Um breve curso sobre fazer feira, comer bem e evitar desperdícios na cozinha – parte 1

Vim passar uma temporada de um ano no Brasil, por razões familiares, e estou morando na casa da minha mãe. Aqui somos seis mulheres: minha mãe, minhas três irmãs, uma prima e eu. Mas durante a semana tem uma sétima mulher, a cuidadora da minha mãe, que toma café e almoça com a gente. E à noite frequentemente tem uma sobrinha, que dorme com a minha mãe quatro noites por semana e toma café com a gente no dia seguinte. Dividimos as contas da casa entre nós seis e a parte que me toca é a “comida de feira”: verduras, frutas, coco seco, goma fresca e farinha. Minha irmã mais velha se encarrega de comprar a “comida de mercearia”: feijão, arroz, fubá, óleo, café… Outra irmã se encarrega de comprar castanhas (de caju e do Pará) e sementes (chia, linhaça).

Adoro ir à feira, então é uma missão semanal que, apesar de cansativa, me deixa feliz. Geralmente vou acompanhada de outra irmã, que tem carro e me ajuda a carregar tudo, e frequentamos a feira do meu bairro, que acontece todas as quintas. Nessa feira tem uma mistura de comida trazida da CEASA de Natal com produção de pequenas agricultoras, que cultivam e vendem seus próprios alimentos ali (principalmente ervas e folhas) e comida vinda de sítios das redondezas (principalmente frutas). A farinha de mandioca e a goma fresca vêm de Brejinho, um município que fica a menos de 60 km de Natal e que tem fama de produzir a melhor farinha do estado, vinda da agricultura familiar.

Tem semanas em que vamos à CECAFES (Central de Comercialização da Agricultura Familiar e Economia Solidária), que fica um pouco mais distante da nossa casa, mas que tem a vantagem de ter produtos de ótima qualidade, sem veneno, por um preço muito justo, vindos de pequenos sítios e assentamentos da reforma agrária. Por essas razões, se eu pudesse escolher, compraria sempre na CECAFES. Porém a diferença nos preços, apesar de não ser enorme, acaba pesando no meu bolso no final do mês. (Os vegetais da foto acima vieram da feira do bairro, os da foto abaixo vieram da CECAFES).

Das seis mulheres que moram aqui, mais a sétima que come conosco durante a semana, apenas duas são veganas: minha irmã caçula e eu. Felizmente na nossa casa todo mundo dá muito valor aos vegetais e faz questão de comer frutas todos os dias. Nossos almoços, pelo menos durante a semana, são 100% vegetais. Também não entra leite de vaca aqui em casa e queijo é algo bem raro. Os únicos produtos de origem animal que sempre tem na geladeira são ovo e manteiga. E os únicos ultraprocessados que aparecem na cozinha aqui são leite de soja de caixinha (duas irmãs adoram), molho de tomate pronto e proteína texturizada de soja. Eu não gosto de nenhum dos três, mas fico feliz em ver que 95% da alimentação na casa é integral (no sentido “alimentos inteiros e naturais”).

Depois de meses comprando, armazenando e preparando comida numa casa com muitas pessoas, pensei em vir aqui explicar como me organizo pra dar conta da tarefa. Talvez você precise de dicas pra organizar melhor as compras da semana. Talvez queira incluir mais vegetais na alimentação da sua família e não saiba por onde começar. Talvez você esteja curiosa pra ver, na prática, como é a alimentação 100% vegetal de uma família nordestina, que mora numa capital. Uma família que, apesar de não ter muitos recursos materiais, tem condições de escolher o que come e valoriza a cultura alimentar do seu território.

Planejar a feira

Não faço lista de compras por duas razões. Primeiro, porque já estou bem acostumada com as coisas que preciso comprar toda semana, além das quantidades necessárias pra fazer comida até o próximo dia de feira. E a segunda razão é que a oferta, a qualidade e o preço dos vegetais podem variar de uma semana pra outra. Então se essa semana a couve tá feia, não compro. O tomate subiu muito de preço? Não levo pra casa dessa vez. Encontrei fruta-pão (algo raríssimo)? Então ele vai substituir o cará essa semana. Não ter uma lista me torna mais flexível e adaptável.

Uma dica muito importante na hora de planejar as compras de vegetais da semana é conhecer bem os hábitos e as necessidades da sua família. Você e/ou as pessoas que moram com você almoçam em casa? Gostam de jantar a mesma comida do almoço? Preferem jantar algo mais leve, como uma sopa? Precisam de vários lanches na semana que possam ser facilmente transportados? Também é importante conhecer os gostos das habitantes da casa. Se só uma pessoa gosta de, digamos, caju, não faz sentido comprar vários quilos de uma vez.

Aqui na casa da minha mãe todo mundo toma café da manhã (umas comem em casa, outras levam de casa pra comer no trabalho). Tapioca e mamão não podem faltar na primeira refeição do dia. A estrutura básica do nosso almoço é: feijão + arroz/farinha + verdura cozida, então compro 3 ou 4 verduras “de cozinhar” toda semana. Todo mundo gosta de salada crua, então capricho nas folhas. Não temos o hábito de almoçar com suco, mas adoramos comer frutas junto com o almoço. Também gostamos de lanchar frutas, logo trago da feira toda a fruta que meu orçamento me permite. O jantar, pra gente, é um tubérculo cozido (macaxeira, cará, inhame ou batata doce) ou cuscuz. Uma vez por semana faço sopa. Então ao invés de comprar primeiro e pensar no que vou fazer depois, faço o caminho inverso: trago da feira o que é necessário pra mantermos nosso padrão alimentar, que é alinhado com a cultura alimentar do nosso território.

Quando você tiver entendido quais vegetais precisa pra atender as necessidades e o estilo de vida das pessoas que moram com você (ou as suas, se morar sozinha), vai ficar muito mais fácil saber o que comprar na feira, sem lista. E se o objetivo for aumentar a quantidade de vegetais que você(s) come(m), vai ficar mais fácil visualizar as áreas que podem ser melhoradas. Talvez vocês estejam comendo pouca fruta. Talvez precise incrementar a salada crua do almoço. Talvez fazer uma sopa de legumes pro jantar seja o caminho. Veja o que faz sentido na sua rotina, respeitando seus gostos (a ideia da sopa só vai funcionar se você gostar de sopa, obviamente).

