A primavera chegou no final de março, como é o esperado no hemisfério Norte, mas logo foi colocada pra correr por uma onda de calor que fez os termômetros beirarem os 30 graus na região de Paris por uma semana (Colapso climático, foi você?). Depois veio uma tempestade de chuva e granizo e a temperatura desceu novamente. Por enquanto ela segue amena e esperamos que se mantenha assim.

Felizmente a gente ainda não tinha plantando as mudinhas que preparamos (à partir das sementes) e estamos cuidando há dois meses, antes da tempestade de granizo. Isso teria destruído toda a nossa colheita de verão. “A gente” é o coletivo anarquista do qual faço parte e que cultiva há três anos, de maneira coletiva, um lote nos Jardins Operários de Aubervilliers. Esses “jardins” são, na verdade, hortas comunitárias que existem há quase 100 anos aqui na periferia norte de Paris e que alimentam pessoas da classe trabalhadora desde então.
Domingo foi dia de mutirão na horta. A primavera é a época onde temos mais tarefas ali: tem que preparar as sementes/mudas, retirar uma parte das plantas invasivas pra dar espaço pros legumes, preparar a terra com adubo (vegetal), delimitar, com madeira ou telhas, os espaços onde vamos plantar (pra que no resto da terra as ervas possam crescer tranquilamente, sem competir com os pés de tomate e abobrinha)… A gente segue a linha permacultura/agroecologia, então no nosso lote não entra nada de veneno, todo mundo é bem-vindo (plantas selvagens, animais pequenos e grandes) e reviramos o solo o mínimo possível pra não destruir a estrutura delicada, e preciosa, construída por minhocas. Nem incomodar as bichinhas. Mesmo assim, adotando métodos de plantio mais suaves, ainda tem muito trabalho a ser feito pra cultivar uma horta capaz de encher nossas mesas com comida. Trabalho, não, cuidado. Essa é a palavra correta aqui: é preciso muito cuidado com a terra, as plantas e as criaturas que vivem ali.
Os dias de mutirão na horta são uma grande fonte de alegria pra mim. A gente se reúne cedinho e passamos o dia inteiro com as mãos na terra, enquanto conversamos sobre as plantas, a vida e a luta. E claro que tem um almoço coletivo, embaixo do pé de ameixa e do pé de damasco, onde cada pessoa leva um prato pra compartilhar. Nesses momentos lembro que a luta não é apenas por um futuro melhor. Luto também, e talvez sobretudo, pra que o presente seja agradável, desejável. Essa é a característica mais distintiva de quem é anarquista (comparando com as outras correntes socialistas): nossa luta é pelo hoje também, porque entendemos o hoje como a prefiguração do amanhã que queremos.

E porque todas as lutas estão conectadas, ontem também hasteamos uma bandeira palestina no nosso lote, amarrada num galho do pé de louro. Abaixo, à direita, um pezinho de fava que apesar de pequeno, já está carregado de favas (eu já tinha colhido algumas quando fiz a foto).
Ainda não plantamos os legumes de verão (tomate, berinjela, abobrinha, pimentão…), mas já estamos colhendo as favas que plantamos no inverno. Plantamos favas, mas também ervilha torta e grão de bico, porque leguminosas são um fertilizante natural, o melhor de todos. As raízes das leguminosas fixam o nitrogênio no solo (na verdade são as bactérias que vivem nas raízes das leguminosas, mas estou simplificando aqui) contribuindo pra saúde da terra. Veja que lindeza! Leguminosas fazem bem pra gente e pra terra. Alimentam nossa microbiota e a microbiota do solo.
Eu amo fava e se você ainda não testou, recomendo muito minha receita de fava com tomate pra você se apaixonar também (ou fazer as pazes com ela). Mas a receita que eu queria compartilhar hoje é com favas frescas e jovens, um prato pra celebrar a primavera. Descobri, graças à uma amiga lavradora que também cultiva um lote nos jardins operários, e ao nosso vizinho de lote, que é argelino, que favas jovens podem ser consumidas com casca e tudo. Não precisa debulhar, como faríamos com favas e feijões maduros: basta cortar e preparar como se fossem vagens. Eu achei uma maravilha descobrir isso, pois assim podemos degustar nossas favas mais cedo e ela rendem mais. Plantamos uma quantidade relativamente pequena de favas então desse jeito todo mundo do coletivo consegue comer um pouco delas. E achei que as cascas, o bago, tem um sabor parecido com as favas verdes, além da textura ser muito tenra.
Sei que pouca gente tem acesso a favas jovens frescas, mas gostaria de compartilhar essa receita porque vai que, um dia, vocês encontram essas belezuras na feira. Ou resolvem virar lavradoras de quintal, como eu. E tem mais: sem favas frescas, esse prato pode ser preparado com vagem.

Saldada de fava verde, laranja e amêndoas
A estrela desse prato é a fava verde, mas quem não tem acesso a esse ingrediente pode preparar a salada com vagem. Usei amêndoas aqui, porque estou na França, mas elas podem ser substituídas por sementes de girassol (ou de jerimum), que são mais acessíveis. Acho a combinação fava+laranja+coentro perfeita, mas quem não gosta de coentro sempre pode substituir essa erva por salsinha. Como sempre, a receita não tem quantidades, mas a lista de ingredientes vai do mais usado (favas) ao menos usado. Use o bom senso e seu gosto na hora de dosar as quantidades.
Favas verdes, na casca (ou vagem)
Laranja
Amêndoas (ou sementes de girassol ou jerimum descascadas)
Coentro (ou salsinha)
Cebola roxa (opcional)
Alho
Azeite
Limão
Sal e pimenta preta
Ferva uma grande quantidade de água com sal, como se fosse cozinhar macarrão. Enquanto espera a água ferver, lave as favas, descarte a ponta escura (onde ela encontrava o galho) e corte em pedaços médios. Jogue a fava em pedaços e deixe cozinhar até que fiquem bem macias (entre 5 e 10 minutos, dependendo do tamanho que você cortou as favas e da idade delas – quanto mais jovem, mais rápido cozinha). Prove um pedaço pra testar.
Enquanto as favas cozinham pique miudinho uma pequena quantidade de cebola roxa (deixe de fora se você não é fã de cebola crua) e alho a gosto. Coloque a cebola e o alho no recipiente em que for servir as favas. Escorra as favas cozidas e jogue imediatamente sobre a cebola/alho picados. Regue com azeite e suco de limão a gosto e misture bem. É importante temperar as favas enquanto elas ainda estão bem quentes, pra que elas “peguem gosto”.
Descasque uma laranja (ou mais) e corte em pedaços pequenos. Pique o coentro (ou salsinha). Aqueça uma frigideira e toste as amêndoas (ou sementes de girassol) a seco, até que fiquem ligeiramente douradas. Pique as amêndoas tostadas (se estiver usando sementes de girassol, não precisa picar).
Quando as favas tiverem em temperatura ambiente acrescente a laranja, o coentro e as amêndoas picadas. Junte pimenta preta a gosto, prove e acerte o tempero (mais sal, mais limão, mais azeite…). Sirva (em temperatura ambiente) e se delicie.