Essa é a segunda parte do mini-curso sobre como fazer uma horta no quintal, que começou no último post. “Mini-curso” é provavelmente um exagero, já que estou repassando as informações de maneira bem resumida. O meu objetivo com esses posts é te dar vontade de plantar a própria comida, mesmo que seja em vasos ou sacos de estopa num cantinho da laje, da varanda ou do quintal. Por isso estou acompanhando esses posts de tantas fotos.

Na primeira parte falei sobre compostagem, preparar o solo, a técnica da “lasanha” e fazer mudas à partir de sementes. E é à partir desse último ponto que vou continuar a prosa.

Quando a primavera chegou, minha casa virou um viveiro de plantas. Eu fiz mudas pra nossa horta de quintal, mas também pro lote que cultivamos coletivamente nos jardins operários (junto com camaradas do nosso coletivo, a Brigada de Solidariedade Popular). E como plantar incentiva a generosidade, a gente sempre faz muito mais mudas do que vai precisar pra compartilhar com as amigas que tem horta. Aliás, elas fazem a mesma coisa e acabamos trocando mudas e aumentando a variedade de legumes e flores que plantamos.
O berçário ficou na nossa varanda por várias semanas e todo dia tinha que regar todas aquelas mudinhas, colocar do lado de fora durante o dia e colocar de volta pra dentro de casa durante a noite. Dá um certo trabalho, sim, mas o encantamento de acompanhar a mágica da semente brotando e se tornando uma planta é, pra mim, precioso demais. Eu volto a ser criança, pulo de alegria acompanhando cada vitória das mudinhas e converso com todas. De acordo com Lila, uma amiga da Síria e nossa vizinha de lote, conversar com as mudinhas é tão importante quanto terra boa e água pra que elas cresçam com vigor. Você faz o que quiser com as suas mudas, mas eu também converso (muito) com as minhas.
Na hora de fazer as mudas a gente colocar várias sementes na terra ao mesmo tempo, pois se você der azar, poucas vão brotar. Mas o contrário pode acontecer também e aí geralmente mais do que cabe ali no potinho. Pra que elas não morram sufocadas, faz parte do processo arrancar uma parte delas pra que as outras tenham espaço pra continuar crescendo. Depois de semanas cuidando delas, eu acho doído, mas tem que ser feito. Então agradeço pelo esforço antes de arrancar (ela saiu da semente e virou planta, meu povo! Palmas pra mudinha!) e coloco na composteira. Dependendo da muda, eu como (se for muda de couve, alface, ervas…). Mas as de tomate (foto acima, à direita), eu não como, então vai pra composteira.
Quando as mudinhas cresceram o suficiente, chega a hora de colocar na terra. Dolorès, minha amiga lavradora e mentora, diz que tem que esperar sair “as folhas verdadeiras” das mudinhas antes de plantar. Quando brotam, as sementes produzem um par de folhinhas muito parecidas e só depois dessas primeiras duas é que aparecem folhas características da planta em questão (folha de tomate é de um jeito, folha de berinjela é de outro, etc). Mas o momento de colocar na terra vai depender do clima também.
Aqui na França tem uma tradição que eu acho linda, pura sabedoria popular. As lavradoras me contaram pra sempre esperar passar os dias dos “saints de glace” (santos de gelo), que correspondem aos dias 11, 12 e 13 de maio, às vezes também os dias 14 e 15, antes de colocar as mudas na terra. E por que não plantar antes do dia 15 de maio? Porque até o meio de maio ainda tem chances de ter geadas durante a noite. Como esse período corresponde aos dias de São Mamert, São Pancrácio, São Servácio e outros santos desconhecidos no Brasil, eles ficaram conhecidos como os santos de gelo. E quem planta onde faz muito frio sabe: se você colocar uma mudinha na terra, essa coisinha frágil e delicada, e logo em seguida vier uma geada, ela não vai sobreviver.
Esse ano, quando fui plantar no nosso lote, quase que os santos do gelo me pegaram. A temperatura já estava alta há semanas, então no dia 12 de maio pensei que já podia colocar as mudas na terra. Uma amiga francesa, lavradora de quintal também, arregalou os olhos e perguntou se eu não ia esperar passar os santos de gelo e eu respondi que com o colapso climático essa antiga sabedoria popular não devia estar mais valendo. Mas ela conseguiu me fazer hesitar e preferi esperar mais alguns dias. Pois vocês acreditam que na caída da noite do dia 12, o dia em que eu tinha planejado colocar as mudinhas na horta, choveu granizo?! Minhas mudinhas teriam morrido se eu não tivesse seguido o conselho da minha amiga francesa. Os santos de gelo são uns danadinhos!