Tudo fica muito mais simples (e automático) quando fazer feira e cozinhar se tornam rotina pra você. Mas deixa eu te ajudar contando como faço aqui em casa, pois é sempre mais fácil entender um sistema quando ele é exemplificado com a prática.

Eu sei que preciso comprar, toda semana:

-Temperos frescos (cebola, alho, tomate, cebolinha, coentro, limão, pimenta de cheiro)

-Verduras pra salada (alface, rúcula, pepino, tomate)

-Verduras pra cozinhar (escolho 3 ou 4: couve, repolho, chuchu, batata, banana da terra, beterraba, cenoura, quiabo, maxixe, jiló, jerimum, batata doce…)

Tubérculos pro jantar (1 porção de macaxeira, 1 porção de cará ou inhame, 2 porções de batata doce)

-Frutas pro café da manhã, almoço e lanches (banana, mamão, abacaxi + as que estiverem na safra)

Tenho essas cinco categorias na mente, que são as que correspondem às necessidades da minha família, e vou comprando por blocos, assim não esqueço nada, mesmo sem lista, e posso adaptar as compras da semana de acordo com os preços e as ofertas do dia.

Sobre quantidades. A experiência me fez ter noção de quanto era necessário toda semana. Se faltava banana antes da próxima feira, eu recalibrava a quantidade de palmas compradas semanalmente. Se a alface estava estragando antes de ser comida, era porque eu tinha comprado demais e na semana seguinte, comprava menos.

Dica importante: antes de sair pra feira, olho o que ainda tem na geladeira, congelador e fruteira. Às vezes ainda tem goma ou macaxeira congelada e não vai precisar comprar essa semana. Às vezes ainda tem alho, mas não é suficiente pra semana toda e vou ter que completar. E por aí vai.

Evitando desperdícios com frutas e verduras

Talvez seja óbvio pra quem tem o hábito de cozinhar todo dia e fazer feira toda semana, mas se não for o seu caso, lá vai. Escolha frutas em diferentes níveis de maturação. Eu compro 4-5 palmas (pencas) de banana por semana, dependendo do tipo da banana (prata é menor, pacovan é maior). Pra não correr o risco de ter 40 bananas maduras ao mesmo tempo num dia, 30 bananas apodrecendo dois dias depois e zero banana no final da semana, eu compro uma penca madura, outra “de vez” (aquele ponto entre madura e verde) e duas verdes. Assim vão amadurecendo durante a semana e sempre tem banana no ponto. Faço o mesmo com o mamão e o abacaxi, frutas que compro toda semana. Também compro uma mistura de frutas verdes e maduras (por exemplo, uma melancia bem madura pra comer no dia, um melão que vai estar maduro daqui a dois dias, dois abacates que só vão amadurecer no final da semana…) e vamos comendo acompanhando a maturação delas.

Às vezes compro uma quantidade grande de uma fruta madura de propósito, pra congelar e fazer vitamina durante a semana. É o caso da banana. Tem sempre promoção de bananas super maduras na feira. Compro algumas palmas, a casa três semanas, mais ou menos, e assim que chego em casa descasco, corto em rodelas e congelo em porções individuais. Também faço isso com frutas grandes, como jaca. E se percebi que o mamão ou o abacate amadureceu todo de uma vez essa semana, congelo uma parte pra não correr o risco de ter desperdício e uso em vitaminas. Isso funciona bem com frutas boas pra vitamina e suco. Congelo manga, acerola, umbu, graviola… Sei que muita gente compra polpa de fruta congelada pra fazer suco, mas as embalagens de plástico (cada porção de polpa vem num saquinho) me incomodam. Não vai ser tão prático quanto as polpas congelada, mas garanto que vai ser muito mais barato comprar fruta madura na feira e congelar suas próprias polpas em casa.

Quanto às verduras, minha dica principal pra evitar desperdícios é: faça sopa. Os legumes que estão murchando na gaveta da geladeira e os restos de legumes cozidos de outros almoços são ótimos candidatos pra virar sopa. Se tiver um restinho de feijão, então, sua sopa ficará ainda mais gostosa e nutritiva.

No próximo post vou compartilhar 1-como preparo o cardápio da semana quando chego da feira; 2-explicar como incluir o ato de cozinhar no seu dia-a-dia, sem precisar passar horas no fogão todos os dias e 3-dar ideias pra resolver o que parece ser o maior problema das pessoas que querem ser veganas, ou acabaram de se tornar veganas: o que preparar pra passar no pão (no meu caso, na tapioca)?

Construtores e Defensores do Território

No final de janeiro fui convidada pela Teia dos Povos pra participar da Formação de Construtores e Defensores do Território, como formadora. Foi uma honra e uma alegria imensas aceitar fazer parte de algo tão inspirador e importante e hoje vim compartilhar um pouquinho do que vivi na semana em que estive no Assentamento Terra Vista, no sul da Bahia, onde aconteceu a formação.

Dei uma aula sobre a Palestina (pra explicar o contexto colonial – a colonização israelense da Palestina e a luta do povo palestino pela vida, por liberdade e por autodeterminação- e o que isso tem a ver com nós, aqui no Brasil), outra sobre “Descolonizar as práticas alimentares” e contribuí com o curso “Gastronomia do bioma – Mata Atlântica/Cabruca”. Também pude assistir a algumas formações políticas enquanto estive lá e depois de tantas conversas que alimentaram minha esperança e enriqueceram minha luta, voltei pra casa com a certeza que aprendi tanto, ou mais, do que ensinei.

