido que feijão seco). 

Em outra panela, cozinhe o arroz da terra (pode ser na água do molho) com um pouco de sal até ficar macio. 

Ferva um pouco de água e jogue por cima do cogumelo shitake seco (o suficiente pra cobrir tudo). Deixe hidratar, coberto, por pelo menos 20 minutos. Não precisa usar muito shitake, um punhado já é suficiente pra perfumar uma panela de rubacão.

Enquanto o feijão cozinha e o shitake hidrata, prepare os outros ingredientes. Pique a cebola, o tomate (em quantidades iguais) e o alho e reserve em recipientes separados. Corte (ou rasque) o shimeji em pedaços grandes. Escorra o shitake que estava de molho (reserve o caldo) e corte em pedaços miúdos.

Agora você tem todos os elementos do rubacão (feijão cozido, arroz cozido, leite de amendoim, leite de coco, shitake hidratado e verduras picadas) e só falta juntar tudo e finalizar.

Em uma panela grande e, idealmente, com o fundo grosso, refogue o cogumelo shimeji em um pouco de óleo até ficar bem dourado. Retire da panela e reserve. 

Na mesma panela (não precisa lavar), junte um pouco mais de óleo e refogue a cebola. Quando estiver começando a dourar, junte o alho e refogue por mais alguns segundos. Acrescente o tomate e deixe cozinhar no fogo alto, mexendo de vez em quando, até se tornar um molho espesso. 

Despeje o arroz cozido, o feijão cozido, o shimeji salteado, o shitake hidratado e o caldo do shitake nessa panela, sobre o molho de ceboa/tomate e misture bem. Junte partes iguais de leite de amendoim e de coco, tempere com sal e pimenta preta a gosto e cozinhe em fogo baixo, até tudo ficar borbulhante e bem espesso. Se preciso, vá acrescentando mais leite de coco e de amendoim aos poucos. O rubacão deve ficar bem cremoso, como um risoto. Prove e corrija o sal/pimenta, se necessário. 

Por último junte bastante coentro picado, mexa uma última vez, apague o fogo e deixe descansar, coberto, por uns 15 minutos antes de servir. O sabor fica ainda mais apurado depois do descanso.

O paradigma da mistura – parte 2

No final de novembro eu estive em Porto Alegre e tive o prazer de fazer uma atividade junto com Bruna Crioula e a cozinha solidária do MTST. O evento fez parte da Jornada do Veganismo Popular, que durou todo o mês e aconteceu em várias cidades do país. Naquele encontro descobri que a cozinha solidária do MTST de Porto Alegre serve unicamente refeições 100% vegetais. O responsável pela cozinha explicou que não era uma decisão política: simplesmente não tinha orçamento pra colocar carne no cardápio. Como antiespecista e militante pelo veganismo popular, vou te dizer que isso é político, sim, como tudo que diz respeito ao acesso à comida (ou à falta dela) e quem consideramos como comida. Mas a conversa de hoje não é sobre isso, é sobre outra coisa que descobri naquele dia, relacionada à primeira. Como, por questões econômicas, não dava pra colocar carne no cardápio, o pessoal da cozinha solidária explicou que serve “carne de soja” (proteína texturizada de soja -PTS) todos os dias pra preencher o vazio deixado pela carne animal. 

Mas será que precisamos de carne de soja se quisermos parar de comer, e servir, animais?

Na segunda parte do post sobre o paradigma da mistura gostaria de tratar do aspecto prático: como preparar refeições 100% vegetais e sem algo que “ocupe o lugar da carne” no prato. E concluir com uma reflexão que vai muito além da cozinha e tem um imenso potencial transformador.

Feijão macaça (branco), arroz, jerimum com coco, rúcula e tomate.

Construir uma estrutura alimentar antiespecista: valorizar o vegetal

É comum pensar que se você quer parar de consumir animais, precisa descobrir o que colocar no lugar da carne. Na verdade o que você realmente precisa fazer é repensar a estrutura da nossa refeição principal, o almoço. Ao invés de partir do animal (o protagonista da refeição) e escolher os acompanhamentos (vegetais) em função disso, você vai ter que imaginar um novo padrão de almoço sem essa hierarquia. Diga adeus a estrutura elemento principal + acompanhamentos e passe a ver cada componente do prato como igualmente importante. 

Pode parecer que isso é mais trabalhoso do que comprar um “hambúrguer vegano”, ou um “falso frango”, ou até a ultra popular proteína (carne) de soja, e deixar todo o resto como antes. Mas garanto que embora necessite um pequeno tempo de adaptação no início, logo essa maneira de cozinhar e compor seus cardápios vai se tornar a coisa mais natural do mundo e não vai mais exigir nem um pingo de trabalho mental, nem físico, extra da sua parte. Vai ser tão simples como quando você cozinhava da antiga maneira, a maneira especista. Garanto.

E como colocar isso em prática? Não tem nada de complicado, nem de caro, você vai ganhar em autonomia (adeus dependência do agroalimentar!), não vai gastar dinheiro com ultraprocessados e suas refeições se tornarão muito mais saborosas e nutritivas.

Pra facilitar a compreensão, vou começar fazendo um resumo das duas sugestões principais e depois entro nos detalhes. Minha intenção, como sempre, é promover autonomia alimentar, melhorar a saúde do povo e enfraquecer o sistema especista e capitalista. Prontas? Bora lá.

Tenho duas sugestões de modelo pra te ajudar a criar uma refeição vegetal completa que não precisa de algo pra representar a “mistura”.

1- Feijão + Arroz + Verdura cozida + Verdura crua

(Variações: Farofa/Farinha de mandioca no lugar do arroz. Ou macarrão. Ou cuscuz de milho.)

Nada novo por aqui, já que essa “fórmula” reflete a maneira como a maior parte das pessoas (no Brasil) se alimenta no dia-a-dia, mas continue lendo pra entender o detalhe que faz toda a diferença. Lembrando que, do ponto de vista nutricional, juntar esses 4 elementos (leguminosa + cereal + vegetal cozido + vegetal cru) é o ideal. Mas eu diria que essa combinação também é perfeita pra criar diversidade de sabor e textura e tornar o prato interessante do ponto de vista gustativo.

2- Prato completo (leguminosa + cereal + verdura) + salada

Apesar de combinar os mesmos elementos da primeira fórmula, pratos completos, onde os ingredientes são misturados e acompanhados de um molho saboroso, são um “modelo” visualmente alternativo, onde é mais difícil ter a impressão de que tem um lugar vazio ali, que precisa ser preenchido com uma “mistura” vegetal. Também é uma maneira mais rápida de cozinhar e que suja menos louça.

Agora vamos entrar nos detalhes pra entender o que precisa acontecer pra que esses “modelos” funcionem.

Feijão + Arroz + Verdura cozida + Verdura crua

O segredo aqui é saber preparar cada elemento da melhor maneira possível, pra que cada um deles tenha sabor sozinho e, misturados no prato, os sabores se intensifiquem e se complementem, oferecendo satisfação pras papilas. Como fazer isso? Vou começar aprofundando cada elemento separadamente, depois colocarei tudo junto no final. Ou seja, eu escrevo como cozinho.

Aprenda a preparar feijão (gostoso)

O ponto de partida é saber fazer um feijão gostoso. Cereais e verduras/frutas são igualmente importantes pra nutrir nosso corpo, mas geralmente comemos esses outros grupos de alimentos nas outras refeições, enquanto o feijão só aparece no prato, quando aparece, na hora do almoço. Por isso ele é essencial aqui. Tudo bem se você não comer feijão um dia ou outro, mas procure ter mais almoços com feijão do que sem ele. 

Aqui entra o primeiro detalhe que vai fazer toda a diferença. Pra se livrar do paradigma da mistura e, por tabela, da maneira especista de estruturar a alimentação, seu feijão tem que ser gostoso ao ponto de você sentir prazer ao comê-lo puro. Infelizmente muita gente não sabe fazer feijão, muito menos um feijão gostoso. Por isso o artifício de usar pedaços de animais (charque, bacon), ou temperos artificiais, pra “dar gosto” ao feijão.

Ele é o alimento mais importante da alimentação do nosso povo, a proteína do proletariado e o que sobra no prato quando a carestia leva todo o resto. Devemos muita coisa ao feijão. Então vamos tratá-lo com o respeito e a gratidão que ele merece e aprender a fazer o melhor feijão do bairro. Quiça da cidade! Experimente as receitas sugeridas abaixo, adapte ao seu paladar até descobrir como fazer um feijão perfeito pra você. E, se puder, compre o melhor feijão que encontrar (sem veneno, da reforma agrária) e varie os tipos. Tem tantas variedades de feijão cultivadas no Brasil que seria um crime não aproveitar! E não esqueça das favas! 

Tutoriais: Como preparar o feijão da minha mãe. E feijão acebolado. E fava com tomate.

Arroz (e farofa)

Assim como no caso do feijão, saber fazer um arroz gostoso, ou farofa (ou os dois) faz parte dos conhecimentos culinários de base. A dupla “feijão com arroz/farinha” faz parte da nossa cultura alimentar e, embora não seja obrigatória pra se livrar do paradigma da mistura, é essencial pra muita gente. Eu como feijão com verduras na maior parte do tempo (como cereais nas outras refeições), mas entendo que a maior parte das pessoas só se sente satisfeita quando almoça feijão com arroz. 

Não tem tutorial pra fazer arroz aqui no blog, porque faço parte do pequeno grupo de pessoas que não faz questão nenhuma de comer arroz no almoço. Mas de farofa, meu bem, eu entendo.

Tutoriais: Ensinei a fazer uma farofa incrível aqui. E postei também a receita da farofa rica (vulgo: “limpa restos da geladeira”), da farofa de beterraba, farofa d’água e farofa de cuscuz.

Dica pro1: farofa é a categoria de prato perfeita pra reaproveitar todos os restos de refeições anteriores podendo se tornar um elemento que agrega muito sabor à refeição com esforço mínimo, ao mesmo tempo que você evita desperdício e cozinha de maneira econômica.

Dica pro2: colocar verduras pra cozinhar junto com o arroz é uma maneira de simplificar suas refeições, além de incrementar o sabor. Aliás, essa dica também vale pro feijão. 

*Um feijão gostoso junto com um arroz com verduras (cenoura ralada, beterraba ralada, talos de couve, brócolis, vagem…ou tudo junto) já é uma refeição completa, que exige pouco trabalho e poucos ingredientes. Junte uma fruta de sobremesa, se puder, e é só alegria!*

Feijão preto, purê de batata (no leite de coco), arroz, abobrinha refogada com tomate, folhas com abacaxi.

Verdura cozida

É aqui que muita gente, sem intimidade com a culinária vegetal, comete os maiores erros. Eu olho pra um chuchu ou pra um repolho branco, dois dos legumes mais acessíveis e, infelizmente, desprezados, e vejo mil possibilidades. Um refogado/ensopado de legume é, pra mim, o elemento de sabor mais intenso na refeição. Feijão e arroz/farinha alimentam e satisfazem, mas um refogado de legume é o veículo perfeito pros temperos e molhos que antes iam parar nas carnes animais. E apesar de comer o mesmo feijão com arroz todos os dias (que você pode preparar uma vez por semana e congelar), variando as verduras refogadas/ensopadas você vai ter a impressão de comer um prato diferente a cada dia com esforço adicional mínimo.

Alguns exemplos de receitas dessa categoria: jerimum com coco, carne de caju, refogado de chuchu com tomate, quiabo salteado, maxixada, quiabo no coco, creme de milho e cebola, repolho refogado

Verdura crua

Prefiro falar de “verdura crua”, ao invés de “salada”, porque muita gente tem uma ideia limitada, e fixa, do que é salada. Geralmente essa palavra é associada a alface + tomate (podendo ter também pepino, cebola e/ou cenoura). O perigo aqui é pensar que se não tiver todos esses ingredientes associados à ideia de “salada”, então não podemos acrescentar um elemento cru à refeição.  E comer verduras cruas não é só uma questão de saúde, é riqueza pro paladar! 

Pode ser só um punhado de rúcula, uma mistura de folhas verdes (rúcula + alface), folhas com frutas, ou apenas cenoura ou beterraba crua ralada. Como eu falei mais acima, além de ser importante, nutricionalmente falando, esse elemento cru realça muito o sabor da refeição e traz contraste de textura (importante pra alegrar o paladar).

Dica pro1: incluir uma fruta crua é o pulo do gato pra fazer as melhores saladas do mundo. Acredite. Deve ser a mistura da acidez (realça sabores) com o contraste doce-salgado que deixa tudo tão gostoso. Abacaxi e manga são minhas frutas preferidas pra comer com o almoço. Mamão e banana vêm em segundo lugar. Muitas vezes a “verdura crua” do meu almoço é simplesmente uma banana e nem tenho palavras pra dizer o quanto amo feijão com farofa e banana!

Dica pro2: um bom molho pra salada pode transformar até um simples punhado de pepino em algo delicioso. Recomendo o molho tradicional pra saladas cruas francês (receita da minha cunhada;) Também expliquei a fórmula pra criar molhos pra salada sempre deliciosos nesse post.

“Certo, mas você tem paladar de vegana (comedora de planta)! Eu não consigo achar um prato de feijão com arroz e repolho refogado gostoso. Falta sabor aí e eu vou, sim, sentir falta da mistura.” Nesse caso a minha resposta é que talvez pra você a segunda sugestão de “fórmula” seja mais interessante:

Prato completo (leguminosa + cereal + legume cozido) + salada

Algumas pessoas não conseguem (ainda) olhar pra um prato de feijão com arroz/farofa e verdura e ver uma refeição completa. Acredito que é porque seu paladar foi moldado dentro do especismo (que vê um pedaço de animal, e suas secreções, como exemplo máximo de sabor), e de uma alimentação limitada, mas também porque, visualmente, elas estão tão acostumadas com o esquema feijão/arroz/pedaço de animal, por isso esperam ver algo similar num prato 100% vegetal.  

Então essa dica não só te faz sair dessa expectativa visual, como é uma maneira mais prática de cozinhar. E falei que cozinhar assim suja menos panelas? Pois é. E sobre a parte “salada”, as dicas no parágrafo “verdura crua” acima se aplicam igualmente aqui.

