Estou escrevendo essas linhas diretamente de Rio Branco, no Acre. Cheguei ontem à noite e essa é a primeira etapa de uma longa viagem que vai durar 50 dias e nos levar, Anne e eu, do Acre ao Rio Grande do Norte, passando pelo Amazonas, Pará e Maranhão. Contarei mais sobre esse projeto no final da jornada, mas antes de começar esse trabalho apareci aqui pra compartilhar alguns escritos recentes que nós, da União Vegana de Ativismo (UVA) escrevemos. O incômodo que pessoas antiespecistas sentiram nos últimos meses é gigante. Enquanto os movimentos sociais e pessoal de esquerda, num sentido mais abrangente, não para de repetir – com razão- que o agro é fogo, praticamente ninguém (além da galera vegana) fala sobre a relação entre o consumo de animais e os incêndios que estão destruindo com nossos biomas. Por isso levantamos essas questões sempre que pudemos, porque nossa consciência política e ambiental não deveria parar de funcionar quando sentamos pra comer.
Vou reproduzir os textos aqui, mas vai ter o link pro lugar onde foi publicado originalmente no final de cada um.
O agro é fogo – e já não tem mais como esconder isso. As queimadas são intencionais, e a pecuária é a principal responsável pelos incêndios florestais, de maneira direta e indireta.
A questão agora é: Como apagar o incêndio?
Comece apagando o churrasco!
Sabemos que 97% do desmatamento nos últimos 5 anos, no Brasil, foi causado pela agropecuária. Sabemos que a maior utilização da terra no país é PASTO – já temos o equivalente ao estado do Amazonas em pasto! O Brasil se tornou o maior produtor de carne bovina no mundo e o número de vacas já ultrapassou o número de humanos. E quem come tanta carne?
75% da carne bovina produzida no Brasil em 2021 foi consumida no nosso prato (ABIEC). O consumo de carne de vaca no país, em 2023, foi de 39kg/pessoa, enquanto o consumo de carne de frango foi de 46 kg/pessoa. Lembrando que a soja é a principal proteína nas rações das aves. Em termos de desastre ambiental e social, comer carne de vaca ou de frango é mais do mesmo.
Citando Luiz Marques, autor do livro O decênio decisivo:
“Somos os principais responsáveis pela destruição do patrimônio natural, do clima e da biodiversidade de nosso país. Podemos manter a floresta e tudo o que ela proporciona ou podemos manter a dieta carnívora. Mas não podemos manter os dois. É simples assim.” (post original no perfil da UVA)
Estamos presenciando agora uma enxurrada de manchetes como “O Agro é fogo” ou “O Agro é destruição”. A maioria dessas notícias não personaliza a discussão, tratando o agronegócio como uma entidade sem rosto, algo que todos reconhecem, mas poucos compreendem a fundo. Por esse motivo, achamos importante trazer algumas informações sobre o assunto.
Ao falar de agronegócio, é essencial “dar nome aos bois”. Para discutir o agro, precisamos falar sobre a agropecuária. Neste momento, enquanto você é sufocado pela fumaça das queimadas, não dá para ignorar as mazelas de um sistema agrícola predatório, que transforma a criação em larga escala de animais no bife que chega ao prato. Não há como combater o agronegócio sem refletir, com urgência, as bases de um sistema alimentar falido, tanto no Brasil quanto globalmente.
Sabemos que 97% do desmatamento nos últimos 5 anos, no Brasil, foi causado pela agropecuária. Sabemos que a maior utilização da terra no país é PASTO – já temos o equivalente ao estado do Amazonas em pasto! O Brasil se tornou o maior produtor de carne bovina no mundo e o número de vacas já ultrapassou o número de humanos. A monocultura da soja que devasta nosso cerrado e outras regiões do país, é quase em sua totalidade utilizado para consumo de animais que serão mortos e não para consumo direto das pessoas.
Diante dessa realidade, não podemos deixar de considerar que “ quando a carne é a protagonista do prato, o agro é o protagonista do campo”. Mas quando a alimentação tem como protagonistas vegetais frescos, a agricultura familiar é colocada no centro. Alimentação vegetal é resistência contra um sistema que causa fome, miséria, concentração fundiária, genocídio indígena e ameaça a saúde do planeta.
Você pode não se importar com as relações de opressão dos animais humanos para com os animais não humanos, mas se você tem preocupações ambientais e preza pelo senso de comunidade, pode enxergar uma realidade bem indigesta pela frente: é insustentável consumir animais nessa quantidade atual. Não estamos trazendo uma imposição ou obrigação em ser vegana, mas pense em considerar o veganismo como um ato político de transformação social, como um movimento social de lutas anti-opressão, que pode também contribuir para uma sociedade sustentável.
Citando Luiz Marques, autor do livro O decênio decisivo:
“Somos os principais responsáveis pela destruição do patrimônio natural, do clima e da biodiversidade de nosso país. Podemos manter a floresta e tudo o que ela proporciona ou podemos manter a dieta carnívora. Mas não podemos manter os dois. É simples assim.”
(texto publicado originalmente no site da Mídia Ninja)
Quem come como o colonizador, pensa como o colonizador?