As fotos acima foram da aula sobre a Palestina, que acompanhei de uma exposição com 45 fotos do fotógrafo palestino de Gaza Mohammad Zanoun. Conheci ele através de Anne, pois ambas fazem parte do mesmo coletivo (Activestills). Não foi fácil falar da Palestina enquanto Israel comete um genocídio contra a população de Gaza mas é muito importante fazer esse trabalho. As fotos são tão fortes que deixei muitas viradas pra parede. Só desvirei depois de dar a oportunidade pras pessoas que não estavam se sentindo bem emocionalmente de deixarem a sala de aula antes. Mas pra não falar somente dos horrores da ocupação israelense na Palestina e seu projeto de limpeza étnica, li vários poemas de resistência escritos por poetas palestinas e palestinos. Eu nunca tinha lido poesia (li até slam!) publicamente e emprestar minha voz à resistência palestina foi uma experiencia que me marcou muito. E quem estava naquela aula também saiu impactada.

(As fotos acima foram feitas por Alass Derivas e você pode acompanhar o trabalho dele aqui.)

Visitei o Assentamento Terra Vista (ATV) pela primeira vez há uns 6 anos e ele continuava tão lindo quando nas minhas lembranças. Contar a história desse lugar merece um post inteiro, então hoje vou só recomendar o documentário feito pelo Brasil de Fato (trailer aqui), que estou ansiosa pra ver, além de recomendar seguir o ATV aqui. Mas você também pode ler sobre a história do ATV na página da Teia dos Povos. Falar sobre a Teia dos Povos, essa aliança Preta, Indígena e popular, também exige tempo e carinho, então vou recomendar que vocês sigam a Teia dos Povos naquela rede social que me expulsou.

Não fiz fotos da aula sobre “Descolonizar as práticas alimentares”. Mas lembrei de fazer algumas fotos da aula prática dentro do curso de “Gastronomia do bioma”. Fomos guiadas por seu Loro, um agricultor assentado, durante uma manhã inteira dentro da mata. O objetivo era identificar os matos de comer (PANCs) e os de curar e seu Loro nos mostrou a riqueza da natureza naquele canto do mundo. Ele também abriu cacau e cupuaçu pra gente chupar e até mostrou como tirar o palmito da juçara.

Nunca tinha dado uma aula dentro da mata e, sinceramente, agora estou ainda mais convencida de que esse é um lugar incrível pra aprender.

Não vai dar pra contar tudo que aconteceu naquela semana num post. Vou precisar de mais algum tempo pra terminar de absolver tanto conhecimento e depois traduzir com minhas palavras, acrescentado de minha vivência e sentimentos. Mas não posso deixar de falar das pessoas que conhecei durante a formação. Não tenho foto de todo mundo, porque estava quase sempre imersa em conversas tão ricas que tirar o celular da bolsa e fazer fotos quase nunca cruzava a minha mente. Queria ter voltado com o retrato de todas as pessoas que conheci e que deixaram uma marca no meu pensamento e coração mas só tenho algumas poucas.

Um cheiro grande pra Airam, que me levou pra tomar banho de rio, Tulase, que preparou falafel e me deu conselhos preciosos, Suélen, que foi uma ajuda valiosa pra montar a exposição fotográfica e fazer os vídeos pra Teia (duas vezes!), seu Loro, nosso guia e professor, e Daniel, que me acolheu na noite que cheguei, me deu uma aula sobre a luta da população de rua em Belo Horizonte, da qual ele faz parte, e trouxe ideias pra enriquecer os vídeos que fizemos. Tem muito mais gente do assentamento, da Teia ou de passagem que conheci naquela semana e que estão no meu coração mas, como expliquei, voltei sem fotos desse povo lindo.

Felizmente lembrei de pedir uma foto com Kiune (obrigada por ser nossa fotógrafa, Airam!), minha grande amiga e companheira de luta há vários anos. Ela é de João Pessoa mas mora no assentamento e faz parte da Teia dos Povos. Kiune é uma das militantes antiespecistas mais inspiradoras que conheço. (Se quiserem conhece-la melhor, vejam as aventuras dela aqui).

Espero que não se passem outros 6 anos pra eu voltar ao ATV, nem pra rever seu Loro, Joelson, Solange, Deysi e todas as pessoas maravilhosas que povoam aquela terra encantada.

Gostaria de terminar esse post agradecendo as pessoas que apoiam o meu trabalho e que possibilitam não só a existência desse blog mas também minha participação em tarefas da militância, como essa formação. (Quem quiser apoiar também, é por aqui.)

*Foto da esquerda: eu organizando a aula prática de reconhecimento de matos de comer com seu Loro, na frente da casa dela, junto da vizinhança. A participação do gatinho na conversa foi decisiva. Foto da direita: a casa, no assentamento, onde fiquei hospedada.

Tour político-vegano em Natal

Meu recesso de início de ano acabou essa semana, e junto com a retomada das atividades militantes (tenho muita coisa pra contar, aguardem!) coincidiu de um amigo alagoano da minha sobrinha Luna chegar pra visitar Natal. E, olha como são as coisas, Giovanni acontece de ser um leitor de longa data do blog e apoiador do meu trabalho desde o início da campanha no Apoia-se. A gente tinha se encontrado uma primeira vez em 2019, durante o primeiro ENUVA (Encontro Nacional da União Vegana de Ativismo), em Recife, mas não deu tempo de conversar daquela vez.

Luna, que é vegana, historiadora e apaixonada por Natal, tinha me prometido um “rolezinho natalense” desde o ano passado. Segundo ela, é o passeio que “o jovem natalense descolado faz”. Como faz tempo que deixei de ser jovem e nunca fui descolada, fiquei curiosa pra ver a minha cidade pelos olhos dela. Então combinamos de fazer isso quando Giovanni (que também é vegano e historiador!) estivesse aqui, porque já juntava a minha vontade de redescobrir minha cidade com a nossa vontade de mostrar a cidade pra ele. Deu certinho.