Alguns exemplos de pratos nessa categoria: arroz com lentilha e legumes, salada de quinoa e feijão preto com molho de laranja, mudjadara (arroz com lentilha e cebola caramelizada)…

Se a sustância vem do feijão, à partir dele basta saber preparar um bom arroz (ou farofa) e tratar os legumes com a atenção e o cuidado que, na culinária especista, são reservados aos pedaços de animais. Cada elemento do prato é gostoso individualmente e, combinados, formam uma refeição rica e que satisfaz o paladar.

Resumindo: você pode substituir a carne por aprender a cozinhar vegetais.

Quando não tem verduras nem frutas na cozinha

Claro que falar de diversidade alimentar pressupõe que você tem acesso a todos esses alimentos, mas saiba que mesmo em tempos de carestia e insegurança alimentar generalizada, essas dicas podem ser aplicadas dentro das suas possibilidades. 

Só tem feijão com farinha pra comer? A importância de saber dar gosto ao feijão, sem recorrer a pedaços de animais (que, de todo jeito, está fora do orçamento de quem se encontra em situação de insegurança alimentar) é ainda maior. Em termos de verdura, só deu pra trazer um pedaço de repolho da feira? Saber prepará-lo da maneira mais saborosa possível é crucial. Só tem restos de alimentos dos dias anteriores na geladeira? Poder transformá-los em uma farofa deliciosa ou em prato completo vai fazer toda a diferença. E se você ganhou umas mangas da vizinha, não é legal saber que elas podem ser combinadas com o feijão preto do almoço e melhorar o sabor da refeição? 

E já que estamos falando de insegurança alimentar, é importante saber que ao invés de gastar o pouco de dinheiro na carteira comprando salsicha (ou outro ultraprocessado animal que acaba aparecendo na mesa da população que não tem dinheiro pra comprar carne animal), é muito mais saboroso e nutritivo comprar feijão, um punhado de verduras e transformá-los em várias coisas diferentes, melhorando a qualidade da alimentação da sua família sem gastar mais.

Voltando ao causo que abriu esse texto, expliquei pro companheiro do MTST que não só ele não precisava incluir obrigatoriamente a carne de soja no cardápio da cozinha solidária, como dava pra usar as verduras doadas ao projeto pelo MST pra aumentar o sabor das refeições sem gastar um tostão a mais. Veja que ao valorizar cada elemento vegetal do seu prato estaremos, num mesmo movimento, valorizando quem plantou esses vegetais. Promover vegetais ao papel de protagonistas da alimentação é o primeiro passo pra dar todo o reconhecimento e valorização que agricultoras e agricultores merecem. 

Achar que é preciso uma “mistura” vegetal pra substituir a carne é seguir reproduzindo a estrutura especista que hierarquiza o alimento vegetal em posição inferior aos corpos (e secreções) animais consumidos pela espécie humana. É seguir vendo um prato de feijão, arroz e verduras como incompleto. E, como eu não me canso de repetir, quem ganha quando vemos a ausência de carne animal no prato como uma lacuna que deve ser preenchida com outra coisa? Os produtores de soja e as grandes empresas do agroalimentar, que enxergam ali uma imensa oportunidade de lucro (hamburguers e linguiças “veganas”). Acompanhada, obviamente, de toda a exploração e destruição impostas por esse tipo de “oportunidade”. Sem falar nas pseudo-soluções tecnológicas, como carne de laboratório.

Pode parecer insignificante, mas sair do paradigma da mistura, animal mas também vegetal (quando essa mistura vegetal representa hambúrgueres e outros ultraprocessados feitos por empresas que lucram com a exploração especista, humana e ambiental), é a chave pra começar a repensar a atual organização social baseada em dominação (capitalismo especista) e construir uma alternativa a isso que seja realmente justa pra todos os seres. 

O paradigma da mistura – parte 1

Em 2020 escrevi um post aqui chamado “O conceito de mistura”. Mais de dois anos depois, continuo concordando com as palavras desse texto e acabei indo ainda mais longe na reflexão. Por isso voltei hoje com um post em duas partes pra aprofundar a questão e também mostrar, com exemplos concretos, o que seria uma maneira de cozinhar e compor pratos livres do paradigma da mistura.

Estive recentemente no Brasil e fotografei vários dos meus almoços em casa, então vou compartilhar essas imagens pra servir de inspiração. Muitas dessas receitas já foram publicadas aqui, como a fava com tomate, o pirão de maxixe, a quiabada (quiabo no coco), a farofa de banana e couve, a minha feijoada, a farofa de cuscuz, a berinjela de dona Laura, a farofa de beterraba, o jerimum com coco

Feijão macaça, farofa de cuscuz, quiabada, couve refogada e salada de folhas e manga

Vou começar copiando aqui o texto de 2020, porque é preciso ler essa parte pra poder entender o que vai seguir.

Uma das perguntas que escuto com mais frequência é: “Como substituir a carne?” Geralmente feita por pessoas que estão pensando em diminuir ou parar de comer animais, ela diz respeito ao aspecto nutricional da refeição. O que a pessoa está perguntando, na verdade, é: “O que preciso comer no lugar da carne pra ter acesso aos nutrientes que antes eu conseguia através dela?”

Mas pra além da questão nutricional, isso também está relacionado a um conceito que herdamos da culinária que vê animais como comida, o conceito de mistura. E é sobre isso que gostaria de escrever hoje.

O conceito de mistura (proteína animal vista como o componente principal do prato) tem três camadas: nutricional, de status e gastronômica. Vou tratar da nutrição primeiro e das outras em seguida.

Do ponto de vista nutricional carne não é essencial. Vários povos do mundo vivem sem comer animais, além de nós, veganas, e se isso não é evidência suficiente pra você, a ciência já provou que não precisamos comer animais nem o que seus corpos produzem (ovos, leite) pra viver, nem pra ter saúde.  Logo, você pode substituir a carne por…nada. Ela não precisa ser substituída. 

O tradicional pf segue completo sem a carne (feijão + arroz + salada). Feijão é a melhor fonte de proteína que conhecemos, sem os inconvenientes da carne animal, e é uma excelente fonte de ferro. Se você não tem o costume de comer leguminosa todos os dias, essa é a única adaptação que você precisa fazer pra excluir a carne de animais do cardápio (imaginando que o resto da sua alimentação já é variada, com cereais, frutas, verduras e sementes). Lembrando que leguminosas são o grupo do feijão, lentilha, grão de bico, ervilha e fava. Não sabe como prepará-las? Tem várias receitas aqui, só clicar na página “Receitas”. 

Mas se não precisa substituir a carne por nada (mais uma vez, imaginando que você tem uma alimentação variada, que é a recomendação pra todas as pessoas, veganas ou não), por que pessoas não-veganas, e até veganas, olham pra um prato de feijão+arroz+verduras e acham que está faltando algo? Aqui entra a questão de status.

Na escala de valor da sociedade em que vivemos, comida vegetal ocupa uma posição inferior quando comparada à comida animal. Fomos treinadas a ver pedaços de animais e seus derivados como “mais nutritivos”, mas também com “mais status”. É a comida da elite e isso acaba se tornando o modelo que desejamos seguir. 

Mas tem uma pergunta muito importante por trás disso. Quem ganha com o protagonismo de produtos animais na alimentação? E quem ganha quando a estrela do nosso prato passa a ser o vegetal (fresco)? Respostas: a agropecuária e a agricultura familiar, respectivamente. Aqui começamos a entender os interesses financeiros por trás do mito de que carne é essencial e da fabricação dos nossos desejos alimentares carnistas.

E esse mito/manipulação tem uma versão vegana. Entram em cena salsicha, hambúrguer e agora até frango… vegetal, feitos pelas gigantes do agroalimentar. Isso não é apontamento de dedo pra quem gosta desses ultraprocessados, é um convite pra uma reflexão mais profunda.

Ninguém precisa de “carne vegetal” pra retirar animais e seus derivados do prato. A existência desses produtos, longe de ser uma vitória pro movimento vegano, busca nos manter dependentes da indústria. É isso que está em jogo quando a maior produtora de carne de vaca do mundo lança um hambúrguer “vegano”. E tem mais. Isso perpetua outro mito, o de que é caro e difícil ser vegana. Mas tem mais uma consequência que se relaciona com o assunto de hoje. Produtos que imitam animais reforçam o mito de que feijão com arroz e verdura não formam um prato completo. 

E pra entender a última camada desse folhado, precisamos também entender o conceito de mistura do ponto de vista do sabor.

A culinária que vê animais como comida estrutura o prato ao redor do animal morto. É ele que vai receber o melhor tipo de cozimento, o molho caprichado, os temperos especiais. Junta-se a isso o fato que animais são ricos em proteína e possuem o sabor “umami”. Essa palavra japonesa, que pode ser traduzida como “delicioso”, faz referência ao quinto sabor básico (junto com doce, salgado, ácido e amargo). Carne de animais também tem gordura, um componente chave pra realçar o sabor. Muitas moléculas de sabor são lipossolúveis, ou seja, se dissolvem, e se tornam perceptíveis pras nossas papilas, apenas em contato com gordura. 

Nesse tipo de culinária, o animal é o prato principal, o vegetal é acompanhamento. Por isso vegetais não trazem a mesma carga de sabor, pois estão sempre em segundo plano. E ainda assim pedaços de animais e seus derivados são usados pra realçá-los. Basta pensar na função da manteiga, creme, queijo e bacon em muitas receitas de vegetais. Assim somos induzidas a achar o sabor de vegetais inferior. Retirar o animal do cardápio, mas manter esse padrão de culinária, faz com que o prato vegetal não ofereça a mesma satisfação, pois o elemento que carregava todo o sabor sumiu. 

Essa maneira de cozinhar precisa ser superada. Ela cria necessidades falsas (como os ultraprocessados “veganos” que imitam vaca, frango… pra ocupar o lugar da mistura) e nos impede de apreciar o sabor dos vegetais pelo que eles realmente são. Se libertar do conceito de “mistura” (seja um animal ou algo que imite um produto animal) é o primeiro passo numa importante mudança de paradigma. É passar a valorizar o vegetal e quem planta o vegetal. E é ver valor no vegetal pelo que ele é, não pelo que ele tenta imitar. Como diz meu compa de panela e luta Ruan Felix, “nessa revolução lentilhas serão lentilhas”.

Feijão macaça (branco), pirão de maxixe, jerimum cozido e salada de alface e abacaxi

Culinária vegetal não precisa e, na minha opinião, não deve, ser uma culinária de imitação. São tantos sabores, texturas e possibilidades no reino vegetal que seria uma pena se contentar em simplesmente reproduzir pratos com animais em versão vegetal. Vegetais só parecem coadjuvantes pra quem nunca os convidou pra ser a vedete da alimentação. Preparando certo eles viram a estrela do prato e enquanto você se delicia com a comida vegetal bem preparada, o conceito de “mistura” vai parar de fazer sentido: está tudo saboroso ali e você não sente mais falta de nada. 

(Continua no próximo post.)

Jornada do Veganismo Popular – parte 1

No início do ano tivemos a Xepa Ativismo convidou a UVA e os irmãos por trás do projeto Vegano Periférico pra fazer um grande evento em São Paulo celebrando o Veganismo Popular. Uma espécie de festival artístico-político-gastronômico. Meses depois a ideia inicial tinha sido modificada muitas vezes e nasceu a I Jornada do Veganismo Popular, que tinha como tema “Veganismo Popular contra o fim do mundo: construir a libertação animal e combater a fome”. Começou com uma live dia 1/11, pra comemorar o dia internacional do veganismo, e durou todo o mês de novembro. Foi um evento descentralizado e os coletivos que compões a UVA e quiseram participar organizaram eventos em suas cidades de maneira independente.

Além de ter participado da live no dia 1/11, que contou com convidadas muito especiais pra mim (assistam!), tentei acompanhar o trabalho dos coletivos e participar do maior número de eventos que pude. O resultado foi um mês inteiro na estrada, oito cidades diferentes, encontros que me marcaram profundamente, conversas que renderam muita reflexão e me fizeram avançar nas teorias que desenvolvo há anos, muitas descobertas gastronômicas e ter visto uma parte do Brasil que ainda era desconhecida pra mim. E também peguei Covid!

Ainda estou em Natal, me recuperando do cansaço pós viagem e pós Covid (Jesus me abane! não tenho energia pra nada!) e cumprindo minha tarefa principal esse mês: cuidar da minha mãe. Tenho muito o que contar sobre a viagem e, principalmente, sobre os encontros, mas por ora queria compartilhar algumas fotos dos eventos com os coletivos locais. Pela ordem cronológica, aqui estão: Fortaleza, São Paulo, Belém, São Luís, Salvador, Porto Alegre e Recife (Natal fica pra outro dia 😉

Em quase todas as cidades por onde passei tive a honra de dividir o microfone com militantes, praticamente todas mulheres, muito importantes pra construção dessa luta. Minha voz se somou a outras vozes e juntas, nos fortalecemos. Gostaria que todas essas pessoas aparecessem aqui mas infelizmente não tenho foto com todo mundo, só com Ana Felicien e Gisiane Ferreira, em Belém, com Ellen Monielle, em Recife, e com Bruna Crioula, em Porto Alegre.

Essa é a primeira parte de uma série de posts sobre a Jornada do Veganismo Popular, então fiquem no aguardo que vem muita coisa interessante pela frente. Aproveito pra agradecer mais uma vez as pessoas que apoiam o meu trabalho (através do Apoia-se), e que fizeram com que esse tour político fosse possível (do ponto de vista financeiro). Muita gente acredita que, por não ter mais Instagram, parei de militar. A verdade é que continuo militando no terreno, como sempre fiz. Na verdade desde que saí das redes sociais, nunca militei tanto!

Agora com licença que vou tentar fazer um bolo de jerimum (próximo post 😉 antes que minha mãe acorda do cochilo da tarde.

Nordeste na mesa

Estou mais uma vez em terras potiguares e mesmo tendo nascido e crescido aqui, ainda me encanto com a abundância de comida vegetal boa que encontramos no meu país, o Nordeste. Aqui tem tanta receita tradicional que é naturalmente vegetal, uma imensidão de frutas e verduras maravilhosas, além do coco, da castanha, do gergelim, que pra mim é o melhor lugar do mundo pra ser vegana. E se você juntar a isso o fato que quase 50% das unidades de agricultura familiar se encontram nessa região e que o veganismo popular é muito forte aqui, a conclusão é a seguinte: temos todas as condições reunidas pra organizar a revolução antiespecista à partir do Nordeste. Mas voltemos à comida.

