Vegetal, ancestral e autêntico

Veja como são as coisas. Oito anos atrás eu postei um creme de castanha (pra passar na tapioca ou no pão), que chamei de “requeiju”. A receita levava missô, vinagre, levedura de cerveja e até polvilho. Desde então meu estilo culinário evoluiu e minhas receitas foram ficando mais simples e, na falta de uma palavra melhor, verdadeiras. Não que tivesse algo de falso nas receitas antigas, mas quanto mais meu tempo de vegana aumenta, mais me convenço de que o futuro não é apenas vegetal. Ele é vegetal, ancestral e autêntico. O que significa, pra mim, que a comida capaz de alimentar nosso futuro vem da terra (vegetal), é, na sua maior parte, nativa do território que os nossos pés pisam (ancestral) e respeita a integridade do alimento (nem é ultraprocessada nem ultracomplicada). Então deixa eu voltar pra evolução das minhas receitas.

Depois da versão elaborada que citei acima, comecei a fazer uma versão de queijo de castanha fermentado com kefir. Apenas 3 ingredientes: castanhas, água de kefir e sal. Postei essa receita aqui no blog no início do ano. É uma delícia e muito simples de fazer, mas vinha com uma complicação: pouca gente tem grãos de kefir de água em casa. Isso deixava minha receita inacessível pra maior parte das pessoas.

Até que umas semanas atrás minha irmã me contou que estava fermentando o queijo de castanha no café dela (o Libre) usando… nada. Isso se chama “fermentação selvagem”, que é quando você deixa um alimento ser fermentado naturalmente pelas bactérias que vivem no ar. Dá certo, pode confiar. E desde então é assim que faço queijo de castanha cremoso. Já atualizei a receita, incluindo a fermentação selvagem, e você pode ter acesso clicando aqui.

Fermentação selvagem é um aprendizado filosófico. Você tem que confiar em seres invisíveis, acreditando que eles estão ali na sua cozinha e que vão querer entrar no seu creme de castanha e transforma-lo em queijo. E tem que confiar que apenas os seres benignos vão entrar ali, e pra isso você vai ter que superar algo bem recente na história da humanidade, que é a desconfiança e até medo de toda comida que não sai de um pacote com uma data de validade impressa. Quando eu trabalhava numa queijaria vegetal em Berlim e postava (no meu finado perfil do Instagram) fotos do processo de fermentação, chovia perguntas sobre como saber a diferença entre “fermentado” e “estragado”. No processo de fermentação você vai precisar aprender a confiar no seu nariz e vai, tenho certeza, resgatar (ou conquistar) sua intuição culinária. Aquilo que pessoas que cozinham com frequência tem e parece um super-poder pra quem vive longe da cozinha: saber (olhando, cheirando e provando), entre outras coisas, quando uma comida está estragada.

Então uma receita tão simples quanto esse queijo de castanha fermentado tem o potencial de te convencer que o futuro é vegetal (pois não precisamos de exploração animal pra ter prazer na mesa) e te ensinar a confiar no alimento, nos seres invisíveis com quem dividimos esse planeta e em você mesma.

Termino com o meu lanche de hoje, que incarna lindamente minha filosofia na cozinha, coerente com minha ética antiespecista (e a luta decolonial e anticapitalista) e que mostra, mais uma vez, como minhas receitas seguem evoluindo.

Fiz um panqueca misturando carimã (macaxeira fermentada, também conhecida como “puba” ou “mandioca puba”) e cuscuz no leite de coco (um resto do jantar de ontem). Assei na frigideira, até ficar cozida e levemente dourada dos dois lados. Servi com creme fermentado de amendoim, que também foi atualizado hoje (está mais simples e mais rápido, sempre delicioso) e coentro. Macaxeira, milho e amendoim reunidos no mesmo prato. Três ingredientes dos nossos territórios, representantes fortes da nossa cultura alimentar. Um alimento fermentado tradicional, a carimã, junto com um alimento fermentado recente (mas pensado por um cozinheiro da Amazônia), que honra a comida da nossa terra e ajuda a descolonizar nossas práticas alimentares (xô, requeijão!). Se ficou gostoso? Ficou delicioso!

O final de junho

Semana passada tive a sorte de poder descansar longe da cidade por uns dias. O mês de junho foi intenso pra mim, porque a cuidadora da minha mãe saiu de férias e fiquei no lugar dela. Também foi o mês em que fiz minha estreia na sala de aula e me tornei educadora em um cursinho popular aqui em Natal. No final do mês eu estava exausta, com o juízo aperreado e com muita dificuldade pra funcionar durante o dia. Então assim que a cuidadora da minha mãe voltou, me dei folga da casa, do trabalho (todos eles) e da função de cuidadora. Fui pra uma cabana entre o rio e o mar e passei três gloriosos dias sozinha, sem falar com ninguém. Quer dizer, sem falar com ninguém da espécie humana.

Sempre fui introvertida, o que não é sinônimo de ser tímida. Mas sinto que os anos passaram e minha introversão aumentou muito. E como ela se misturou com um amor cada vez maior pela contemplação, hoje só penso em fugir pras montanhas (ou pra floresta). Vou continuar por aqui porque sou uma militante sincera e dedicada, mas juro que se todas as revoluções tivessem sido feitas, eu me embrenharia mato adentro e passaria o resto dos meus dias lavrando a terra, conversando com os bichos e tomando banho de rio.

Dois anos atrás li um livro que falava sobre como resistir à economia da atenção. O livro, escrito pela estadunidense Jenny Odell, se chama “How to do nothing”, mas foi traduzido pro Português como: “Resista – não faça nada”. “Economia da atenção” é um termo que eu descobri com esse livro e que nomeou algo que me incomoda profundamente há anos. A ideia, bastante difundida, de que “se é gratuito, então o produto é você” não é verdadeira. Nas redes sociais o verdadeiro produto, a moeda de troca mais preciosa, é a sua atenção. Como moro em um país onde o uso do celular/internet/redes sociais é bem menor do que no Brasil (nosso paí é o vice-líder mundial em uso de internet: cada brasileira passa nada menos que 9h32 por dia conectada, enquanto na França, a utilização diária é de 5h26), sempre que estou desse lado do Atlântico fico assustada ao ver como a atenção das pessoas é sugada em permanência pelo celular.

Consegui uma parte significativa da minha atenção de volta vivendo sem redes sociais, mas isso foi só metade da mudança. Escolher pra onde vai a atenção reconquistada é, talvez, a parte mais importante nesse processo de resistência à economia da atenção. Prestar atenção no que e em quem está ao meu redor não é nem um pouco difícil. Me perder nos meus pensamentos, passar horas escutando passarinhos ou observando minhocas é puro deleite pra mim. Às vezes eu sentava na frente da minha horta de quintal e passava um longo momento com o nariz quase dentro da terra, assistindo fascinada a tudo que se passava ali (minha horta era agroecológica e fervilhava com os mais diferentes tipos de vida). Então largar o celular é fácil. O verdadeiro desafio, pra mim, é conseguir me afastar dos compromissos e conseguir momentos de introspecção.

Na sociedade capitalista em que vivemos, onde se sobrecarregar de trabalho é a condição de sobrevivência de 99% da população, tempo livre é um luxo pra poucas. Mas estou falando aqui sobre escolher não deixar o celular drenar minha atenção em todos os momentos do cotidiano. E, quando as circunstâncias permitem, escolher dar minha inteira atenção ao mundo material ao meu redor e ao mundo imaterial dentro de mim. Semana passada vivi dias deliciosos de silêncio e encontros com animais outros que humanos. Nada alimenta mais minha alma que esses momentos.

E falando em alimento, praia é um dos lugares mais difíceis de encontrar comida (pro corpo) quando se é vegana e já escrevi sobre isso anos atrás (Praia vegana: guia de sobrevivência). As dicas que compartilhei naquele post ainda são válidas, só queria acrescentar que hoje, oito anos depois, minha alimentação está ainda mais simples, principalmente quando cozinho apenas pra mim mesma.

Gosto de comer tapioca no café da manhã, então levei goma fresca, mais alguns recheios (tofu mexido, queijo cremoso de castanha e muta’bal). Preciso comer feijão todo dia pra ficar feliz e levei feijão macaça, lá da terra do meu pai, que comi no almoço e jantar (temperado só com sal ou com verduras). Também gosto de comer tubérculos diariamente, então levei batata doce e cará, que entravam no prato com o feijão. E acompanhei todas as refeições com frutas. Como não ligo muito pra sobremesas nem doces em geral, levei apenas um pedaço de chocolate 100% (sim, totalmente amargo) e uma soda preta (quitute típico do meu território, feito com rapadura), que gosto de comer com café. Mas nada melhor do que lanchar frutas frescas, principalmente na praia.

O lugar onde me hospedei tinha a particularidade de estar exatamente onde um rio potiguar encontra o mar, então dependendo da maré, a baía era preenchida pelo mar (foto abaixo, à esquerda) ou pelo rio (foto à direita). O momento em que o rio voltava, empurrando a água salgada e verde de volta pro mar e inundando tudo com sua água doce e escura era de uma lindeza que enchia meus olhos de lágrimas. No primeiro dia fui surpreendida pelo espetáculo, mas depois passei a sentar e esperar por ele, e a alegria era tão intensa quanto da primeira vez.

Quando voltei pra casa e contei sobre a pororoquinha que eu via todos os dias, minha irmã perguntou por que eu não tinha filmado. A ideia de deixar de “viver o momento” pra “filmar o momento”, me pareceu revoltante. Me dá um arrepio de prazer saber que aqueles momentos estão guardados dentro de mim, sem cópias na memória do celular. Não me importo se minha memória (humana, logo, falha) vai deformar os acontecidos conforme o tempo for passando. Faz parte da vida. Também gosto de contar o que vi e vivi pras pessoas que amo, olhando nos olhos delas, ao invés de simplesmente mostrar algo numa tela. Sei que isso foi normalizado, mas ainda me incomoda muito quando o celular se faz presente nas conversas com pessoas que estão na minha frente.

Já estou mergulhada novamente na rotina, entre trabalho, militância e cuidados com minha mãe. Aliás, ela está precisando da minha atenção nesse momento preciso.

Termino esse post com mais um espetáculo: o pôr do sol atrás do rio.

A argamassa da vitória

Será que esse blog precisa de mais uma receita de farofa? Precisa, porque ainda não compartilhei aqui a farofa de banana caramelizada e cebola tostadinha da minha prima Íris. Nenhuma coleção de receitas que se preze (ou seja, que honre seu território e as comidas que vêm da terra) está completa sem ela.

Desde que fiz as pazes com a farofa, em meados de 2019, nossa história de amor seguiu firme e forte. A prova é que essa é a oitava receita de farofa que aparece nesse blog. Teve a farofa de banana e couve (diferente da farofa de hoje, juro), minha farofa rica, a farofa de beterraba da minha irmã, a nossa tradicional farofa d’água, a farofa de carne de caju, minha última criação em matéria de farofa, e a queridinha do meu coração, e até farofas quem nem farinha levam, como a farofa de cenoura da minha família, com farinha de rosca, e minha farofa de cuscuz com feijão e amendoim. Tem farofa pra todos os gostos.

E o que diferencia essa farofa das outras? Embora todas as farofas Papacapim sejam gostosas, essa aqui faz parte daquela categoria de receitas que parece que leva algum pozinho mágico e consegue agradar todo mundo. Embora eu ache minha farofa de caju o supra-sumo da deliciosidade, ela não agrada todo mundo (tem que gostar de caju pra gostar dela). Já a farofa da minha prima consegue traz aquela alquimia misteriosa que produz um resultado muito maior que a soma das partes (que são humildes: banana, cebola, farinha…) e é sucesso garantido com qualquer público. Tudo isso sem os artifícios da indústria alimentícia com seus produtos ultraprocessados viciantes. Acredito que o segredo seja o modo de preparo, por isso incluí fotos do ponto certo dos ingredientes que caracterizam essa farofa.

Faça essa receita se você gosta de farofa, mas também faça se não gostar de farofa. Talvez ela consiga te fazer mudar de ideia. Porque você também precisa de farofa na sua vida, companheira. Vou repetir a expressão da amiga pernambucana, que já compartilhei aqui em 2019: farofa é a argamassa da vitória.

Farofa de banana caramelizada e cebola tostadinha

Essa receita é uma das especialidades da minha prima Íris, que a chama simplesmente de “farofa de banana”. Ela faz essa farofa em todas as ocasiões especiais e é, pra mim, uma das melhores farofas do mundo! As quantidades são aproximadas, pois minha prima cozinha sem xícaras nem colheres medidoras, usando sempre o olhômetro. Aproveito pra lembrar o óbvio: gordura é essencial pro sucesso de qualquer farofa. (A única exceção que conheço é a farofa d’água) Ao invés de ter medo da quantidade de óleo aqui e tentar fazer uma versão “light”, sugiro uma alternativa. Coma farofa (da boa, sempre!), mas somente em ocasiões especiais.

1 cebola grande (branca, mas roxa também funciona)

4 dentes de alho

3 bananas médias (maduras, mas não moles)

2/3 de xícara de óleo + 1 colher de sopa (de girassol ou de soja)

3 xícaras de farinha de mandioca fina (peneire, se preciso)

Sal e pimenta preta

1 colher de sopa de açúcar (opcional)

Corte a cebola em cubos pequenos. Rale ou pile o alho e reserve. Coloque a cebola cortada em uma panela grande junto com 2/3 de xícara de óleo. Leve ao fogo médio, mexendo de vez em quando, até a cebola ficar bem dourada e reduzir bastante de tamanho. Ela tem que ficar bem tostadinha, já puxando pro marrom. Insisto nisso porque aqui está o segredo do sabor maravilhoso dessa farofa. Veja fotos abaixo pra entender o ponto. Se você não chegar nesse ponto, não garanto os resultados.

Mas cuidado pra não queimar: ela vai do dourado-escuro ao queimado em questão de segundos! Assim que atingir o ponto da foto acima coloque o alho picado/amassado, mexa e deixe fritar mais alguns segundos. Quando o alho também estiver bem frito, tempere generosamente com sal, uma pitada de pimenta preta e despeje a farinha, aos poucos, mexendo entre cada xícara. Deixe a farinha cozinhar alguns minutos, pra tostar um pouco, mexendo frequentemente. Prove e acerte o sal (farofa tem que ficar bem temperada, então não tenha medo de caprichar no sal). Reserve.

Descasque e corte as bananas em rodelas (nem muito finas, nem muito grossas). Em uma frigideira aqueça 1 colher de sopa de óleo e doure as bananas, em fogo médio-baixo, virando pra cozinhar dos dois lados. Tem que ficar bem dourada, começando a caramelizar, como na foto abaixo.

Quando as bananas estiverem douradas dos dois lados, polvilhe com 1 colher de sopa de açúcar e deixe caramelizar ligeiramente. Esse passo é opcional e você pode deixar o açúcar de fora, se preferir (principalmente se as bananas estiverem bem doces). Junte as bananas douradas/caramelizadas à farofa e misture bem. Sirva e se delicie. Rende uma quantidade boa de farofa e ela se conserva (fora da geladeira) por alguns dias.