Passeamos pelo centro e fiquei muito triste ao constatar que a vida nessa parte da cidade está desaparecendo. Quando eu era adolescente, antes de ir morar no exterior, essa parte de Natal fervilhava de atividades e pessoas. Quase tudo era resolvido ali. Compras de qualquer tipo? Tinha. O único restaurante macrobiótico (e quase todo vegetariano) da cidade? Era lá. O último cinema de rua? Lá também. (Inclusive o último filme que vi naquele cinema foi “Billy Elliot”) Precisava de uma garrafada ou lambedor pra tosse? Tinha as barracas das erveiras e erveiros. Pilha pro relógio? Era só ir na rua das relojoarias. Tinha os bares boêmios do Beco da Lama. Esses últimos ainda fazem resistência, mas o resto ou já desapareceu ou está caminhando pra isso.

Mesmo com a tristeza de ver os espaços públicos abandonados, porque quase tudo migrou pra dentro de shopping centers, o dia foi ótimo. Além do centro histórico de Natal, onde tomamos mate, visitamos sebos e batemos perna nos becos, fomos almoçar no Libre, um café vegano (melhor comida vegetal da cidade!), e passeamos pela Mata Atlântica, dentro do Bosque dos Namorados (onde comemos ubaia doce, apanhada do chão).

O “rolezinho natalense” proposto pela minha sobrinha me inspirou e me deixou com muita vontade de propor tours no estilo do que eu fazia em Paris. Como vou chamar Natal de casa até o final do ano, é uma possibilidade pra 2024. Depois de ter guiado pessoas na Palestina e na França, ia ser gostoso guiar pessoas na minha cidade. Se a ideia for pra frente, volto pra contar. Mas se antes disso você aparecer por Natal, me avisa 😉

Depois de nos despedirmos de Giovanni, Luna e eu terminamos o rolezinho natalense em casa, tomando café com soda preta junto com Roberta (a cuidadora da minha mãe). Pra quem não conhece, “soda” (ou “sorda”) é um alimento delicioso, degustado no lanche, com uma textura entre o bolo e o biscoito, feito somente com farinha de trigo, mel de engenho (melado), especiarias e, às vezes, bicarbonato de sódio. Uma das comidas típicas do meu território que são tradicionalmente vegetais, mas que está caindo no esquecimento e desaparecendo, como é o caso de quase todo alimento tradicional. A resistência do centro histórico, apesar de pequena, existe, mas me pergunto quantas pessoas participam da resistência ao desaparecimento da nossa cultura alimentar.

Enquanto degustava minha soda pensei em como gostaria de compartilhar minha cultura alimentar com outras pessoas. Aí lembrei que foi exatamente esse sentimento, de querer compartilhar as belezas e os sabores ameaçados de um lugar, que me fez criar os tours na Palestina… A vida dá muitas voltas, mesmo.

PS Obrigada à Luna pelo rolezinho e pelas fotos que aparecem aqui. Obrigada a Giovanni pelas conversas, pela troca de conhecimentos e pelo apoio ao meu trabalho (e pela foto da ubaia doce).

O fim de um ciclo

Primeiro, deixa eu contar que semana que vem estarei no Brasil. Viajo daqui a alguns dias e tenho planos de ficar um ano inteiro em terras potiguares. Estou indo por razões familiares, mas vou aproveitar o tempo que estiver lá pra participar da luta antiespecista na minha cidade, Natal, e pra estar mais presente nas atividades da UVA.

Então estou fechando um ciclo aqui na França e não está sendo fácil. O contexto social no país está cada vez mais difícil pra quem é militante de esquerda. A conjuntura política atual está sendo instrumentalizada pra intensificar o racismo de Estado e acelerar a virada em direção ao fascismo que vemos mundo afora e que nós, que estamos aqui, vemos de perto e sentimos nos nossos corpos. E acompanhar o genocídio cometido por Israel contra a população palestina, que já entrou na sexta semana, enquanto a comunidade internacional se recusa a tomar toda e qualquer medida que possa impedir esses crimes de acontecerem, e a França segue apoiando politicamente e militarmente Israel é desesperador. Mas não me surpreende. Colonialistas são solidários entre si.

Por todas essas razões, estou feliz de sair daqui e de encontrar minha família brasileira. Minha experiência diz que se eu estiver comendo tapioca e macaxeira o sofrimento se torna um pouco mais suportável. E estar do lado de minhas irmãs e sobrinhas, também ajuda. Mas, por outro lado, não estou indo pro Brasil pra tirar férias prolongadas. Não será um ano sabático, longe disso. Outra batalha me espera do lado de lá do oceano Atlântico: acompanhar minha mãe num estado avançado de Alzheimer. E talvez essa seja a batalha mais difícil que eu já enfrentei. Eu sei o que me espera na minha terra, mas ainda não sei como meu coração, já tão angustiado, e meu corpo, que anda cansado e machucado, reagirão.

Na próxima vez que abrir esse blog pra escrever um post, estarei na casa da minha família. Com um pouco de sorte (minha) o choque emocional não será tão grande e eu poderei compartilhar coisas que trazem esperança. Porque, por mais que atravessemos tempos sombrios, me recuso a abandonar a esperança. Como disse Angela Davis, quando ela falou recentemente sobre a Palestina: “Não podemos abandonar a esperança, porque a esperança é a condição de todas as lutas.”

(A foto acima foi feita em um santuário antiespecista e anarquista no interior da França. Visitei esse lugar no final de setembro e o que vi por lá, e os encontros que fiz, me encheram de esperança.)

Sobre a Palestina e o seu povo

Se você descobriu esse blog recentemente talvez não saiba que a Palestina ocupa uma parte importante da minha vida. Visitei a região pela primeira vez em 2007 e morei lá de 2008 a 2013. Em seguida foram mais cinco anos, de 2014 a 2018, morando lá uma parte do ano, quando eu organizava tours políticos de solidariedade (veganos!) pra pessoas brasileiras que queriam conhecer a Palestina e a luta por autodeterminação do seu povo.