Acima, o dia em que plantei os pezinhos de tomate. Pra conservar a umidade no solo a gente cobre a terra com palha ou folhas secas (evita uma evaporação excessiva da água), mas fiz essa foto antes de cobrir tudo com palha, então vocês vão ter que usar a imaginação. Criamos essas estruturas de bambu pra dar apoio aos tomates enquanto eles crescem. Pé de tomate gosta de subir, mas precisa de apoio. A gente amarrava pedaços de barbante fininho e macio nos pés e amarrava a outra ponta nos bambus. Se não fizer isso os galhos se quebram e aí, não tem tomate. Tem gente aqui que usa uma técnica diferente: enfiam barras de ferro torcidas (compradas em lojas de jardinagem, especiais pra isso) na terra, do lado dos pezinhos de tomate, e vão enrolando o pé de tomate na barra à medida que ele vai crescendo.
Abaixo, as mudinhas de manjericão da folha miúda, da folha graúda e roxo (coloquei as sementes diretamente no vaso). E à direita, os pezinhos de tomate que coloquei dentro do “saco de plantar” (falei sobre ele no post anterior).

Acima: manjericão e coentro nos vasos e, atrás (na terra), acelga verde (do caule vermelho), favas e ervilha torta. Abaixo, na “lasanha” que fizemos no pé de uma árvore, vários pés de jerimum e ervilha de cheiro (a florzinha lilás, no centro). Lembrando que folhas de jerimum são comestíveis, como expliquei nessa receita. As flores também, aliás (coma as flores machos, que não trazem frutos).

Percebeu que demos um pulo de várias semanas, né? O jerimum já estava grande e a horta principal (foto baixo) já estava bem desenvolvida. Os pezinhos de tomate já tinham virado uma mini-floresta de tomate (no fundo), com alguns pés de abobrinha embaixo. Na parte da frente da horta tem: couve, berinjela, várias flores (capuchinha, calêndula, cosmos e girassol) e, nos jarros, manjericão (olha como cresceu!).

Os girassóis cresceram e passaram dos tomates. Na foto abaixo, à direita, a horta menor (a lasanha mais recente, que mostrei como fazer no post anterior) coberta de berinjela, jerimum, couve-flor e capucinha. Ao fundo dá pra ver os pés de tomate crescendo dentro do “saco de plantar”.
Abaixo: pé de berinjela com sua florzinha lilás e de jerimum, com suas flores amarelas. À direita, o canto da horta onde estavam a maior parte dos pés de tomates, que já estavam com frutos maduros.

Essa berinjela é da Palestina. As sementes vieram diretamente da roça de laje (tem roça de quintal e roça de laje) de uma amiga querida que mora em um campo de refugiados e planta a maior parte do que a família come na laje de casa. Como é uma variedade crioula de lá, ela não se deu bem nessa parte do mundo, que tem um clima bem diferente. Plantamos vários pés e só colhemos duas ou três berinjelas. Eu falei que é pra priorizar as sementes do seu território, né? Mas a vontade de ter um pedacinho da Palestina crescendo no meu quintal foi maior que o bom senso de lavradora.