O bolo preto da minha tia

Outro dia eu estava na feira do meu bairro e vi bolo preto na barraca das tapiocas. Adoro bolo preto e há anos não comia um. Me animei toda e comprei um pedaço pra tomar com café. Chegando em casa abandonei as frutas e as verduras no chão da cozinha, enchi uma xícara de café (ainda tinha um pouco na garrafa térmica que fica em cima da mesa) e sentei pra matar o desejo antigo. Que decepção! O bolo era seco, compacto e sem gosto. Uma vergonha chamar aquilo de bolo preto!

Pula pra algumas semanas depois. Tia Olizé, uma das irmãs da minha mãe, estava nos visitando e, não sei como, começamos a falar de bolo preto. Contei da minha decepção e expliquei que continuava com desejo de comer bolo preto, mas não sabia fazer. Ela disse: “Minha fia, é muito fácil!” e me contou como ela fazia. Eu queria fazer a primeira vez com ela pois, como toda pessoa que sabe cozinhar, ela não me deu medida nenhuma. Fiquei com medo de errar o ponto e ter outra decepção. Mas os dias foram se passando, minha tia acabou não voltando mais aqui em casa e a minha vontade de bolo preto só crescia. Eu poderia ter procurado em alguma padaria, mas depois de descobrir como minha tia fazia, minha intuição me dizia que o bolo dela era especial. Agora era o bolo dela que eu queria.

Ontem fizemos um adjunto na casa da minha mãe pra saudar São João (e São Pedro e Santo Antônio). Me ofereci pra preparar um bolo preto e logo depois mandei mensagem pra tia Olizé pedindo pra ela me repassar a receita dela, mas dessa vez com quantidades precisas. Ela respondeu por áudio e com a voz dela me guiando, foi como se ela estivesse na cozinha comigo. Apesar de ter ficado tensa algumas vezes, minhas dúvidas se dissiparam quando coloquei o primeiro pedaço (ainda quente) na boca. O sabor e a textura estavam muito, muito além das minhas expectativas. E o bolo foi um sucesso total com todas as pessoas que provaram. Algumas delas me disseram, inclusive, que tinha sido “o melhor bolo preto que já tinham comido”.

Algumas ressalvas sobre essa receita. Bolo preto não é pra todo mundo. A textura é densa e levemente gelatinosa, a léguas de distância da fofura que muitas pessoas associam à palavra “bolo”. O sabor é intenso e marcante. Eu o descreveria como uma rapadura cremosa perfumada com especiarias, mas menos doce e mais saborosa, por conta da castanha. É um bolo com caráter e personalidade. Ele sabe que não agradará todo mundo e está tranquilo com isso, pois vai ter sempre alguém que saberá apreciá-lo pelo que ele é. (Na vida, seja um bolo preto.)

Uma rápida busca pela internet me fez descobrir que algumas pessoas, principalmente de outras regiões, colocam macaxeira em seus bolos pretos. Vi até uma chef cearense usar carimã (macaxeira pubada/fermentada) na sua versão. E, o que me chocou bastante, vi pessoas no Sudeste colocarem ovos e até farinha de trigo nessa receita. Me parece correto dizer que no RN bolo preto é sempre feito com farinha de mandioca (é um bolo tradicionalmente sem trigo e sem glúten) e nunca, nunca entra ovo nem nada de origem animal em sua composição. É uma das nossas receitas tradicionais naturalmente vegetais (veganas). Sobre o nome, tem quem chame de “pé de moleque”, embora isso seja raro em terras potiguares. Li várias explicações pra origem desse nome e não gostei de nenhuma. Prefiro chamar de bolo preto, mesmo.

Se seu paladar é maduro (aprecia uma paleta de sabores muito variada, incluindo sabores marcantes) e você gosta de bolos densos (como meu bolo de macaxeira e coco, ou de carimã com goiabada), vai se encantar com essa receita. E se, assim como eu, você conhece e já gosta de bolo preto, saiba que essa versão é a “crème de la crème” dos bolos pretos.

Bolo preto de tia Olizé

Esse bolo é denso e quase cremoso, com um sabor marcante de rapadura e especiarias. Junto com um café amargo, ele é, pra mim, alegria comestível. Essa receita é da minha querida tia Olizé e ela usa uma técnica que nunca tinha visto antes. No final do texto incluí algumas dicas e explicações minhas. Aconselho ler tudo. Apesar de ser uma receita longa, o modo de preparo desse bolo é muito simples e está ao alcance até das pessoas que nunca fizeram um bolo na vida. E como ele não fica fofo, não tem como solar e dar errado.

1 rapadura preta (450g)

1 coco seco grande + 1 litro de água (pra fazer 1 litro de leite de coco)

2 xícaras de farinha de mandioca (fina – peneire antes, se for preciso)

1 colher de chá de cravo em pó

1 colher de chá de canela em pó

1 colher de sopa de erva doce

Pitada generosa de sal

1 1/2 xícara de castanha de caju + um punhado pra decorar

Comece preparado o leite de coco, como ensinei nessa receita. Você deve fazer 1 litro de leite de coco bem forte.

Quebre a rapadura em pedaços pequenos e leve ao fogo baixo junto com o leite de coco, pra fazer a calda de rapadura. Assim que a rapadura estiver completamente dissolvida, desligue o fogo e deixe esfriar. Enquanto isso passe a castanha no liquidificador (menos um punhadinho pra decorar o bolo) pra triturar miudinho. Pode fazer isso com a faca também. Unte com óleo uma forma média (quadrada é tradicional) e depois polvilhe com farinha de mandioca. É importante deixar a forma pronta pra receber a massa do bolo (você vai entender mais na frente).

Quando a calda de rapadura estiver quase fria (tudo bem se estiver levemente morna), junte a farinha de mandioca, as especiarias, uma pitada generosa de sal (pegue com 4 dedos) e a castanha picada. Misture com uma colher de pau ou, melhor, com um batedor de arame, pra que a farinha seja totalmente incorporada ao líquido. A gente faz isso fora do fogo pra não emboluar (é a mesma técnica pra fazer pirão). Agora você vai levar essa mistura ao fogo médio-alto, de preferência em uma panela grande e com o fundo grosso, mexendo sem parar com uma colher de pau. Assim que abrir fervura baixe o fogo e cozinhe, sempre mexendo, até a massa ficar bem encorpada. Cronometrei essa etapa pra te ajudar: foram 9 minutos, do momento que liguei o fogo até ficar pronto.

Transfira imediatamente a massa pra forma previamente untada/enfarinhada (essa massa, depois de cozida, endurece assim que começa a esfriar. Por isso é importante que a forma seja untada/enfarinhada previamente). Bata o fundo da forma contra um superfície dura (mesa, bancada) pra massa se espalhar em uma camada uniforme. Decore com o punhado de castanhas restante e leve ao forno médio-baixo (não precisa pré-aquecer). Deixe assar por 45 minutos (mais ou menos, vai depender do seu forno), ou até a superfície ficar bem seca (toque de leve com os dedos pra testar) e as bordas estiverem mais firmes.

Retire do forno e deixe esfriar completamente antes de degustar (enquanto estiver quente, esse bolo é bem cremoso. Só depois de frio que ele atinge a consistência desejada e pode ser cortado).

Sobre a rapadura

Tem vários tipos de rapadura, todas gostosas, mas pra esse bolo você vai precisar de rapadura preta. O nome do bolo, assim como o sabor característico, vem dela. O tamanho das rapaduras também varia. O tamanho do tijolo mais convencional vai de 450g a 600g. A minha rapadura tinha 450g e achei que ficou no ponto: doce o suficiente pra agradar quem gosta de açúcar, mas não excessivo pra uma sobremesa (brasileira).

Sobre o leite de coco

Use leite de coco caseiro, feito na hora. A versão industrializada é muito mais espessa (sempre tem espessante nos ingredientes) e, na minha opinião, o sabor é enjoativo. Na minha família é um insulto pra comida (e pra quem vai comê-la) usar leite de coco industrializado. Quebrar coco seco e rapar dá trabalho, mas felizmente aqui em Natal é fácil encontrar coco seco rapado na feira (não confundir com coco desidratada). Até o supermercado do meu bairro vende coco seco rapado congelado. Então compro sempre e congelo em porções pequenas. Pra fazer esse bolo usei o equivalente a um coco seco grande (aproximadamente 2 1/2 xícaras de coco).

Sobre as especiarias

Minha tia usa cravo inteiro e pila (num pilão pequeno) junto com a erva-doce. Eu tinha cravo em pó em casa e foi o que usei, mas pilei grosseiramente a erva-doce (depois de tostar alguns minutos numa frigideira seca pra intensificar o aroma). Algumas pessoas já fazem a calda de rapadura com as especiarias dentro (o cravo e a erva-doce inteiras) e deixam macerando enquanto a calda esfria. Depois coam o líquido (descartando as especiarias) antes de acrescentar os outros ingredientes.

Sobre a castanha de caju

Como a castanha usada na massa do bolo vai ser triturada, fica bem mais barato comprar castanha do tipo “quebradinha”, ou o xerém de castanha (a mais quebrada de todas, quase uma farofa). Aqui em casa sempre tem castanha quebrada (pra fazer leite e queijo), por isso usei as quebradas até pra decorar o bolo. Mas, tradicionalmente, as castanhas que decoram o bolo são inteiras, pra ficar mais bonito.

Aquela sobremesa com chocolate e banana

Foi assim. Minha irmã Lu, a outra cozinheira da família, fez uma sobremesa dias atrás. Ela inventou na hora: bateu bananas maduras no liquidificador e misturou com chocolate derretido. Depois colocou na geladeira e fez a alegria da família toda. Ficou firme o suficiente pra ser cortada em fatias, mas ainda cremosa o suficiente pra ser comida de colher, com um sabor bem equilibrado entre banana e chocolate. Quem provou, adorou!

Meu sobrinho mais velho comeu e ficou maravilhado. Dias depois ele quis reproduzir a receita na casa dele, mas Lu tinha apenas quantidades aproximadas (ela fez a sobremesa de improviso) e o meu sobrinho tem tendência a não seguir as instruções à risca quando se trata de comida. A versão dele ficou menos firme, mais gelatinosa. Ele tinha pouco chocolate em casa e acabou usando mais banana. O gosto de banana, obviamente, ficou mais pronunciado. Mesmo assim ele serviu coberta com amendoim e disse que ficou uma delícia, quase como um pudim, informação que a companheira dele confirmou.

Ontem fiz a minha versão. Tentei seguir as quantidades que Lu usou, mas como ela não tinha pesado, nem ela sabia com certeza. Mas entendi que ela tinha usado 1 parte de banana pra 1 parte de chocolate (no peso). Só que hoje, quando fui provar a sobremesa, vi que tinha entendido errado: a minha versão ficou muito mais densa do que a versão original. Entendi que tinha usado mais chocolate do que Lu, por isso estava com textura de trufa. Cobri com gergelim torrado (torrei em casa) e achei uma delícia, embora a proposta seja outra.

Moral da história: independente da quantidade de chocolate/banana que você usar, vai dar certo. O produto final pode variar do pudim à trufa, mas embora com texturas diferentes e com sabor mais acentuado de banana ou de chocolate, dependendo do ingrediente que você usar em maior quantidade, você vai ter uma sobremesa gostosa e ridiculamente simples. E foi exatamente essa simplicidade extrema que me encantou.

Essa sobremesa só leva dois ingredientes: bananas e chocolate (em barra). Não precisa levar ao forno e o tempo de preparo é curtíssimo, então é nível iniciante++. E, nos dias de festa, ou pra varias os prazeres, você pode incrementar com castanhas, amendoim ou gergelim. Imagino que se quebrar uns biscoitos sem recheio dentro, pode virar uma “palha italiana”. Na versão mais cremosa, consigo visualizar pedaços de frutas frescas ali dentro (morango? abacaxi?). Na versão mais densa, você pode enrolar como trufas. Ou seja, as possibilidades são inúmeras.

Aquela sobremesa com chocolate e banana

Use o melhor chocolate que encontrar. Quanto mais forte em cacau, mais amarga ficará a sua sobremesa. Lu usou um chocolate com 65% de cacau e a doçura ficou bem equilibrada. Eu, que como chocolate 100%, usei chocolate 75% e o resultado talvez seja amargo demais pra maioria das pessoas, acostumadas que são com as nossas sobremesas exageradamente doces. Quanto mais chocolate você usar, mais densa ficará sua sobremesa. Tendo em vista que chocolate de qualidade é caro, não é uma sobremesa barata. Mas como ela só leva chocolate e banana, não me parece algo excessivo, se decidirmos que vamos fazer essa sobremesa só de vez em quando, pra se fazer um mimo.

Bananas maduras

Chocolate em barra (50%, 65% ou 75%, de acordo com o seu gosto – leia explicações acima)

Opcional: castanha, amendoim ou gergelim

Pra fazer uma sobremesa bem cremosa, mais pro pudim e com bastante gosto de banana, use aproximadamente 4 partes de banana pra 1 parte de chocolate (no peso). Por exemplo: 50g de chocolate pra 200g de banana. (versão 1)

Pra fazer uma sobremesa densa, mas ainda cremosa, a minha textura preferida aqui, use 2 partes de banana pra 1 parte de chocolate. Por exemplo: 100g de chocolate pra 200g de banana. (Versão 2)

E pra fazer uma sobremesa com textura de trufa (como nas fotos desse post) use 1 parte de banana pra 1 parte de chocolate. Por exemplo: 200g de chocolate pra 200g de banana. (Versão 3)

Nos 3 casos, usando 200g de banana você vai obter uma sobremesa pequena.

Derreta o chocolate no banho-maria ou no microondas. Bata as bananas (descascadas e MADURAS) no liquidificador, sem acrescentar líquido nenhum. Quando estiverem bem cremosas, junte o chocolate derretido e bata até ficar completamente homogêneo. Você vai precisar parar o motor e mexer com uma espátula algumas vezes.

Transfira a mistura pra um recipiente forrado com papel filme (somente se estiver fazendo as versões 2 e 3 e quiser desenformar depois) e com tampa. Deixe na geladeira, tampado, pro chocolate firmar e a sobremesa ficar no ponto certo. O ideal é deixar na geladeira de um dia pro outro, mas se quiser acelerar o processo pra degustar mais rápido, deixe no congelador por 1 hora (se estiver usando quantidades maiores, deixe por mais tempo).

No hora de servir, desenforme e, se desejar, salpique com castanha ou amendoim torrado e picado, ou gergelim torrado. Deixe em temperatura ambiente por alguns minutos pra derreter um pouquinho e as castanhas/amendoim/gergelim aderirem à superfície. Se conserva na geladeira, em recipiente fechado, por vários dias.