Por razões pessoais, não me encontro em condições de fazer análises políticas atuais sobre a colonização israelense na Palestina e seu projeto de Apartheid, limpeza étnica e genocídio. Mas quem conhece o meu trabalho sabe que sou uma militante muito comprometida com a causa palestina e que minha militância acontece na vida real, no terreno, não (apenas) na internet. Infelizmente, em tempos de ativismo de redes sociais, parece que se você não postar sobre X, então você não se importa com X e recebi várias críticas, mais ou menos explícitas, nas últimas semanas.

Estou cansada e abatida demais pra colocar pra fora, de maneira elegante e coesa, a minha frustração com esse tipo de comportamento. Quem quiser pensar que eu deixei de militar simplesmente porque não uso mais redes sociais, ou que parei de me importar com o povo palestino e sua luta por libertação porque não fiz um pronunciamento recente aqui, paciência. E quem mandou mensagens pedindo, de maneira educada e carinhosa, pra eu voltar a fazer conteúdo informativo sobre a Palestina porque “minha voz faz falta”, peço compreensão. Estou passando por um momento pessoal muito difícil, tanto por questões familiares quanto relacionadas à Palestina, e atravessar cada dia tem sido uma batalha. Mas tem muita gente fazendo isso no Brasil e no mundo (pra quem fala inglês) e tenho certeza que o mais acertado é ouvir vozes palestinas. Vou deixar algumas recomendações aqui.

Tem o trabalho da palestina, nascida no Brasil e que mora atualmente no Canadá, Hyatt Omar Tem também o grupo Juventude Sanaud e o Monitor do Oriente, uma “instituição independente de pesquisa de mídia fundada para promover uma cobertura justa e precisa das questões do Oriente Médio”. Em Inglês (mas nada que a ferramenta de tradução do Google não possa resolver pra quem não domina essa língua) recomendo o site independente de notícias The Electronic Intifada, que é palestino e, além de notícias, traz análises excelentes. E minha última recomendação é +972 Mag. Se trata de um site de notícias, também independente, mas israelense, de esquerda e anti-sionista.

Pra além das recomendações, eu vim aqui hoje pra fazer uma tentativa modesta. A desumanização do povo palestino continua sendo uma arma utilizada por Israel, e repetida pela grande mídia e governos mundo afora, pra impedir que a gente se solidarize com essas pessoas, justificando assim a sua dominação, opressão e abrindo caminho pro genocídio (anunciado e televisionado). Isso não foi algo inventado por Israel, basta estudar minimamente a História pra perceber que todo povo oprimido é desumanizado pelos seus opressores. Então eu vim lembrar vocês das muitas entrevistas e depoimentos de pessoas palestinas que publiquei aqui, além do relato de brasileiras que foram à Palestina comigo. E se você acaba de descobrir o Papacapim, aqui está um convite pra descobrir esse extenso material que há anos mora aqui, mas que não perdeu a relevância.

Começo com a série, em três episódios, “Histórias palestinas”, onde entrevistei dois amigos e uma amiga palestina. Essas pessoas, todas refugiadas, contam suas histórias de vida e como a ocupação israelense impacta absolutamente todos os aspectos do seu dia-a-dia e determinou o lugar onde nasceram e estão criando suas crianças.

Mustafa e Mohamad Alafandi

Meu nome é Mohamad Alafandi, tenho 76 anos e moro no campo de refugiados de Deheisha, na região de Belém. Nasci em Dayr Aban, a 21 km de Jerusalém, no que então ainda era a Palestina. Minha cidade resistiu enquanto pôde à invasão sionista, o que custou a vida de quarenta habitantes. A gente só tinha dois fuzis e os homens se revezavam pra defender nossas casas. Mas o exército sionista era muito mais bem equipado. No dia 18 de outubro de 1948 os soldados do recém-criado estado de Israel invadiram minha cidade e obrigaram a população a partir sem poder carregar absolutamente nada, abandonando nossas terras, casas, animais e pertences, deixando toda a nossa vida para trás. Eu tinha 14 anos quando isso aconteceu. Meu pai não suportou tão duro golpe e sofreu um derrame que o deixou paralisado. Fui obrigado a carregar meu pai nas costas durante todo o tempo em que caminhamos. Minha família errou durante um ano e meio, andando de cidade em cidade procurando um lugar para viver. Meu pai morreu um ano depois de ter sido expulso de sua cidade natal e eu, como filho mais velho, tive que tomar conta da minha mãe e dos meus irmãos. Acabamos chegando em Deheisha, um dos inúmeros campos criados pela ONU. Leia a continuação do depoimento aqui

Mustafa (à direita) com o pai, Mohamad, e o filho caçula, Aissa. Três gerações de refugiados.

Khoulud Ayyad

A vida no campo de refugiados nunca foi fácil, mas lembro de um período, quando eu era criança, que as coisas eram ainda piores. Durante a primeira intifada (entre 1987 e 1993) os soldados israelenses entravam no campo o tempo todo e muitas pessoas foram assassinadas. Todo mundo tinha medo de sair de casa e levar um tiro. Lembro que um dia, eu devia ter uns 8 anos, vi dois jovens correndo no campo. Pensei que os soldados estavam os perseguindo então abri a porta de casa e comecei a agitar os braços, chamando eles pra se esconderem ali. Quando meu avô viu a cena me colocou pra dentro e fechou a porta imediatamente. Depois explicou que aqueles jovens não eram palestinos fugindo de soldados israelenses e sim soldados israelenses a paisana correndo atrás de palestinos.Leia a continuação aqui