Antes de começar a postar receitas do meu território, como faço sempre que estou nessa parte do Brasil, pensei em fazer uma lista das que já publiquei aqui e que, não por acaso, são alguns dos meus pratos preferidos. Bora lá.

Café da manhã no Nordeste pra mim é tudo! E como é mais comum comer à noite o que comemos de manhã (comida “de jantar” e “de café da manhã” sempre foi a mesma coisa pra mim ), o que acho bem prático, saber fazer a base dessas refeições é extremamente importante. Sem falar que esses pratos também podem ser degustados no lanche. Tapioca e cuscuz estão para a nordestina como o oxigênio está pras não-nordestinas. Mas tudo começa com leite de coco. Utilizado nas receitas do café/jantar/lanche, nas sobremesas e também pra tomar com café ou fazer vitaminas de frutas.

Como fazer leite de coco

Como fazer cuscuz (e com coco)

Como fazer tapioca

Tapioca com coco

Tapioca com coco recheada com pasta de amendoim e banana.

Os pratos nordestinos de almoço que já publiquei aqui são tradicionais e naturalmente 100% vegetais, embora um pouco esquecidos, como o macaco de feijão macaça, a maxixada e a quiabada. Aliás feijão macaça, quiabo e maxixe são alguns dos símbolos culinários mais fortes no meu território. Outros pratos são tradicionais, mas ligeiramente adaptados, como a farofa d’água (que geralmente é feita com manteiga da terra). Na verdade quase todos os pratos tradicionais são feitos hoje com manteiga e nata de leite de vaca, mas quando puxamos pela memória dos mais antigos, descobrimos que nem sempre foi assim, já que esses ingredientes eram raros e ainda são muito caros.

Tem um dos meus pratos preferidos da vida, o pirão de maxixe, que até entrou no cardápio do restaurante vegano “Papoula Culinária Saudável”, em João pessoa. Eu inventei esse prato num dia que estava com muita vontade de comer pirão, que é tradicionalmente feito com carne ou peixe, mas descobri depois que existem versões de pirão com maxixe, porém sempre misturado com carne de animais. Tem a famosa moqueca de caju, que é, na minha opinião, a melhor moqueca vegetal de todas. Sou suspeita pra falar, pois amo caju, mas teste aí e me diga se ela não é um desbunde. E não podia deixar a fava de fora, ela que é a rainha dos feijões. Essa receita também é minha (ou seja, nunca comi em outro lugar preparada desse jeito), mas o ingrediente principal é tão emblemático do Nordeste, e o sabor é tão maravilhoso, que tenho certeza que um dia ela vai fazer parte do repertório de receitas tradicionais nordestinas.

Macaco de feijão macaça

Maxixada

Quiabo no coco (quiabada)

Farofa d’água

Pirão de maxixe

Moqueca de caju

Fava com tomate

E os doces? Eu, que não sou uma grande apreciadora de doces, adoro as sobremesas tradicionais do Nordeste. Não as versões colonizadas pela empresa do capeta, aquela que começa com Nes e termina com Tlé, e que convenceu a população brasileira que tem que colocar leite condensado em absolutamente tudo. Escrevi longamente sobre isso e se você ainda não leu meu post sobre o assunto (Sobre leite condensado, queijo e o que o veganismo tem a ver com isso) recomendo muito. Mas saiba que antes dessa colonização das nossas mesas (e paladares), o meu amado leite de coco abundava nas nossas sobremesas. Meu bolo preferido de todos os tempos é o de macaxeira, que também leva coco. Também adoro a versão com carimã, que é como chamamos a macaxeira pubada (fermentada), e goiabada. E, pros dias quentes, que aqui no Nordeste significa “todo dia”, o creme de tapioca com frutas é a coisa mais perfeita do mundo: leve, delicado e cheio de sabor.

Bolo de macaxeira com coco

Bolo de carimã e goiabada

Creme de tapioca com coco e abacaxi caramelizado ou manga

À partir da semana que vem vou publicar mais receitas do Nordeste, pra aumentar essa lista. E se você gostaria de aprender a preparar algum prato típico do meu território, ou gostaria de saber mais sobre um ingrediente típico daqui, é só falar.

Nenhuma trégua pro especismo!

Lembra da série de entrevistas com pessoas veganas que comecei muitas luas atrás? Hoje voltei com mais uma.

Conheci Féli em 2019, durante uma ação de Extinction Rebellion em Paris: uma ocupação em pleno centro da cidae, que durou uma semana inteira. Eu precisava entrevistar alguma jovem que participava da organização, pra uma matéria que Anne estava fazendo sobre jovens e a luta contra mudanças climáticas. Quando o vi pensei: “Essa pessoa parece ser bacana” e fui lá entrevista-lo. Eu não estava enganada e nos tornamos amigas naquele dia. Féli (pronuncie “Fê-li”, com acento tônico no “i”, ou seja, é uma palavra oxítona) é uma das pessoas mais interessantes e generosas que conheço. Mas o que mais me impressiona é a sabedoria dele, apesar de ser tão jovem.

Ele é francês (metade português), vive numa ocupação em Marselha, uma grande cidade no sul da França, mas estava de passagem pela região parisiense semana passada. Sempre que ele está no meu território, damos um jeito de nos encontrar, colocar as novidades em dia e fazer consultas mútuas (ele me ensina coisas da realidade dele, eu ensino coisas da minha). Dessa vez aproveitei pra entrevista-lo pela segunda vez, só que agora, pro blog. Além de vegano, Féli é anarquista, não-binário e completamente doido por tofu.

O que é veganismo pra você?

É a prática concreta do pensamento revolucionário antiespecista.

Por que você é vegano?

Porque existir num mundo onde humanos torturam e matam tantos, tantos, tantos coabitantes do planeta dói demais. Tinha esse fogo que queimava forte e ocupava um espaço grande em mim. Aí um dia eu aprendi que isso tinha nome, que se chamava “antiespecismo” e que o veganismo era a sua prática. Então chegou um momento em que eu disse: “Essa convicção, que está crescendo dentro de mim, na minha cabeça e no meu coração, precisa existir aqui fora”. Foi então que eu decidi fazer algo a respeito e me tornar vegano.

Você se tornou vegano da noite pro dia ou foi um processo longo? Passou por uma fase vegetariana?

Eu tive uma fase vegetariana antes de me tornar vegano, mas por razões econômicas, não ideológicas. A questão da exploração animal era algo que me revoltava há bastante tempo, no entanto eu não transformava isso numa prática concreta. Nessa época eu ainda estava mergulhado na dissonância cognitiva. Mas cinco anos atrás eu estava morava com um amigo e a gente teve acesso a materiais sobre antiespecismo e veganismo. Então de repente a ficha caiu. Eu entendi o que está por trás de produtos de origem animal, as consequências dessa produção no mundo. E à partir daquele momento tudo que o nosso super cérebro é capaz de criar pra manter a gente na dissonância cognitiva parou de funcionar. Em seguida veio uma vontade forte de agir e a mudança aconteceu facilmente.

Como destruir o especismo?

Ensinando aos humanos e humanas que estão chegando nesse planeta, e as que já estão aqui, novas formas de se relacionar com os seres vivos. Aprender a ter estima pelos seres ao nosso redor é, pra mim, a chave de muitas coisas. Em seguida conhecer o funcionamento do sistema econômico sob o qual vivemos, das estruturas especistas, colonialistas, de todas as relações de dominação em vigor, pra que possamos entender como elas se manifestam no nosso consumo. E com isso poderemos abrir espaços onde humanos e humanas possam criar conexões com os camaradas não-humanos ao nosso redor. 

Esse conhecimento já está disponível pra maioria das pessoas, mas elas escolhem ignorá-lo. É muito difícil mudar a relação que temos com o resto do mundo e, sinceramente, acho que pra algumas pessoas isso não mudará nunca. Só nos resta esperar que elas não estejam mais aqui. Mas pras pessoas que estão chegando no planeta agora, isso deve ser uma prioridade. A mudança virá daí.

Você acha que vai ver o fim do especismo durante a sua vida?

Uma parte de mim diz “não”, mas eu acho que vou ver a evolução em direção a um mundo sem especismo. E é isso que conta.

Como falar da luta antiespecista com militantes de esquerda? Cansei de ouvir de camaradas que “é preciso desconstruir todas as formas de dominação!”, mas quando começo a falar da dominação humana sobre animais outros que humanos, essas mesmas pessoas se transforma nas guardiãs do especismo.

Que a pessoa seja de esquerda ou não, é normal se aproveitar do especismo. É fácil achar que podemos continuar a dominar todos os outros seres vivos. É fácil, pra quem é humana, continuar a existir num mundo especista.  Mas quando penso especificamente em camaradas da esquerda, acho que é importante continuar produzindo material informativo e construindo espaços onde podemos conectar a luta antiespecista com outras lutas. E, mais uma vez, é importante trabalhar pra desenvolver estima pelo mundo ao nosso redor e todos os seres que o habitam.

Imagine que é o fim da sua vida. Uma longa vida de alegria, luta e festa. Qual seria a sua última refeição?

Posso escolher vários pratos? Pães e pastas pra compartilhar com as pessoas. Tofu com alho selvagem. Um mexidão com arroz, feijão vermelho, tomate e muita cebola. Rolinhos primavera e samossas, ambos recheados com legumes. E mais tofu. De sobremesa eu pediria um bolo com várias camadas. Algo cremoso, gorduroso, crocante, um pouco de tudo. A gente fez todas as revoluções do mundo? (Respondo que sim, já que estamos sonhando. E que, de todo jeito, quando ele estiver velhinho o aquecimento global vai estar tão intenso que provavelmente já estaremos plantando cacau na França.) Então esse bolo seria de chocolate.

Que conselhos você daria às pessoas que querem se tornar veganas? Os três conselhos que, na sua opinião, são os mais importantes.  

1- Se aproximar de outras pessoas que sejam veganas por razões antisepecistas e, se possível, se organizar em um grupo ou coletivo com elas. Isso é muito importante.

2- Aprender a se alimentar bem. Isso também é muito importante. Reserve um tempo pra aprender as bases da nutrição, do que o seu corpo precisa e descobrir a imensidão de possibilidades no mundo vegetal. Em seguida se divirta cozinhando e provando novos sabores. Não coma só abobrinha cozida na água! Você não vai conseguir ter sustento desse jeito. E não esqueça de tomar a sua B12! Se informe e veja como é gostoso se alimentar bem. 

3- Entenda que, pra algumas pessoas, existem obstáculos pra aderir à pratica vegana que vão além do especismo. O especismo é o obstáculo principal e esmagador, mas no dia-a-dia de muita gente pode ter outras razões que as impedem de ir pro lado vegano da força. É importante não desprezar essas pessoas, não olha-las com superioridade e tentar entender essas razões. Isso é essencial pra poder avançar. Não esqueça que o verdadeiro inimigo é o especismo. A luta é contra ele e aí, nesse caso, não daremos trégua!

A terra das laranjas tristes

Eu estava voltando pra casa no final da manhã quando me deparei com um poster de Ghassan Kanafani na entrada de um dos maiores CoHabs aqui da minha cidade. Há tempos penso em compartilhar um texto dele no blog e vi esse encontro inesperado como um sinal de que eu tinha que fazer isso hoje.

Ghassan Kanafani foi um escritor e militante palestino, expulso de sua terra natal pelas tropas sionistas quando ainda era criança (durante a Nakba, entre 1947-1948), que lutou durante toda a sua vida pela liberdade e autodeterminação do povo palestino, contra o colonialismo e o imperialismo. Kanafani foi assassinado em 1972 pelo Mossad, o serviço secreto israelense, quando tinha apenas 36 anos. Se algum dia você tiver a sorte de encontrar um dos romances dele no seu caminho, não perca essa oportunidade de mergulhar na literatura palestina. Mas o texto que traduzi (do Francês) pra vocês é o começo de um conto, inspirado na sua história pessoal, chamado “A terra das laranjas tristes”. Nesse conto acompanhamos uma criança que é forçada a deixar sua cidade, Jafa, no litoral palestino, e se torna refugiada no Líbano.

Esse conto me fez chorar todas as vezes que o li. Entrevistei várias pessoas que sobreviveram a Nakba, a “catástrofe”, quando as tropas sionistas fizeram uma limpeza étnica da Palestina, pra criar o futuro Estado de Israel, e dois terços da população do país se tornou refugiada. Ouvi-las sempre enchia meu coração de tristeza e revolta, mas, como expliquei acima, esse conto mostra o processo de perder seu lar, sua terra, seu país, tudo que te é caro e se tornar refugiada através dos olhos de uma criança e a tragédia é contada com uma imensa delicadeza. Só lendo pra entender.

A terra das laranjas tristes

Quando partimos de Jafa para Acre, não havia sensação de tragédia. Parecia uma viagem anual para passar o feriado em outra cidade. Nossa estada em Acre não me surpreendeu: talvez, por ser jovem, estivesse até feliz com isso, pois a viagem me fez faltar à escola…

No entanto, na noite do grande ataque à Acre a situação ficou mais clara.

Aquela noite foi difícil para você e para mim.

Foi, penso eu, uma noite cruel, passada entre o silêncio rígido dos homens e as invocações das mulheres. Minha espécie, você e eu, éramos jovens demais para entender o significado de toda essa história. Naquela noite, no entanto, alguns fios da história se acenderam.

De manhã, enquanto os judeus recuavam ameaçando e fumegando, um grande caminhão estacionou em frente à nossa porta.

Coisas leves, principalmente roupas de cama, foram jogadas no caminhão, rápida e histericamente. Eu estava encostado na velha parede da casa e vi sua mãe entrar no caminhão, depois sua tia, depois os pequenos e então seu pai começou a colocar você e seus irmãos no carro, por cima da bagagem.

Então ele me agarrou no canto onde eu estava e, levantando-me acima de sua cabeça, me depositou no compartimento de metal em forma de gaiola acima da cabine do motorista, onde encontrei meu irmão Riad sentado em silêncio.