Porto Alegre

O avião se aproximou de Porto Alegre e eu fiquei impressionada em avistar tanta água. Era a minha primeira vez na cidade e, admito com vergonha, não sabia que ela era banhada pelo rio Guaíba. Aliás, descobrir o nome daquele rio foi uma surpresa. No bairro onde cresci, no outro Rio Grande, as ruas tem nome de rio e a rua Rio Guaíba é vizinha da nossa. Então ficava ali o rio que eu atravessava todos os dias, na sua versão rua, pra ir pra escola?

O rio Guaíba, em Porto Alegre

Eu estava indo pra Porto Alegre pra realizar atividades militantes, quando a UVA organizou a Jornada do Veganismo Popular contra o Fim do Mundo, em novembro de 2022. Fui muito bem recebida por camaradas do coletivo vegano local associado à UVA, que foram me buscar no aeroporto, me ofereceram pouso e comida, me levaram pra conhecer a cidade e trocaram ideias e conhecimentos comigo. Depois de me impressionar com aquele corpo d’água imenso e com a hospitalidade das pessoas que encontrei, fiquei maravilhada com as árvores: gigantes e lindas. Talvez seja porque minha família é do Sertão, onde quase tudo é arbusto (“árvores acocoradas”, como disse Josué de Castro). O fato é que não importa quantos anos eu vivi e quanta coisa eu vi, árvores altas continuam sendo algumas das coisas que me mais me impressionam no mundo.

Acompanho, como o coração apertado e o peito cheio de revolta, a catástrofe causada pelas enchentes no RS todos os dias desde que voltei pro Brasil. Todos os dias, penso nas pessoas que conheci lá. Penso no assentamento que visitei, que produz tanta coisa além do famoso arroz orgânico, e que ficou completamente embaixo d’água. Penso no sofrimento do povo gaúcho que perdeu muito mais do que é possível contabilizar, nos animais que ficaram pra trás e morreram, nos que foram resgatados e estão em abrigos superlotados, nas voluntárias que estão fazendo um trabalho admirável salvando pessoas humanas e não-humanas… Penso também no meu irmão, que é bombeiro e saiu de um Rio Grande pro outro pra resgatar as vítimas das enchentes, sem data pra voltar pra casa.

E se a revolta com quem contribui pra que esse desastre acontecesse, sejam autoridades locais ou os poluidores do Norte do globo, ocupa uma parte dos meus pensamentos, ver a solidariedade das pessoas, a ajuda mútua (um dos pilares do compromisso anarquista) todos os dias é o que coloca alento dentro de mim. Claro que estou escrevendo essas linhas de um lugar bem longe, no seco e abrigada.

Hoje abri o telefone procurando as fotos da minha única passagem por Porto Alegre e percebi que apesar de ter compartilhado algumas fotos quando falei da Jornada do Veganismo Popular contra o Fim do Mundo, ainda não tinha feito um post contando o que vivi na cidade.

Enquanto sonho em voltar praquela terra, rever as amigas e camaradas e ver o RS reerguido e fortalecido, compartilho aqui alguns momentos da viagem de 2022.

A cozinha solidária do MTST acolheu a atividade em PoA da Jornada do Veganismo contra o Fim do Mundo.

Tive a honra de visitar o Assentamento Integração Gaúcha, em Eldorado do Sul (região metropolitana de Porto Alegre) e conhecer algumas pessoas maravilhosas por lá, além do famoso arroz orgânico do MST. Quem me levou até lá foi o jornalista Marco Weissheimer, do Sul21. Marco já tinha me entrevistado uma vez em 2018 e 4 anos depois nos conhecemos, enfim, pessoalmente e fizemos mais uma colaboração. Sou muito grata ao Sul21 por me dar espaço, mais uma vez, pra falar do antiespecismo como parte da luta decolonial: A mesa é um território de disputa

Assentamento Integração Gaúcha

Também pude visitar a padaria Pão da Terra, no assentamento. A história dessa padaria é linda demais e fico muito feliz que tenha sido registrada nesse video que o Sul21 fez mostrando nossa visita ao local.

Deixa eu contar um momento bem emocionante pra mim durante a visita à padaria Pão da Terra. Dona Maria Inês, assentada que também trabalha na padaria, nos mostrava os bolos lindos e cheirosos que elas preparam e vendem nas feiras. Perguntei que ingredientes ela colocava nos bolos e quando percebi que todos eram de origem vegetal (muito nutritivos, aliás) perguntei: “A senhora não usa ovo nos bolos por que?” Ela respondeu simplesmente: “Porque não precisa.” Algo óbvio que nós, veganas, sabemos, mas que as pessoas que comem animais e seus derivados ignoram (ou decidem ignorar). Se todo mundo entendesse essa informação tão simples…

A região de Eldorado do Sul foi muito afetada pelas enchentes e foi com muita tristeza que descobri que o assentamento Integração Gaúcha, todas aquelas roças lindas, os campos de arroz e aquela padaria tão especial, tinham ficado completamente embaixo d’água. Hoje Marco me enviou um vídeo da filha de uma das assentadas que conhecemos mostrando o estado que ficou a padaria. Ele também escreveu esse artigo contando como está sendo organizada a solidariedade pra reerguer a comunidade: Feiras Ecológicas lançam campanha para ajudar assentamentos atingidos pelas enchentes

Foi durante essa viagem que visitei, pela primeira vez na vida, um santuário animal. Pude conhecer o santuário Voz Animal e encontrei Feu, um dos fundadores do santuário e membro da UVA.

Encontrar cada animal vivendo ali foi lindo demais e descobrir o trabalho por trás do santuário me encheu de admiração por Feu e Fernanda, sua companheira e também fundadora do Voz Animal. E como se não fosse suficiente, essas pessoas estão atualmente na linha de frente resgatando animais vítimas das enchentes em Porto Alegre e organizando a solidariedade material nos abrigos.

Agradeço mais uma vez o carinho e a generosidade de todas as pessoas que conheci em Porto Alegre. Um obrigada especial a Monique, que me levou pra todos os lugares e me deu queijo (vegetal), a Bruno, que me deu pouso, mate e um livro, a Feu, que passou o dia me mostrando o santuário e a Marco, que decidiu levar minha voz e minha mensagem pras leitoras do Sul21:) A vontade de voltar pra rever vocês e estar aí mais uma vez é grande. Nosso reencontro, junto com o pessoal do MTST, as outras compas do coletivo Mova e Bruna Crioula vai ser potente. Um cheiro pra todas e vocês não saem do meu pensamento.

Organizando a solidariedade material

Quem puder contribuir materialmente com as pessoas e animais no Rio Grande do Sul, deixo aqui algumas recomendações de pessoas que conheço pessoalmente, que fazem um trabalho sério e que estão precisando de ajuda no momento.

Bruna Crioula criou o Fundo Crioula “em apoio ao povo negro e aos animais que sofrem os impactos do racismo ambiental no Rio Grande do Sul”. Doações via pix, chave: oi.crioula@gmail.com

As doações pro Santuário Voz animal vão ajudar os animais que moram no santuário (são 300 animais!), mas também os que foram vítimas das enchentes, fortalecendo o @aubrigo_scooby a UTI pra animais @op.resgateanimal , o Hospital de Campanha do Gasômetro @operacaoresgatepetpoa e Abrigo de Animais de Grande Porte de Viamão @naomedeixepratras . Você também pode doar diretamente pra cada uma dessas iniciativas.

Queijo de tofu – cremoso e em ponto de corte

Depois de uma breve passagem pela minha casa francesa, estou de volta na minha casa brasileira (que é, na verdade, a casa da minha mãe). E dessa vez fico em Pindorama até o início do ano que vem.

Eu já devo ter comentado aqui que conforme os anos vão passando, cada travessia do oceano Atlântico se torna mais custosa pra mim. Eu brinco que meu corpo viaja de avião, mas a alma vem de navio, então só chega umas duas semanas depois. Enquanto isso vou vivendo em câmera lenta, sem energia e acordando ridiculamente cedo, esperando o jet lag passar.

Mas resolvi dar as caras por aqui mesmo sem ter terminado de fazer o download do espírito e com o juízo meio mole porque faz mais de um mês que postei uma receita nesse blog. E também porque faz muitos meses que quero compartilhar esse queijo de tofu com vocês.

A receita me foi passada pela minha irmã Lu (sempre ela!), mas ela aprendeu com uma amiga nossa, também cozinheira e também vegana, chamada Deborah Sá. Deborah tinha um restaurante delicioso aqui em Natal, o Espaço Cozinha Ecológica, e é uma das chefs mais talentosas e dedicadas que tive o prazer de conhecer.

O queijo de Deborah usa apenas 4 ingredientes, mas o que ele tem de simples, tem de gostoso. O tofu, de sabor neutro, se transforma quando é temperado com missô claro (pasta de soja fermentada). A receita original passa pelo forno, pra apurar os sabores e deixar no ponto de corte, mas apesar de adorar essa versão, descobri que pulando essa etapa dá pra fazer um queijo cremoso muito saboroso e ainda mais simples. Vou compartilhar as duas versões e deixo vocês escolherem.

Queijo de tofu de sabor intenso – duas versões

Essa receita foi desenvolvida por Deborah Sá, uma chef vegana potiguar. A receita dela produz um queijo muito saboroso e em ponto de corte (mas ainda cremoso, como um pudim mais denso) porque ele é finalizado no forno. O calor reduz a mistura deixando o sabor mais intenso e a textura mais firme. Porém o creme não-assado também é gostoso e pode ser degustado assim. Uma palavra sobre o missô: ele é o ingrediente responsável por temperar esse queijo, então é essencial aqui. A receita pede missô claro/branco, que é mais suave que o escuro. Essa quantidade de ingredientes faz uma porção grande de queijo e você pode dividir tudo por 2 pra fazer uma porção menor, obviamente. Mas saiba que esse queijo se conserva por duas semanas na geladeira (talvez até mais, porém nunca durou tanto aqui em casa).

600g de tofu (esprema ligeiramente pra retirar o excesso de água)

4 colheres de sopa de missô claro (branco)

2 colheres de sopa de suco de limão

1/4 de xícara (60ml) de azeite suave

Sementes e/ou ervas pra decorar (opcional – aqui usei gergelim e uma pitada de páprica defumada)

Bata todos os ingredientes no liquidificador ou processador até ficar totalmente homogêneo e cremoso. Se estiver usando o liquidificador talvez precise bater em duas vezes. Prove e veja se precisa de mais um pouco de acidez (nesse caso acrescente mais limão). Não precisa acrescentar sal porque o missô já tem sal suficiente.

Você pode guardar esse queijo cremoso (foto abaixo) na geladeira e consumir assim, mesmo. Além de ser mais rápida, a versão que não vai ao forno tem a vantagem de conservar as bactérias boas do missô. Por outro lado, justamente por ser um alimento fermentado, o sabor do seu queijo vai ficar mais intenso conforme ele for envelhecendo.

Pra fazer a etapa seguinte, aqueça o forno em temperatura média-baixa. Unte ligeiramente com azeite uma forma pequena (pode ser de metal ou vidro) e despeje seu queijo de tofu cremoso dentro. Se quiser, polvilhe com sementes (gergelim, girassol ou jerimum) e/ou com temperos (pimenta preta, páprica doce) ou ervas desidratadas (alecrim, orégano, majerona…). A camada não deve ficar nem muito fina, nem muito grossa, então escolha uma forma de tamanho adaptado. Leve ao forno por 30-40 minutos, até começar a dourar nas bordas e na superfície. Deixe esfriar completamente antes de transferir pra um recipiente com tampa. Se conserva por duas semanas na geladeira. Como o queijo foi assado (o que matou as bactérias presentes no missô) ele não vai fermentar na geladeira e o sabor segue estável até o final.

Patê de feijão, amendoim e gengibre

Ontem Anne e eu estávamos degustando a minha última criação na nossa varanda, aqui na França, quando ela me perguntou: “Como é poder criar receitas deliciosas assim, tão facilmente?”

Nem sempre criar receitas é um processo fácil pra mim. Algumas das receitas que desenvolvi precisaram de muitas tentativas antes de ficarem realmente boas. Outras levaram anos antes de ficaram prontas. Mas é verdade que de vez em quando eu consigo desenvolver algo perfeito logo na primeira tentativa. E quando isso acontece sem planejamento, motivado pela necessidade (as camaradas do coletivo me pediram, de última hora, pra preparar algo pra elas comerem durante o trabalho na nossa horta compartilhada) e num dia em que eu tinha poucos ingredientes na cozinha, a satisfação que sinto é imensa. Satisfação, orgulho e uma certa segurança. Eu sei que, inverno ou verão, em qualquer lugar onde eu estiver, se tiver alguns ingredientes de base à minha disposição eu sou capaz de criar algo gostoso, me alimentar e alimentar as pessoas ao meu redor.

Resolvi chamar essa receita de patê (e não “pasta” ou “creme”) porque ela é mais consistente e tem um sabor bem marcante, exatamente como patês. Já postei uma receita bem parecida aqui (pasta de feijão macaça e amendoim), mas esse patê tem um perfil de sabor diferente, graças ao gengibre fresco e ao molho shoyu. E se você ainda não sabe, deixa eu dizer que gengibre fresco + coentro + amendoim + shoyu formam um bloco tão saboroso que chega a ser viciante. Essa receita de rolinho de verão com molho de amendoim , uma das minhas preferidas aqui no blog, é mais uma prova disso.

Mas se quiser experimentar esses sabores juntos numa receita extremamente simples e rápida, recomendo fazer esse patê. Ele usa ingredientes simples, fica pronto em segundos (se o feijão já estiver cozido) e é delicioso.

Patê de feijão, amendoim e gengibre

As medidas são só sugestões. Adapte as quantidades de acordo com o seu gosto (mais limão, menos gengibre etc.).

1 1/2 xícara de feijão fradinho cozido (ou macaça)

2 colheres de sopa (bem cheias) de pasta de amendoim (pura, sem açúcar)

1 punhado generoso de coentro (folhas e talo)

1/2 polegar de gengibre fresco (ou a gosto), ralado

1 – 2 colheres de sopa de suco de limão

1 – 2 colheres de sopa de shoyu (molho de soja)

Pimenta preta

Bata tudo no liquidificador, juntando um pouco de água (ou do líquido de cozimento do feijão) aos poucos, só o suficiente pro motor funcionar. Esse patê deve ficar bem espesso, então cuidado pra não acrescentar líquido demais. Bata até tudo ficar bem misturado, mas não precisa deixar tudo homogêneo. Um pouco de textura é bem-vindo. Prove e corrija o tempero. Esse patê deve ficar bem saboroso, com acidez, sal e picante (do gengibre) na medida, então não seja tímida. Deguste com legumes crus, com pão, na tapioca ou use como molho/acompanhamento de saladas cruas. Se conserva na geladeira por vários dias.