Tareq Jawabrah

Meus pais nasceram em Iraq Al-Manshya, um cidadezinha no litoral da Palestina histórica, entre Jafa e Gaza.  Meu pai era agricultor e junto com a família cultivava laranjas e outras frutas cítricas. Em 1948, quando as tropas sionistas invadiram nosso vilarejo, meu pai tinha 20 anos. Fazia já algum tempo que as notícias de expulsões e massacres de palestinos por soldados sionistas chegavam por lá e algumas pessoas tinham abandonado suas casas com medo do que iria acontecer quando a vez de Iraq Al-Manshya chegasse. Toda a população recebeu ordem de ir embora, mas muitas pessoas se recusaram a abandonar suas terras. Os que tentaram ficar foram executados e meu pai perdeu muitos amigos e um irmão. A família do meu pai foi pra Hebron (no sul da Cisjordânia). Quando eles chegaram lá, os habitantes da cidade se compadeceram com o triste destino dos refugiados e os acolheram em suas casas. Alguns meses depois eles escutaram que a ONU estava reagrupando o pessoal em campos de refugiados, na espera do retorno. Foi assim que a família da minha mãe, que também é de Iraq Al-Manshya, e a do meu pai vieram parar em Al Arroub. Um dia, em uma viagem organizada pela escola, fomos à Jafa ver o mar (a antiga cidade de Jafa foi anexada à Tel Aviv). No caminho eu vi uma placa indicando Qiryat Gat, a cidade israelense construída sobre as ruinas da nossa cidade, e pedi ao motorista pra passar por lá. Quando vi aquelas pessoas, que moram hoje nas terras que um dia pertenceram ao meu pai, olhando pra mim como se eu fosse um estrangeiro que não tinha direito nenhum de estar ali meu sangue ferveu e a revolta tomou conta de mim.Continua aqui

yemen e tareq

Muitas das pessoas que participaram dos tours políticos que organizei na Palestina (antes que perguntem, não faço mais esses tours) compartilharam esse vivência aqui no blog e eu também escrevi bastante sobre essas viagens de solidariedade. Além dos relatos, vocês podem ver muitas fotos da Palestina, que tem paisagens lindas, e da comida maravilhosa que degustamos por lá. Seguem alguns desses relatos (mas pra ver tudo, clique na página Receitas e dentro dela, na seção Outros)

“Se eu tivesse optado por um turismo convencional, mesmo tendo uma visão crítica a respeito da ocupação israelense de terras palestinas, muito provavelmente teria voltado com percepções bem diferentes do que esse tour político me proporcionou. Cheguei um dia antes do combinado para me encontrar com o grupo e fiquei hospedada em Jerusalém. Algumas voltas no entorno, vendo israelenses e alguns palestinos na mesma cidade, me deram a falsa impressão de normalidade, de que ambos ocupavam o mesmo espaço sob condições iguais.

Andando apenas em transportes usados por turistas, eu provavelmente não teria percebido que alguns ônibus são reservados apenas para palestinos e outros para israelenses, o sinal mais óbvio de apartheid. Andando pelas ruas e observando as construções, eu certamente acharia que era opção estética ter ou não caixas d’água no teto, ao invés de saber que palestinos não têm água disponível 24h, ao contrário dos israelenses, mesmo essa água tendo sido captada em terras palestinas. Se estivesse em uma excursão tradicional, em ônibus de viagem, teria passado por vários “check points” sem perceber, pois esses ônibus não seriam parados. Mais ainda, eu teria percorrido vários quilômetros de estrada cortando terras palestinas e não saberia que na maioria daquelas estradas só é permitido o tráfego de israelenses. Teria visto as imensas colônias israelenses em terras palestinas e concluído ser apenas mais uma cidade. Teria visitado o Mar Morto sem ver um só palestino e achado que eles não frequentavam outros resorts por opção.” Continue lendo o post “Estou disposto a fazer a minha parte”

“Pude dividir um pouco da Palestina que me emociona e me inspira com um grupo de pessoas maravilhosas, passei 14 dias incríveis e fiz um dos trabalhos mais significativos da minha vida. E além dos cinco brasileiros que decidiram embarcar nessa aventura o acaso trouxe uma islandesa pro nosso grupo, porque loucura pouca pra mim é bobagem. Nosso grupo era um óvni. Imaginem eu explicando a empreitada pros palestinos: “Opa! Tudo certinho? Eu tenho um blog de culinária vegetal em Português e estou guiando uns brasileiros, não, essa daí é islandesa (não, nem irlandesa nem finlandesa, islandesa da Islândia), num tour político-gastronômico pela Palestina e nós gostaríamos de bater um papinho sobre o papel das mulheres no movimento de resistência popular contra a ocupação. Pode ser?”. Juntos vivemos coisas intensas, emocionantes, revoltantes e inspiradoras. Nas fotos vocês podem ver alguns dos lugares que visitamos e algumas das pessoas, principalmente palestinas, mas também israelenses,  que encontramos durante essas duas semanas.” Essa sou eu falando e o relato do primeiro tour que organizei, em 2014, está aqui

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No tour do ano seguinte, participamos da colheita de azeitonas.

“Outubro é a época da colheita de azeitonas aqui na Palestina e é, na minha opinião, o melhor mês pra estar aqui. Eu não sabia nada sobre o cultivo de azeitonas nem sobre a produção de azeite até ter me mudado pra cá, em 2008. Fiquei encantada quando descobri a parte fundamental que a oliveira tem na cultura e na vida dos palestinos. Talvez o mais impressionante pra mim foi descobrir que não existem ‘cultivadores de azeitonas’. Como oliveiras precisam de pouquíssimo cuidado e só recebem água da chuva, os ‘donos’ das oliveiras têm todos uma profissão, que eles exercem durante as outras cinquenta semanas do ano. Durante duas semanas, no início ou no final do mês (de acordo com o amadurecimento das azeitonas), professores, médicos, pedreiros, advogados, estudantes, psicólogos, sociólogos, eletricistas, cozinheiros… todos largam temporariamente suas ocupações e vão pro campo. A família inteira, muitas vezes três gerações juntas, participa da colheita. Uma parte das azeitonas será marinada durante várias semanas e elas serão degustadas acompanhando o café da manhã típico daqui. Mas a maior parte delas vai ser prensada e virará azeite, que aparece na mesa familiar durante o ano inteiro.” O post completo está aqui

E falando em colheita, tem dois posts, de 2012, muito especiais pra mim. O primeiro mostra um pouco do que é esse momento tão importante pra cultura e economia palestina. E outro, no mesmo ano, onde compartilho um momento mágico: meu amigo Tawfic me levou pra uma prensa e pude ver como as azeitonas são transformadas em azeite.

