“Se a gente quiser romper com esse sistema, não vai ser sem audácia” – entrevista com Larissa e Maria

Quando eu estive em Belém, em novembro passado, tive a honra de ser convidada pra tomar um tacacá na casa de Larissa e Maria. Assim como Michelle, que entrevistei aqui, Larissa (que todo mundo chama de “Lara”), é uma companheira do coletivo antiespecista VEM. Maria, também vegana, é a mãe dela. Passei uma tarde na casa delas, entre bonecas de Ângela Davis e Paulo Freire feitas por elas, tomando tacacá e conversando. Aproveitei pra entrevistar as duas, porque elas têm uma história com o veganismo que começou de uma maneira diferente de todas as outras pessoas que entrevistei aqui no blog até hoje. E porque elas disseram coisas que me tocaram profundamente e que eu levo pra vida e pra luta.

Podem se apresentar?

Larissa – Larissa Pontes, socióloga, um tanto artista das manualidades. Nortista meio manauara, meio belenense. Militante por um veganismo popular e integrante do coletivo VEM. 

Maria – Maria Melo, paraense, artesã, vegana mãe de vegana.

Como vocês chegaram no veganismo?

Larissa – Eu sempre tive vontade de conhecer, pela questão animal. Eu já tinha alguma ideia a respeito, mas não sabia exatamente como fazer. Até que a minha mãe desenvolveu uma doença autoimune e começou a ter crises sérias. A primeira coisa que eu fiz pra tentar ajuda-la foi pesquisar sobre o impacto da alimentação na saúde. Parece estranho dizer que eu encontrei uma oportunidade pra me tornar vegana, mas foi a conjuntura perfeita pra eu chegar pra ela e dizer: “Olha mãe, eu acho que a gente pode unir uma coisa à outra. A gente consegue ter uma alimentação mais ética com os animais e ao mesmo tempo vai melhorar a tua situação de saúde.” 

Maria –  Eu fiz um exame de colonoscopia antes de fazer a transição pra vegetariana e ali foi detectado pólipos no meu intestino. Já estava num processo inflamatório bem alto. Algumas pessoas olham pra isso e falam: “Faz parte do processo de envelhecimento”. É verdade, mas você pode melhorar o seu processo de envelhecimento. Eu fiz o exame alguns anos depois de ter me tornado vegana e não apareceu mais nenhum pólipo. Tenho certeza que a mudança na alimentação contribuiu com isso. Tem zero chance de voltar? Não sei, só sei que por enquanto  está tudo na paz.

Larissa – A gente tirou primeiro a carne, depois carne de frango e por último fizemos a despedida do peixe. A gente já estava sem comer peixe há um tempo quando fomos passar o fim do ano na praia, em Salinas. Aí vimos um pescador e a mãe disse: “Ai, eu queria tanto comer peixe!”. Ela foi buscar o peixe lá, junto com o pescador, mas eu já não consegui comer. Ela comeu e depois disse: “É, pra mim também não dá mais. Tá diferente.”

Diferente como?

Maria – Foi como se eu tivesse comendo uma coisa que não fosse comida. Não era mais comida. E olha que o bichinho tinha sido pescado ali, estava fresquinho, não era da indústria, não era congelado, era do pescador que morava ali na beira da praia. Imaginei que ia me dar um prazerzão. E foi três vezes pior quando tentei comer ovo novamente.

Larissa: Por que ovo é o que? É pitiú. 

(Aprendi essa palavra maravilhosa quando estive em Belém. “Pitiú” é, pra paraense, o que “catinga” é pra norte-rio-grandense: fedor, mal-cheiro.)

Maria – No início do veganismo eu tinha umas preocupações, achava que podia não estar me nutrindo bem. Então decidi comer um pouco de ovo. A gente tem amigos que tem sítio, tem ovos de galinha ‘feliz’. O ovo veio pra mesa, ovo caipira… Tentei comer e não deu certo mais, não teve condição. E não é porque tenho nojo, não.