Um breve curso sobre fazer feira, comer bem e evitar desperdícios na cozinha – parte 2

Se você leu o último post, já descobriu meu método pra comprar comida fresca na feira (frutas, verduras, temperos) e alimentar uma casa com muitas bocas. Agora vou falar sobre o que acontece quando volto da feira e como organizo as refeições da semana.

1- Higienizar os vegetais e guardar

Assim que chego da feira começo o processo de limpar e guardar os vegetais. Coloco as folhas (alface, rúcula, couve) e as ervas/temperos (cebolinha, coentro, manjericão) em uma bacia com água e algumas gotas de hipoclorito. Deixo de molho por meia hora, enquanto guardo o resto dos vegetais.

Como aqui em Natal faz muito calor, principalmente nessa época do ano, guardo muita coisa na geladeira. Dedico a maior gaveta da geladeira pras verduras (abobrinha, jerimum, quiabo, berinjela, tomate, batata…) e as frutas maduras vão pra uma gaveta menor. As frutas que não estão maduras vão pra fruteira, assim como os tubérculos (batata-doce e cará), a cebola e o alho.

A macaxeira, apesar de também ser um tubérculo, vai direto pro congelador, pois compro ela já descascada e cortada em pedaços, em sacos de 1kg. Quando queremos comer macaxeira, não precisa descongelar. Colocamos ela congelada na água e levamos ao fogo. Metade da goma fresca também vai pro congelador. A outra metade vai pra água (a maneira certa de guardar goma fresca) e começará a ser consumida no dia seguinte. Também aproveito pra colocar feijão de molho pro dia seguinte.

Depois que as folhas ficaram meia hora na água, a gente enxágua, escorre e armazena num recipiente plástico grande e com tampa, enroladas em panos de prato limpos. Assim elas ficam frescas por vários dias e quando queremos fazer salada, é só abrir e pegar. É prático e economiza o tempo de preparação das refeições durante a semana. Guardar as categorias de vegetais no mesmo lugar também ajuda a reduzir o desperdício: não corremos o risco de achar uma ou outra verdura apodrecendo no fundo da geladeira, escondida atrás de outras coisas.

Resumindo:

Geladeira: folhas e ervas frescas (lavadas) dentro de uma vasilha de plástico fechada, enrolada em um pano de prato limpo + Verduras (gaveta) + Frutas maduras (gaveta)

Fruteira: tubérculos, frutas verdes, limão, cebola e alho

Congelador: macaxeira (descascada), goma e frutas maduras demais (porções pequenas, pra fazer vitamina ou suco)

2- Fazer um cardápio

Como sei o que tem na geladeira, o que precisa ser preparado logo, o que aguenta ainda alguns dias, vou cozinhando seguindo essa ordem. Mas recentemente resolvi fazer um cardápio (começando na quinta, que é o dia da feira do meu bairro) pois, durante a semana, a maior parte do almoço é feita pela cuidadora da minha mãe, e isso dá mais autonomia pra ela. E o pessoal da casa estava com o hábito de me perguntar, no início da noite, “O que tem pro jantar?”. Às vezes eu estava fazendo algo e tinha que parar e pensar: “O que vou fazer pro jantar? O que comemos ontem, pra não repetir hoje?” Eu estava ficando chateada com isso. Agora todo mundo sabe o que é o jantar todo dia, não precisa mais me incomodar com perguntas, e quem não gostar do cardápio pode já começar a fazer outra coisa assim que a noite cai.

Também faço isso na minha casa, mesmo sabendo o que quero preparar todos os dias, pra facilitar o repasse. Nos dias em que Anne cozinha, ela sabe o que cozinhar (sempre seguindo a lógica do que está maduro/precisa ser consumido primeiro) sem precisar me perguntar. Mesmo se você mora sozinha, escrever um cardápio simples ajuda em vários sentidos. Além de reduzir o desperdício, tem dias que a gente está cansada demais pra criar um prato com o que tem na geladeira e precisa ser cozinhado naquela noite, aí acabamos comendo algo pronto e/ou deixando alguns vegetais estragarem.

O cardápio que fiz aqui é muito simples e segue o padrão alimentar da nossa casa (falei sobre isso no último post). Na verdade é mais um lembrete da ordem em que devemos comer os vegetais do que um cardápio com receitas. Mas eu acho que ter uma estrutura simples, que corresponda ao seu padrão alimentar, acaba reduzindo o tempo que você passa cozinhando.

Se o objetivo for diversificar a sua alimentação, ou deixá-la mais vegetal, dê uma olhada na página Receitas aqui do blog pra ter ideias de receitas pra incorporar no seu dia-a-dia. Mas antes de escolher uma lista de receitas diferentes pra testar a cada semana, uma dica importante: simplifique, não complique. Talvez incorporar uma salada crua com vários ingredientes ao seu almoço atual e comer uma fruta no lanche sejam os primeiros passos a serem tomados. Com certeza são os mais simples e que exigem menos esforços.

3- Preparações de base pra semana

Tem coisas que a gente pode preparar com antecedência e comer durante a semana inteira. Como sempre, vai depender do seu padrão alimentar, mas acho que quase todo mundo come feijão todo dia (se não come, deveria comer!). É possível fazer feijão, e arroz, pra semana e congelar porções que correspondam ao consumo diário da sua casa. E se você gosta de jantar sopa com frequência, pode fazer a mesma coisa.

Incluo aqui coisas que levam algumas etapas pra serem preparadas. Como colocar feijão e/ou grão de bico de molho, colocar castanha de caju de molho (pra fazer leite como expliquei aqui), misturar farinha de grão de bico com água e deixar fermentar pra fazer grãomelete (receita aqui). São coisas que você faz uma vez e pode consumir durante toda a semana.

4- Preparar pastas/patês

Dando continuidade ao ponto 3, considero que pastas (pra passar na tapioca, no pão ou acompanhar cuscuz e tubérculos cozidos) é uma preparação de base pra semana. Principalmente numa casa onde tem pessoas veganas, ou seja, que não acompanham seus cafés da manhã e lanches do trio manteiga/requeijão/queijo.

Escolho uma ou duas pastas, preparo em quantidade e durante o resto da semana tem acompanhamento pronto pros cafés da manhã, lanches e jantares da família. Precisa de um pouco de organização e tempo, mas é bem menos complicado do que imaginam. E muito mais saudável, barato e saboroso do que comprar uma pastinha pronta (ultraprocessada ou artesanal, animal ou vegetal).

Hummus pra semana, mais duas porções de grão de bico cozido que foram congeladas e entrarão em outros pratos na semana seguinte.

Tem muitas receitas de pastas no blog, só clicar aqui pra ver. Mas já deixo algumas sugestões. Pra quem está no Nordeste, esse queijo cremoso de castanha é melhor que requeijão. Outra opção no mesmo estilo é o creme fermentado de amendoim. Pra quem tem uma loja de produtos árabes por perto, hummus é o clássico que não dá pra enjoar nunca. Pra quem não tem acesso a tahina (pasta de gergelim) de qualidade, mas gosta da ideia de hummus, esse hummus cubano é perfeito. E ainda mais acessível pra nós, no Brasil, é a minha pasta de feijão macaça (ou fradinho) com amendoim. Baratinha, nutritiva e deliciosa.

Termino com a opção mais simples de todas, que nem precisa preparar com antecedência, pois fica pronta em segundos: abacate (maduro) amassado, temperado com sal e limão. Se puder acrescentar um fio de azeite e alguma erva (fresca ou seca), fica melhor ainda.

5- Dividir tarefas

Alimentação é responsabilidade de todo mundo. Se você mora sozinha a história é diferente, mas se divide a casa com uma ou várias pessoas, as tarefas relacionadas a alimentação devem ser divididas. Apesar de ser a pessoa responsável por fazer a feira na casa da minha mãe, tem a participação de outras pessoas nas diferentes etapas que envolvem comprar e preparar a comida, além das tarefas de limpeza na cozinha.

Uma das minhas irmãs me levava pra feira e ajudava a carregar tudo. Agora que o horário de trabalho dela mudou, é um irmão (que não mora com a gente) que está fazendo isso. Minha irmã caçula se responsabiliza por comprar uma parte da comida de mercearia da casa. Nossa irmã mais velha compra a outra parte. A cuidadora da minha mãe divide a tarefa de higienizar e guardar os vegetais comigo, além de preparar a base do almoço (feijão e arroz) durante a semana. Eu cozinho as verduras do almoço, além de fazer sopa ou cozinhar tubérculos pro jantar. Antes de almoçar, separo a marmita da minha prima, que é técnica em enfermagem e trabalha numa UBS, pra ela levar no dia seguinte. Quando essa mesma prima faz cuscuz pro jantar, ela faz em quantidade pra sobrar pro nosso próximo café da manhã (e o dela). Se ela fizer uma feijoada (vegetal) no sábado pra levar nas marmitas dela da semana, ela faz bastante pra gente almoçar feijoada no domingo. Minha irmã mais velha geralmente cozinha pra gente nos fins de semana. Durante a semana, a irmã do meio geralmente lava a louça do jantar e, às vezes, a do almoço também. Já a prima lava a louça nos fins de semana. E por aí vai. Semana passada até meu irmão caçula e meu pai, que não moram na casa com a gente, participaram. Meu irmão descascou uma ruma de coco seco que ele trouxe pra gente (nem lembro de onde) e no dia seguinte meu pai rapou tudo. Depois congelei o coco em porções pequenas pra fazer leite durante as próximas semanas.

Não é uma divisão perfeitamente igualitária e algumas pessoas têm muito mais responsabilidades do que outras na nossa casa. Mas achei importante contar como fazemos na minha família justamente por isso. Não poder ter uma divisão de tarefas perfeita não é desculpa pra não contribuir com o que está ao alcance de cada uma hoje. Qualquer responsabilidade que você tomar pra si, mesmo que pareça pequena (digamos, lavar apenas a louça do jantar aos sábados, ou preparar o almoço do domingo), alivia um pouco a carga da pessoa que, no momento, faz tudo sozinha na sua casa. Todo mundo tem que comer, não é? Então deixa eu repetir mais uma vez: ALIMENTAÇÃO É RESPONSABILIDADE DE TODO MUNDO.

Espero que essas dicas tenham sido úteis. Fazia tempo que eu não escrevia um post nesse estilo, mas agora deu vontade de escrever outros. Talvez até propor cursos sobre organização e divisão de tarefas alimentares dentro de uma casa, quem sabe…

Um breve curso sobre fazer feira, comer bem e evitar desperdícios na cozinha – parte 1

Vim passar uma temporada de um ano no Brasil, por razões familiares, e estou morando na casa da minha mãe. Aqui somos seis mulheres: minha mãe, minhas três irmãs, uma prima e eu. Mas durante a semana tem uma sétima mulher, a cuidadora da minha mãe, que toma café e almoça com a gente. E à noite frequentemente tem uma sobrinha, que dorme com a minha mãe quatro noites por semana e toma café com a gente no dia seguinte. Dividimos as contas da casa entre nós seis e a parte que me toca é a “comida de feira”: verduras, frutas, coco seco, goma fresca e farinha. Minha irmã mais velha se encarrega de comprar a “comida de mercearia”: feijão, arroz, fubá, óleo, café… Outra irmã se encarrega de comprar castanhas (de caju e do Pará) e sementes (chia, linhaça).

Adoro ir à feira, então é uma missão semanal que, apesar de cansativa, me deixa feliz. Geralmente vou acompanhada de outra irmã, que tem carro e me ajuda a carregar tudo, e frequentamos a feira do meu bairro, que acontece todas as quintas. Nessa feira tem uma mistura de comida trazida da CEASA de Natal com produção de pequenas agricultoras, que cultivam e vendem seus próprios alimentos ali (principalmente ervas e folhas) e comida vinda de sítios das redondezas (principalmente frutas). A farinha de mandioca e a goma fresca vêm de Brejinho, um município que fica a menos de 60 km de Natal e que tem fama de produzir a melhor farinha do estado, vinda da agricultura familiar.

Tem semanas em que vamos à CECAFES (Central de Comercialização da Agricultura Familiar e Economia Solidária), que fica um pouco mais distante da nossa casa, mas que tem a vantagem de ter produtos de ótima qualidade, sem veneno, por um preço muito justo, vindos de pequenos sítios e assentamentos da reforma agrária. Por essas razões, se eu pudesse escolher, compraria sempre na CECAFES. Porém a diferença nos preços, apesar de não ser enorme, acaba pesando no meu bolso no final do mês. (Os vegetais da foto acima vieram da feira do bairro, os da foto abaixo vieram da CECAFES).

Das seis mulheres que moram aqui, mais a sétima que come conosco durante a semana, apenas duas são veganas: minha irmã caçula e eu. Felizmente na nossa casa todo mundo dá muito valor aos vegetais e faz questão de comer frutas todos os dias. Nossos almoços, pelo menos durante a semana, são 100% vegetais. Também não entra leite de vaca aqui em casa e queijo é algo bem raro. Os únicos produtos de origem animal que sempre tem na geladeira são ovo e manteiga. E os únicos ultraprocessados que aparecem na cozinha aqui são leite de soja de caixinha (duas irmãs adoram), molho de tomate pronto e proteína texturizada de soja. Eu não gosto de nenhum dos três, mas fico feliz em ver que 95% da alimentação na casa é integral (no sentido “alimentos inteiros e naturais”).

Depois de meses comprando, armazenando e preparando comida numa casa com muitas pessoas, pensei em vir aqui explicar como me organizo pra dar conta da tarefa. Talvez você precise de dicas pra organizar melhor as compras da semana. Talvez queira incluir mais vegetais na alimentação da sua família e não saiba por onde começar. Talvez você esteja curiosa pra ver, na prática, como é a alimentação 100% vegetal de uma família nordestina, que mora numa capital. Uma família que, apesar de não ter muitos recursos materiais, tem condições de escolher o que come e valoriza a cultura alimentar do seu território.

Planejar a feira

Não faço lista de compras por duas razões. Primeiro, porque já estou bem acostumada com as coisas que preciso comprar toda semana, além das quantidades necessárias pra fazer comida até o próximo dia de feira. E a segunda razão é que a oferta, a qualidade e o preço dos vegetais podem variar de uma semana pra outra. Então se essa semana a couve tá feia, não compro. O tomate subiu muito de preço? Não levo pra casa dessa vez. Encontrei fruta-pão (algo raríssimo)? Então ele vai substituir o cará essa semana. Não ter uma lista me torna mais flexível e adaptável.

Uma dica muito importante na hora de planejar as compras de vegetais da semana é conhecer bem os hábitos e as necessidades da sua família. Você e/ou as pessoas que moram com você almoçam em casa? Gostam de jantar a mesma comida do almoço? Preferem jantar algo mais leve, como uma sopa? Precisam de vários lanches na semana que possam ser facilmente transportados? Também é importante conhecer os gostos das habitantes da casa. Se só uma pessoa gosta de, digamos, caju, não faz sentido comprar vários quilos de uma vez.

