Essa é a segunda parte da mini-série de posts sobre as comidas que descobri, e cozinhei, durante a viagem que fiz pela Amazônia (do Acre ao Maranhão), no final do ano passado. Na primeira parte falei sobre o que comi no Acre e agora voltei pra falar de Manaus.

Diferente da primeira parte da viagem, onde uma amiga nos acolheu e conhecemos várias pessoas acreanas que compartilharam com a gente as comidas daquele território, a passagem por Manaus foi por nossa conta. Não conhecia ninguém por lá e foi a parte mais “turista” das 7 semanas que passamos na estrada. Então preciso dizer de cara que por causa disso, e por ter ficado apenas alguns dias na cidade, meu contato com a comida do Amazonas foi muito limitado. MAS, e é um “mas” com letras maiúsculas, fiz uma descoberta que, sozinha, valeu a viagem. Conto já já sobre esse ingrediente amazônido, extremamente apreciado pelo pessoal local e pelo qual me apaixonei perdidamente.
Primeiro deixa eu contar que em Manaus a galera é doida por banana-da-terra, que por lá é chamada de “banana pacovã”. De início, isso causou uma confusão na minha cabeça, porque de onde venho “pacovã” é outra banana, que se como crua. Abaixo, a feira da banana onde, além de banana-da-terra (ou pacovã/comprida/de fritar), é possível encontrar bananas de outros tipos. Me encantou ver como banana-da-terra é vista como um “recheio”, seja pra comer com tapioca ou com pão. Fiquei me perguntando por que nunca pensei nisso antes. Amo banana da terra, mas tenho costume de comê-la frita, como acompanhamento do feijão com arroz do almoço, ou cozida, no café da manhã, acompanhada de algo salgado (como faço com tubérculos – macaxeira, cará). Mas anotei a ideia, pois sanduíche com banana da terra é uma delícia!
Agora falemos do ingrediente amazônido que provei pela primeira vez em Manaus e que conquistou meu coração: tucumã. Esse frutinho, que vem de uma palmeira, tem um sabor parecido com nada que eu já tinha provado antes. Vai ser impossível descrever o danado, só posso dizer que ele tem um sabor marcante, daqueles que, na primeira mordida, você acha estranho, depois pensa “Interessante!” e em pouco tempo passa a achar aquilo muito gostoso. E quanto mais você come, mais o negócio te parece saboroso.
Comprei tucumã fresco na Feira da Banana, onde ele estava sendo descascado por mulheres de mãos habilidosas. Entendo porque ele é tão caro, porque só vendo o trabalho de descascar já fiquei com vontade de pagar mais, e olha que nem vi o tamanho do trabalho pra colher o bichinho. E olha que quando estive em Manaus o quilo do tucumã fresco custava 100 reais! Por isso só comprei 100g.
Normalmente as pessoas colocam as lascas de tucumã cruas, mesmo, dentro do pão (ou tapioca), pois já é bem saboroso e, por ser rico em gordura, você realmente tem a impressão de estar comendo um “recheio” e não uma fruta. (Esqueci de dizer que tucumã não tem nada de doce!). Mas resolvi ir além e refogar minhas preciosas lascas de tucumã com alguns temperos e deixar dourar um pouco na manteiga vegetal. Ficou ainda mais suculento e completamente irresistível. Vou repetir algo que digo com frequência aqui no blog: ninguém precisa de “carne do futuro” ultraprocessada, mesmo sendo de origem vegetal. Porque nossos biomas já oferecem inúmeras alternativas de carnes vegetais, cada uma mais deliciosa que a outra e celebrando nossa cultura alimentar.