Larissa – Aí eu falei pra ela : “É simples, vamos pro nutrólogo e vamos fazer exames com certa frequência.” No começo a gente fez exames de 6 em 6 meses, porque ela estava com medo de ter alguma carência. Depois de um tempo a gente passou a fazer exames uma vez por ano. Todos os médicos olhavam os resultados dos exames e perguntavam se a gente realmente não estava comendo carne. Não conseguiam acreditar que era possível.

Maria – A gente está mostrando que é possível. A gente faz reposição de B12, claro, e reposição de vitamina D, mas eu vejo que todo mundo, incluindo o povo que come carne, faz reposição também.

Larissa – Às vezes eu fico pensando… Se a gente teve que enriquecer a farinha de trigo com ferro e ácido fólico, por que não pode ter uma farinha, um alimento, enriquecido com B12?

(Quando a farinha de trigo passou a ser enriquecida com ácido fólico, não foi visando a população vegetariana/vegana, foi pra atender as necessidades das pessoas que comem carne, mas não comem vegetais suficiente. E vale lembrar que o sal é enriquecido em iodo.)

O que é veganismo pra vocês?

Maria – Eu não vou negar que no início não foi a questão animal que me fez abraçar o veganismo, apesar deu amar os animais. Foi uma questão de saúde. Eu estava num estado de sofrimento muito grande, por causa da doença autoimune, estava inchada e tendo que começar tratamentos mais agressivos. Fui pra uma consulta médica e naquele dia o meu médico estava muito triste porque tinha perdido uma paciente muito jovem por causa de um problema hepático, consequência do uso de corticoide. O corticoide detonou o fígado e o pâncreas dela. Aí eu fiquei olhando aquilo e falei: “Eu não quero isso pra mim”. Eu sei que um dia vou morrer, como todo mundo, mas até lá vou me esforçar pra viver. E pra viver bem. Então o veganismo foi uma porta, apresentada pela minha filha, que se abriu pra mim e me deu a possiblidade de estar aqui hoje, me sentindo bem, ao invés de estar deitada numa cama, com dor, inchada.

Larissa – Pra mim o veganismo é algo plural. É uma maneira de imaginar um horizonte diferente, onde os animais não são mais vistos como inferiores, nem como mercadoria. É ampliar a nossa visão e entender que a gente partilha esse planeta com outros seres vivos, além dos humanos. É solidariedade. E aí eu fui descobrindo mais coisas no caminho, fui aprofundando a minha consciência. E abriram-se muitas possibilidades de encontrar companheiros de luta, amigos. E eu pude ver a saúde da minha mãe melhorar. Então pra mim, o veganismo representa certas coisas muito pessoais e outras mais amplas. 

Veganismo é a vontade de transformar o mundo pra melhor. Porque está insustentável! E ninguém se responsabiliza por isso! Se está insustentável, a gente precisa construir algo sustentável, um lugar onde não só humanos possam viver. Pode ser que a gente não veja tudo se acabando durante a nossa vida, mas tem muita gente por vir. Então veganismo também é solidariedade com as gerações que virão. 

Pique-nique do coletivo VEM

É difícil ser vegana?

Maria – É maravilhoso alguém chegar pra você, com todo o carinho, fazer uma proposta de qualidade de vida melhor e você ter força pra abraçar. Não estou dizendo que é fácil fazer mudanças na sua alimentação depois de décadas com aquela rotina (com produtos animais). Mas é gostoso também! Você descobre que o que parecia ser um sacrifício passou a ser um prazer, uma satisfação. Você tem N possibilidades alimentares com aqueles ingredientes que antes eram olhados como enfeites no prato. 

A manutenção do meu veganismo se dá por vários caminhos. Pela saúde, sim, mas também pelo caminho da delícia. A gente tem uma comida muito gostosa! Eu não sinto falta de nada parecido com carne, nada que lembre carne, nada com formato daquilo… Eu gosto das nossas comidas, gosto da beleza delas, do colorido. As pessoas tem uma ideia muito equivocada do que é a alimentação vegana. Você tem que interagir com o alimento: ele conversa com você e você conversa com ele. Quanto mais tempero natural você colocar, mais gostosa vai ficar a sua comida. Se você cozinhar só no vapor e não colocar um azeite, um salzinho, você vai olhar aquela batata e não vai dar vontade de comer. 