Aqui na casa da minha mãe todo mundo toma café da manhã (umas comem em casa, outras levam de casa pra comer no trabalho). Tapioca e mamão não podem faltar na primeira refeição do dia. A estrutura básica do nosso almoço é: feijão + arroz/farinha + verdura cozida, então compro 3 ou 4 verduras “de cozinhar” toda semana. Todo mundo gosta de salada crua, então capricho nas folhas. Não temos o hábito de almoçar com suco, mas adoramos comer frutas junto com o almoço. Também gostamos de lanchar frutas, logo trago da feira toda a fruta que meu orçamento me permite. O jantar, pra gente, é um tubérculo cozido (macaxeira, cará, inhame ou batata doce) ou cuscuz. Uma vez por semana faço sopa. Então ao invés de comprar primeiro e pensar no que vou fazer depois, faço o caminho inverso: trago da feira o que é necessário pra mantermos nosso padrão alimentar, que é alinhado com a cultura alimentar do nosso território.

Quando você tiver entendido quais vegetais precisa pra atender as necessidades e o estilo de vida das pessoas que moram com você (ou as suas, se morar sozinha), vai ficar muito mais fácil saber o que comprar na feira, sem lista. E se o objetivo for aumentar a quantidade de vegetais que você(s) come(m), vai ficar mais fácil visualizar as áreas que podem ser melhoradas. Talvez vocês estejam comendo pouca fruta. Talvez precise incrementar a salada crua do almoço. Talvez fazer uma sopa de legumes pro jantar seja o caminho. Veja o que faz sentido na sua rotina, respeitando seus gostos (a ideia da sopa só vai funcionar se você gostar de sopa, obviamente).

Tudo fica muito mais simples (e automático) quando fazer feira e cozinhar se tornam rotina pra você. Mas deixa eu te ajudar contando como faço aqui em casa, pois é sempre mais fácil entender um sistema quando ele é exemplificado com a prática.

Eu sei que preciso comprar, toda semana:

-Temperos frescos (cebola, alho, tomate, cebolinha, coentro, limão, pimenta de cheiro)

-Verduras pra salada (alface, rúcula, pepino, tomate)

-Verduras pra cozinhar (escolho 3 ou 4: couve, repolho, chuchu, batata, banana da terra, beterraba, cenoura, quiabo, maxixe, jiló, jerimum, batata doce…)

Tubérculos pro jantar (1 porção de macaxeira, 1 porção de cará ou inhame, 2 porções de batata doce)

-Frutas pro café da manhã, almoço e lanches (banana, mamão, abacaxi + as que estiverem na safra)

Tenho essas cinco categorias na mente, que são as que correspondem às necessidades da minha família, e vou comprando por blocos, assim não esqueço nada, mesmo sem lista, e posso adaptar as compras da semana de acordo com os preços e as ofertas do dia.

Sobre quantidades. A experiência me fez ter noção de quanto era necessário toda semana. Se faltava banana antes da próxima feira, eu recalibrava a quantidade de palmas compradas semanalmente. Se a alface estava estragando antes de ser comida, era porque eu tinha comprado demais e na semana seguinte, comprava menos.

Dica importante: antes de sair pra feira, olho o que ainda tem na geladeira, congelador e fruteira. Às vezes ainda tem goma ou macaxeira congelada e não vai precisar comprar essa semana. Às vezes ainda tem alho, mas não é suficiente pra semana toda e vou ter que completar. E por aí vai.

Evitando desperdícios com frutas e verduras

Talvez seja óbvio pra quem tem o hábito de cozinhar todo dia e fazer feira toda semana, mas se não for o seu caso, lá vai. Escolha frutas em diferentes níveis de maturação. Eu compro 4-5 palmas (pencas) de banana por semana, dependendo do tipo da banana (prata é menor, pacovan é maior). Pra não correr o risco de ter 40 bananas maduras ao mesmo tempo num dia, 30 bananas apodrecendo dois dias depois e zero banana no final da semana, eu compro uma penca madura, outra “de vez” (aquele ponto entre madura e verde) e duas verdes. Assim vão amadurecendo durante a semana e sempre tem banana no ponto. Faço o mesmo com o mamão e o abacaxi, frutas que compro toda semana. Também compro uma mistura de frutas verdes e maduras (por exemplo, uma melancia bem madura pra comer no dia, um melão que vai estar maduro daqui a dois dias, dois abacates que só vão amadurecer no final da semana…) e vamos comendo acompanhando a maturação delas.

Às vezes compro uma quantidade grande de uma fruta madura de propósito, pra congelar e fazer vitamina durante a semana. É o caso da banana. Tem sempre promoção de bananas super maduras na feira. Compro algumas palmas, a casa três semanas, mais ou menos, e assim que chego em casa descasco, corto em rodelas e congelo em porções individuais. Também faço isso com frutas grandes, como jaca. E se percebi que o mamão ou o abacate amadureceu todo de uma vez essa semana, congelo uma parte pra não correr o risco de ter desperdício e uso em vitaminas. Isso funciona bem com frutas boas pra vitamina e suco. Congelo manga, acerola, umbu, graviola… Sei que muita gente compra polpa de fruta congelada pra fazer suco, mas as embalagens de plástico (cada porção de polpa vem num saquinho) me incomodam. Não vai ser tão prático quanto as polpas congelada, mas garanto que vai ser muito mais barato comprar fruta madura na feira e congelar suas próprias polpas em casa.

Quanto às verduras, minha dica principal pra evitar desperdícios é: faça sopa. Os legumes que estão murchando na gaveta da geladeira e os restos de legumes cozidos de outros almoços são ótimos candidatos pra virar sopa. Se tiver um restinho de feijão, então, sua sopa ficará ainda mais gostosa e nutritiva.

No próximo post vou compartilhar 1-como preparo o cardápio da semana quando chego da feira; 2-explicar como incluir o ato de cozinhar no seu dia-a-dia, sem precisar passar horas no fogão todos os dias e 3-dar ideias pra resolver o que parece ser o maior problema das pessoas que querem ser veganas, ou acabaram de se tornar veganas: o que preparar pra passar no pão (no meu caso, na tapioca)?

Pasta de jiló defumado

Depois de reabilitar a fava, vim aqui defender o jiló. A missão com a fava deu muito certo e hoje todo mundo na minha família adora essa leguminosa. Minha irmã caçula, que é sócia do Libre, um café vegano aqui em Natal, até colocou fava no cardápio (ela adaptou a minha receita e a deixou mais incrementada) e é um enorme sucesso.

Algo me diz, porém, que fazer com que o jiló se torne popular vai ser mais difícil. Por causa do sabor amargo, esse vegetal tem uma legião de haters e poucas fãs. Curiosamente, parece que nós, no Nordeste, gostamos mais de vegetais amargos do que o resto do Brasil. Então, como boa nordestina, estou determinada a fazer mais gente gostar dele.

Sabemos que tem uma razão genética pro sabor amargo ser o menos apreciado de todos: muitos dos alimentos venenosos tem sabor amargo. Esse é um sabor que ninguém nasce gostando, contrariamente ao sabor doce. Mas como a construção das preferências alimentares é, em boa parte, social, dependendo do contexto em que você cresceu, você pode aprender a expandir suas preferências gustativas nessa direção. Na minha família tem várias pessoas que gostam de jiló. Meu pai, minha mãe, uma irmã e um irmão amam. Então eu via minhas parentes se deliciarem com ele e ficava curiosa pra provar. Quando eu era criança não gostava, mas conforme os anos passaram, minha simpatia por ele foi aumentando e hoje eu adoro. Eu tenho consciência hoje da importância de ter crescido numa família nordestina, do Sertão, onde as pessoas apreciavam os vegetais que crescem no nosso território e, talvez o mais importante, onde não entrava ultraprocessados (porque era caro demais pra gente) na formação do meu paladar.

E falando em ultraprocessados, a padronização dos sabores pela indústria alimentícia, que carrega no açúcar, sal e gordura dos produtos que hoje ocupam boa parte das prateleiras dos supermercados, está causando estragos tremendos na formação do paladar das crianças e adolescentes. Acostumadas com sabores falsos e exagerados, fica quase impossível provar uma fruta fresca e apreciar o seu sabor. A verdade é que a natureza parece pálida e sem graça diante das fórmulas ultra excitantes, pras papilas e pro cérebro, das combinações de saborizantes artificiais, açúcar e gordura encontradas dentro dos pacotinhos dos ultra processados. Mas não é só isso que está fazendo com que o sabor amargo seja cada vez menos apreciado. Frutas (como a toranja) e vegetais (como o brócolis) estão sendo selecionados pra terem um sabor cada vez menos amargo. A tendência da homogeneização do sabor dos alimentos também opera, embora numa escala bem menor, nos vegetais cultivados mundo afora.

Como em todas as minhas receitas “polarizantes”(a fava, o creme de jaca), se você já gosta de jiló, se prepare pra se deliciar! Se você detesta jiló ou realmente não suporta o sabor amargo (parece que tem pessoas que sentem o sabor amargo com mais intensidade do que as outras), tem muitas outras receitas aqui no blog pra você. Mas se você gostaria de aprender a gostar de jiló e aumentar sua tolerância ao sabor amargo em geral (tem vantagens, já que alimentos amargos são particularmente ricos em certos nutrientes), está aqui a receita que pode te ajudar!

Ela nasceu assim. Eu trouxe jilós da feira, verdinhos, porque são os melhores (parece que quanto mais maduro, mais amargo, o que vai na contramão dos frutos em geral), e acabei esquecendo deles na geladeira. Quando lembrei, eles tinham amadurecido um pouco e precisavam ser preparados naquele dia. Eu ia refogar com tomate, que é como sempre preparo jiló, mas enquanto lavava os vegetais me dei conta que eles pareciam mini-berinjelas (e jiló é da mesma família que a berinjela, mesmo). Então uma inspiração me atravessou: e se eu preparasse jiló como faço com berinjela na receita do mutabbal (pasta de berinjela defumada palestina/libanesa)?

Gente, me faltam adjetivos pra dizer o quanto gostei dessa pasta! Adoro amargo e adoro defumado, então não tinha como dar errado pra mim. Dei uma colherada pra minha irmã adoradora de jiló provar e perguntei se estava bom. Ela respondeu, muito séria: “Não está bom, não. Está a moléstia!” Pra nós isso é um imenso elogio. Meu irmão adorador de jiló também provou e se entusiasmou. Até um sobrinho, que eu nem sabia que gostava de jiló, comeu ontem e gostou demais.

Acredito que eu não vou conseguir criar um fã clube do jiló, como o que aconteceu com a fava. Mas como a acidez do limão suaviza um pouco o amargo e o defumado acrescenta uma nota a mais de sabor aqui, talvez o pobre do jiló ganhe uma ou outra nova apreciadora. Isso pra mim, que trabalho pra valorizar nossa cultura alimentar vegetal, já seria uma vitória. Só que penso nas pessoas que gostam de jiló, imagino essa gente comendo a minha pasta e fico feliz ao saber que estou contemplando elas com uma receita que trata o jiló com todo o carinho e atenção que ele merece. E essa é a maior satisfação dessa cozinheira aqui: levar alegria pra barriga das pessoas.

Pasta de jiló defumado

Escolha jilós ainda verdes, que são mais macios e menos amargos (quando maduros, eles ficam amarelados). Pra fazer os “chips” de tapioca da foto acima: faça uma tapioca simples, como ensinei nessa receita, e deixe mais tempo na frigideira, no fogo baixo, pra secar um pouco. Depois deixe esfriar completamente sobre um pano de prato limpo. Ela vai desidratar e ficar durinha, quase crocante. Depois é só quebrar em pedaços e servir como você faria com torradinhas. Esses “chips”se conservam por alguns dias em um pote bem fechado, em temperatura ambiente.

Jilós (idealmente ainda verdes)

Azeite

Limão

Alho

Sal e pimenta preta

Lave os jilós e coloque pra assar diretamente sobre a chama do fogão. Se tiver uma grelha, como de churrasco (colocada sobre a chama), melhor. Eu não tenho e vou equilibrando os jilós na boca do fogão, mesmo, virando de vez em quando pra assar de todos os lados.

Quando os jilós estiverem com a casca bem chamuscada (não tenha medo de queimar a casca) e a polpa bem macia (espete uma faca pra testar: ela deve atravessar a polpa sem nenhuma resistência), retire do fogo e coloque em um recipiente com tampa. Deixe abafado, ali dentro, enquanto prepara os outros jilós.

Quando todos estiverem assados, corte cada jiló ao meio, no sentido do comprimento, e retire a polpa com uma colher pequena.

Tempere a polpa do jiló assada/defumada com limão, azeite (seja generosa), sal e pimenta preta a gosto. Bata/amasse com um garfo pra que a pasta fique com a textura homogênea. Prove e corrija o sal/limão/azeite, se necessário. Deguste com pão ou, como eu gosto de fazer, com tapioca (fresca ou crocante – veja instruções no início da receita). Se conserva alguns dias na geladeira.

Construtores e Defensores do Território

No final de janeiro fui convidada pela Teia dos Povos pra participar da Formação de Construtores e Defensores do Território, como formadora. Foi uma honra e uma alegria imensas aceitar fazer parte de algo tão inspirador e importante e hoje vim compartilhar um pouquinho do que vivi na semana em que estive no Assentamento Terra Vista, no sul da Bahia, onde aconteceu a formação.

Dei uma aula sobre a Palestina (pra explicar o contexto colonial – a colonização israelense da Palestina e a luta do povo palestino pela vida, por liberdade e por autodeterminação- e o que isso tem a ver com nós, aqui no Brasil), outra sobre “Descolonizar as práticas alimentares” e contribuí com o curso “Gastronomia do bioma – Mata Atlântica/Cabruca”. Também pude assistir a algumas formações políticas enquanto estive lá e depois de tantas conversas que alimentaram minha esperança e enriqueceram minha luta, voltei pra casa com a certeza que aprendi tanto, ou mais, do que ensinei.

As fotos acima foram da aula sobre a Palestina, que acompanhei de uma exposição com 45 fotos do fotógrafo palestino de Gaza Mohammad Zanoun. Conheci ele através de Anne, pois ambas fazem parte do mesmo coletivo (Activestills). Não foi fácil falar da Palestina enquanto Israel comete um genocídio contra a população de Gaza mas é muito importante fazer esse trabalho. As fotos são tão fortes que deixei muitas viradas pra parede. Só desvirei depois de dar a oportunidade pras pessoas que não estavam se sentindo bem emocionalmente de deixarem a sala de aula antes. Mas pra não falar somente dos horrores da ocupação israelense na Palestina e seu projeto de limpeza étnica, li vários poemas de resistência escritos por poetas palestinas e palestinos. Eu nunca tinha lido poesia (li até slam!) publicamente e emprestar minha voz à resistência palestina foi uma experiencia que me marcou muito. E quem estava naquela aula também saiu impactada.

(As fotos acima foram feitas por Alass Derivas e você pode acompanhar o trabalho dele aqui.)