Plantamos 14 variedades de tomate. Sim, existem muitas, muitas variedades de tomate. Muito mais que 14, mas fizemos uma seleção das variedades que mais gostamos (sabor), outras que são muito produtivas (tomates pequenos) mais duas ou três que nunca tínhamos plantados antes. E à partir de agora vou ostentar com muitas fotos dos nossos tomates lindos, orgânicos e deliciosos.
Tem tomate de diversos tamanhos, alguns pequenos como uma acerola, outros grandes como um abacate. Alguns são redondos, outros são alongados, outros são irregulares (chegando a esse tomate engraçado que parece que estava morrendo de rir). Alguns tem a pele mais fina, outros, mais grossa. Tem tomate amarelo, laranja, rosa, branco, rajado, bicolor e até vermelho. Eu colhi muito tomate naquele ano. Não sei quantos quilos no total, mas no pico da safra eu colhia uma vasilha dessa acima por dia. Então a gente comia tomate no café, almoço e jantar, compartilhava com a dona da casa, com as amigas e ainda sobrava pra fazer molho. Uma riqueza, minha gente!
Enquanto isso eu também colhia couve e ervas todo dia, aproveitava das uvas da vinhas selvagem (pode até não serem lindas como as uvas de supermercado, mas eram muito gostosas) e nossos jerimuns cresciam tranquilamente. Comecei a colher alguns também, mas eu guardava num lugar escuro e fresco pra comer mais tarde. Outra dica de Dolorès: não coma o jerimum assim que colher, deixe maturando por algumas semanas antes de degustar (não sei se no calor do Nordeste essa dica faz sentido).
A foto abaixo é do quintal da minha vizinha Vigi, que é do Sri Lanka. Vigi e o marido também lavram o quintal e reparem que o quintal dela é coberto com cimento! A danada conseguiu plantar um montão de jerimum num buraco no cimento, onde a terra ficava exposta. Achei tão incrível que fiz esse registro. Ela também plantou tomates nos canteiros dos muros e muitas outras coisas em vasos.

Acho importante dizer que plantar não é a única maneira de ter comida crescendo no quintal. Muitas plantas que crescem de maneira espontânea são comestíveis e a gente nem sabe. Ou sabe e não valoriza. Na foto abaixo, à esquerda, tem dente de leão (as folhas são amargas, mas acho uma delícia nas saladas) e hera de canteiro, que gosto de comer tanto crua quanto cozida. Um dia uma outra lavradora de quintal me disse uma coisa que me marcou muito. Ela falou que quando a gente quer fazer uma horta, primeiro arranca todas essas plantas selvagens, que crescem sem precisar da gente, pra depois plantar umas alfaces que são muito menos saborosas e nutritivas do que as plantas que estavam ali antes. Na hora de preparar nossas refeições, eu sempre misturava as coisas que a gente cultivava na horta com as plantas alimentícias tradicionais. Fica mais gostoso, nutritivo e, muito importante, quanto mais diversidade de vegetais você comer, mais rica fica sua flora intestinal.
Esse girassol belíssimo não cresceu no meu quintal, e sim no lote nos Jardins Operários. Mas achei ele tão mimoso que tive que incluir aqui. Imagine a alegria de olhar pra essa lindeza todos os dias?
E falando nos Jardins Operários, eu nunca voltei de lá sem trazer uma coisinha pra comer na bolsa. Seja ela colhida no nosso lote ou presenteada pelas outras lavradoras de lá. Até que teve um dia, mais pro final do verão, que fui aguar nosso lote e voltei pra casa com tudo isso na foto abaixo. Presente de várias pessoas que plantam do nosso lado. Eu contei 14 variedades de frutas e verduras, mais urtiga (colhida por mim). Antes que achem que cresce umbu por aqui, vou logo explicando que as bolinhas amarelas na foto são um tipo de ameixa chamada “Mirabela”.
Quando cheguei em casa e coloquei tudo em cima da mesa me senti muito, muito rica. E conectada com uma rede de pessoas maravilhosas. Transformei as maçãs em compota, coloquei em vários potinhos e levei de volta pros jardins pra compartilhar com quem ia passando pelo meu lote. Eu nunca vou parar de repetir: horta incentiva a generosidade.