E como falar de tucumã sem falar do sanduíche-símbolo de Manaus, o X-Caboquinho? Se trata de um pão francês recheado com lascas de tucumã, banana-da-terra frita e queijo coalho. Você o encontra nos quatro cantos da cidade, mas claro que não pude provar um feito por uma/um manauara, porque sou vegana. Mas Larissa, minha amiga e companheira de luta manauara, tinha me falado desse sanduíche uns anos atrás e já cheguei decidida a procurar uma versão totalmente vegetal. Não encontrei, mas comi algo parecido num restaurante com opções vegetarianas/veganas: uma tapioca recheada com banana-da-terra frita, tucumã e tofu. Achei a ideia boa, mas eu sabia que podia melhor aquilo e no dia seguinte eu tinha reunido os ingredientes pra fazer não só uma versão vegetal do X-Caboquinho, mas o melhor sanduíche que já comi na vida. Sem exagero! A receita está no final desse post. De nada.
Mais um sonho pra minha lista: trabalhar com tucumã e ver todas as possibilidades desse fruto maravilho na culinária vegetal. E, nesse processo, encher a barriga de tucumã todo dia.
Alugamos um apartamento no centro de Manaus, pertinho do Teatro Amazonas, e foi lá que preparei minha versão do X-Caboquinho, além da maior parte das refeições que fizemos, Anne e eu, na cidade. Fiz fotos das compras que fizemos quando chegamos pra mostrar que, com um mínimo de organização e um mercadinho por perto, é fácil manter uma alimentação vegetal enquanto viajamos. Imaginando, obviamente, que você tem uma cozinha à sua disposição. Mas é cada vez mais comum alugar apartamentos (via Airbnb) quando se viaja, então…
Num supermercado do centro, perto de onde estávamos hospedadas, comprei aveia, macarrão, feijão pronto (só cozinhado na água e sal, sem tempero), cuscuz, couve, coentro e cebolinha. Na barraca de frutas da esquina compramos… frutas:) Achamos um empório de produtos naturais perto do Mercado Adolpho Lisboa, daqueles que vendem tudo a granel, que era uma mina de outro! Tinha tudo quanto era semente, tempero, cereal, leguminosa e muitas outras coisas prontas e 100% vegetais. E por um precinho muito camarada. Até encontramos leite vegetal e manteiga vegetal (feita com óleo de coco). Não é algo que consumo com frequência (posso contar nos dedos das mãos as vezes em que comprei manteiga vegana), mas é bem prático e não vou negar que o negócio é bem saboroso. No restaurante com opções veganas, onde comemos a “tapioca-caboquinho”, comprei chocolate e pão de macaxeira. Foi o suficiente pra preparar várias refeições, simples, mas nutritivas e gostosas, pra duas pessoas.

No final da nossa estada em Manaus descobrimos um restaurante vegano maravilhoso. É mais que um restaurante, pois também tem um mini-empório com muitas delícias feitas na casa. Como esse tofu, que usei no meu X-caboclinho, muitos patês, iogurte, pratos prontos congelados e queijos incríveis! E o pessoal que trabalha lá é extremamente simpático.
Agora chega mais pra ver isso aqui: coxinha de tucumã, com massa de macaxeira. Eu nem gosto de coxinha e adorei! A melhor coxinha que já provei? Sem sombra de dúvidas!
O restaurante também faz pizza de fermentação natural, com os queijos da casa, e é um desbunde! E o bolo de macaxeira é um sonho!
Tudo maravilhoso até aqui, né? Pois é, deixa eu contar uma grande decepção que tive na Amazônia. Chegamos em Manaus no meio da noite e fomos dormir de barriga vazia. Na manhã seguinte fomos pra um café com (poucas) opções veganas e quando vi “cuscuz com coco” no cardápio, me animei. Quando chegou o tal cuscuz, tive o desprazer de constatar que ele era doce. Doce! Queridas pessoas amazônidas, eu respeito demais a cultura alimentar de vocês e sou apaixonada pelas comidas dos seus territórios. Mas cuscuz doce é de lascar! Eu sei, eu sei, pra vocês o que é estranho é cuscuz salgado e provavelmente vamos ter que concordar em discordar. Tudo bem. Mas se você é uma nordestina viajando pelo Norte, fuja do cuscuz de lá.
Outra coisa que provei em Manaus, mas que vinham me recomendado desde o Acre, foi a tapioca com coco e castanha-da-Amazônia. Uma maravilha, mesmo se essa aqui estava um pouco seca (em casa, com os mesmos ingredientes, eu teria feito uma muito melhor).