O veículo deu partida antes que eu pudesse encontrar uma posição confortável. Acre desapareceu aos poucos nas curvas da estrada que subia em direção a Rass El-Naqoura.

O tempo estava um pouco nublado e uma sensação de frio invadiu meu corpo.

Riad, com as costas apoiadas na bagagem e as pernas na beirada do compartimento de metal, estava sentado muito quieto, olhando ao longe.

Eu ia sentado em silêncio, o queixo entre os joelhos e os braços entrelaçados.

Um após o outro, os pomares de laranjeiras desapareceram e o veículo subiu ofegante sobre o chão úmido…

Ao longe, o som de tiros de canhão soava como uma despedida.

Rass El-Naqoura surgiu no horizonte, envolta em uma névoa azulada e o veículo parou de repente.

As mulheres saíram de trás das bagagens, desceram e atravessaram na direção de um vendedor de laranjas, sentado na beira da estrada.

Ao voltarem com as laranjas, o som de seus soluços nos alcançou.

Só então as laranjas ficaram claras para mim: cada uma dessas frutas grandes e saudáveis ​​era algo a ser apreciado.

Seu pai saiu do lado do motorista, pegou uma laranja, olhou para ela em silêncio e começou a chorar como uma criança indefesa.

Em Rass El-Naqoura, nosso veículo se juntou a muitos outros semelhantes.

Os homens começaram a entregar suas armas aos policiais que estavam ali para isso.

Então chegou a nossa vez. Vi pistolas e metralhadoras jogadas sobre uma grande mesa, vi a longa fila de grandes veículos entrando no Líbano, deixando para trás as estradas sinuosas da terra das laranjas e então também chorei amargamente.

Sua mãe ainda olhava silenciosamente para as laranjas e todas as laranjeiras que seu pai havia deixado para os judeus brilhavam nos olhos dele. Como se todas aquelas belas árvores que ele havia comprado uma a uma estivessem refletidas em seu rosto… E em seus olhos, as lágrimas, que ele não conseguiu esconder do policial, brilharam.

Quando, à tarde, chegamos a Saida, tínhamos nos tornamos refugiados.

(Texto traduzido por mim, do Francês. Esse é apenas o início do conto “A terra das laranjas tristes”, de Ghassan Kanafani, publicado em 1963.)

PS Na foto acima vemos, ao lado da imagem de Ghassan Kanafani, cartazes pedindo a liberação de Salah Hamouri, um prisioneiro político franco-palestino. Hamouri é advogado e trabalha na organização de defesa de prisioneiros políticos palestinos Adameer. Vítima da repressão israelense há anos, ele se encontra mais uma vez em “detenção administrativa”. “Detenção administrativa” é algo utilizado frequentemente por Israel contra o povo palestino e significa ser preso ou presa sem acusação formal e sem julgamento, por tempo indeterminado.

Sobre sotaques e preconceito linguístico

Recentemente escutei o episódio “Nordeste: fome, falta e manipulação” do podcast Prato Cheio. Na introdução do episódio podemos ler: “Ser nordestina é carregar consigo, na origem, nos sotaques, uma série de estigmas advindos de um país extremamente classista.” Recomendo muitíssimo esse episódio, que ajuda a entender a construção da xenofobia anti-nordestinas. 

Quando eu tinha perfil no Instagram rolava uma conversa recorrente com o pessoal que me seguia por lá sobre sotaques. Foram tantos comentários sobre o meu sotaque, sobre a maneira que eu chamava certos alimentos, que um dia eu escrevi provavelmente a série de stories mais longa que aquela plataforma já viu pra falar desse assunto. E a repercussão foi imensa. Desde que escutei o interessantíssimo episódio sobre o Nordeste fiquei com vontade de trazer aquela conversa pra cá. Felizmente eu achei o rascunho da série de stories sobre sotaques, rescrevi algumas partes e completei outras e o resultado é o que você vai ler a seguir.

Se você não sabe ainda, sou de Natal, RN. Na esquina do Nordeste. Mas acredito que não dá pra acompanhar meu trabalho por mais de alguns minutos sem perceber isso. Seja pela quantidade de coentro nas minhas receitas, ou, se você viu algum vídeo ou escutou uma participação minha em algum podcast (está tudo listado na página Mídia), pelo meu sotaque. E é disso que eu vim conversar com vocês hoje: sotaques. Na verdade, sobre preconceito linguístico e como a cultura nordestina é invisibilizada ou objetificada. Não vai ter coentro, então, galera que odeia essa erva, continue por aqui.

Muitas luas atrás postei a receita da minha releitura de um prato típico nordestino, que a minha mãe fazia pra mim quando eu era criança: caldo da caridade. O ingrediente principal desse prato é caldo de feijão macaça e logo no início do texto eu coloquei entre parênteses “fradinho” pra que as pessoas de outros lugares entendessem de que feijão eu estava falando. 

Mesmo assim uma pessoa me perguntou (lá no Instagram) se “macaça” era o nome daquele feijão em Francês.

Fiquei muito surpresa. Francês? Achei que, já que eu estava falando de uma receita nordestina, seria óbvio que a palavra fazia parte do vocabulário nordestino. Eu nunca fui na região Norte (meu sonho) e conheço pouco as tradições culinárias de lá. Mas se estivesse lendo uma receita de lá e topasse numa palavra desconhecida pra mim, deduziria que é algo típico. Se a pessoa escrevendo a receita tivesse dado um sinônimo conhecido pra mim, eu diria “ah, então é assim que chamam X no Norte.”

Pra mim é importante usar o meu vocabulário, principalmente numa receita tão carregada de memória afetiva. Mas tenho plena consciência que não é em todo lugar do Brasil que esse feijão é conhecido como “macaça”, por isso fiz questão de incluir também “fradinho”, que é mais conhecido.

Algumas leitoras nordestinas (ainda no Instagram) até puxaram minha orelha depois, com razão, quando eu respondi “isso não é Francês, não, no Nordeste falamos assim”, pois no estado delas não usam essa palavra. O Nordeste é vasto e longe de ser homogêneo e eu deveria ter dito “na minha parte do Nordeste falamos assim”. Pra minha defesa eu quis dizer que era no Nordeste que essa palavra era usada, mas obviamente não é todo o Nordeste que a usa. 

Não culpo as pessoas de outras regiões por não terem familiaridade com os dialetos nordestinos (falarei sobre o que é um dialeto mais na frente). Se nós, do Nordeste, geralmente sabemos que  no Sudeste tem algumas diferenças de vocabulário é porque consumimos a mídia vinda de lá e crescemos vendo novelas e noticiários com pessoas que falam um dialeto diferente do nosso. Mas o que achei interessante nesse ocorrido foi uma pessoa de fora do Nordeste ler uma história explicitamente nordestina e ainda assim achar mais plausível que a palavra desconhecida faça parte de uma língua estrangeira do que do vocabulário nordestino. 

Sempre escrevi minhas receitas usando as palavras do meu vocabulário: jerimum, macaxeira. E já me perguntaram “O que é jerimum?” algumas vezes. (É “abóbora”, caso você não saiba). No RN falamos jerimum e quem é natural do estado é “papa-jerimum” (o que me agrada mais do que ser chamada de “potiguar”, pois essa palavra significa “comedor de camarão”). Eu nunca teria a ideia de escrever receitas usando palavras que não uso na minha fala. Além de soar falso, não vejo razão pra renegar o meu dialeto e adotar o dominante. Mesmo assim, absolutamente todas as vezes que saí do Nordeste e dei palestras ou cursos em outros lugares do Brasil as pessoas fizeram comentários sobre eu “ter sotaque nordestino”. 

Interessante notar a evolução dos comentários. Eu tinha 12 anos quando saí do Nordeste pela primeira vez. Fui visitar parentes no Goiás com a família. Foi quando descobri que eu “tinha sotaque”. Bastava eu abrir a boca pras pessoas goianas (crianças e adultas) rirem e dizer: “Você fala com sotaque do Norte.” Eu não entendia como aquelas pessoas podiam ser tão ruins em geografia e sempre corrigia: “Nordeste. Eu venho do Nordeste. O Norte fica à esquerda.” Mas não tinha jeito, pra elas eu era nortista, tinha sotaque nortista e ponto final. 

Já hoje as pessoas de outras regiões não riem mais quando me escutam falar. Elas elogiam! Dizem: “Nossa, que sotaque lindo” ou “Que fofo, esse sotaque”. Então meu sotaque passou de algo risível pra algo objetificado. Eu entendo que as pessoas são sinceras e óbvio que prefiro que achem bonito do que caiam na risada, como faziam quando eu era criança (embora na última vez que estive em Florianópolis o dono de uma lanchonete onde eu estava comendo tirou onda com o meu sotaque, prova que ainda não pararam de rir do sotaque nordestino). Mas sabe o que seria melhor ainda? Nada. Adoraria falar com as pessoas e não ouvir nenhum tipo de comentário sobre a maneira como falo, assim como tenho a educação de nunca fazer comentários sobre o sotaque delas (mesmo achando alguns mais melodiosos que outros, guardo essas opiniões pra mim mesma).

Talvez você não entenda por que estou dizendo que isso é objetificação, então deixa eu explicar. Já aconteceu várias vezes de me falaram (geralmente homens) “Que sotaque gostoso! Fala mais pra eu escutar.” Isso me faz ferver por dentro. Eu não vou entreter ninguém só porque a pessoa decidiu que meu sotaque é “gostoso”. Minha vontade é dizer: “Quer que eu toque rabeca e dance um xaxado também, senhor?” O meu dialeto, longe de ser visto apenas como o sistema linguístico da região onde nasci e parte da minha identidade, se torna um objeto pra entreter ouvidos alheios, quando tudo que eu quero é terminar o meu sanduíche em paz. Ou trocar ideias com as pessoas sem me sentir como algo exótico. 

O mais curioso é quando me dizem: “Olha, ela tem sotaque!” Como se o resto do Brasil não tivesse sotaque! O Sudeste, mais precisamente SP e Rio, dominam culturalmente o resto do país, então paulistas e cariocas juram que não tem sotaque. Consideram a maneira como falam “padrão” e tudo que desvia disso é “diferente” (ou, “sotaque”). Já vimos esse processo antes, não é mesmo? 

E, cúmulo do absurdo, já teve quem me disse: “Nossa, ela ainda fala Português com sotaque nordestino, mesmo depois de ter morado a metade da vida no estrangeiro.” Oxe! E haveria deu esquecer o meu dialeto? Note que o comentário não é “ela ainda fala Português sem sotaque”, mas “ela ainda fala Português com sotaque nordestino”. A pessoa sai de Natal, vai morar na Europa e era de se esperar que ela voltasse falando Português com sotaque paulista? 

A cultura nordestina sempre foi invisibilizada ou caricaturada. E a língua é um instrumento de dominação. E de discriminação. Já ouviu falar em preconceito linguístico? Então senta que lá vem (mais) história.

Eu sou formada em linguística. Vou começar explicando o que é linguística, pois muita gente confunde e acha que sou formada em Letras ou pergunta: “Linguística? Que língua você estudou?”. 

Linguística é uma ciência cognitiva, por isso essa disciplina também é conhecida como Ciências da Linguagem (esse era o nome do meu departamento na universidade, inclusive). Não estudei nenhuma língua específica porque a linguística estuda a linguagem. 

Linguagem é a faculdade de comunicar. Língua é a forma que essa comunicação adquire dentro de um determinado grupo humano, em determinado espaço geográfico, em um momento temporal preciso e esse sistema tem características específicas. Animais não-humanos comunicam, mas nenhum tem um sistema tão sofisticado como nossas línguas (mas não é motivo pra discrimina-los, viu?). Tem mais coisas aqui, estou simplificando ao máximo. A linguagem é uma habilidade cognitiva, a língua é a manifestação tangível dessa habilidade.

Fiz minha graduação em Aquisição da Linguagem e comecei um mestrado (que nunca terminei) em Linguística Teórica e Descritiva, no campo da sintaxe. Existe uma diferença fundamental entre adquirir uma língua e aprender uma língua. Nós adquirimos nossa língua materna e aprendemos línguas estrangeiras. Crianças que crescem em ambiente bilíngue adquirem duas línguas ao mesmo tempo. Temos uma espécie de aparelho de aquisição de línguas. Aqui entra Noam Chomsky, um dos maiores linguistas de todos os tempos e o autor que mais estudei, pois meu campo de estudo era o mesmo do dele. Vou poupar vocês da aula sobre generativismo e gramática universal, pois quando começo a falar dessas coisas me empolgo e quando dou por mim estou desenhando árvores sintáticas, enquanto as pessoas me olham com cara de paisagem, sem entender por que acho isso tudo tão interessante. 

Aprender uma língua estrangeira é passá-la pelo prisma da nossa língua materna e, como era de se imaginar, é um processo muito mais lento e trabalhoso. Pra se ter uma ideia, no pico da aquisição linguística, ou seja, quando estamos adquirindo nossa língua materna, crianças aprendem em média uma palavra nova por hora. O que significa que basta que elas sejam expostas uma única vez à palavra nova pra aprendê-la. Imagina o sonho que seria se a gente aprendesse línguas estrangeiras com essa facilidade!

Também tem pessoas que acham que Linguística tem a ver com gramática e como falei que minha área de pesquisa era sintaxe, a confusão fica ainda maior. Não é exatamente da mesma sintaxe que estou falando aqui, nem da mesma gramática (quando falo da “gramática universal de Chomsky, por exemplo).  E, diferença fundamental entre as duas disciplinas, a gramática é prescritiva, enquanto a linguística é descritiva. A gramática é artificial e dita regras, enquanto a linguística observa e descreve, sem dar julgamento de valor. A linguística descreve como falamos, enquanto a gramática diz qual é a maneira “correta” de falar. 

Agora vou deixar a coisa mais complexa, mas é uma aula interessante.

Lembra que expliquei, no início do texto, que falaria de dialetos? Sabe qual a diferença entre uma língua e um dialeto? Na faculdade aprendi que “uma língua é um dialeto com um exército e uma marinha.” Ou seja, à partir do momento em que um dialeto é elevado à posição de dialeto oficial de um Estado-nação, ele adquire o status de língua. A língua é um objeto político. 