(Eu disse que a mesma coisa era válida sobre a culinária carnista. Pegar um pedaço de músculo de vaca ou um frango e cozinhar na água, sem tempero, não va ser gostoso. Maria respondeu que a galera do churrasco sempre vem com o argumento de que se for carne, “passou sal, botou na brasa, tá bom!” Aí Larissa lembrou que isso também é verdade no caso de vegetais. Afinal é o calor intenso e o defumado do fogo que conferem aquele sabor característico e tão apreciado. E concluiu dizendo: “Não precisa fazer nada pra uma fruta ficar gostosa. Você pega uma manga e ela é perfeita. Nossa comida já vem pronta.”) 

Junto com o veganismo a gente fez uma transição muito bacana que foi abrir mão, no máximo possível, do industrializado, do ultraprocessado. Não somos as veganas que compram não sei que produto ultraprocessado do futuro, do passado ou do presente, sei lá como é que chama esse negócio. Nem vamos usar glutamato monossódico como tempero. Tem sabores maravilhosos nas nossas folhas, nos nossos limões, tem vinagre de maçã, tem tanta coisa boa pra temperar a comida! Também tento comprar do pequeno produtor, do pequeno fabricante, daquela pessoa que está se esforçando pra sustentar a família. Lara tem uns amigos que fazem linguiça artesanal e é tudo de bom. A família toda é vegana.

Larissa – Essa coisa da dificuldade, eu vejo assim. Antes de se tornar vegana a gente estava nadando no sentido da corrente, estava ali com todo mundo, fazendo a mesma coisa. Aí a gente se torna vegana e a sensação que dá é que a gente passa a nadar ao contrário. Porque tudo vem contra a nossa decisão. Vão aparecer muitas dificuldades sociais e as pessoas vão dizer que tu não come nada. Mas, eu como, sim! Posso inclusive compartilhar a minha comida. Mas tem essas dificuldades no comecinho. 

Mas por que eu sou vegana? Tem gente que acha que não é importante ser vegana porque uma pessoa sozinha não faz diferença. Mas eu sei que eu não sou só uma. Eu quero que a pessoa que está pensando em ser vegana e acha que está sozinha olhe pro coletivo, pra essa ruma de gente que está se juntando, e diga “eu também não sou só uma”. O veganismo é um boicote, mas ao mesmo tempo a gente está dizendo pro mundo que dá pra viver de outra maneira. Acho que é uma ferramenta de reeducação. Quando a gente vive de outra maneira, a gente está dizendo: “Olha aqui, é possível!” Mas vivo isso com zero sentimento de superioridade. Não penso: “Nossa, como eu sou evoluída!”. Sou só o exemplo de uma coisa diferente, e as pessoas ao meu redor podem ver isso e se interessar. É assim que mudanças acontecem. É assim que a gente vai construindo coisas melhores.

Como é que a gente destrói o especismo?

Maria – Um dia eu escutei uma fala do pastor Ricardo que fez muito sentido pra mim. Ele disse: “O mal é extremamente audacioso e o bem é tímido.” Então eu acho que o caminho pra combater o especismo é esse: ser audacioso. A gente tem que ser audacioso e se juntar com quem é audacioso pra formar uma audácia maior ainda! 

Quando a gente chega em algum lugar e as pessoas reagem de maneira negativa ao nosso veganismo, quando dizem: “Você não come nada!”, eu respondo: “Eu como, sim, você que não tem pra me oferecer. Se você me convidou, deveria ter se preparado melhor porque uma boa anfitriã recebe bem um e outro.” A gente tem que ser mais afrontosa e mostrar que estamos aqui pra ficar. Às vezes ouço comentários como: “Ah, você pode ser vegana porque tem condição, porque  pode escolher.” Justamente! Aí falam: “Mas e se você estiver na floresta, no meio do mato?” Aí é que eu vou me dar bem! “E se estiver com uma vaca, no meio de uma ilha deserta?” Quais são as chances deu ir parar numa ilha deserta com uma galinha ou com uma vaca? Tem quem diga: “Não vou falar (sobre veganismo) porque não quero deixar as pessoas desconfortáveis.” Eu quero! Quero incomodar, quero desajustar a situação! 