Visitei o Assentamento Terra Vista (ATV) pela primeira vez há uns 6 anos e ele continuava tão lindo quando nas minhas lembranças. Contar a história desse lugar merece um post inteiro, então hoje vou só recomendar o documentário feito pelo Brasil de Fato (trailer aqui), que estou ansiosa pra ver, além de recomendar seguir o ATV aqui. Mas você também pode ler sobre a história do ATV na página da Teia dos Povos. Falar sobre a Teia dos Povos, essa aliança Preta, Indígena e popular, também exige tempo e carinho, então vou recomendar que vocês sigam a Teia dos Povos naquela rede social que me expulsou.

Não fiz fotos da aula sobre “Descolonizar as práticas alimentares”. Mas lembrei de fazer algumas fotos da aula prática dentro do curso de “Gastronomia do bioma”. Fomos guiadas por seu Loro, um agricultor assentado, durante uma manhã inteira dentro da mata. O objetivo era identificar os matos de comer (PANCs) e os de curar e seu Loro nos mostrou a riqueza da natureza naquele canto do mundo. Ele também abriu cacau e cupuaçu pra gente chupar e até mostrou como tirar o palmito da juçara.

Nunca tinha dado uma aula dentro da mata e, sinceramente, agora estou ainda mais convencida de que esse é um lugar incrível pra aprender.

Não vai dar pra contar tudo que aconteceu naquela semana num post. Vou precisar de mais algum tempo pra terminar de absolver tanto conhecimento e depois traduzir com minhas palavras, acrescentado de minha vivência e sentimentos. Mas não posso deixar de falar das pessoas que conhecei durante a formação. Não tenho foto de todo mundo, porque estava quase sempre imersa em conversas tão ricas que tirar o celular da bolsa e fazer fotos quase nunca cruzava a minha mente. Queria ter voltado com o retrato de todas as pessoas que conheci e que deixaram uma marca no meu pensamento e coração mas só tenho algumas poucas.

Um cheiro grande pra Airam, que me levou pra tomar banho de rio, Tulase, que preparou falafel e me deu conselhos preciosos, Suélen, que foi uma ajuda valiosa pra montar a exposição fotográfica e fazer os vídeos pra Teia (duas vezes!), seu Loro, nosso guia e professor, e Daniel, que me acolheu na noite que cheguei, me deu uma aula sobre a luta da população de rua em Belo Horizonte, da qual ele faz parte, e trouxe ideias pra enriquecer os vídeos que fizemos. Tem muito mais gente do assentamento, da Teia ou de passagem que conheci naquela semana e que estão no meu coração mas, como expliquei, voltei sem fotos desse povo lindo.

Felizmente lembrei de pedir uma foto com Kiune (obrigada por ser nossa fotógrafa, Airam!), minha grande amiga e companheira de luta há vários anos. Ela é de João Pessoa mas mora no assentamento e faz parte da Teia dos Povos. Kiune é uma das militantes antiespecistas mais inspiradoras que conheço. (Se quiserem conhece-la melhor, vejam as aventuras dela aqui).

Espero que não se passem outros 6 anos pra eu voltar ao ATV, nem pra rever seu Loro, Joelson, Solange, Deysi e todas as pessoas maravilhosas que povoam aquela terra encantada.

Gostaria de terminar esse post agradecendo as pessoas que apoiam o meu trabalho e que possibilitam não só a existência desse blog mas também minha participação em tarefas da militância, como essa formação. (Quem quiser apoiar também, é por aqui.)

*Foto da esquerda: eu organizando a aula prática de reconhecimento de matos de comer com seu Loro, na frente da casa dela, junto da vizinhança. A participação do gatinho na conversa foi decisiva. Foto da direita: a casa, no assentamento, onde fiquei hospedada.

Queijo cremoso de castanha

Estou escrevendo esse post num sábado, então ele vai ser breve. Mas além de ser extremamente simples, não vou precisar de muita falação pra te convencer que essa receita é uma delícia.

Em 2016 postei a receita do requeiju (requeijão de castanha de caju) que comi muito naquele ano. Desde então passei a preparar comidas fermentadas, trabalhei dois anos em uma queijaria vegetal em Berlim e até desenvolvi uma opinião bem impopular sobre queijos vegetais Juntou o meu conhecimento com fermentação com a busca por receitas mais simples e hoje meus queijos de castanha são bem diferentes do requeiju de 8 anos atrás. E muito mais gostosos. Essa é a magia das bactérias: elas fazem o trabalho por você e o sabor fica ainda melhor.

Essa receita específica veio da minha irmã Lu, que é vegana e é sócia de um café aqui em Natal, o Libre. Ela me contou que batia castanhas de caju demolhadas com água de kefir pra fazer o queijo de castanha cremoso servido no Libre. Comecei a fazer assim pra família, aqui na casa da minha mãe, e é sempre um grande sucesso. Mesmo entre pessoas não-veganas. O sabor é delicado, podendo acompanhar outros ingredientes complementando sem se impor, mas gostoso o suficiente pra ser degustado puro. Eu acho uma das coisas mais saborosas pra passar na tapioca (ou no pão, ou onde mais você quiser).

!Atualização! Por alguma razão misteriosa, nossos grãos de kefir nunca ficavam bonitos e estavam mirrando. Foi então que minha irmã, que tem ideias muito boas, tentou fazer uma fermentação selvagem com as castanhas. Isso significa deixar o creme em temperatura ambiente, sem acrescentar um ingrediente que contenha bactérias (como, por exemplo, água de kefir, missô ou capsulas de probióticos), e esperar que as bactérias naturalmente presentes no ar fermentem a mistura. Deu muito certo e minha irmã até preferiu o sabor desse queijo com fermentação selvagem, pois as vezes o kefir fermentava rápido demais e o queijo ficava com cheiro desagradável (desconfio que seja culpa do ácido acético, produzido durante a fermentação) já no segundo dia, mesmo dentro da geladeira. Agora que a fermentação é selvagem, esse problema desapareceu.

Queijo cremoso de castanha de caju (fermentado)

!!! Atualizado dia 16/07/2024 – Essa receita foi originalmente publicada usando água de kefir (a água fermentada por grãos de kefir de água, não de leite!), mas se você não tem kefir em casa, nada tema! Agora a gente fermenta esse queijo usando a técnica da fermentação selvagem, ou seja, sem acrescentar nada e deixando as bactérias que vivem no ar fazerem o trabalho. Dá tão certo que só faço desse jeito agora. Mais uma vez, foi minha irmã que me ensinou isso e eu sou muito grata à ela.

Castanhas de caju (natural, não as fritas/salgadas – pode usar a castanha quebradinha, que é mais em conta)

Sal a gosto

Deixe as castanhas de molho de um dia pro outro. Ou, se tiver pouco tempo, ferva as castanhas por alguns minutos e depois deixe na água fervida por pelo menos uma hora. O importante é hidratar as castanhas pra que elas possam ser trituradas facilmente.

Escorra as castanhas e reserve a água da demolha (já vai ter umas bactérias ali pra começar o processo de fermentação). Coloque as castanhas no liquidificador e acrescente uma pitada generosa de sal. Junte um pouco da água onde as castanhas ficaram de molho, cobrindo aproximadamente 1/3 do volume das castanhas. Talvez você precise acrescentar um pouquinho mais depois, mas cuidado pra não acrescentar demais! Bata até ficar tudo bem cremoso.

Quando as castanhas tiverem se tornado um creme espesso, sem nenhum pedacinho inteiro (esfregue entre os dedos pra sentir a textura), transfira pra um recipiente com tampa (só coloque encaixe a tampa por cima, pra proteger dos insetos e poeira, mas sem vedar completamente) e deixe em temperatura ambiente até começar a fermentar. Escolha um recipiente grande o suficiente pra não ficar cheio até a borda, pois durante a fermentação, dependendo da temperatura, o queijo pode aumentar de volume e transbordar. Nessa época do ano, aqui em Natal, meu creme fermenta em poucas horas se for durante o dia. Mas gosto mesmo é de deixar fermentando à noite, de um dia pro outro. Você vai perceber quanto tiver fermentado porque a pasta fica aerada (veja foto acima), com cheiro e sabor levemente ácidos. Se deixar fermentar demais, o queijo continua comestível, mas o sabor será menos agradável. Prove e veja se precisa de mais um pouco de sal.

Depois de fermentado guarde o queijo na geladeira (ele vai ficar um pouco mais firme depois de gelado). Se conserva vários dias na geladeira.

Creme gelado de jaca com tapioca

Ela é aquela fruta que não deixa indiferente: ou você ama, ou detesta. Eu acho uma das coisas mais maravilhosas que esse planeta nos dá. Carlinhos, um companheiro quilombola que conheci recentemente, na Bahia, me contou que quando era pequeno comia jaca com farinha no café da manhã, depois comia jaca com farinha no almoço e, por último, lanchava jaca à tarde mas dessa vez sem farinha. Já minha amiga Mari contou uma vez que, se tivesse poderes mágicos, faria a jaca desaparecer do mundo.

Se você pula no bloco das apaixonadas por jaca, eu tenho um mimo e tanto pras suas papilas. Se você detesta, feche esse janela e volte aqui daqui a alguns dias, quando terá uma receita mais palatável pro seu gosto. E se, por algum acaso, você for uma das raras pessoas que acha o sabor da jaca gostoso, mas não come porque a textura te dá aflição, ou medo de engasgo, sua relação com jaca vai mudar agora e garanto que vai bastar uma colherada desse creme pra você se encantar.

Veja que curioso. Há anos faço um creme de jaca bem simples, que inventei pra resolver dois problemas. O primeiro era dar cabo de uma jaca, fruta grande e generosa, sem desperdiçar nada. Na minha família somos poucas a gostarem de jaca e precisaríamos de alguns dias pra conseguir comer uma jaca inteira. Então passei a congelar a jaca (descaroçada) em porções pequenas, pra fazer vitamina ou creme. Isso sanou outro problema pra mim: jaca, embora dona do meu coração, é doce demais pro meu paladar. Eu como ela pura, mas só consigo comer alguns gominhos, justamente pelo excesso de doçura. Já a jaca congelada e batida com um pouco de leite vegetal (sempre uso o de coco caseiro), fica um pouco menos doce. Mas ainda é bastante doce pra mim e é aí que entra a receita de hoje.

Há tempos eu pensava em acrescentar algo mais pra diluir um pouco o arroubo de doçura da jaca madura, mas o quê? O sabor intenso da jaca faz com que ela seja uma fruta difícil de combinar com outros ingredientes, e eu queria manter a integridade do sabor dela, pois é isso que me faz amar tanto essa fruta.

Estou voltando de uma semana de militância no sul da Bahia, no assentamento Terra Vista. E lá aprendi várias receitas típicas que não vejo a hora de reproduzir em casa. Uma delas foi o cuscuz de tapioca. Ainda não testei, então só vou poder compartilhar a receita mais pra frente. Porém o ingrediente principal do cuscuz de tapioca, a farinha de tapioca baiana, me deu uma ideia. E se eu usasse essa farinha de tapioca no meu creme de jaca? Testei ontem e o resultado superou minhas expectativas.

Algumas linhas pra explicar esse ingrediente mágico, pois tem muita confusão com os nomes até mesmo de um estado pra outro dentro do Nordeste. A goma de mandioca (a fécula) é hidratada e usada pra fazer o que aqui no RN chamamos de “tapioca”. Ensinei a fazer tapioca, e a conservar a goma fresca, aqui. “Farinha de tapioca” também é feita à partir da goma da mandioca, mas ela é torrada (num tacho), o que a faz estourar levemente e ficar durinha. O processo de fabricação é o mesmo da “farinha de tapioca” que encontrei no Pará, só que a irmã nortista deve ficar mais tempo no fogo, pois o produto final é diferente: mais flocada, leve, como uma pipoca. Essa farinha da foto acima, que comprei na Bahia, era mais miúda e durinha, de textura diferente da “farinha de tapioca” do Norte. Enquanto a farinha de tapioca do Norte está pronta pro consumo (só colocar em cima do açaí e ser feliz), a farinha de tapioca baiana precisa ser hidratada no leite de coco quente antes da degustação.

Sobre a receita, a farinha de tapioca hidratada no leite de coco fresco misturada com a jaca batida (congelada) com mais um tiquinho de leite de coco é uma combinação tão deliciosa que acabou de entrar no meu top 3 de sobremesas preferidas. Aproveite que ainda é época de jaca e se farte! E além do sabor maravilhoso, essa sobremesa só usa 3 ingredientes e não tem açúcar (só o naturalmente presente na fruta).

PS Pesquisando rapidamente na internet antes de postar a minha receita aqui, o que faço quase sempre pra ver se outras pessoas tiveram a mesma ideia que eu, fiquei chocada ao descobrir que o que o pessoal chama de “creme de jaca” ou “mousse de jaca” sempre leva leite condensado! Jesus me abane! A danada já é doce de repunar, como dizemos na minha terra, e enfiam leite condensado nela? E ainda acrescentam creme de leite, porque fomos muito bem doutrinadas pra acreditar que laticínio em sobremesa nunca é demais. É, o colonialismo alimentar e o projeto de dominação das nossas sobremesas pela Nestlé seguem firmes e fortes.

Creme de jaca com tapioca

Se não encontrar farinha de tapioca (da usada na Bahia pra fazer mingau, cuscuz e bolo de caroço), substitua pelo sagu quebradinho que também é chamado de “tapioca”. Mas essa parte da receita, embora a deixe mais interessante e menos doce, não é essencial. Você pode fazer só o creme de jaca, que por si só já é uma delícia.

Jaca madura (idealmente jaca mole)

Leite de coco fresco (receita aqui – pode substituir por leite de castanha)

Farinha de tapioca (leia instruções e sugestão de substituição acima)

Resumo pra quem tem muita autonomia na cozinha e sabe trabalhar a farinha de tapioca: bata a jaca congelada com o mínimo de leite de coco possível e sirva imediatamente acompanhada (ou não) da farinha de tapioca hidratada no leite de coco, gelada pra não esquentar seu creme de jaca.

Instruções detalhadas: Abra a jaca madura, retire os gomos, descarte os caroços (ou cozinhe e coma) e congele a polpa, em porções pequenas. Fica mais fácil bater assim, então mesmo se estiver planejando fazer essa receita pra várias pessoas, congele porções pequenas. Espere a jaca congelar completamente antes de fazer o creme.

Aqueça um pouco de leite de coco (caseiro) ou leite de castanha, e quando estiver bem quente desligue o fogo e acrescente a farinha de tapioca. A proporção é, mais ou menos, 2 colheres de sopa (rasas) de farinha de tapioca pra 1/2 xícara de leite de coco. Usei medidas caseiras, não colher/xícara medidora. Vai parecer muito leite pra pouca farinha, mas lembre que ela vai hidratar e absorver o líquido. Cubra (com um prato ou papel filme) e deixe hidratar por meia hora, mexendo de vez em quando pra que não forme blocos sólidos no fundo. Se estiver usando sagu quebradinho (“tapioca”), ferva junto com o leite e deixe cozinhar um minuto antes de apagar o fogo, cobrir e deixar terminar de hidratar, sempre mexendo de vez em quando pra ficar homogêneo. Quando a farinha de tapioca (ou o sagu quebradinho) estiver completamente hidratado, a textura final deve ser cremosa. Acrescente mais leite, se for preciso. Transfira pra geladeira (vai continuar firmando no frio). Reserve.