Encerro esse post com o X-caboquinho que fiz enquanto estava em Manaus e com o qual sonho até hoje. Sei que fora da Amazônia o acesso ao tucumã será provavelmente impossível, mas queria deixar registrado esse sanduíche aqui porque pode servir de inspiração pras pessoas me lendo no Norte. E se algum dia você se encontrar em Manaus, ou diante de um punhado de lascas de tucumã, você vai saber o que fazer.

Um sanduíche inspirado no X-caboquinho (e todo vegetal)
O espírito é do X-caboquinho, mas numa encarnação um pouco diferente. Não é nada ortodoxo e se aparecer manauara dizendo que minha receita é uma afronta, eu não tentarei me defender. A receita original usa pão francês, banana-da-terra frita, lascas de tucumã (cru), queijo coalho e manteiga. Ainda tem uma versão “completa” que leva ovo, também. Usei pão de macaxeira porque era o que eu tinha naquele dia, mas use pão francês pra uma versão mais autêntica. Usei o tofu e o queijo de castanha meia-cura dos Salgados e Laticínios Veganos Manaus, mas um queijo de castanha como esse aqui também funciona. O importante é acompanhar o tofu (que não tem gordura) de um ingrediente rico em gordura, porque é a gordura do queijo (e da manteiga) na versão original que deixa esse sanduíche irresistível. O tofu entra aqui tanto pra aumentar o contraste de textura, equilibrar um pouco dos sabores fortes dos outros ingredientes e deixar o prato com mais sustância. Eu decidi temperar o tofu com sal preto, aquele que tem gosto de ovo (porque é rico em enxofre), e ficou parecendo que tinha ovo ali. Então é um X-caboquinho completo, mas se não tiver nem gostar desse ingrediente, sem problemas. E também pode usar óleo no lugar da manteiga vegana (o sabor vai ficar mais longe do original, mas igualmente gostoso). Se quiser usar o mesmo recheio numa tapioca, eu te apoio.
Lascas de tucumã (fresco ou congelado)
Banana-da-terra (também conhecida como banana comprida, de fritar ou, se você for do Amazonas, pacovã)
Tofu (de boa qualidade e quanto mais fresco, melhor)
Queijo de castanha de caju (como esse aqui, mas pode ser uma versão industrializada, se preferir)
Manteiga vegana (gosto da marca Qualicoco, mas use a que preferir)
Pão francês (ou outro da sua preferência)
Temperos pro tucumã: cebola e alho desidratados, páprica doce defumada, sal e pimenta preta
Sal preto indiano (Kala Namak – opcional)
Numa frigideira, aqueça um pouco de manteiga vegana. Despeje as lascas de tucumã, junto com os temperos, e refogue por alguns minutos, até começar a dourar. Cubra e deixe amornar enquanto prepara os outros ingredientes.
Corte a banana-da-terra em fatias no sentido do comprimento e frite em um pouco de gordura (manteiga vegana ou óleo). Eu uso pouca gordura aqui, então se trata mais de “grelhar” do que “fritar”. Reserve.
Se tiver usando um tofu extra-fresco, corte em fatias finas e tempere com o sal preto. Foi o que fiz, pois achei que já tinha sabor e gordura suficiente no resto do sanduíche. E eu estava certa: quando comi o sanduíche, o tofu se misturou com os outros ingredientes e até deu uma equilibrada no excesso de gordura. Mas se quiser dar mais um gostinho pra ele, frite as fatias de tofu em um pouco de manteiga vegana/azeite e tempere como quiser. Mas não esqueça de finalizar com o sal preto indiano, que dá um leve sabor de ovo, se quiser a versão X-caboquinho completo. Reserve.
Na hora de montar o sanduíche espalhe uma boa camada de queijo de castanha no pão e coloque uma fatia de tofu, algumas de banana frita e um punhado de lascas de tucumã refogado dentro. Feche o pão depois de rechear. Você pode finalizar espalhando manteiga vegana por fora do pão e esquentando na chapa (com um peso em cima) ou numa torradeira. Como eu estava usando pão de forma de macaxeira, achei mais seguro assar as fatias na manteiga antes de montar o sanduíche.
Seu sanduíche inspirado no X-caboquinho manauara está pronto. Coloque o celular em modo avião, sente-se confortavelmente e deguste essa belezura de olhos fechados.