Larissa – Se a gente quer romper com esse sistema especista, se a gente quer romper com o capitalismo, não vai ser sem audácia.

Maria – Então eu acho que é dessa forma que a gente vai colaborar pra destruir o especismo. Precisamos nos juntar com quem pensa assim e formar esse grande bom combate.

Larissa – É um trabalho de formiguinha. A gente destrói o especismo aos poucos, mas ao mesmo tempo sem cessar, sem desistir. Convencendo mais pessoas de que o nosso sistema de produção  é insustentável. Que a maneira como nos relacionamos com a natureza, e com os seres que partilham o mundo com a gente, é insustentável. A gente tem que buscar possibilidades pra fazer crescer o veganismo. Tem uma oportunidade na educação? Surgiu uma oportunidade ali, numa política pública? Quando a gente vê, de repente, o debate antiespecista não é mais invisível, não existe apenas dentro do nosso grupo. Se torna um rio, correndo pra todos os lados.

Como falar da luta antiespecista com a esquerda?

Larissa – Essa é uma das perguntas mais difíceis. A gente tem um grande amigo de esquerda, super politizado, que trabalha na base, viajando esse estado todinho politizando as pessoas, mas que se recusa firmemente a aceitar a importância do veganismo. E ele tem problemas de saúde, uma mudança de alimentação faria tanto bem pra ele. Ele come a nossa comida e gosta, mas sempre faz piadas depois. Hoje a gente já não responde mais, pra não perder a amizade. Mas é uma situação muito difícil.

Maria – Tem duas situações bastante mal resolvidas na minha cabeça e ainda não encontrei respostas pra elas. A primeira é a questão dos grupos de pessoas com doenças autoimunes dos quais faço parte. Elas não se interessam em aprender sobre alimentação vegana. Tem gente que posta todo tipo de tratamento irresponsável. Já me perguntaram por que não conto a minha história nas redes, mas não sei… As pessoas que consomem corticoides, por causa dessas doenças, acham que tomando esses remédios podem comer carne e vai ficar tudo bem. Não é verdade. Eu estava tomando uma carga pesada de corticoides antes de me tornar vegana e um dia comi um filé e tive uma crise séria, inchei muito. E que pensamento é esse, né? Preferir se encher de corticoide do que parar de comer carne. Não faz sentido.

E a outra situação difícil que eu vivo é dentro dos grupos de prática da solidariedade, que distribuem refeições pra pessoas em situação de rua e famílias carentes. Todo mês a gente faz uma lista com os alimentos necessários pra preparar as refeições e sempre pedem muita linguiça, charque, salsicha, muito embutido. Eu falei: “Trocando essas carnes por legumes a gente consegue oferecer duas refeições por semana, ao invés de uma, com o mesmo valor que gastamos por mês. E ainda melhoraria a qualidade das refeições.” Me responderam que as pessoas iriam estranhar uma comida sem carne, que pensariam:  “Eles comem carne, mas não querem nos dar.” Eu fico sem saber o que fazer. O dinheiro ia render mais, alimentar mais pessoas e alimentar melhor…

Larissa – A maneira como eu costumo falar sobre veganismo pra pessoas de esquerda é tentar mostrar que as opressões não ficam pedindo licença uma pra outra pra oprimir. “Ei, agora eu vou oprimir esse grupo aqui, então tu para. Fica quieta no teu canto que agora é a minha vez de oprimir! Vai pro final da fila e espera!” As opressões agem todas ao mesmo tempo. Elas estão batendo junto na gente há muito tempo, então como é que a gente vai bater de volta separado? Nunca encontrei alguém que conseguisse argumentar a favor desse ideia de deixar uma luta pra depois, enquanto focalizamos nas outras, então logo a pessoa leva pro individual e diz: “Mas é difícil ser vegana!” Ou então solta o token do indígena que caça. Eles caçam, certo, mas não são os indígenas que estão causando a ruptura na natureza. Nosso inimigo é outro.