Bata a jaca congelada com um pouquinho de leite de coco fresco, só o suficiente pra conseguir bater. Quanto menos leite você usar, mais encorpado vai ficar o seu creme, então use o mínimo possível. Se preciso, desligue o liquidificador e use uma espátula pra mexer a jaca antes de continuar batendo.

Sirva imediatamente, acompanhado do creme de farinha de tapioca gelado. Você pode intercalar as duas preparações no copo, como fiz na foto (e colocar os copos montados no congelador até a hora de servir), ou simplesmente colocar uma colherada da farinha de tapioca hidratada no meio da cuia com creme de jaca.

Pirão de maxixe – ainda melhor

No ano de nascimento desse blog, 2010, publiquei uma das minhas receitas preferidas: pirão de maxixe. Há anos faço esse prato pra minha família e ele até já esteve no cardápio de um restaurante vegano em João Pessoa, o Papoula Culinária Saudável. A história de como criei essa receita foi assim.

Pirão é um prato muito afetivo pra mim e pra boa parte das pessoas no meu território (Nordeste). Mas por aqui ele é sempre feito com peixe ou vaca. Quando me tornei vegana, decidi que não deixaria essa parte da minha cultura alimentar pra trás e criar um pirão gostoso, feito com vegetais, virou uma missão. Veja como são as coisas. Eu nunca tinha comido pirão de maxixe, mas lembrei que algum dia, em algum lugar, alguém tinha falado dele. Perguntei ao meu redor e ninguém lembrava de ter comido, mas teve quem disse: “Já ouvi falar”. Então não posso dizer que a ideia nasceu na minha cabeça mas, por falta de referência concreta, tive que inventar a receita. Não foi difícil, bastou seguir a cartilha do pirão: primeiro faz um caldo saboroso, depois junta farinha de mandioca e coloca no fogo pra dar o ponto.

Mas aí que entra o pulo do gato. No caso, da gata. Caldo de animais é feito cozinhando pedaços do animal em questão (peixe ou vaca) na água pra extrair o máximo de sabor deles. Pirão é conhecido entre as pessoas empobrecidas da minha região como uma maniera de esticar mais um pouquinho a comida animal. Num dia se come os músculos do animal, no outro se ferve os ossos ou a cabeça (se for peixe) pra extrair mais uma refeição. Só que maxixe já tem muita água, então decidi que ao invés de cozinha-lo na água pra fazer um caldo, o que deixaria a mistura sem muito sabor, eu cozinharia o maxixe sem acrescentar água nenhuma e ele se tornaria o próprio caldo. Basta bater o maxixe cozido no liquidificador e pronto: temos um líquido espesso e saboroso pra ser a base do pirão.

Um pirão que usa um vegetal que cresce em toda roça aqui, sem exigir muito de quem lavra a terra. Na verdade, escutei muitas agriculturas dizerem: “Maxixe nem precisa ser plantado, aparece sozinho nas roças.” Nesse canto do mundo que me viu nascer, ele é um alimento espontâneo, manifestação da generosidade da terra. Então fazer pirão com esse vegetal é muito simbólico pra mim, pois até o espírito do pirão, que é alimentar mais bocas quando a comida é pouca, foi mantido aqui.

Um pirão que alimenta quem não tem quase nada graças à generosidade da terra, sem precisar derramar o sangue de um irmão de outra espécie. Isso é a nossa cultura alimentar evoluindo na direção certa. A direção do amor, da partilha dessa Terra com os outros seres e do cuidado com o vivente.

E por que voltei com uma receita publicada aqui há 13 anos, você pergunta? Porque essa receita foi evoluindo ao longo dos anos e eu precisava compartilhar com vocês a versão mais atual, que conseguiu a proeza de ser ainda melhor que a antiga. Um desbunde, minha gente, um desbunde!

Eu tenho o costume de perguntar às pessoas o que elas gostariam de comer na sua última refeição na Terra. Imaginando, claro, que você viveu uma vida longa e feliz e que ainda tem os dentes e o apetite intactos. Esse pirão seria a entrada que eu pediria na minha última refeição.

Pirão de maxixe (que eu pediria na minha última refeição)

Esse pirão tem dois segredos. O primeiro, como expliquei no texto acima, é cozinhar o maxixe sem água e bater tudo no liquidificador depois pra criar um caldo encorpado e saboroso. O segundo é usar leite de coco fresco. Foi esse ingrediente que trouxe a dose de gordura que faltava, já que maxixe praticamente tem zero gordura, e deixou o pirão untuoso, elevando esse prato a outro patamar. Outra dica importante: maxixe é melhor quando está verde. Os maduros tem sementes e casca bem mais duras, então se puder escolher, compre os maxixes mais jovens que encontrar (veja foto no final da receita). Também é importante usar farinha fina, sem caroço. Se preciso, peneire a sua pra eliminar os caroços.

Maxixes, jovens (pequenos e verdes)

Leite de coco fresco (receita aqui)

Farinha de mandioca (fina, sem caroço)

Cebola

Tomate

Alho

Coentro

Pimenta de cheiro

Óleo (usei de babaçu, mas qualquer óleo ou azeite serve)

Suco de limão (opcional)

Sal e pimenta preta

Eu compro os maxixes limpos na feira. Se não for o caso, raspe os pitocos do maxixe com uma faca (como se raspa a casca da cenoura), pra tirar a maior parte deles, e corte os rabinhos. Em uma panela grande e, idealmente, de fundo espesso aqueça um pouco de óleo e refogue a cebola picada junto com os maxixes cortados em pedaços pequenos. Refogue, mexendo de vez em quando, até o maxixe começar a grelhar em alguns lugares e pegar um pouco de cor. Isso é importante pra aumentar o sabor.

Quando estiver como na foto acima, junte o alho (picado ou pilado) e os tomates. Tempere com um pouco e sal. Veja as fotos pra ter uma ideia da proporção maxixe/cebola/tomate. O alho e os outros temperos você coloca a gosto. Cozinhe os vegetais em fogo médio, coberto, sem acrescentar água, até o tomate desfazer completamente.

Deixe esfriar um pouco, cubra tudo com leite de coco (melhor se for fresco, feito em casa) e triture no liquidificador. Tudo bem se ficar não ficar completamente homogêneo.

Coloque a mistura de maxixe batido com leite de coco de volta na panela, junte uma pitada generosa de pimenta preta, um pouco de pimenta de cheiro picada e, ainda com o fogo apagado, alguns punhados de farinha de mandioca, juntando aos poucos e mexendo bem com uma colher de pau antes de acrescentar mais. Aqui você vai adaptar de acordo com a quantidade de maxixe que você tiver usado e com a textura de pirão que você prefere. Eu gosto de pirão mais fino, mas tem quem goste de pirão grosso. Junte farinha suficiente (fora do fogo!) até ficar mais líquido do que o desejado, já que o pirão ainda vai pro fogo e a farinha vai engrossar com o calor.

Cozinhe o pirão, mexendo sempre, até ferver e encorpar. A gente sabe quando o pirão tá cozido porque ele perde a cor esbranquiçada (dada pela farinha) e fica mais escuro. Se ficou mais fino do que o desejado, junte mais farinha, polvilhando aos poucos e mexendo bem pra não emboloar. Desligue o fogo e junte coentro picado e, se gostar, umas gotinhas de limão. Prove a corrija o sal (e a acidez), se necessário. Se gostar de pimenta, sirva acompanhado de um bom molho de pimenta (meu pai tem uma receita maravilhosa).

O maxixe à esquerda está bem jovem e isso é o ideal. O da direita já está maduro, com sementes maiores e mais duras e pele mais espessa. Dá pra fazer pirão com maxixes maduros (o pirão da foto foi feito com uma mistura de maxixes verdes e maduros) mas se puder, escolha sempre os mais jovens, pois são mais saborosos e tenros.

Tour político-vegano em Natal

Meu recesso de início de ano acabou essa semana, e junto com a retomada das atividades militantes (tenho muita coisa pra contar, aguardem!) coincidiu de um amigo alagoano da minha sobrinha Luna chegar pra visitar Natal. E, olha como são as coisas, Giovanni acontece de ser um leitor de longa data do blog e apoiador do meu trabalho desde o início da campanha no Apoia-se. A gente tinha se encontrado uma primeira vez em 2019, durante o primeiro ENUVA (Encontro Nacional da União Vegana de Ativismo), em Recife, mas não deu tempo de conversar daquela vez.

Luna, que é vegana, historiadora e apaixonada por Natal, tinha me prometido um “rolezinho natalense” desde o ano passado. Segundo ela, é o passeio que “o jovem natalense descolado faz”. Como faz tempo que deixei de ser jovem e nunca fui descolada, fiquei curiosa pra ver a minha cidade pelos olhos dela. Então combinamos de fazer isso quando Giovanni (que também é vegano e historiador!) estivesse aqui, porque já juntava a minha vontade de redescobrir minha cidade com a nossa vontade de mostrar a cidade pra ele. Deu certinho.

Passeamos pelo centro e fiquei muito triste ao constatar que a vida nessa parte da cidade está desaparecendo. Quando eu era adolescente, antes de ir morar no exterior, essa parte de Natal fervilhava de atividades e pessoas. Quase tudo era resolvido ali. Compras de qualquer tipo? Tinha. O único restaurante macrobiótico (e quase todo vegetariano) da cidade? Era lá. O último cinema de rua? Lá também. (Inclusive o último filme que vi naquele cinema foi “Billy Elliot”) Precisava de uma garrafada ou lambedor pra tosse? Tinha as barracas das erveiras e erveiros. Pilha pro relógio? Era só ir na rua das relojoarias. Tinha os bares boêmios do Beco da Lama. Esses últimos ainda fazem resistência, mas o resto ou já desapareceu ou está caminhando pra isso.

Mesmo com a tristeza de ver os espaços públicos abandonados, porque quase tudo migrou pra dentro de shopping centers, o dia foi ótimo. Além do centro histórico de Natal, onde tomamos mate, visitamos sebos e batemos perna nos becos, fomos almoçar no Libre, um café vegano (melhor comida vegetal da cidade!), e passeamos pela Mata Atlântica, dentro do Bosque dos Namorados (onde comemos ubaia doce, apanhada do chão).

O “rolezinho natalense” proposto pela minha sobrinha me inspirou e me deixou com muita vontade de propor tours no estilo do que eu fazia em Paris. Como vou chamar Natal de casa até o final do ano, é uma possibilidade pra 2024. Depois de ter guiado pessoas na Palestina e na França, ia ser gostoso guiar pessoas na minha cidade. Se a ideia for pra frente, volto pra contar. Mas se antes disso você aparecer por Natal, me avisa 😉

Depois de nos despedirmos de Giovanni, Luna e eu terminamos o rolezinho natalense em casa, tomando café com soda preta junto com Roberta (a cuidadora da minha mãe). Pra quem não conhece, “soda” (ou “sorda”) é um alimento delicioso, degustado no lanche, com uma textura entre o bolo e o biscoito, feito somente com farinha de trigo, mel de engenho (melado), especiarias e, às vezes, bicarbonato de sódio. Uma das comidas típicas do meu território que são tradicionalmente vegetais, mas que está caindo no esquecimento e desaparecendo, como é o caso de quase todo alimento tradicional. A resistência do centro histórico, apesar de pequena, existe, mas me pergunto quantas pessoas participam da resistência ao desaparecimento da nossa cultura alimentar.

Enquanto degustava minha soda pensei em como gostaria de compartilhar minha cultura alimentar com outras pessoas. Aí lembrei que foi exatamente esse sentimento, de querer compartilhar as belezas e os sabores ameaçados de um lugar, que me fez criar os tours na Palestina… A vida dá muitas voltas, mesmo.

PS Obrigada à Luna pelo rolezinho e pelas fotos que aparecem aqui. Obrigada a Giovanni pelas conversas, pela troca de conhecimentos e pelo apoio ao meu trabalho (e pela foto da ubaia doce).

Leite de castanha de caju

Leite de coco ainda é o meu queridinho pra muita coisa, mas atualmente uso mais o leite de coco pra cozinhar (preparar pratos salgados e doces) do que em bebidas (café, vitaminas). Descobri que leite de castanha de caju também é maravilhoso no café (tem quem diga que é ainda melhor, já que o sabor é muito mais suave, quase neutro, quando comparado ao leite de coco). Além de tudo é mais prático de fazer do que o leite de coco (não precisa coar!).

Sei que castanha de caju custa caro em muitos lugares do Brasil. Mas deixa eu argumentar que sou potiguar e atualmente estou morando no meu território, logo faz todo sentido tomar leite de castanha de caju. Caju e castanha fazem parte da minha cultura alimentar e um dia vou conseguir fazer com que leite de castanha seja o leite tradicional do meu estado.

Se você estiver em outro território, o mais lógico, ecológico e barato seria fazer um leite com algo do seu bioma. Mas, e esse é um “mas” de peso, se você se apaixonou por aquele leite de castanha de caju de caixinha que custa um rim, talvez fique bem mais barato fazer em casa, mesmo a castanha custando mais caro pra você aí do que ela custa pra mim aqui no RN. (Uma curiosidade: Olhando a informação nutricional do leite de castanha de caixinha famoso, vi que a versão industrializada usa uma quantidade menor de castanha do que eu uso no meu leite caseiro. Então se eu usasse a quantidade de castanha que a caixinha usa, meu leite, que já é muito em conta aqui, seria ainda mais barato.)

E com esse leite de castanha, que segue o tema das ultimas duas receitas (daqui a pouco vão sugerir que o nome desse blog mude pra “Papacaju”), fecho essa bodega até o ano que vem, porque também sou filha da deusa e mereço descanço. Volto no meio de janeiro e, até lá, desejo um ótimo final de ano pra vocês. Saúde, prosperidade, amor e muito leite de castanha de caju pra todo mundo que me acompanha aqui.

Leite de castanha de caju

Esse leite é delicioso, bem suave e muito prático, já que nem precisa coar. As medidas fazem 1 litro de leite cremoso e encorpado, perfeito pra tomar com café e com cacau (pra fazer um leite achocolatado). Ele se conserva alguns dias na geladeira, mas se achar que não vai beber tudo a tempo, faça metada da receita. Mas leia até o final pra ter dicas de como fazer pequenas porções de leite rapidinho.

120g de castanha de caju (natural, sem sal)

1 litro de água

Comece hidratando a castanha. Você tem duas opções: deixar de molho na água fria de um dia pro outro, ou então colocar a castanha na água, levar ao fogo, esperar ferver, desligar o fogo e deixar hidratando meia hora dentro dessa água. Hidratar as castanhas é essencial pra que elas fiquem macias e se desintegram quando liquidificadas. (Na foto abaixo as castanhas dentro da tigela estão hidratadas, as em cima da mesa, não.)