No pico da safra, enquanto nos deliciamos com os frutos que a terra dá, é importante lembrar guardar as sementes pro ano seguinte. Abaixo, sementes de quatro variedades de tomate secando, antes de ser guardada em potes com tampa.
O processo de guardar semente de tomate também me foi ensinado por Dolorès. Primeiro você escolhe os frutos mais bonitos e saborosos. Tem que colher quando estiverem maduros! Aí você separa uma parte das sementes e coloca num recipiente com água durante alguns dias (até aquele plasma que envolve as sementes de tomate se solte e fique boiando na superfície – tudo bem se mofar um pouco). Aí você escorre as sementes usando uma peneira fina, lava bem pra retirar todo o resto do plasma e coloca pra secar em um pedaço de pano, dentro de casa, num local arejado. Dolorès me deu a dica de secar em papel-toalha porque dá pra escrever o nome da variedade de tomate antes e evita misturar sementes ou esquecer quem é quem. Fica a dica. Depois de bem secas, é só guardar em um recipiente bem fechado e usar no ano seguinte (ou na próxima vez que quiser plantar). Assim você consegue ter autonomia e não precisa depender do mercado pra comprar sementes. Lembre: quem controla as sementes, controla a vida.

Aqui na grande Paris se colhe tomate até o início do outono, em setembro. Mas como 2023 foi um ano muito quente (e esse é o novo normal), deu pra colher tomate até outubro. Tem gente que acha isso o máximo e diz que daqui a pouco vai ter tomate até o natal (no hemisfério norte isso significa inverno). Gente, isso é consequência do aquecimento global! Comer tomate e melão nos meses em que antes se fazia boneco de neve pode até parecer uma boa notícia, mas é de um egoísmo e uma alienação sem tamanho, porque se o inverno no Norte vai virar verão, então o verão no Sul vai se tornar um inferno! Vão comer tomate aqui na França enquanto a gente no Brasil vai morrer de fome, de sede e de calor.
Voltando pro outono na minha roça de quintal. Depois de ter nos alimentado generosamente por alguns meses, nossa horta tinha chegado ao final de um ciclo. A terra precisava descansar novamente. Então em outubro a gente colheu os últimos tomates ainda verdes (por causa do frio eles não amadureciam mais no pé) e arrancamos os pés, já bem secos. Íamos fazendo isso aos poucos, à medida que eles iam morrendo. Na foto abaixo, à direita, a horta maior depois de termos arrancado todos os pés de tomate e colhido tudo que estava crescendo ali. Só deixamos as couves, pois elas sobrevivem o inverno e continuam dando folhas de um ano pra outro.

Você tem duas soluções pros tomates verdes. Tem gente que envolve tudo em papel kraft ou jornal e deixa num local mais quentinho da cozinha até eles amadurecerem. Mas você pode fazer geleia de tomate verde ou chutney. Optei pela segunda opção, mas não fui eu quem transformou nossos tomates verdes em chutney, foi nossa amiga Dolorès. Depois ela nos deu uma parte e ficou com o resto. Até o último sopro de vida da horta, ela alimenta as relações de partilhas.
Depois de arrancar todos os pés secos da horta (deixei ali mesmo, pra voltar pro solo) a gente espalha uma camada grossa de folhas secas. Imagine que é um cobertor pra deixar a terra (e todos os bichinhos que moram nela) aquecida durante o inverno. Repare que alguns jerimuns ainda não tinham amadurecido, então a horta menor, onde só tinha jerimum, ficou ainda umas semanas ali. Os legumes de verão (tomate, pimentão, berinjela) desaparecem com a estação, mas jerimum/abóbora é um legume de outono aqui e resiste ao início do frio.

Acima, uma foto do quintal no outono. Reparem que as folhas da árvore já estavam amarelas e o chão estava coberto de folhas secas. No fundo, a hortinha no “saco de plantar” já tinha morrido e só os jerimuns e uma couve-flor ainda seguiam firmes, enfrentando o frio.
Colhi a couve-flor (as folhas também são comestíveis). Colhi os últimos jerimuns (plantei três variedades, como dá pra ver na foto acima). A terra estava coberta com folhas secas, descansando. As sementes estavam todas guardadas, esperando a primavera pra voltarem pra terra. Fiz um café e, mais uma vez, agradeci a generosidade da terra que me deu sustento e forças pra seguir lutando.