Depois da entrevista fomos tomar o tacacá preparado por elas. Eu estava saltitante com a oportunidade de degustar algo tão emblemático da culinária paraense, mas não sabia bem o que esperar desse prato. Que negócio bom! Tacacá geralmente é servido com camarão, mas não faz falta. Larissa e Maria, além de pessoas lindas, são ótimas cozinheiras e saí da casa delas com vontade de voltar muitas vezes. Ser vizinha delas se tornou um dos meus objetivos na vida. Quero ser amiga, claro, mas amiga E vizinha. Quero essas duas do meu lado na luta, e na mesa. Como decidi visitar Belém novamente no ano que vem, dias atrás  mandei uma mensagem pra Larissa dizendo: “Pode ir esquentando o tacacá que eu tô chegando!”. E ela respondeu: “Vou esquentando o tacacá e guardando muruci pra gente fazer nosso queijo.” Porque Larissa e eu temos um projeto de queijo verdadeiramente decolonial que vai ser sucesso. Aguardem.

Veganismo e feminismo

Em 2020 fui convidada pelo podcast Sapataria pra participar de um episódio sobre veganismo. Foi durante o mês da visibilidade lésbica e tive a honra de dividir o episódio com mais duas lésbicas veganas que admiro: Carla Candace e Luciene Santos. O post de hoje é a transcrição da minha fala, que tratou sobre feminismo e veganismo. São pautas centrais na minha militância e fazia tempos que eu pensava em abordar esses temas, expondo suas conexões, aqui. Mas recomendo muito que você não pare nessa leitura e escute o episódio inteiro (Especial Mês da Visibilidade: Veganismo), pois Carla e Luciene falaram coisas extremamente importantes, que não abordei aqui.

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Um dia de militância

Em março fiz um post mostrando com a militância pode adquirir formas diversas, ao alcance de todo mundo, e pra ficar bem didático relatei as tarefas que fiz durante um fim de semana. Dias atrás repeti o exercício, mas compartilhando minhas tarefas, em um único dia, no grupo Papacapim do Telegram (é um grupo exclusivo pras pessoas que apoiam o meu trabalho lá no Apoia-se). 

Como fazer nascer o desejo de militar nas pessoas é uma das minhas missões, e como também gosto de mostrar o que acontece desse lado da tela quando não estou cozinhando e escrevendo aqui, vim compartilhar esse dia de militância com vocês.

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Não existe comida “vegana”

Essa reflexão surgiu do lado de cá da tela há um certo tempo. E leitoras atentivas desse blog já devem ter percebido que mencionei isso algumas vezes nos posts dos últimos meses. Acho que foi no ano passado que decidi parar de usar o termo “comida vegana” pra descrever comida de origem vegetal. Mas foi o episódio do chocolate oferecido por uma amiga francesa que fez com que eu compreendesse que chegou a hora de escrever sobre o assunto.

Aconteceu meses atrás. A amiga, que não é vegana, me deu “um chocolate vegano” de presente. Era um chocolate com coco (leite e açúcar de coco, além de coco seco), mas tinha um selo “Vegano” na embalagem. “Provei com a minha irmã, mas não gostamos de chocolate vegano”, ela disse. Respondi: “Você não gostou de chocolate com coco. Chocolate ‘vegano’ é qualquer chocolate sem leite de mamífera” e ela insistiu: “É vegano, sim! Tá escrito na embalagem.” O selo fez com que minha amiga visse aquilo como “chocolate vegano”, não como o chocolate com coco que ele era, e quando percebeu que não gostava, ela não declarou: “Não gosto de chocolate com coco”, mas sim: “Não gosto de chocolate vegano”. 

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Biodiversidade e produtos vegetais ultraprocessados


Essa semana a ocupação que também serve de base pro nosso coletivo anarco recebeu caixas e mais caixas de hambúrguer vegetal que iriam pro descarte. Falei sobre comida de descarte, e como isso alimenta não só as camaradas do coletivo, mas também as pessoas ao nosso redor, nesse post. Além da comida que pegamos regularmente (frutas e verduras da feira, todo tipo de alimento transformado que pegamos do descarte de supermercados) duas vezes por semana, de vez em quando uma montanha de alguma coisa que acabaria no lixo chega até nós. Umas semanas atrás foram 2 toneladas (sim, literalmente) de cogumelo orgânico congelado. Semana passada foram centenas de quilos de hambúrgueres vegetais, também congelados. Eram hambúrgueres feitos de proteína de soja com beterraba, temperos e alguns aditivos. Provei pela primeira vez ontem e o sabor é tão ruim que agora não sei o que fazer com o enorme saco de hambúrguer no congelador. 


