O paradigma da mistura – parte 1

Em 2020 escrevi um post aqui chamado “O conceito de mistura”. Mais de dois anos depois, continuo concordando com as palavras desse texto e acabei indo ainda mais longe na reflexão. Por isso voltei hoje com um post em duas partes pra aprofundar a questão e também mostrar, com exemplos concretos, o que seria uma maneira de cozinhar e compor pratos livres do paradigma da mistura.

Estive recentemente no Brasil e fotografei vários dos meus almoços em casa, então vou compartilhar essas imagens pra servir de inspiração. Muitas dessas receitas já foram publicadas aqui, como a fava com tomate, o pirão de maxixe, a quiabada (quiabo no coco), a farofa de banana e couve, a minha feijoada, a farofa de cuscuz, a berinjela de dona Laura, a farofa de beterraba, o jerimum com coco

Feijão macaça, farofa de cuscuz, quiabada, couve refogada e salada de folhas e manga

Vou começar copiando aqui o texto de 2020, porque é preciso ler essa parte pra poder entender o que vai seguir.

Uma das perguntas que escuto com mais frequência é: “Como substituir a carne?” Geralmente feita por pessoas que estão pensando em diminuir ou parar de comer animais, ela diz respeito ao aspecto nutricional da refeição. O que a pessoa está perguntando, na verdade, é: “O que preciso comer no lugar da carne pra ter acesso aos nutrientes que antes eu conseguia através dela?”

Mas pra além da questão nutricional, isso também está relacionado a um conceito que herdamos da culinária que vê animais como comida, o conceito de mistura. E é sobre isso que gostaria de escrever hoje.

O conceito de mistura (proteína animal vista como o componente principal do prato) tem três camadas: nutricional, de status e gastronômica. Vou tratar da nutrição primeiro e das outras em seguida.

Do ponto de vista nutricional carne não é essencial. Vários povos do mundo vivem sem comer animais, além de nós, veganas, e se isso não é evidência suficiente pra você, a ciência já provou que não precisamos comer animais nem o que seus corpos produzem (ovos, leite) pra viver, nem pra ter saúde.  Logo, você pode substituir a carne por…nada. Ela não precisa ser substituída. 

O tradicional pf segue completo sem a carne (feijão + arroz + salada). Feijão é a melhor fonte de proteína que conhecemos, sem os inconvenientes da carne animal, e é uma excelente fonte de ferro. Se você não tem o costume de comer leguminosa todos os dias, essa é a única adaptação que você precisa fazer pra excluir a carne de animais do cardápio (imaginando que o resto da sua alimentação já é variada, com cereais, frutas, verduras e sementes). Lembrando que leguminosas são o grupo do feijão, lentilha, grão de bico, ervilha e fava. Não sabe como prepará-las? Tem várias receitas aqui, só clicar na página “Receitas”. 

Mas se não precisa substituir a carne por nada (mais uma vez, imaginando que você tem uma alimentação variada, que é a recomendação pra todas as pessoas, veganas ou não), por que pessoas não-veganas, e até veganas, olham pra um prato de feijão+arroz+verduras e acham que está faltando algo? Aqui entra a questão de status.

Na escala de valor da sociedade em que vivemos, comida vegetal ocupa uma posição inferior quando comparada à comida animal. Fomos treinadas a ver pedaços de animais e seus derivados como “mais nutritivos”, mas também com “mais status”. É a comida da elite e isso acaba se tornando o modelo que desejamos seguir. 

Mas tem uma pergunta muito importante por trás disso. Quem ganha com o protagonismo de produtos animais na alimentação? E quem ganha quando a estrela do nosso prato passa a ser o vegetal (fresco)? Respostas: a agropecuária e a agricultura familiar, respectivamente. Aqui começamos a entender os interesses financeiros por trás do mito de que carne é essencial e da fabricação dos nossos desejos alimentares carnistas.

E esse mito/manipulação tem uma versão vegana. Entram em cena salsicha, hambúrguer e agora até frango… vegetal, feitos pelas gigantes do agroalimentar. Isso não é apontamento de dedo pra quem gosta desses ultraprocessados, é um convite pra uma reflexão mais profunda.