Nos dois casos, escorra a castanha hidratada (demolhada ou fervida), coloque no liquidificador e junte 1 litro de água fria. Bata por alguns minutos, até as castanhas se desintegrarem completamente. Esfregue um pouco do leite entre os dedos pra sentir a textura. Se ainda estiver granulado, bata mais um pouco.

Seu leite de castanha de caju está pronto. Não precisa coar, pois castanha tem menos fibras, comparando com amêndoas ou castanhas do Pará, e esse leite praticamente não tem resíduo. Guarde na geladeira, em um recipiente com tampa. Se conserva na geladeira por alguns dias.

Dica: Aqui na casa da minha mãe a gente hidrata a castanha, separa porções pra fazer 1/2 litro de leite e congela. Assim, sempre que precisamos de leite, é só tirar um saquinho de castanha hidratada/congelada (não precisa descongelar), esquentar 1/2 litro de água e bater no liquidificador. Foi uma dica que peguei com a minha irmã Lu, que também é cozinheira e faz leite de castanha pra usar no café onde ela trabalha (Libre Café), aqui em Natal.

Medidas:

120g de castanha seca se transforma em 160g de castanha hidratada e faz 1 L de leite.

Se quiser congelar porçoes de castanha pra fazer 1/2 litro de leite, congele porções de 80g de castanha hidratada. Depois é só bater com 1/2 litro de água e você terá 1/2 litro de leite de castanha.

Aqui em casa hidrato uma quantidade grande de castanha e depois peso várias porções de 80g (peso depois de hidratar!) pra ter leite por duas semanas. Na foto abaixo dá pra ver tanto as porções de castanha hidratada quanto o saco grande de castanha seca. Compramos muitos quilos de castanha por vez, pois fica mais barato assim. (Esse bloco branco é goma fresca. Também compramos em quantidade e congelamos porções de 1kg, pra goma, e as tapiocas, ficarem sempre fresquinhas).

Estrogonofe potiguar

Quando coloquei na mesa, perguntaram se era estrogonofe. De início, resisti ao nome. “Que estrogonofe, o que! É carne de caju com creme de amendoim. Mas minha irmã Lu argumentou que “carne de caju com creme de amendoim” não ia deixar muita gente com vontade de comer a minha receita, então tive uma ideia. Se é pra chamar de estrogonofe, então só aceito de vier acompanhado de “potiguar”. A receita foi rebatizada de “estrogonofe potiguar”.

Semana passada postei uma receita maravilhosa (farofa de carne de caju) e expliquei que me dei por missão criar receitas salgadas à base dessa fruta nativa do meu território (o litoral do Nordeste). O caju é um elemento importante da nossa cultura alimentar e a suculência e versatilidade da sua carne são um prato cheio pra essa cozinheira aqui. Eu olho pra ele e vejo uma infinidade de possibilidades. Pra mim a verdadeira carne do futuro é essa: vegetal, que vem daqui e cresce no nosso território, que pode ser produzida por muitas agricultoras (e não concentrar riqueza na mão de uma start-up ou das multinacionais do agro-alimentar), que a gente prepara de mil maneiras em casa e que honra nossa cultura alimentar e as mãos que a plantaram.

A ideia de preparar carne de caju com creme de amendoim e coco veio da vontade de trabalhar com ingredientes nossos. O amendoim também é nativo do território conhecido como Brasil e embora o coco tenha vindo da Ásia, ele se adaptou muito bem nas nossas latitudes, se espalhou pelo litoral e acho que podemos considerar como tradicional na nossa cultura alimentar. Eu estava tentando criar uma receita pro fim do ano, pois é raro eu estar na minha terra, com a minha família, nessa época. Especial e que fizesse sentido pra nós, que somos potiguares. (Mas vai fazer sentido pra todo mundo que tem a sorte de morar não muito longe de cajueiros.)

Achei que precisaria de muitas tentativas pra chegar num resultado realmente delicioso e já estava me preparando pra comer só caju até o ano que vem. Mas ficou perfeito logo na primeira tentativa. Pasta de amendoim batida com leite de coco (fresco, feito em casa) se torna um creme aveludado no fogo, com um sabor delicado. Dá pra sentir o gostinho dele no final, mas ao invés de dominar o prato, o amendoim complementa lindamente o sabor do caju.

Se tiver caju numa feira aí onde você mora, eu recomendo muito preparar essa receita pro seu fim de ano. Ou pra qualquer ocasião especial (por exemplo, pra comemorar o fato de não ter perdido totalmente a cabeça no meio de tanta sandice, de ter voltado pra terapia, pra impressionar as gatinhas…).

Estrogonofe potiguar

Talvez eu diga isso com frequência, mas… Foi uma das melhores receitas que já criei. Estou toda orgulhosa e torcendo pra ela aparecer em muitas mesas aqui no Nordeste, principalmente no final do ano, quando se tem muitas datas comemorativas e a safra do caju ainda não acabou. O amendoim batido com leite de coco dá muita cremosidade ao prato, sem ficar com um sabor forte de amendoim. Acho que ele complementou lindamente o caju, sem se sobrepor. Eu expliquei como preparar carne de caju nessa receita de pastel de caju e foi a base que usei pra fazer esse prato. Pra facilitar o trabalho de vocês, vou repetir aqui pra ficar tudo no mesmo lugar. Dessa vez coloquei as quantidades, porque sei que muitas pessoas não se sentem seguras sem as medidas e não arriscariam fazer um prato sem a garantia de saber que vai dar certo. Mas são medidas aproximadas, tudo bem se colocar mais ou menos alguma coisa.

Pra fazer a carne de caju

5 cajus grandes (se seus cajus forem pequenos, use mais)

1 cebola, picada

1/2 pimentão verde, picado

2 tomates maduros, picados

3 dentes de alho, ralados ou picados

4 col. sopa de molho de soja (shoyu)

Suco de 2 limões

1 punhadinho de coentro (pode ser só os talos)

1 col. de sopa de óleo

Pimenta de cheiro (opcional)

Páprica doce (melhor se for defumada)

Sal e pimenta preta

Pra fazer o creme

2 colheres de sopa cheias de pasta de amendoim (pura, sem açúcar)

2 xícaras de leite de coco fresco (receita aqui)

Sal e pimenta preta

Coentro e cebolinha, pra finalizar

Comece preparando a carne de caju. Retire as castanhas e corte os cajus em tiras, no sentido do comprimento (pra essa receita, corte cada caju em 8 tiras). Coloque uma peneira em cima de uma vasilha (pra recolher o sumo do caju) e esprema as tiras de caju entre as mãos. Não precisa retirar todo o sumo, basta espremer um pouco pra que a carne não fique muito doce e pra que ela possa sugar o tempero depois. O sumo pode ser guardado em uma garrafa com tampa, na geladeira, pra ser consumido depois. Ou você pode beber tudo na hora.

Junte todos os outros ingredientes do recheio, menos o tomate, misture bem e deixe marinando na geladeira de um dia pro outro. O tempo marinando é muito importante: amansa o ranço do caju e o tempero penetra na carne.

Depois do tempo marinando, cozinhe a carne de caju. Aqueça um pouco de óleo em um frigideira grande, despeje a carne (junto com todos os temperos e líquido que tiver se formado) e cozinhe em fogo médio-alto, mexendo de vez em quando, até o caju ficar ligeiramente dourado. Nesse momento junte o tomate picado, tampe e deixe cozinhar, dessa vez em fogo baixo, até o tomate se desintegrar. Prove e corrija o sal, se necessário.

Prepare o creme. No liquidificador, bata o leite de coco fresco com a pasta de amendoim, mais uma pitada generosa de sal e um pouco de pimenta preta, até ficar completamente dissolvido. Jogue esse líquido na panela com a carne de caju e deixe ferver, mexendo de vez em quando. O líquido vai engrossar e virar um creme espesso. Se ficou muito grosso, acrescente um pouco mais de leite de coco fresco ou de água pra deixar na espessura desejada. Prove e corrija o sal, se necessário. Junte o coentro e a cebolinha (a parte verde e a branca) picados e sirva.

Farofa de caju

Primeiro, porque é época de caju. Segundo, porque sou potiguar e o meu estado é um dos maiores produtores de caju do Nordeste (e a quase totalidade da produção de caju no Brasil acontece no Nordeste). Terceiro, porque boa parte do caju cultivado é desprezado, pois a castanha tem um valor comercial muito maior. Quarto, porque adoro caju.

Por tudo isso, me dei por missão incentivar o consumo da carne de caju no nosso território. Como estou em Natal agora, vou aproveitar essa oportunidade pra criar novas receitas com essa fruta e inspirar vocês, principalmente vocês que estão no Nordeste, a comer mais caju. (Eu sei, o caju é um pseudofruto. O fruto do cajueiro é a castanha, mas vamos combinar de continuar chamando caju de fruta.)

Sei que não é a fruta mais fácil de gostar. Os taninos, responsáveis pelo ranço na garganta, incomodam muita gente. Esse é mais um motivo pra popularizar a carne de caju: na versão salgada, a adstringência da fruta desaparece. Não que isso seja problema pra mim. Eu amo caju e adoro a adstringência dele, então gosto tanto de chupar caju (fresco) quanto de degustá-lo em versão salgada (na minha terra falamos “chupar caju” e não “comer caju”. Aliás, também “chupamos” manga.) Mas se o perfume e o sabor dessa fruta ainda não te seduziram na versão fresca, tente a versão cozida e venha conversar comigo depois.

A receita de hoje é bem simples, mas muito, muito boa. Tanto que não entendo como ainda não se tornou um clássico da culinária nordestina. Mas, se depender de mim, vai passar a fazer parte da cultura alimentar do veganismo popular nordestino. Preparadas? Farofa de caju!

Usei a receita do recheio do meu pastel de caju (de forno, com massa de jerimum) e simplesmente acrescentei um pouco mais de gordura e, obviamente, farinha. Se você nunca preparou carne de caju, essa receita ensina a técnica de base. Tem quem chame de “carne de caju” a fibra da fruta, depois que todo sumo foi retirado (é só espremer bem). Eu acho essa técnica ruim por dois motivos. Ao retirar todo o suco da fruta, perde-se também sabor. E além de ter menos gosto (tem gente que até lava a fibra do caju depois de retirar o suco, pra que ela fique com gosto de nada), a carne perde a suculência e fica seca. Pra que fazer isso com o coitado do caju? Despautério!

Eu prefiro deixar a maior parte do suco na carne do caju, pelas razões citadas acima (retiro só um pouquinho pra não ficar doce demais), e não precisa se preocupar com o ranço/adstringência, pois o fogo vai dar cabo dele. Se você gosta de farofa e quer aprender a gostar de caju, recomendo demais essa receita. E se você já gosta de caju, vai se apaixonar.

Farofa de carne de caju

Na receita de pastel de caju ensino o passo-a-passo (com fotos) pra preparar a carne de caju básica. É ela que usamos como recheio pra torta, panqueca, pastel e que serve de base pra essa receita. Pra não repetir tudo aqui, deixando a receita longa demais, comece vendo o post do pastel de caju pra entender como preparar essa farofa. Depois que a carne de caju estiver pronta, essa receita fica pronta em segundos!

Carne de caju cozida e temperada (como expliquei nessa receita)

Farinha de mandioca (gosto da farinha fininha e ainda assim peneiro pra retirar todos os caroços)

Óleo (usei óleo de babaçu, que tem um sabor delicioso, mas qualquer um serve)

Pimenta de cheiro

Páprica (se for defumada, melhor), ou colorau (urucum)

Pimenta preta e sal a gosto

Em um tacho ou panela de fundo grosso, aqueça o óleo. A quantidade vai depender de quanto de carne de caju você estiver usando, mas não precisa muito (eu diria que pra uma xícara de carne de caju cozida você pode usar entre 2-4 colheres de sopa de óleo). Junte a carne de caju (já cozida e temperada) e farinha suficiente pro seu gosto (eu gosto de farofa úmida, mas se você gostar de farofa seca, use mais farinha). Tempere com páprica (ou colorau, pra deixar a farofa amarelinha), pimenta preta e sal. Deixe cozinhar uns 10 minutos, mexendo com uma colher de pau de vez em quando, pra tostar um pouco a farinha. Desligue o fogo e junte pimenta de cheiro picada a gosto. Prove e corrija o sal, se necessário.

O fim de um ciclo

Primeiro, deixa eu contar que semana que vem estarei no Brasil. Viajo daqui a alguns dias e tenho planos de ficar um ano inteiro em terras potiguares. Estou indo por razões familiares, mas vou aproveitar o tempo que estiver lá pra participar da luta antiespecista na minha cidade, Natal, e pra estar mais presente nas atividades da UVA.

Então estou fechando um ciclo aqui na França e não está sendo fácil. O contexto social no país está cada vez mais difícil pra quem é militante de esquerda. A conjuntura política atual está sendo instrumentalizada pra intensificar o racismo de Estado e acelerar a virada em direção ao fascismo que vemos mundo afora e que nós, que estamos aqui, vemos de perto e sentimos nos nossos corpos. E acompanhar o genocídio cometido por Israel contra a população palestina, que já entrou na sexta semana, enquanto a comunidade internacional se recusa a tomar toda e qualquer medida que possa impedir esses crimes de acontecerem, e a França segue apoiando politicamente e militarmente Israel é desesperador. Mas não me surpreende. Colonialistas são solidários entre si.

Por todas essas razões, estou feliz de sair daqui e de encontrar minha família brasileira. Minha experiência diz que se eu estiver comendo tapioca e macaxeira o sofrimento se torna um pouco mais suportável. E estar do lado de minhas irmãs e sobrinhas, também ajuda. Mas, por outro lado, não estou indo pro Brasil pra tirar férias prolongadas. Não será um ano sabático, longe disso. Outra batalha me espera do lado de lá do oceano Atlântico: acompanhar minha mãe num estado avançado de Alzheimer. E talvez essa seja a batalha mais difícil que eu já enfrentei. Eu sei o que me espera na minha terra, mas ainda não sei como meu coração, já tão angustiado, e meu corpo, que anda cansado e machucado, reagirão.

Na próxima vez que abrir esse blog pra escrever um post, estarei na casa da minha família. Com um pouco de sorte (minha) o choque emocional não será tão grande e eu poderei compartilhar coisas que trazem esperança. Porque, por mais que atravessemos tempos sombrios, me recuso a abandonar a esperança. Como disse Angela Davis, quando ela falou recentemente sobre a Palestina: “Não podemos abandonar a esperança, porque a esperança é a condição de todas as lutas.”

(A foto acima foi feita em um santuário antiespecista e anarquista no interior da França. Visitei esse lugar no final de setembro e o que vi por lá, e os encontros que fiz, me encheram de esperança.)