Enquanto eu tentava tragar o intragável (pra que o jantar não acabasse no lixo), me vi pensando, mais uma vez, na obsessão geral com hambúrgueres vegetais e no mantra do veganismo liberal (“Quanto mais produtos veganos industrializados, melhor pros animais.”). Já escrevi longamente sobre como essa visão liberal do veganismo vai contra os objetivos do movimento antiespecista nesse post e nesse post . Mas hoje eu queria chamar a sua atenção pra algo que é frequentemente ignorado nessa discussão: a questão da biodiversidade.

Moqueca de caju, arroz da terra, feijão verde, farofa de couve e bolinho de macaxeira
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Comida como ferramenta de ‘conversão’

Durante os primeiros anos de veganismo, acreditei que oferecer pratos veganos deliciosos pras pessoas ao meu redor seria a porta de entrada delas pra causa animal. Talvez eu tenha sentido essa responsabilidade ainda mais forte porque cozinho profissionalmente. Então não perdia nenhuma oportunidade (aniversários, reuniões de família) de passar horas (às vezes dias) preparando menus, comprando ingredientes e cozinhando pra impressionar as não-veganas. Nos jantares onde cada convidada leva um prato, eu levava 4 e era sempre a mais cansada, a que trabalhava mais, a que gastava mais com ingredientes… As pessoas comiam minha comida, sim, e adoravam. Porém minhas preparações vegetais dividiam espaço nos seus pratos com animais e seus derivados. Nunca ninguém deixou de comer o animal assado, ou a sobremesa entupida de leite condensado, porque tinha pratos veganos deliciosos na mesa.

Quiche de cogumelo e espinafre, usando esse método
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Querida pessoa vegetariana que gostaria de se tornar vegana um dia

Você, amiga vegetariana, que diz concordar com os princípios do veganismo e que tem condições materiais de escolher o que come, mas ainda “come algo com queijo quando não encontra opções veganas”. Seja na rua, no restaurante, nas festas de família, nas viagens, na casa das amigas… Muitas vezes até mesmo na própria casa. Chega mais que eu gostaria de ter uma conversa com você. 

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Jardins da Comuna – Ep 6

Lembram da luta pra salvar os jardins operários de Aubervilliers, a cidade na periferia norte de Paris onde moro? Um oficial de justiça esteve na ocupação semana passada e deu um ultimato: os lotes devem ser liberados até o dia 15 de julho. Estou acompanhando daqui, com o coração na mão, as ações de resistência das camaradas que ficaram defendendo esse território, incluindo Anne, minha esposa.

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Sobre o papel da exploração animal no colonialismo

O historiador estadunidense Howard Zinn, que era próximo do anarquismo, disse “O caçador conta a história. Teríamos uma versão completamente diferente se ela fosse contada pelo coelho.” Zinn, que não era antiespecista, usou essa analogia pra falar que a História com H maiúsculo é contada pelos dominantes e não pelas pessoas dominadas, mas eu quero usar a frase dele no sentido literal, mesmo. E se a História fosse contada pelos animais não-humanos?

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“Veganismo é um ato de solidariedade com animais não-humanos”

Muitas luas atrás eu comecei uma série de entrevistas com pessoas veganas. Recentemente resolvi dar continuidade à série, mas com versões mais curtas, publicadas no meu perfil no Instagram. Também decidi que iria entrevistar (por enquanto) apenas pessoas não-brasileiras, pra mostrar as cores do movimento vegano no exterior. O veganismo liberal das ONGs e celebridades de Instagram acaba dando uma ideia falsa do veganismo e eu queria mostrar como o movimento é diverso e construído por pessoas que entendem o veganismo como uma extensão lógica da luta anti-opressão. Existe um esforço em propagar o mito de que fora do Brasil o movimento vegano é homogêneo e todo liberal. Nos países onde morei (França, Palestina, Inglaterra, Alemanha, Líbano e Bélgica) pude constatar que isso não podia estar mais longe da realidade. Então pensei em trazer as vozes de algumas militantes antiespecistas do exterior pra que vocês vejam por si mesmas.