Perdi a conta de quantas vezes contei essa história. Foi há muitos anos e eu estava visitando minha família, no Sertão do Rio Grande do Norte. Era a primeira vez que eu ia lá depois de ter me tornado vegana. A tia que me hospedou estava preocupada, repetindo que agora não sabia mais o que fazer pra eu comer. “Tia, a senhora não precisa se aperrear, não. Eu como tapioca, cuscuz, inhame, feijão, arroz, farinha, batata doce, macaxeira, todas as verduras e frutas. Tudo que eu sempre comi com a senhora, só que sem carne nem queijo” – respondi.
Quando ela me chamou pra comer, encontrei uma mesa farta. Tinha feijão verde, de uma roça ali pertinho, arroz, batata doce, macaxeira, verduras cozidas e salada crua. Enchi o prato e antes de sentar pra comer, minha tia se aproximou, olhou aquele monte de comida colorida na minha mão, suspirou e disse: “Minha fia não achou nada pra comer, não foi?”
Aquela observação me deixou chocada. Onde eu via fartura, minha tia via vazio.
Repare que ela estava segurando um prato quase idêntico ao meu, com uma única diferença: no dela tinha um pedaço de frango. Um frango que ela tinha comprado congelado, no supermercado mais próximo. Aos olhos da minha tia, aquilo, sim, era comida.
Essa história é uma perfeita ilustração de como valorizamos muito mais carne (seja ela de vaca, galinha ou qualquer outro animal) do que vegetais. O conceito de “fartura” está, quase sempre, associado a uma mesa, ou geladeira, cheia de carnes e laticínios. Mas qual o impacto dessa crença na sociedade e nas nossas vidas?
Vamos começar fazendo algumas perguntas simples sobre a origem da comida que comemos. Quem produz a quase totalidade da carne no país? Resposta: o agro, seja diretamente, através da pecuária, seja indiretamente, através da soja e do milho que são transformados em ração pros animais de abate. Agora vamos aprofundar um pouco mais a nossa pesquisa.
Quem trouxe as vacas, galinhas, ovelhas, cabras e porcos pra esse território conhecido como Brasil? Pouca gente reflete sobre isso, mas esses animais não são nativos: eles foram trazidos pra cá pelos invasores europeus. Por um lado, porque era a comida que os colonizadores tinham costume de comer e, por outro lado, pra servir de ferramenta de expansão territorial. Foi “passando a boiada” que as terras foram, e ainda são, colonizadas, até que nos tornamos o segundo maior produtor de carne de gado e de frango do mundo! E se engana quem acha que a maior parte da carne e frango produzidos no Brasil é exportada. De acordo com a ABIEC, atualmente 75% da carne de gado produzida no Brasil é consumida dentro do país e quase 70% do frango brasileiro vai parar no nosso prato. A carne desses animais, que não fazia parte da dieta dos povos originários antes da invasão, ocupa hoje um espaço central no nosso prato: enquanto o consumo anual de carne, frango, porco e cabra é de quase 100kg por pessoa, comemos menos de 50kg de verduras por pessoa, anualmente (FAO).
O que eu vou dizer agora provavelmente vai gerar antipatia pro meu lado, mas aceito correr esse risco. Quando a gente escolhe comer como o colonizador, a gente acaba apoiando o projeto de colonização, que na sua encarnação mais recente atende pelo nome de agronegócio. Valorizar carne e frango acima de qualquer outro alimento reforça o poder do agro. É por isso que uma das palavras de ordem da UVA (União Vegana de Ativismo) é: “Quando a carne é a protagonista no prato, o agro é protagonista no campo.”
Na outra ponta dessa mesa está a agricultura familiar, responsável por dois terços da produção de frutas, verduras e legumes no país. Acho que agora já temos mais elementos pra responder a pergunta que fiz alguns parágrafos acima.
Quem sai fortalecido quando acreditamos que “fartura” é obrigatoriamente uma grande quantidade de carne, queijo e ultraprocessados (os pacotinhos e potinhos fabricados pela indústria)? Quem perde quando acreditamos que vegetais, e alimentos frescos em geral, são inferiores – tanto em sabor, quanto em status social?
E tem mais! 57 mil pessoas morrem anualmente no Brasil por causa do consumo de ultraprocessados. O consumo de carnes, principalmente as vermelhas e os embutidos (como mortadela e salsicha) está adoecendo a população, principalmente as classes populares. Aumentar nosso consumo de vegetais é essencial pra evitar o nutricídio da população mais vulnerável, mas estamos caminhando na direção oposta. A última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE mostrou que 90% das pessoas no país não comem frutas e verduras em quantidade suficiente, alimentos essenciais pra manutenção da saúde…
Quando não valorizamos a comida que vem da terra, desvalorizamos também quem plantou aquela comida. O mais triste é ouvir isso da boca de quem vive da terra. Quem nunca ouviu um agricultor falar: “Planto, mas não como” ? Precisamos mudar essa mentalidade.
Enquanto lutamos pra construir o mundo no qual queremos viver, com abundância pra todas e todos, já podemos começar a sentir o gostinho dele na mesa, ao decidir que “fartura” de verdade é comida que nasce na terra, de origem agroecológica.
Se quisermos derrubar o agro, precisaremos boicotar seus produtos. Não dá pra continuar repetindo que queremos o agro fora do campo enquanto enchemos o prato com a carne que eles produzem. Pra descolonizar a alimentação, precisamos nos recusar a comer como o colonizador.
(texto publicado originalmente no site da Teia dos Povos)