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“O centro da produção de azeite palestino fica em Nablus, no norte, e lá tem mais prensas do que aqui. Porém, o azeite de Belém e das duas cidades vizinhas (Beit Jala e Beit Sahour) tem fama de ser o melhor de toda a Palestina. Meu amigo Tawfic explicou que essa região tem um micro clima perfeito pra produção de azeitonas e por isso o sabor do azeite daqui é superior. Eu posso confirmar: o azeite de Tawfic é o melhor que já provei na vida! Ele tem uma nota verde intensa, com um gosto de mato depois da chuva (nunca comi mato depois da chuva, mas tenho certeza que o gosto é idêntico ao cheiro), mas ao mesmo tempo é aveludado e tão cremoso que chega a ser (pasmem!) amanteigado. É difícil descrever um sabor tão complexo, só mesmo provando pra entender.” O post completo, com fotos do passa-a-passo, está aqui

Pra ver muitas fotos de lugares lindos e pratos típicos deliciosos, é só clicar aqui.

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Na seção Viagens (dentro da página Receitas) tem vários posts mostrando as belezas da Palestina e seu povo acolhedor. Vou só citar alguns, pra esse post não ficar ainda mais longo do que já está.

Tem um post sobre o Vale do Jordão, quando fiquei alguns dias plantando oliveiras em uma comunidade beduína.

E outro sobre o natal em Belém, que era onde eu morava. Imaginem comemorar o nascimento de Jesus…na cidade onde ele nasceu!

Espero que vocês reservem um tempinho pra ler esses relatos, admirar as fotos, salivar diante das comidas e se informar, através das fontes que recomendei. Termino esse post com mais imagens da Palestina, imagens que vocês não verão nesse momento, mas que não deviam sair da nossa mente. A Palestina é um território riquíssimo em história, cultura, culinária e tudo isso, além dos milhões de vidas humanas, está ameaçado.

As histórias que a comida conta

Começou dois anos atrás, no verão. De repente olhei pro meu jantar e me dei conta de que os alimentos naquele prato tinham chegado até a mim por diferentes caminhos, através das mãos de amigas e camaradas. Não lembro exatamente do conteúdo daquela refeição, mas sei que naquele momento vislumbrei pela primeira vez os fios que partiam do meu prato e me conectavam a várias pessoas conhecidas. Foi quando eu escutei a história que aquela comida contava e percebi que tinha uma teia de solidariedade local ao meu redor. Lembro da alegria e gratidão que senti e da certeza de ser uma pessoa extremamente afortunada. 

Desde então esse é um exercício que repito com frequência quando estou comendo e eu sempre me dizia que um dia iria fotografar minhas refeições e escrever as suas histórias, pra compartilhar e não esquecer. Só que eu tenho muitas, muitas ideias ótimas que nunca saem da minha cabeça. Até que uns dias atrás eu estava jantando e ao contar pra Anne de onde vinha cada um daqueles ingredientes vi que eram tantas pessoas envolvidas que não resisti: interrompi o jantar, fui buscar o celular (na nossa casa celular é proibido na mesa – e na cama) e fiz uma foto. Fotografei também o almoço e o jantar do dia seguinte e vim aqui contar as histórias dessas três refeições.

Salada: os tomates vieram da nossa horta de quintal e da horta de uma amiga, a azedinha (escondida embaixo da alface) veio do lote que cultivamos coletivamente (junto com nosso coletivo) nos Jardins Operários, o pepino foi comprado numa loja de orgânicos e a alface veio do lixo dessa mesma loja de orgânicos.

Pausa pra explicar que toda semana buscamos comida no lixo da loja de orgânicos, comida perfeitamente comestível, apenas um pouco murcha ou machucada, mas que é jogada fora. Também pegamos vegetais de descarte nas feiras livres da nossa cidade, mas nesse caso os feirantes deixam a gente pegar antes de jogar no lixo. (O que não é o caso na loja de orgânicos).

O prato principal foi macarrão, comprado na loja de orgânicos de onde pegamos comida do lixo, com cogumelos e espinafre, ambos vindos do lixo da loja de orgânicos, tofu do mercado chinês do nosso bairro (feito aqui, com soja não-transgênica) e creme de castanha de caju, que veio de uma ocupação aqui no nosso território. Essa okupa recebe doações de comida que passou da data de validade, mas que ainda pode ser consumida, e distribui pra toda uma rede de pessoas precarizadas, incluindo nós, do coletivo. Desde o ano passado comemos pasta de castanha de caju, orgânica (!!!!), pois a doação foi gigante!

De sobremesa teve dois tipos de ameixas: as alongadas foram apanhadas no chão dos Jardins Operários (é época de ameixas e nos Jardins tem muitas ameixeiras, então o solo em vários lugares está coberto com essas frutas) e as redondas, menores, vieram da nossa vizinha de lote. As uvas foram presentes da minha vizinha e vizinho, um casal do Sri Lanka que compartilha o nosso entusiasmo por plantar (só que a horta delas é muito maior do que a nossa!). A gente conversa muito por cima da cerca que separa nossos quintais e Vigi, a vizinha, já me deu vegetais, sementes, mudas e conselhos. Na manhã daquele dia eu estava tomando café curtindo um solzinho quando a vizinha e o vizinho me chamaram por cima da cerca pra me oferecer um pouco das uvas que estavam colhendo.

Depois do jantar gosto de ir pra cama com uma caneca de chá de ervas (infusão), que degusto enquanto leio. É um ritual que adoro e aqui fiz chá com a verbena-limão que tinha colhido naquele dia no lote de Chabha, nos Jardins Operários. Chabha, uma senhora argelina, precisou viajar e perguntou se alguém poderia cuidar da horta dela durante a sua ausência. Como já faz um certo tempo que comecei a ajudá-la a regar a horta (é pesado pras costas dela ir buscar água e regar tudo sozinha), estou cuidando do pedacinho de terra dela durante o mês de agosto. E como ela tem um pé de verbena-limão, uma das minhas infusões preferidas, sempre que passo por lá colho uns raminhos pra tomar à noite.