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E lutaremos em seu nome

Em 1977 o cineasta Polanski confessou, num tribunal dos EUA, ter estuprado uma menina de 13 anos. Condenado, ele fugiu do país antes de ser preso e nunca mais voltou. Desde então outras 11 mulheres o acusaram de estupro. Semana passada aconteceu a cerimônia dos Césars, a maior premiação do cinema francês. Polanski estava concorrendo a 12 prêmios, incluindo melhor diretor e melhor filme. 12 mulheres estupradas e 12 nomeações pro homem que as estuprou. “É preciso separar o homem do artista”, vomitavam os perpetradores da cultura do estupro. “Se seu padeiro estuprasse 12 mulheres, incluindo crianças, você separaria o homem do padeiro?”, “Quando uma mulher é estuprada não importa a profissão do estuprador nem se ele a pratica com talento” respondiam as mulheres. Os guardiães do patriarcado tinham sido particularmente cruéis dessa vez. Concorrendo ao prêmio de melhor atriz, pelo filme “Retrato da jovem em chamas” (que concorria ao prêmio de melhor filme, junto com o filme de Polanski), estava Adèle Haenel, que no final do ano passado levou ao público o fato de ter sido agredida sexualmente por um cineasta dos 13 aos 15 anos. Ela, que declarou: “Premiar Polanski é cuspir na cara das vítimas”, foi à cerimônia dos Césars junto com a equipe do filme “Retrato…”, feito por uma cineasta, com uma equipe quase exclusiva de mulheres, contando a história de duas mulheres que se amam. Esse filme me fez soluçar no cinema e todas nós torcíamos pra que ele e sua diretora levassem o prêmio. Mas o cinema francês, cúmplice, fiel aos seus amigos homens, mesmo os que cometem crimes de pedofilia, não deu o prêmio a “Retrato…”, nem à sua atriz principal. Era preciso punir Adèle por ter ousado sair do silêncio. Por ter levantado a voz e criticado esse clube do Bolinha sexista que é a indústria do cinema. Mas a punição não foi suficiente: era preciso “cuspir na cara das vítimas”. E assim Polanski ganhou o prêmio de melhor diretor. Nesse momento Adèle e a equipe de “Retrato…” se levantaram e saíram da sala. Embaixo do vestido de gala, a indignação. “Que vergonha! Palmas pra pedofilia!” ela repetia enquanto juntava o gesto à palavra.

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Por um veganismo que promove autonomia alimentar

Ano passado a chef Paola Carosella causou um grande alvoroço dentro da comunidade vegana por causa da reação dela (via Twitter) depois de ter provado um hambúrguer vegetal que imita a textura e o sabor de carne animal. Acho oportuno abrir espaço pra discutir as declarações dela, pois acredito que podemos extrair algumas lições importantes do ocorrido.

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Caros camaradas,

Temos, geralmente, tendência a exagerar nossa força e nossa fraqueza: assim, durante tempos revolucionários, parece-nos que a menor de nossas ações deve ter conseqüências incalculáveis ​​e, por outro lado, em certos momentos de marasmo, toda a nossa vida, embora inteiramente dedicada ao trabalho, parece-nos infrutífera e inútil, e acreditamos que somos levados pelo vento da reação.

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O conto do ovo que não mata a galinha

Frequentemente perguntam à pessoas veganas o que achamos de ovos de galinhas criadas no quintal. Até prometi à uma leitora escrever sobre isso aqui no blog e, anos depois, ainda estou devendo esse post. A conversa de hoje não é exatamente sobre isso, mas se aproxima. Semanas atrás vi esse letreiro (foto acima) numa estação de metrô em Paris. Ele me deu a ideia de vir aqui trazer alguns esclarecimentos quanto à ligação entre consumo de ovos, exploração e crueldade animal, mas também tocar em um ponto que está causando divergências dentro do movimento vegano.