Ninguém precisa de “carne vegetal” pra retirar animais e seus derivados do prato. A existência desses produtos, longe de ser uma vitória pro movimento vegano, busca nos manter dependentes da indústria. É isso que está em jogo quando a maior produtora de carne de vaca do mundo lança um hambúrguer “vegano”. E tem mais. Isso perpetua outro mito, o de que é caro e difícil ser vegana. Mas tem mais uma consequência que se relaciona com o assunto de hoje. Produtos que imitam animais reforçam o mito de que feijão com arroz e verdura não formam um prato completo. 

E pra entender a última camada desse folhado, precisamos também entender o conceito de mistura do ponto de vista do sabor.

A culinária que vê animais como comida estrutura o prato ao redor do animal morto. É ele que vai receber o melhor tipo de cozimento, o molho caprichado, os temperos especiais. Junta-se a isso o fato que animais são ricos em proteína e possuem o sabor “umami”. Essa palavra japonesa, que pode ser traduzida como “delicioso”, faz referência ao quinto sabor básico (junto com doce, salgado, ácido e amargo). Carne de animais também tem gordura, um componente chave pra realçar o sabor. Muitas moléculas de sabor são lipossolúveis, ou seja, se dissolvem, e se tornam perceptíveis pras nossas papilas, apenas em contato com gordura. 

Nesse tipo de culinária, o animal é o prato principal, o vegetal é acompanhamento. Por isso vegetais não trazem a mesma carga de sabor, pois estão sempre em segundo plano. E ainda assim pedaços de animais e seus derivados são usados pra realçá-los. Basta pensar na função da manteiga, creme, queijo e bacon em muitas receitas de vegetais. Assim somos induzidas a achar o sabor de vegetais inferior. Retirar o animal do cardápio, mas manter esse padrão de culinária, faz com que o prato vegetal não ofereça a mesma satisfação, pois o elemento que carregava todo o sabor sumiu. 

Essa maneira de cozinhar precisa ser superada. Ela cria necessidades falsas (como os ultraprocessados “veganos” que imitam vaca, frango… pra ocupar o lugar da mistura) e nos impede de apreciar o sabor dos vegetais pelo que eles realmente são. Se libertar do conceito de “mistura” (seja um animal ou algo que imite um produto animal) é o primeiro passo numa importante mudança de paradigma. É passar a valorizar o vegetal e quem planta o vegetal. E é ver valor no vegetal pelo que ele é, não pelo que ele tenta imitar. Como diz meu compa de panela e luta Ruan Felix, “nessa revolução lentilhas serão lentilhas”.

Feijão macaça (branco), pirão de maxixe, jerimum cozido e salada de alface e abacaxi

Culinária vegetal não precisa e, na minha opinião, não deve, ser uma culinária de imitação. São tantos sabores, texturas e possibilidades no reino vegetal que seria uma pena se contentar em simplesmente reproduzir pratos com animais em versão vegetal. Vegetais só parecem coadjuvantes pra quem nunca os convidou pra ser a vedete da alimentação. Preparando certo eles viram a estrela do prato e enquanto você se delicia com a comida vegetal bem preparada, o conceito de “mistura” vai parar de fazer sentido: está tudo saboroso ali e você não sente mais falta de nada. 

(Continua no próximo post.)

3 comentários em “O paradigma da mistura – parte 1

  1. não sei se o problema é só meu, mas não consigo comentar nos posts que ainda não têm comentários! por isso vou unir tudo num comentário só-

    li seus guias sobre mistura enquanto almoçava minha salada feita também baseada no seu guia de salada. que generosidade a sua em compartilhar tudo isso, e tão bem colocado e explicado 🙂

    agora, a receita de bolo de jerimum me deixou atentada pra ir correndo arranjar uma moranga. semana passada eu fiz um arrozinho branco acebolado e sua receita de jerimum no coco e meu namorado, de mallorca, ficou alucinado com esse prato, rapou a panela, e voltou do mercado no dia seguinte com uma butternut em cada mão e um olhar pidão. com certeza o bolo vai ser recebido com glória por aqui.

    obrigada pelas receitas e pelos textos <3

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