É senso comum achar que “dialeto” é uma língua menos sofisticada, menos desenvolvida. Nesse sentido, dialetos sempre foram usados pra denominar a língua dos subalternos. Não só os dialetos indígenas no Brasil, mas os dialetos dos povos colonizados pelos europeus, inclusive dentro da Europa (são colonizações diferentes e não cabe aqui os detalhes). Até hoje, na França, tem vários dialetos não reconhecidos como “oficiais”, como o Bretão e o Occitano, por exemplo, e por isso são “dialetos” e não “línguas” pro Estado francês (claro que as pessoas que o falam sabem que são línguas da mesma maneira que o Francês é uma língua). Uma excessão é o Basco (falado numa região entre a França e a Espanha), que apesar de não ser a língua oficial de um Estado, tem status de língua. Então o sistema linguístico de um grupo pode ser considerado “dialeto” se ele pertencer ao grupo dominado, enquanto o sistema linguístico do grupo dominante vai ser o dialeto oficial do Estado, logo será chamado de “língua”.

Então você já entendeu que língua e dialeto são nomes diferentes pra mesma realidade linguística: um sistema complexo de sons (ou visual, no caso de Libras) utilizado pra transmitir informações de um cérebro pra outro. Dependendo do contexto, vamos chamar isso de “língua” ou de “dialeto”, porém do ponto de vista da linguística, só existem dialetos. Se língua é um objeto político, o dialeto é um objeto linguístico.

Por isso quando linguistas fazem pesquisas tem que ser sobre um dialeto determinado, pois a maneira como o meu Português se organiza é diferente de outras pessoas que falam Português em outros lugares. 

Vou dar um exemplo de sintaxe. No meu dialeto (Natal/RN), substantivos próprios (nomes de pessoas, pra ser específica) não são precedidos de um artigo definido. Já no dialeto de São Paulo, sim. Eu digo: “Roberta veio hoje?” Uma paulista vai dizer: “A Roberta veio hoje?” A estrutura sintática é diferente. Então se eu estiver fazendo uma pesquisa no campo da sintaxe, como o que eu fazia no mestrado, não posso fazer declarações como: “No Português, substantivos próprios relativos a nomes de pessoas são precedidos de um artigo definido: A fulana, O fulano”, pois isso só é verdade em alguns tipos de Português. Ou seja, só é verdade em alguns dialetos.

“Ah, mas a gramática do Português diz que não é correto colocar artigo definido antes de substantivo próprio, a menos que seja pra especificar, como na frase: ‘A Roberta que eu conheci na infância era diferente da Roberta de hoje’, logo a paulista fala errado e a natalense fala certo.” 

Vou relembrar que a gramática diz como devemos falar, ela é normativa, mas que a linguística descreve como falamos, logo, é descritiva. Não estudamos a gramática que você encontra nos livros, mas sim a fala das pessoas, que tem sua gramática própria e que nem sempre coincide com a norma da gramática do livro.

Chegou a hora de mencionar outra coisa importante. Eu disse que o objeto de estudo da linguística é o dialeto, certo? Pois deixa eu dizer também que só estudamos o dialeto falado, nunca o escrito. O que nos interessa é o falar das pessoas, não a maneira como elas escrevem.

Então falamos, por exemplo, de “dialeto do interior do RN”, ou “dialeto da cidade de SP” e mesmo aí ainda poderíamos ter grupos menores de dialetos de acordo com os bairros, classe econômica, idade… Então à partir de agora vou escrever “dialeto” sempre que me referir ao que, fora da linguística, chamam de “sotaque”, tá? É preciso guardar essa informação pra entender o resto da argumentação.

Algo sempre me fascinou. Conheço pessoas nordestinas que foram morar em outra região e adotaram o dialeto na nova morada. Acontece até de voltaram pro Nordeste, depois de algum tempo fora, e manterem o novo dialeto. Quem viu Lisbela e o Prisioneiro vai lembrar de Douglas, o rapaz que saiu do interior do Nordeste pra passar umas férias no Rio e voltou falando “carioquês”, o que virou motivo de piada na cidade. É disso que estou falando. E reparem que a situação inversa quase nunca acontece. Eu conheço pessoas que nasceram no Rio, mas moram em Natal desde que eram crianças e hoje, adultas, continuam falando “carioquês”. E é exatamente aqui que entra o preconceito linguístico e a desvalorização da cultura nordestina. 

O Nordeste ainda é visto pelo resto do país como um lugar de atraso, de gente ignorante, de seca e de fome. Eu lembro que ainda era criança quando ouvi Lulu Santos dizer, em um programa na tv, que “O Brasil só não vai pra frente por causa do Nordeste.” E o que falar do ódio que os bolsonaristas tem do Nordeste, último bastião antifascista do país? Quem ainda lembra da estudante paulista que, depois da reeleição de Dilma, tweetou: “Nordestino não é gente, faça um favor a SP, mate um nordestino afogado”? Eu lembro.

Por isso não é surpreendente que a pessoa que sai de João Pessoa pra morar, digamos, em São Paulo, adote o dialeto dominante, provavelmente na tentativa de sofrer menos discriminação por ser nordestina ou por já ter internalizada o preconceito contra sua própria região e dialeto. Já a paulista que vai morar em João Pessoa vem da cultura dominante, fala o dialeto dominante e geralmente não sofre discriminação por ser paulista. Então a relação que temos com nosso dialeto está diretamente ligada à maneira como nossa cultura é vista pelo grupo dominante. E muita gente do Nordeste acaba integrando, inconscientemente ou não, a noção de que nossa região,  cultura e dialeto são inferiores.

Por isso é tão importante pra mim usar as palavras do meu vocabulário e não “suavizar” o meu dialeto quando estou palestrando ou dando cursos no Sudeste ou Sul. É cansativo ter que ouvir as mesmas coisas, de novo e de novo? É um saco! Porém qual é a alternativa? Mudar a maneira como eu falo pra soar menos “diferente” fora do Nordeste? Jamais! Ninguém deveria precisar fazer isso pra ser levada a sério (sim, porque quando alguém diz que falo de uma maneira lindinha, fofa, etc eu me sinto infantilizada). 

Sim, eu tenho sotaque e você também tem. Todas temos. Falamos dialetos diferentes e o meu não é inferior ao seu. Por isso seguirei dizendo “macaxeira”, “jerimum” e “feijão macaça”. Até que as pessoas escutem alguém como eu falar fora do Nordeste e reajam com naturalidade, sem rir nem objetificar o meu dialeto. Se meu dialeto soa exótico aos seus ouvidos isso me informa que você não conhece muitas pessoas nordestinas. Então fica a dica: se abra mais pra nossa cultura. Escute música de nordestinas, veja filmes feitos por e com nordestinas… Talvez, depois de um tempo, nossos dialetos (são vários no Nordeste, não falamos todas da mesma maneira) parem de soar exóticos, fofos, engraçados, gostosos e você consiga lidar com a pessoa na sua frente sem sentir a necessidade de fazer comentários sobre a maneira como ela fala. Nem achar que uma palavra do vocabulário do RN é algo em Francês. 

Claro que seguimos livres pra achar mais ou menos bonito diferentes dialetos do Brasil. Eu mesma tenho os meus preferidos e outros nem tanto. Mas, como falei, podemos guardar isso pra nós ou até mesmo fazer um elogio, mas sem o tom que faz com que o elogio se torne algo infantilizante (“ai, que fofo!”) nem objetificante (“ai, que delícia, fala mais!”).

Um punhado de farinha e um pedaço de rapadura

Quando minha conta no Instagram foi desativada (contra a minha vontade), o que mais me chateou foi ter perdido o conteúdo que eu vinha publicando ali há anos. Eu não tenho a maioria das fotos que estava lá, mas o que mais me deixou realmente triste foi perder os textos, que representavam centenas de horas de trabalho. Mas não tinha só texto de trabalho ali. No meio da montanha de informação pra conscientizar sobre antiespecismo, sobre a construção do veganismo popular, receitas, dicas e material pra refletir sobre diversas lutas (feminismo, libertação do povo palestino, combate ao racismo e LGBTfobia…) tinha um pequeno texto extremamente precioso pra mim. Um trecho da última conversa que eu tive com a minha mãe, dois anos atrás.

Chamar de “conversa” vai parecer estranho, pois a mente da minha mãe já estava bem debilitada pelo Alzheimer e nosso diálogo não fazia sentido nenhum. Mas foi tão engraçado, eu ri tanto naquele dia, que corri pra pegar um papel e anotar tudo. Eu não queria perder aquele tesouro.

Foi a última vez que houve uma troca de frases longa entre nós. Depois daquele dia ela passou a falar cada vez menos e nunca dizia mais de uma ou duas frases por vez. Apesar de todos os cuidados da minha família, minha mãe teve Covid recentemente. A doença afetou muito a saúde dela e uma das sequelas foi mergulhá-la no silêncio. Ela já não fala praticamente nada e quando tenta pronunciar alguma palavra, ela sai da boca tão fraquinha que não consegue chegar inteira nos nossos ouvidos.

Isso foi uma porrada grande pra mim. Estou me preparando emocionalmente pra encontrar uma mãe silenciosa daqui a algumas semanas (vou ao Brasil no final do mês). O que mais me dói é pensar que nunca mais vou escutar ela responder “Oi, filha”. Eu gostava de falar “Mãe?” só pra ter o prazer de ouvi-la me chamar de “filha”. Por causa do Alzheimer, hoje minha mãe precisa da nossa ajuda pra tudo. Pra comer, ir ao banheiro, pra tomar banho, pra se vestir. Chega esse momento na vida em que nos tornamos a mãe da nossa mãe. Eu me tornei a responsável, a adulta. Ela se tornou um ser frágil que não sobrevive sem nossos cuidados. Por isso eu apreciava tanto esses momentos em que ela me chamava de filha. Nossa relação voltava a ser o que era. Ela, a mãe. Eu, a filha. Eu reencontrava minha mãe pour um segundo. 

Foi então que o universo me enviou um presente. Na semana em que ela parou de falar, descobri o diálogo engraçado, que eu pensava ter perdido pra sempre, em um dos meus cadernos. Não lembrava de ter anotado ali, então foi uma enorme surpresa. Nem consigo explicar a felicidade que senti ao ler aquilo de novo. E pra não correr o risco de perder as palavras dela novamente, vou deixar gravado aqui no blog também.

(Era depois do almoço. Minha mãe me chamou pra dar um cochilo.)

-Deite um pedacinho* aqui comigo.

-Deito, mãe.

-Trouxe o sal?

-Trouxe.

-O sal, não, mulher. O açúcar. 

-Trouxe também.

-Achou uma linhazinha aí, minha filha?

-Achei, mãe.

-E tão jogando fora?

-Tem ninguém jogando fora.

-Cadê tu, cabelo de angu?

-Tô aqui, mãe. 

-No chão?

-Não, na cama.

-Eu queria era saber como tira cenoura.

-Puxando.

-E ele saiu por essa porta?

-Saiu. Mas volta.

-Tá chovendo muito.

-O que?

-Chovendo, não. Tão fazendo uma brincadeira muito séria, muito boa.

(ela começa a tossir)

-Tá doente, mãe?

-Tô. Mas também já aturei* muito. Chega*, Lavin!

-Quem é Lavin?

-Um rapaz lá de Santana.

-Vai dormir não, né, mãe?

-Agora, não. Só de noite. É raposa.

-Raposa, o que é?

-Um bichinho assim… Do jeito que ele sentir for, ele vai e ferve.

-Mãe?

-Oi, filha.

-Quem não pode com o pote…

-não pega na rudia.*

-…

-Tinha duas cabeças.

-Quem?

-O bode e a bada.

-Né cabra, não?

-Tu quer mastigar, é?

-Cabra? Mãe, pare de contar brebote*!

-Eu vou é plantar uma ruma*! Quem é seu pai?

-Paulo.

-Ah, o meu marido. E você só tem um?

-De pai, só. 

(Ela levantou da cama e sentou na rede. Sentei de frente à rede, peguei as mãos dela e beijei. Ela acariciou minha palma direita, depois fechou minha mão e a segurou, fechada, entre as mãos dela, como se estivesse protegendo algo.)

-A senhora colocou o que na minha mão?

-Um punhado de farinha e um pedaço de rapadura.

(e sorriu)

*Pequeno dicionário sertanejo

Minha família é do Sertão potiguar e tem algumas palavras e expressões nessa conversa que nem todo mundo vai entender.

1-“Pedaço” pode ser uma medida física (um pedaço de bolo) ou uma unidade temporal (“Espere um pedaço” / “Fique comigo um pedacinho”). Acredito que, assim como o espaço, o tempo também pode ser dividido em pedaços.

2- Aturar: nesse contexto, é um verbo sinônimo de “durar”. “Já aturei muito!” significa “Já durei muito, já vivi muito”. Mas também significa “suportar” (“Eu não aturo essa pessoa!”)

3- Chega, _____(nome de alguém)!: expressão que significa algo como “Venha ver isso aqui!”. O “chega” que significa “basta!” é pronunciado diferente, de maneira enfática. Já o “chega” que quer dizer “venha ver aqui” é pronunciado “Cheeeega”. Aliás “basta” também tem um significado duplo no dialeto sertanejo;)

4-Rudia: na verdade é a nossa maneira de pronunciar a palavra “rodilha”. Significa uma corda ou, como era mais comum no Sertão, um pano que você coloca arrumado em círculo em cima da cabeça pra carregar algo pesado. No caso aqui, o pote d’água. Minha mãe adorava falar esse ditado, que quer dizer que “se você não dá conta do trabalho, nem comece”. Uma versão moderna e sudestina seria: “Se não sabe brincar, não desce pro play.”

5-Brebote: significa coisa sem sentido. “Falar brebote” = falar besteira.

6- Ruma: sinônimo de “um monte”. Uma ruma de gente. Uma ruma de comida. De acordo com minha irmã mais velha, “ruma” é coletivo de “bosta”. Mas, por extensão, se tornou coletivo de tudo.

Como cozinhar pra semana inteira, parte 2

Quando eu publiquei o primeiro texto falando sobre como cozinhar pra semana inteira, prometi voltar pra falar de outro método, o que uso quando trabalho como chef a domicílio. Esse dia chegou e vim fazer um relato detalhado de como isso funciona, mas resolvi ir além! Também vou mostrar como aplicar as dicas, usando um cardápio composto por receitas aqui do blog, além de explicar como essa comida se traduz em refeições pra semana inteira, usando poucos ingredientes acessíveis pra complementar. O post é longo, mas vale a pena ler até o final.