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A libertação animal não será comprada

Precisamos falar sobre a cooptação do veganismo pelo capitalismo, ou, sobre o debate que parece ocupar o movimento vegano nesse momento: boicotar empresas que testam em animais ou boicotar somente produtos com ingredientes/testados em animais e apoiar qualquer produto vegetal, independente de quem os produziu?

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Por que o movimento vegano deve apoiar o MST – parte III

Preciso começar dizendo que recebi várias mensagens de pessoas que leram os posts anteriores e , ao começarem a entender a atuação do MST, passaram a ver o Movimento com outros olhos. Nem sei dizer o quanto isso conta pra mim. São essas mensagens que me fazem acreditar que é possível quebrar preconceitos e que o meu trabalho, apesar de no momento ser uma militância de sofá, é capaz de produzir uma mudança positiva na sociedade. Continuemos lutando de punho erguido.

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Por que o movimento vegano deve apoiar o MST – parte II

Depois de entender a formação do espaço agrário brasileiro e os problemas criados pelo latifúndio, nesse segundo post da série a conversa é sobre reforma agrária e a atuação do MST. Pela quantidade de comentários preconceituosos que escuto e leio por aí, a maioria das pessoas sabe pouco sobre reforma agrária e menos ainda sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. Quem são? Onde vivem? O que comem? Querem invadir sua casa de praia?

Mas pra entender a luta do MST é preciso saber o que significa Reforma Agrária e é por aqui que vamos começar.

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Por que o movimento vegano deve apoiar o MST – parte I

Faz 11 anos que me comprometi com a luta por libertação animal e foi mais ou menos na mesma época que a militância por direitos humanos entrou na minha vida. Esse compromisso se manifesta de várias maneiras, tanto na esfera digital quanto no mundo real.

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O lugar de vocês é aqui conosco

Pessoas da minha família que votam em Bolsonaro,

Em que momento vocês pararam de se ver como a classe trabalhadora, sempre esmagada pelos poderosos, e passaram a identificar seus opressores como salvadores da pátria? Quando vocês começaram a acreditar que quem votou a favor da PEC que congelou os investimentos na educação, saúde e segurança por vinte anos seria a mesma pessoa que traria mais educação, saúde e segurança pro povo? Como vocês foram confiar em alguém que se diz a favor da tortura e que escolheu como seu maior herói um dos piores torturadores durante a ditadura? Como foram acreditar que alguém que admitiu publicamente ter recebido propina e que está sendo acusado de aceitar milhões de reais de empresas pra espalhar notícias falsas pelo WhatsApp seria a resposta pra acabar com a corrupção?

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Você pode substituir direitos humanos por veganismo, por exemplo

Alguns meses atrás Tel Aviv foi palco do que foi chamada de “a maior marcha de direitos animais da História“. Acredita-se que Israel tenha a maior população vegana do mundo e o país é frequentemente descrito como “a capital vegana do mundo” e “a terra prometida dos veganos” . Minhas amigas israelenses me disseram que o movimento vegano começou, vários anos atrás, como parte integrante da luta por justiça e contra todos os tipos de opressão, incluindo a ocupação e a colonização israelense da Palestina. Muitas veganas israelenses ainda militam contra a ocupação, mas essa conexão não está presente no discurso vegano dominante, onde conciliar veganismo e sionismo não parece ser um problema. Então eu não fiquei surpresa quando um amigo palestino me contou que um amigo dele, um palestino de 48, se juntou à marcha, mas decidiu ir embora pouco depois por causa dos comentários racistas que os ativistas israelenses estavam fazendo. É importante mencionar que um grande número de palestinos de 48 (palestinos que não foram expulsos de suas terras pelas forças sionistas durante a criação de Israel em 1948, contrariamente ao que aconteceu com dois terços da população da Palestina histórica da época, e que vivem no que hoje é Israel) são veganos ou vegetarianos. Na verdade, de acordo com um artigo de 2015 publicado no jornal israelense Haaretz, enquanto 3% da população judia israelense é vegana e 7% é vegetariana, a comunidade palestina de 48 conta com 6% de vegana(o)s e 11% de vegetariana(o)s.

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