Essa é a maneira mais eficaz de cozinhar vários pratos de uma vez, mas requer mais planejamento e sair pra fazer compras. Se você já tiver ido à feira/mercado e quiser preparar o cardápio baseado no que tem em casa, o primeiro método faz mais sentido. Mas pra saber como organizo o trabalho de chef a domicílio, como consigo cozinhar todos os pratos que uma família vai consumir em uma semana em apenas 4 horas (incluindo a limpeza da cozinha!), aqui vai o passo-a-passo.

Faça uma lista com o que você quer comer durante a semana. 

-Escolha pratos que você já cozinhou várias vezes e pode fazer sem muito esforço. Assim seu tempo na cozinha vai ser menor e mais agradável. 

-Se realmente quiser fazer um prato novo (que vai exigir mais concentração da sua parte), escolha só um, senão a coisa fica complicada demais. 

-Pense em receitas com legumes e frutas da estação: é mais barato, mais gostoso e mais ecológico.

-Já disse isso no primeiro post dessa série, mas vou repetir: escolha pratos que você realmente gosta de comer. Passar horas na cozinha e encher a geladeira de comida pronta só faz sentido se você tiver vontade de comer essa comida depois. 

Misture pratos completos com componentes que podem entrar em vários pratos. 

-Isso tem várias vantagens. Você consegue fazer mais pratos em menos tempo, terá mais liberdade na hora de montar as refeições e vai ter mais variedade de alimentos durante a semana. 

-Exemplos de pratos prontos: sopa, ensopado, feijão, torta salgada, quiche, curry, macarronada…

-Exemplos de componentes: arroz cozido (ou outro grão), legumes assados, uma pasta pra passar no pão, milho cozido, grão de bico cozido (ou outra leguminosa pra incrementar uma salada, uma sopa, virar bolinho)…

(Pra optimizar o fogão e fazer o máximo de comida ao mesmo tempo, escolha uma mistura de pratos assados e pratos cozidos. Assim dá pra colocar algo no forno e ainda ter as bocas do fogão disponíveis pra preparar outras coisas. E não esqueça que a panela de pressão é a sua maior aliada pra economizar tempo e gás.)

Depois de escolher os pratos/componentes, dê uma volta pela sua cozinha e veja o que já tem na dispensa e se tem frutas/legumes da última feira dormindo na geladeira. 

-Incorpore esses vegetais nas receitas que você tinha previsto pra semana.

-Se ligue no desperdício! Se tiver comida precisando ser usada na geladeira, dê prioridade a ela. Adapte as receitas da sua lista inicial, se preciso. 

Baseado nos pratos que você quer fazer e no que já tem na sua cozinha, prepare a lista de compras.

-Primeiro eu listo todos os ingredientes necessários pras receitas que vou cozinhar, depois vou eliminando o que já tem em casa. O que sobrou é a lista de compras. 

-Já que você vai até o mercado ou feira, provavelmente vai querer fazer todas as compras da semana. Então complete a lista incluindo o que mais precisar pra sua alimentação semanal (e a das pessoas da sua casa). 

Beleza, você fez a lista dos pratos que quer preparar essa semana, incorporando as sobras da última feira que estão murchando na geladeira, preparou a lista de compras, foi à feira e trouxe tudo que precisava pra casa. Como proceder agora? 

Vou explicar como faço (na casa de clientes e aqui em casa), usando técnicas que aprendi trabalhando em restaurantes. Mais do que seguir à risca o meu passo-a-passo, gostaria que você lesse com atenção e entendesse como a coisa funciona pra ser capaz de desenvolver uma rotina que caiba na sua cozinha, no seu tempo e que respeite suas capacidades. Bora lá.

O guia prático da maratona na cozinha

Atenção! Se for usar leguminosas (feijão, grão de bico) lembre de deixá-las de molho no dia anterior.

Vista o avental, tome um copo d’água e coloque um podcast pra tocar (ou suas músicas preferidas).

1- Escreva os pratos que você vai preparar com os ingredientes que entram em cada um deles e cole em algum lugar visível (na porta da geladeira, na porta do armário). Use como guia pra fazer a “mise en place” e pra ter certeza que não esqueceu nenhum ingrediente. 

2- Coloque todos os ingredientes que você vai precisar em cima da mesa (ou outro espaço de trabalho). Depois faça grupos correspondentes às receitas. Se estiver fazendo uma sopa, uma lasanha, um feijão e legumes assados, separe todos os ingredientes da sopa num canto, todos os ingredientes da lasanha em outro… Isso vai facilitar a próxima etapa. 

3- Agora que você sabe quantas cebolas vai precisar usar ao todo, quantos dentes de alho, o que vai precisar ser descascado, etc chegou a hora de fazer a famosa “mise en place” (pronuncie “mizãplás”). Isso é um termo francês utilizado na culinária que, traduzido literalmente, quer dizer “colocação no lugar”. Significa preparar tudo que for necessário pra fazer uma receita (picar o alho, picar a cebola, cortar os legumes, etc) e deixar tudo bonitinho, em cumbucas e ao alcance da mão, antes de acender o fogão. Corte, pique, descasque e lave tudo que será utilizado. Cortar tudo junto te faz ganhar muito tempo e na hora de cozinhar vai ser muito mais rápido: é só ir pegando o que foi cortado e jogando na panela.

(Vai bagunçar a organização de ingredientes por receitas que fizemos na etapa anterior? Sim, mas é por isso que tem a lista de receitas com os ingredientes colada na porta do armário, pra te guiar na hora de cozinhar. Os ingredientes que não precisarem ser picados -os grãos, temperos, etc, podem seguir agrupados por receita. Isso te faz ganhar tempo, além de evitar que coisas queimem. Imagine que você está refogando alguma coisa e a receita pede cominho. Aí você para de mexer a panela e vai procurar o cominho dentro do armário, mas tem que tirar tudo da frente porque o danado tá lá no fundo. Enquanto isso a panela tá secando no fogo… Sentiu o drama? Queremos evitar isso.)

4- Chegou a hora de acender o fogão e cozinhar tudo. Essa etapa vai ser detalhada daqui a pouco.

5-Depois de pronta, divida a comida em recipientes com tampa e guarde na geladeira. Você também pode congelar uma parte pra ser degustada na semana seguinte. 

6- Já que estamos aqui, aproveite sua maratona na cozinha pra lavar, secar e guardar as folhas pra saladas. E pra completar, faça um molho pra salada, que pode ser guardado na geladeira e usado durante toda a semana. É rapidinho e o combo folhas limpas + molho pronto vai te ajudar a comer mais salada durante a semana.

7- Muito importante: limpe enquanto cozinha. Essa é uma regra de ouro nos restaurantes, mas deve ser aplicada na sua casa também, se não quiser que sua experiência de cozinhar pra semana se torne um caos. Vá lavando a louça conforme for sujando e limpando a superfície de trabalho (bancada, mesa) entre cada receita. Só o chão deve ser limpado apenas no final, por razões óbvias.

Dica bonus (óbvia, mas que precisa ser explicitada pra muita gente): Você controla o fogo, não o contrário! 

A comida tá começando a pegar no fundo da panela? Baixe o fogo. A água tá demorando a ferver? Aumente o fogo. Precisa se ausentar da cozinha por uns minutos (pra ir ao banheiro, por exemplo)? Desligue o fogo. Se atrapalhou com tanta comida pra preparar de uma vez e a coisa saiu do controle? Apague o fogo, se sente e respire fundo algumas vezes antes de voltar pro fogão.

Dica bonus 2: Se você não tem muita prática na cozinha, nem uma tarde inteira pra preparar comida pra semana, comece preparando um ou dois pratos em quantidade grande (um feijão pro almoço e uma sopa pro jantar, por exemplo), que você vai comer várias vezes nos dias seguintes. Já quebra um galhão na hora de preparar as refeições mais tarde e mesmo se você não puder preparar mais nada durante a semana, esses dois pratos vão melhorar a qualidade da sua alimentação. 

Acender o fogão e cozinhar pra semana: o passo-a-passo 

Parece muita informação pra assimilar de uma vez? Deixa eu te mostrar como colocar tudo isso na prática, usando um cardápio-exemplo com receitas aqui do blog. Não é um cardápio completo pra uma semana inteira, pois esse post ficaria quilométrico se eu fizesse isso. Mas alguns pratos são suficiente pra você entender o funcionamento desse método. Depois é só adaptar pra quantidade de comida que você quiser preparar. 

(Muitas das fotos que aparecem aqui foram feitas na casa de uma das minhas clientes, em Berlim, muitas luas atrás, e não correspondem às receitas do cardápio que serve de exemplo. Elas servem pra ilustrar esse guia, pois fica mais fácil entender as explicações ao ver as imagens.)

Digamos que você vá cozinhar:

Sopa de jerimum

Feijão acebolado

Arroz

Legumes assados (abobrinha, berinjela, cebola…ou brócolis e couve-flor)

Macaxeira cozida

Hummus cubano

Grão de bico cozido

Um molho pra salada (pode ser minha vinagrete preferida ou a vinaigrette de Céline)

-No dia anterior, deixe o feijão e o grão de bico de molho. 

-Comece escorrendo o grão de bico demolhado e levando pra cozinhar (na pressão) com água limpa e sal.

-Limpe a área de trabalho (mesa, bancada ou canto da pia – o lugar onde você for colocar a tábua e cortar seus ingredientes) e retire todos os objetos que possam atrapalha seu trabalho. Prepare a faca e a tábua de cortar. Uma boa faca, bem afiada, reduz consideravelmente o seu tempo na cozinha, além de ser muito mais agradável de manipular. E pra que sua tábua não saia do lugar enquanto você corta, diminuindo o risco de acidentes com a faca, coloque um pano úmido embaixo (como nas fotos abaixo).

-Separe os ingredientes por receita e faça a mise en place. Se não quiser usar essa palavra francesa, porque soa esnobe, eu apoio. Prepare os vegetais: corte as cebolas, o alho, as verduras, descasque a macaxeira (se não estiver comprado descascada) e deixe na água (pra não oxidar)…

-Separe as verduras cortadas de acordo com as quantidades que serão usadas em cada receita. Se você vai usar 1 cebola na sopa e 3 no feijão, coloque 1 cebola picada em uma cumbuca e as 3 cebolas em fatias pro feijão numa outra. Assim você visualiza exatamente a quantidade que vai entrar em cada receita, o que vai facilitar muito o seu trabalho depois. Faça a mesma coisa com o alho e todo ingrediente que entre em vários pratos. 

-Transfira os legumes que serão assados pra uma assadeira/forma/placa, regue com azeite ou óleo, tempere com sal e leve ao forno.

-Nesse ponto o grão de bico já deve ter cozinhado. Desligue o fogo e deixe a pressão sair naturalmente. 

-Não esqueça de ir lavando a louça à medida que for sujando e dando uma limpada na área de trabalho.

-Prepare a sopa de jerimum. Refogue o que precisar ser refogado, cubra com água, baixe o fogo e tampe.

-Fique de olho nos legumes que estão assando. A melhor maneira de não esquecer o que está no forno é colocar um alarme no celular.

-Retire o grão de bico cozido da pressão e guarde uma parte pra ser consumida em saladas durante a semana. A outra parte se transformará em hummus. Reserve uma parte do líquido de cozimento (pra usar no hummus).

-Use a panela de pressão onde o grão de bico cozinhou (nem precisa lavar) pra cozinhar o feijão acebolado (cozinhe na água limpa com sal e uma folha de louro). 

-Agora a sopa de jerimum deve estar cozida. Finalize com o leite de coco, retire do fogo e deixe esfriar, coberta.

-Não esqueça dos legumes no forno! Desligue quando estiverem quase totalmente assados e deixe dentro do forno pra terminar o cozimento aproveitando o calor até o final (o gás tá caro!)

-Faça o hummus cubano (com o grão de bico e o líquido de cozimento reservado, além dos outros ingredientes da receita, claro). Coloque o hummus pronto em um pote com tampa e lave o liquidificador.

-A sopa deve ter esfriado o suficiente pra ser transferidos pra recipientes com tampa. Começa outra rodada de lavação de louça. 

*Interrompemos a programação pra te lembrar de beber água. Deixe um copo cheio ao alcance da vista e beba regularmente durante todo o processo. É importante se hidratar enquanto esquentamos a barriga no fogão.*

-O feijão deve estar bem cozido. Desligue, deixe a pressão sair e finalize (no caso do feijão acebolado, siga a receita pra saber como finalizar). Depois de pronto deixe esfriando, com a tampa atravessada.

-Faça o arroz. Enquanto ele cozinha…

-Retire os legumes assados do forno (que já estava desligado) e coloque em um recipiente com tampa. 

-Prepare o molho pra salada. Coloque em um vidro com tampa e deixe na geladeira. 

-Chegou a hora de higienizar suas folhas. Deixe tudo prontinho (enrolado num pano de prato, dentro de um recipiente com tampa) pra ser consumido durante a semana. 

-O arroz cozinhou? Deixe esfriar e aproveite pra lavar a louça que ainda tá suja e limpar a mesa e bancadas. 

-O feijão acebolado já deve estar morno. Guarde em recipientes com tampa (as porções devem ser adaptadas ao tamanho da sua família. Só tem você em casa? Faça porções pra uma pessoa. Tem quatro bocas pra alimentar? Faça porções pra quatro e assim por diante). Lembre que é possível deixar uma parte das porções na geladeira e congelar a outra parte pra consumir no final da semana (ou na semana seguinte).

-Lave a panela de pressão e coloque a macaxeira descascada em pedaços pra cozinhar em bastante água salgada. Cozinha muito mais rápido na pressão: basta contar alguns minutos depois que a panela começar a chiar.

-Agora pode guardar o arroz cozido e limpar o chão da cozinha. 

-A macaxeira tá cozida? Guarde junto com a água de cozimento (na hora de esquentar, esquente nessa água). Última panela a ser lavada e no final pode lavar a pia também. 

-Parabéns pela vitória, guerreira! Abra uma cerveja ou prepare um chazinho e sente com as pernas pra cima. 

Como organizar as refeições

Vou dar exemplos de como essas comidas podem ser combinadas e incrementadas, usando os ingredientes que você já vai ter na dispensa (por ter comprado pra fazer as receitas da lista acima), mais uns extras (batata-doce, chuchu, banana da terra, cenoura, tomate, pepino, banana, mamão, manga, goma pra tapioca ou pão, aveia em flocos, café, farinha de mandioca, macarrão, polpa de tomate e cuscuz) pra se transformar em várias refeições diferentes. Digamos que você cozinhou no domingo. Sua semana pode ser assim:

Segunda

Café da manhã: macaxeira cozida com hummus cubano e café

Almoço: feijão acebolado, arroz, salada (com alface, pepino e manga + o molho pra salada)

Jantar: sopa de jerimum

Terça

Café da manhã: macaxeira cozida com hummus cubano, mamão e café 

Almoço: feijão acebolado, arroz, farofa de banana e salada (alface e tomate + molho pra salada)

Jantar: Macarrão com molho de tomate e legumes assados (misture polpa de tomate industrializada com os legumes. Acrescente pimenta preta e orégano.)

*Enquanto come, deixe umas batatas-doce cozinhando no fogo pros dias seguintes. Depois de cozidas, escorra antes de guardar na geladeira (batata-doce, diferente da macaxeira, não se guarda na água, senão ela fica aguada).

Quarta

Café da manhã: batata doce cozida, café, banana e mamão em pedaços com aveia em flocos e pasta de amendoim

Almoço: salada completa com grão de bico cozido, legumes assados, folhas, pepino e cenoura ralada (mais o molho pra salada e um pedaço de pão, se quiser)

Jantar: sopa de jerimum servida com pão

Quinta

Café da manhã: banana da terra cozida (basta colocar na água, com casca e tudo, e deixar ferver por alguns minutos, até a casca começar a rachar) ou tapioca ou pão com hummus cubano e café

Almoço: feijão acebolado, arroz, bolinho de macaxeira (basta amassar a macaxeira cozida, despejar montinhos em uma assadeira, regar com óleo e levar ao forno até dourar), salada (alface e cenoura ralada + molho pra salada) e banana (sou dessas)

Jantar: cuscuz com amassado de grão de bico e tomate 

(Não sabe fazer cuscuz? Expliquei direitinho na receita de cuscuz com coco. Siga as instruções, mas use um pouco da água quente do fundo da cuscuzeira pra molhar o cuscuz, ao invés do leite de coco. Enquanto o cuscuz cozido descansa, refogue cebola, alho e tomate no óleo ou azeite, até o tomate se desfazer, junte grão de bico cozido e amasse tudo com um garfo. Tempere com sal, pimenta preta e uma erva -orégano seco ou coentro fresco- se tiver e misture com o cuscuz cozido).

ATENÇÃO! Acabou o feijão da geladeira e só tem congelado agora. Lembre de tirar uma porção do congelador à noite e deixar na geladeira, descongelando, pro almoço do dia seguinte.

Sexta

Café da manhã: o resto do cuscuz com amassado de grão de bico do jantar de ontem e café

Almoço: feijão acebolado, farofa d’água, salada (alface e manga + molho pra salada). Tem 15 minutos sobrando? Faça chuchu refogado (como esse aqui, sem o tucupi) pra incrementar o almoço e já adiantar o jantar.

Jantar: batata-doce cozida (que você cozinhou na terça – corte em rodelas grossas e frite ligeiramente, dos dois lados, em um pouco de óleo/azeite. Fica uma delícia!) e a outra parte do chuchu refogado, mais uma banana picada com pasta de amendoim pra completar. 

Se você leu até aqui, obrigada pela atenção. Acho que foi o artigo mais longo que publiquei nos 12 anos de existência desse blog. Por trás dele tem longas horas de trabalho escrevendo e centenas de horas de trabalho em cozinhas profissionais, acumulando conhecimento prático, pra poder compartilhar esse tipo de informação com vocês hoje. Me alegra imenso colocar esse conhecimento à disposição de quem me acompanha aqui. Achou esse tipo de conteúdo útil? Gostaria de sugerir pautas pro blog? Os comentários são todos seus, sua opinião me interessa muito.

 

Servir a minha comunidade, lutar pelo que é justo e transformar o mundo

No último post compartilhei a receita do caldo bem verde que fiz com a couve da minha horta de quintal. Mas o que não contei foi que a batata daquele caldo também veio da horta, assim como a salada, de tomate com folhas de dente-de-leão (que cresce por todos os lados do jardim), que completou o jantar. Foi a primeira vez na minha vida que fiz uma refeição preparada inteiramente com o que eu mesma plantei. Quase inteiramente, na verdade, já que nem o alho, nem a pimenta preta, nem as azeitonas do azeite foram plantadas por mim. Autonomia alimentar total é difícil. Mas até pouco tempo atrás eu nem sequer imaginava que uma dia eu teria uma horta de quintal, muito menos que eu faria refeições compostas quase que totalmente pelo que eu mesma plantei. 

Alguns anos atrás resolvi desenvolver uma prática de agradecimento (pode chamar de oração) sempre que me sento pra comer. Fui inspirada pela minha querida amiga Kiune, que mora num assentamento da reforma agrária no sul da Bahia. Eu estava passando um tempo por lá e um dia ela recebeu o prato de comida que eu tinha acabado de preparar e agradeceu a quem plantou e a quem preparou a comida, depois desejou que não faltasse comida na mesa de ninguém. Achei aquilo tão lindo e importante que resolvi adotar a prática, criando a minha própria prece. Antes da primeira garfada/colherada seguro o prato entre as mãos e digo mentalmente: “Obrigada a quem plantou, colheu e preparou essa comida. Que não falte comida na mesa de ninguém nesse mundo. E que esse alimento me dê forças pra servir a minha comunidade, lutar pelo que é justo e transformar o mundo.” Quando fiz a prece naquela noite me dei conta que pela primeira vez na vida a pessoa que plantou, colheu e preparou os alimentos no meu prato tinha sido eu mesma. 

Minha ambição não é plantar absolutamente tudo que como. Como já disse, isso é bem difícil e não acho que seja algo a ser buscado. É bem mais interessante que cada pessoa na comunidade plante coisas diferentes, pra aumentar a diversidade na nossa alimentação. E pretendo continuar comendo azeite das oliveiras do sul da França ou plantadas pelo povo palestino. Mas desde que me mudei pra periferia de Paris, no final de 2019, e comecei a militar nesse território, passei a acreditar que plantar uma parte, mesmo pequena, do que comemos é essencial. Pra nossa resiliência, pra melhorar a qualidade da nossa alimentação, pra diminuir nossa dependência do dinheiro pra comer, pra participar da luta pela preservação de sementes e contra a mudança climática, pra aumentar a biodiversidade e refrescar nossos bairros e cidades. E por tantos outros motivos! Como estreitar os laços com as pessoas da nossa comunidade. Desde que começamos a plantar no quintal passamos a conversar com a vizinha e o vizinho do lado, que também plantam. Trocamos mudas, conselhos e, toda noite, enquanto aguamos nossos vegetais, trocamos dois dedos de prosa por cima da cerca de madeira que separa nossos quintais. As vizinhas são do Bangladesh e, assim como eu, plantam a comida que cresce no seu território natal pra matar a saudade de casa e se reconectar com uma parte de sua identidade através dos vegetais que cultivam. 

Passei quatro meses trabalhando em uma mercearia fina no centro de Paris, em um bairro onde só mora gente que tem grana. Essa mercearia vendia também por aplicativo (Uber Eats) e entrei em choque quando descobri esse mundo. Talvez isso surpreenda vocês, mas nunca pedi comida por aplicativo e até começar a trabalhar lá, pensava que só restaurante usava esse serviço. A mercearia onde eu trabalhei vendia chocolate, queijos, salgadinhos, biscoitos, leites, sorvetes (tudo 100% vegetal)… Não tinha verduras nem frutas, só coisas industrializadas. E muita gente pedia (por aplicativo) coisas que em Paris basta descer do seu prédio e caminhar até a esquina pra encontrar. As pessoas pediam sorvetes, chocolates e biscoitos feitos com ingredientes cultivados nos quatro cantos do mundo, preparados em algum lugar longe dos nossos olhos, por pessoas que não conhecemos, embalados e entregues por outras pessoas invisíveis. A fetichização da mercadoria (e o alimento-mercadoria) no seu ponto máximo. Poucos minutos separam a vontade de comer chips de batata e o pacote que aparece como mágica na porta do apartamento daquelas pessoas, com apenas uma etapa no meio: o clique no aplicativo dentro do celular. A magia de esconder dos olhos da consumidora parisiense a exploração dos corpos racializados explorados no processo. 

Não acho que só somos capazes de apreciar o que vem com dificuldade, mas como não pensar que aqueles chips de batata serão devorados em segundos, sem nem um pensamento pro mundo de pessoas e lugares envolvidos na sua produção e logo depois serão esquecidos? 

As batatas que plantamos aqui, e que estavam no meu prato naquela noite, vieram da horta de uma amiga e camarada que tem um lote nos Jardins Operários a poucos minutos de caminhada da nossa casa. Minhas batatas me conectavam a ela e à luta pra salvar os Jardins, o último pedaço de terra cultivada na cidade, que alimenta a classe trabalhadora e imigrante daqui há mais de cem anos. Tinham o sabor da alegria de ter conseguido fazer nossa horta vingar. Nossa primeira horta. Comemos devagar, Anne e eu, apreciando cada colherada. De vez em quando nos olhávamos, com um sorriso gigante no rosto, e repetíamos o quanto aquilo era gostoso. Talvez nossas batatas não tivessem nada de excepcional, mas elas ficarão gravadas na minha memória e quando penso naquele jantar, ainda me alegro.

Foi uma refeição das mais simples, mas naquela noite alimentei a alma. E podem ter certeza que a refeição me encheu de forças pra mudar o mundo e seguir plantando a revolução.

A toada da trabalhadora explorada e esgotada

Agora que já posso contar as semanas que faltam pra terminar o trabalho na mercearia nos dedos de uma mão, sinto que posso começar a falar sobre essa experiência aqui. 

No início de abril iniciei um contrato de quatro meses como vendedora em uma mercearia fina e totalmente vegetal. Eu já era cliente ali há anos e sempre simpatizei com a dona da mercearia. Então quando minha situação financeira chegou num ponto crítico e eu comecei a procurar bicos pra complementar a renda (desde que criei a campanha de financiamento no Apoia-se, em 2020, essa tem sido a minha única fonte de renda), o anúncio dessa mercearia vegetal procurando vendedora me pareceu exatamente o que eu precisava no momento. Ter um salário fixo, mesmo por um período de apenas quatro meses, está me ajudando a desafogar um pouco e ter tranquilidade financeira, embora passageira. Mas, e isso não vai surpreender a galera que bate ponto todos os dias, isso vem com muitos custos. 

Apesar da carga de trabalho semanal na França ser de 35 horas, trabalho onze horas por dia, com uma pausa de uma hora no meio (aceito todas as horas extras, porque preciso do dinheiro). Gasto quase duas horas diárias com deslocamento. Trabalho nos fins de semana. Nos meus dias de folga estou tão cansada que mal consigo recuperar a força que me foi sugada durante a semana e não consigo fazer mais nada. Parei de participar das atividades do meu coletivo e os posts semanais aqui viraram quinzenais. Fora que a vida pessoal foi freada bruscamente. Ver as amigas, dar apoio às pessoas na minha comunidade e até ligar pra minha família ficou muito mais difícil, pois minha energia, mesmo nos dias em que não trabalho, parece que não consegue se restaurar. Agora as coisas mais simples, como responder o áudio que a amiga enviou há duas semanas, muitas vezes representam algo que vai além das minhas forças.

Tenho muito o que contar sobre as descobertas que fiz trabalhando na mercearia. O que pude observar do “mercado vegano” e das pessoas veganas em Paris, mas, principalmente, sobre as condições de trabalho e exploração da mão de obra imigrante aqui na Europa (Uber Eats, tô olhando pra você!). Pra minha grande surpresa, esse trabalho se tornou uma pesquisa de campo. Quem diria que fazer um bico de vendedora, impulsionada pela insegurança financeira na qual me encontro, forneceria material que daria pra se transformar em uma tese em sociologia e outra em psicologia! 

Também ganhei novos amigos refugiados (os entregadores de aplicativos) e novas redes de solidariedade estão se tecendo entre nós, mas isso tudo fica pra outro dia. Só quando terminar meu contrato e eu tiver descansado por algumas semanas conseguirei voltar aqui e escrever sobre isso. 

Como eu disse, não estou me referindo a nada que saia do ordinário, infelizmente. Quem trabalha longas horas, fazendo um trabalho físico e pega transporte público todos os dias conhece muito bem essa toada. A toada da trabalhadora explorada e esgotada. 

Mas talvez você, me lendo agora, não tenha vivido experiências de trabalho similares. Talvez você nem faça parte da classe trabalhadora. Então deixa eu abrir uma pequena janela no meu cotidiano pra te dar uma ideia do que estou falando. Vou contar como foi o meu último dia trabalhado, que embora tenha sido particularmente difícil, não foi muito diferente de todos os outros.

O último dia da minha semana de trabalho (que inclui o fim de semana) é sempre o mais difícil porque traz acumulado o cansaço dos dias anteriores. Nesse ponto eu já levanto da cama cansada e me dou conta que as oito horas de sono já não são suficiente pra descansar o corpo: a sola dos pés doem quando eles encontram o chão do quarto. 

Todo dia eu faço tudo sempre igual, como canta Chico Buarque. Levanto, tomo banho, faço o café, como e caminho até o metrô. A repetição às vezes me desorienta e parece que estou num daqueles filmes em que a pessoa vive sempre o mesmo dia, presa num looping temporal. 

Felizmente não teve muitas entregas de mercadoria naquele dia. Na véspera tínhamos recebido oito entregas grandes e passei horas e horas carregando caixas. Passo boa parte do dia levantando peso, desembalando e embalando coisas, subindo e descendo escada (o depósito fica no subsolo, sem elevador de carga), colocando mercadorias nas prateleiras… Só sento quando vou ao banheiro ou quando paro pra comer. A mercearia também vende por aplicativo (Uber Eats), então muita gente que antes se deslocava pra fazer suas compras, agora pede pelo aplicativo. Isso aumentou muito o nosso trabalho de vendedora, pois além de cuidar das clientes que estão presentes na loja, também temos que preparar as comandas das clientes que pedem pelo aplicativo, correndo contra o tempo quando a loja está cheia e muitas comandas chegam de uma vez (temos apenas 20 minutos pra preparar uma comanda). Hoje uma parte considerável das nossas vendas se faz via Uber Eats e é por isso que acabei me aproximando dos entregadores (todos refugiados).

Depois de 10 horas em pé, de muito sobe e desce de escada, várias comandas preparadas e algumas interações delicadas com clientes obtusas (felizmente nesse dia não tive que lidar com comportamentos sexistas de clientes homens), fui pegar o metrô de volta pra casa, feliz por estar, enfim, de folga. Mas a alegria da trabalhadora não vem assim tão facilmente.

Preciso pegar dois metrôs pra chegar em casa, com uma baldeação em uma estação bem grande, e a linha que chega até a minha periferia é (surpresa!) uma das piores da grande Paris. Os trens são tão velhos e barulhentos que já desisti de escutar podcasts ou música no caminho do trabalho, pois ou coloco o volume dos fones no máximo e corro o risco de estourar os tímpanos ou não consigo escutar nadinha. Tem sempre problemas técnicos que fazem com que eles atrasem ou parem entre duas estações. Acho uma graça quando o condutor do metrô anuncia no alto falante: “Senhoras e senhores, ocorreu um problema técnico e o trem vai estacionar alguns minutos. Peço que esperem”, como se a gente tivesse a possibilidade de abrir a porta do metrô, entranhado nos subsolos da malha metroviária, e continuar a viagem andando! Algumas linhas de metrô em Paris tem ar-condicionado, mas claro que a minha linha não tem. E, pra completar, é uma linha que está sempre, sempre lotada, pois transporta a galera migrante periférica que trabalha em Paris (presente!). E é muita gente. 

Na hora de fazer a baldeação percebi que a plataforma estava ainda mais cheia do que o de costume e que o próximo trem estava atrasado. Falta de sorte minha, passei a ter dores de cabeças agudas há alguns dias e a mistura de cansaço e fome fizeram com que a minha cabeça, que estava doendo num nível suportável até então, passasse a latejar. Mas eu teria que coloca-la, latejando ou não, dentro do próximo metrô. Não sei como consegui entrar no vagão, mas juro que nunca peguei um transporte tão cheio. E parece que mesmo depois que o negócio lota total, mais gente ainda consegue se enfiar dentro. Transporte público ri na cara da lei da física que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. 

Então imagina aí. Lá estava eu, exausta da longa semana de trabalho, no final de mais um dia de batente, em pé durante todo o trajeto de volta pra casa, tão apertada que você pensa “se eu respirar fundo, eu arroto!” e que torna risível o instinto de se segurar nas barras de ferro (como vai cair se não tem espaço no chão, minha filha?) quando… uma briga entre dois homens explode do meu lado. Você não sabe quem começou, mas uma coisa é certa: vai sobrar porrada pro seu lado porque não dá pra fugir. Gritaria, empurra-empurra, Jesus-Maria-José! vou-voltar-pra-casa-com-um-olho-roxo-era-só-o-que-me-faltava! Até que um jovem bota moral nos cabras que estavam brigado (por espaço, obviamente!) e a nossa parte do vagão dá um suspiro de alívio. Tá todo mundo bem? Tá todo mundo bem. Obrigada, jovem que botou moral. Mas não é que menos de trinta segundos depois outra briga explode, na outra ponta do vagão?

Nesse ponto minha dor de cabeça tinha piorado muito, a fome roncava alto e me deu vontade de chorar porque parecia que eu não ia chegar nunca mais em casa. Mas nada que não pudesse ficar pior. Pane de eletricidade no metrô, circulação interrompida por alguns minutos, calor dos infernos (mas não baixa a máscara que a Covid tá voltando com tudo!) e, sendo a trabalhadora uma mulher, você achava que ela ia conseguir chegar em casa sem ser vítima ou presenciar uma situação de violência sexista? Quem achou que sim, é homem.  

Apesar do vagão estar menos lotado, pois já estávamos chegando no final da linha, um homem começou a invadir o espaço da mulher do meu lado, jogando o seu corpo sobre o dela. Ela reage e pede pra ele se afastar, diz que agora tem espaço ao redor dele, o vagão inteiro finge não ouvir, o homem se recusa a sair de cima da mulher, eu vou pro lado da mulher e tento protege-la, outro homem se aproxima… pra defender o cara assediando ela! Não satisfeito ele começa a insultar a mulher que estava sofrendo a agressão (minha nossa senhora do perpétuo socorro, tira nós desse vagão!). Finalmente chegamos no terminal, o trem ainda cheio, e eu acompanhei a moça até a saída pra garantir que ela estava bem.

Fiz os 10 minutos de caminhada que separam o terminal do metrô da minha casa quase me arrastando e cheguei em casa “só o durex”, como dizia um colega gaúcho. Fisicamente exausta, emocionalmente chacoalhada, faminta e com a cabeça a ponto de explodir. Mas foi só um dia comum na vida da trabalhadora mulher, migrante e que mora na periferia. 

De amor e revolta

Outro dia eu encontrei esse texto, que escrevi há uns dois anos pra postar no meu perfil no Instagram, hoje defunto. Está mais atual do que nunca e veja que eu estava tentando fazer a minha raiva caber nos poucos caracteres permitidos nas legendas do Instagram…

Nosso sistema político e econômico é estruturalmente injusto: ele foi criado pra ser assim. Não é um erro de cálculo que pode ser consertado com uma versão “consciente” ou “verde”. Exploração (humana, não-humana e da terra) está no DNA do capitalismo. Desigualdade social é a condição pra que ele exista, beneficiando o 1% enquanto os outros 99% são esmagados. Na sua lógica irracional de expansão infinita e lucro acima de tudo/todos o capitalismo destrói as condições pra que a vida, como conhecemos hoje, continue existindo. Sair do capitalismo é uma questão de sobrevivência.

Diante dessa urgência sentir raiva é uma reação natural. Desconfio de quem demoniza a raiva e prega o “vamos amar a todos em qualquer circunstância / você é a única responsável pelo que sente, então escolha sentimentos bons”. Esse discurso serve dois propósitos. 1- Controlar a narrativa e taxar de radical, enraivado e irracional quem milita por uma mudança sistêmica e não se contenta com migalhas na forma de reformas superficiais. Só eles, que fecham com o capital e vendem seus princípios, tem uma postura “sensata”. Nós somos, na melhor das hipóteses, ingênuas, na pior, impedimos o suposto avanço que eles estão negociando por nós. 2- Suprimir nossa revolta e nos manter dóceis e obedientes, sendo exploradas e massacradas enquanto internamente cultivamos o amor e a compaixão pelos nossos opressores. Assim o sistema injusto se mantém protegido.

Só quem se beneficia da desigualdade social não tem motivos pra estar com raiva. Não, eu não mando coraçãozinho pra quem explora trabalhadores até que eles caiam de exaustão, enquanto sua fortuna se multiplica. Não faço parceria com quem abre fogo contra camponeses e grila território indígena pra expandir seu latifúndio. Não dialogo com quem mata milhões de animais por ano. Pra essas pessoas só tenho um recado: estamos em guerra.

E a minha raiva não vem de uma suposta falta de evolução espiritual ou de estratégia. Ela vem do amor. Amor pelo povo, tão sofrido. Pelos animais, assassinados aos bilhões todo ano. Amor pela natureza, que grita socorro. Amor pela justiça. 

Com amor, revolta e ira, sigo na luta.  

(Tradução pro cartaz na foto acima: “Fichado, com raiva, sem grana, mas fascista, não! Estamos aqui.” Veja que em francês essas palavras são bem próximas.)

Como cozinhar pra semana inteira

A minha linguagem do amor primária é “palavras de afirmação” (eu convido todo mundo na minha vida a fazer o teste e te incentivo a fazê-lo também). Mas a segunda é “atos de serviço” e é aqui que entra a minha maneira preferida de mostrar amor por alguém: cozinhando. Eu cozinho quando quero levar reconforto pra alguém sofrendo de males do corpo ou da alma, pra aliviar a dor de um pé na bunda, pra alegrar alguém no final de um dia longo e exaustivo, pra conquistar o coração da mulher que decidiu habitar os meus pensamentos… E ontem passei a tarde cozinhando pra uma camarada de coletivo que torceu o tornozelo e está acamada há dias. 

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Beba a minha terra

Quando a busca por pertencimento passa por ervas selvagens ou a história de refugiadas palestinas conectando-se às suas terras ancestrais por meio de um xícara de chá de ervas.

Para refugiados e refugiadas palestinas, o chá de ervas representa mais, muito mais, do que uma mistura de plantas e água quente. Elas bebem o “Balad”, a terra ancestral da qual foram expulsas. Elas bebem as lembranças da infância, as canções e as histórias das gerações que vieram antes delas. Elas bebem as colinas e vales proibidos que aparecem nos olhos úmidos de suas avós. E no caso de Sidra* e sua família, também bebem o suor, a ansiedade e o sorriso cauteloso de um camponês que atravessa muros, fronteiras e o poder colonial que entrincheira o povo palestino para trazer-lhes um pedaço daquela terra proibida, presente em um punhado de ervas.

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Onde o meu coração se sente em casa

Ontem foi o aniversário de 74 anos da Nakba (catástrofe” em Árabe), a triste data que lembra o momento em que 2/3 da população palestina foi expulsa de suas terras e se tornou refugiada. Quando a maior parte da Palestina histórica foi ocupada e colonizada. Mas eu não queria falar sobre isso hoje. Gostaria de trazer um post dos arquivos Papacapim que é muito pessoal e fala sobre Jerusalém, a minha cidade preferida no mundo. A que me fez me apaixonar pela Palestina, sua comida, seu povo e sua cultura. O lugar onde, quando meus pés tocam a terra, minhas narinas sentem o cheiro do pão com gergelim assado dentro dos muros da cidade antiga, e meus olhos encontram as pedras douradas das construções históricas, meu coração se sente em casa.

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Só pela subversão

Continuando a série “requentando posts antigos porque esse blog tem mais de 12 anos e a maior parte das pessoas me lendo agora não tem ideia das coisas bacanas que já postei aqui”, vou seguir no tema “Palestina” porque, como expliquei no último post, em breve será mais um triste aniversário da ocupação israelense naquelas terras. Gostaria que a Palestina não aparecesse na timeline de vocês apenas quando a violência da colonização israelense chega em picos tão elevados que volta a ser manchete. E sobre os posts que escrevi na Palestina, o de hoje é, até hoje, o que mais deu o que falar na história do blog.

Mas de dez anos depois, ainda tem gente comentando esse post. Já encontrei até gente que estudou ele na faculdade!! Não sei que professora levou meu texto pras suas estudantes (em que curso?), mas agradeço de coração. A história de hoje foi só uma das aventuras lindas que vivi, ou testemunhei, por lá, mas segue sendo um dos meus posts preferidos do Papacapim, no top 5. Foi a primeira vez que escrevi sobre a Palestina no blog e como o retorno das leitoras foi extremamente positivo, à partir daí passei a falar regularmente da luta do povo palestino aqui. Esse post foi um marco e um divisor de águas pro blog.

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Sobre resistência

Porque hoje é um dia difícil aqui na França e o risco do domingo terminar com a eleição de uma neofascista como a próxima presidente do país é grande…

Porque comecei um trabalho novo no início do mês e desde então tenho jornadas de trabalho de 10h30 e já não consigo mais manter o antigo ritmo de posts aqui…

Porque estamos atravessando mais uma onda de crimes do colonialismo israelense na Palestina (apesar da violência colonial nunca dar trégua pro povo palestino, só quando ela atinge picos altos a mídia se interessa e isso vira notícia)…

Porque o pessoal que chegou no blog nos últimos tempos não costuma ler os posts antigos e tem muito material interessante, emocionante e inspirador nos arquivos do Papacapim e acho uma pena que ele não chegue a mais pessoas…

Gostaria de repostar a história de três amigas palestinas, que postei separadamente anos atrás, numa série que chamei de “Histórias Palestinas”. Peguem um café, um chá, se instalem confortavelmente no sofá, respirem fundo e se preparem pra revolta, a emoção e, espero, a inspiração que vocês sentirão ao longo dos próximos parágrafos. Estamos atravessando tempos difíceis, mas não podemos abandonar a luta. Sempre que o desespero quer tomar conta de mim lembro das pessoas palestinas, que seguem resistindo apesar de tudo. Se elas ainda estão de pé, lutando, quem sou eu pra baixar os braços e me deixar invadir pela desesperança?

Khoulud, de véu rosa, com a mãe, a avó e duas filhas. Foto Anne Paq.
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Os últimos dias

Volto pra França daqui a alguns dias e tenho muita coisa pra contar sobre a passagem pelo Brasil. As duas últimas semanas foram cheias de encontros e projetos com potencial de fazer grandes transformações mas será necessário algum tempo antes de conseguir compartilhar tudo. Os dias aqui em Natal seguem cheios de tarefas, a principal sendo cuidar da minha mãe, e por isso me sinto exausta em permanência. Tô aqui economizando forças pra segurar as pontas até o momento do embarque e como a longa travessia entre Natal e minha casa, em Paris, levará quase 24 horas, com certeza vou precisar de uns dias de descanso quando chegar do outro lado. Então hoje deixo vocês com alguns momentos de alegria que vivi entre Natal, São Paulo e Recife, antes de voltar à nossa programação normal de receitas e reflexões.

E também tem maracujá

Estou mais uma vez em terras potiguares. É o meu terceiro dia aqui e meu corpo ainda não se acostumou com a temperatura do nosso verão. O choque térmico foi grande e lembrarei de evitar, no futuro, passar do inverno francês pro verão brasileiro. Mas o motivo das minhas vindas ao Brasil terem se tornado mais frequentes é porque preciso cuidar da minha mãe, então passei a planejar essas viagens de acordo com as necessidades daqui e as possibilidades de lá, não com o período do ano em que a temperatura é mais agradável.

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