No dia seguinte, depois do café da manhã, Anne foi regar as plantas do apartamento de uma camarada do coletivo, que saiu de férias, e na volta passou por uma das feiras livres da cidade. A feira já tinha acabado e os feirantes estavam descartando os restos. Já disse que temos o costume de pegar comida de descarte na feira e foi exatamente isso que ela fez. A gente só anda de bicicleta por aqui e temos bagageiros sólidos pra poder trazer pra casa a comida que cruza o nosso caminho. Aqui ela pegou uma das caixas de madeira que estavam sendo jogadas fora e fez uma ótima colheita: um melão, um pouco de uva verde, pêssegos e várias bananas. Evitamos comprar frutas e verduras que vêm de longe, então as únicas vezes em que como banana ou abacate, por exemplo, é quando encontramos no lixo da loja de orgânicos ou pegamos do descarte da feira. Como as bananas de descarte sempre são bem maduras, eu descasco, corto e congelo assim que chego em casa. Depois uso pra fazer vitamina, sorvete ou coloco na papa de aveia. Dessa vez tinha bananas verdes (perfeitas!) e elas estão amadurecendo na cozinha nesse exato momento.

No almoço comemos o resto do macarrão com tofu/espinafre/cogumelo/creme de castanha da noite anterior, mais uma salada com a alface do lixo da loja de orgânicos, grão de bico (francês) comprado na loja de orgânicos, folhas de capuchinha do quintal, algas francesas que ganhei de uma amiga, cebolinha do nosso lote, salsinha da nossa horta de quintal e tomates do lote de outra amiga. Essa outra amiga, Dolorès, também está viajando e estamos regando, junto com outras camaradas e jardineiras, o lote dela no momento. E vocês já entenderam que quem cuida do lote ganha o direito de colher o que estiver maduro no dia, né? Nossas amigas agricultoras insistem sempre pra gente colher o que quiser, como modo de nos agradecer o favor e porque quem cultiva a terra sabe que o que não for colhido, se perde. Ou seja, plantar te ensina a compartilhar, incentiva a generosidade.

De sobremesa comemos o resto das uvas da vizinha e alguns dos pêssegos de descarte (que Anne trouxe de manhã).

À tarde fui buscar duas cestas de orgânicos, no esquema CSA (Comunidade que Sustenta a Agricultura), de uma amiga e um amigo, ambas camaradas do coletivo de defesa dos Jardins Operários. As duas saíram de férias com a família (julho e agosto são as férias de verão aqui) e as cestas iam se perder. Você se compromete a pagar um valor fixo por mês e tem direito a uma cesta semanal com vegetais da estação. Como a ideia é apoiar as agricultoras locais, não é possível cancelar nas semanas em que viajamos. Sorte nossa, pois nossas amigas, que também moram pertinho de nós, deixaram as cestas da semana passada e dessa semana pra gente. Uma das amigas, Vivianne, tem uma filha pequena e às vezes, quando ela tem um imprevisto no trabalho, ela me pede pra ir buscar a menina na escola. Nossa comunidade é bem unida e se ajuda mutualmente o tempo todo.

Minha bicicleta voltou carregada com as duas cestas de orgânicos e pude até congelar algumas coisas pra comer nas semanas seguintes.

Fiz lasanha pro jantar e essa refeição é um exemplo perfeito da teia de solidariedade que falei no início do texto. A massa foi comprada, na loja de orgânicos, mas além disso, do azeite e do alho (mais o sal e a pimenta preta), todo o resto dessa refeição foi conseguido de forma gratuita. Comida não deveria ser mercadoria e saber que uma parte, às vezes importante, do que comemos chega na nossa mesa sem passar por lógicas mercadológicas, me deixa muito feliz.

A lasanha tem berinjela e pimentão da cesta de orgânicos da amiga, tomates da cesta da amiga e do lote de Dolorès (vou escolhendo os mais maduros, por isso sempre rola mistura de origem), abobrinha do nosso lote, manjericão da nossa horta de quintal, cebola do lote de Chabha e creme feito com a pasta de castanha de caju da ocupação. A salada tem: alface da cesta de orgânicos do amigo e do lixo da loja de orgânicos, melão de descarte (da feira) e folhas de dente-de-leão do quintal. De sobremesa teve pêssegos de descarte (da feira).

Uma nota sobre PANCs. Uns meses atrás comecei a incluir sistematicamente um alimento selvagem, ou uma PANC (planta alimentícia não convencional), nas minhas refeições principais. Geralmente elas vem do meu quintal ou dos Jardins Operários (dente-de-leão, capuchinha -as flores e as folhas, urtiga, folha de jerimum, azedinha) e minha intenção é diversificar minha alimentação e expandir meu paladar pra sabores menos convencionais, mas também enriquecer minha microbiota intestinal. Não é um sacrifício, é um prazer imenso descobrir novos sabores.

Toda comida te conecta a alguém ou alguma coisa. A quem a sua comida te conecta? A quem a produziu, claro. A agricultora que selecionou a semente, plantou, regou, cuidou e colheu. Mas quem mais entrou no caminho entre a terra e o seu prato? Que histórias sua comida conta? 

Junho

Mês passado fiz um post que chamei de “o melhor de maio” e disse que talvez virasse uma tradição mensal nesse blog. Redes sociais acostumaram o pessoal a ver tudo que todo mundo faz (e pensa) em tempo real. Embora eu não queira mais isso pra minha vida, compartilhar momentos do meu dia-a-dia uma vez por mês é uma maneira de trazer as pessoas que leem o blog mais pra perto do meu cotidiano, mas de maneira menos invasiva (pra mim). Estou atrasada pra falar do mês passado, mas bora lá. Fazer um diário visual de um mês inteiro renderia um post longo demais e nem tudo que faço, eu desejo compartilhar. Então aqui estão alguns momentos (escolhidos) que vivi em junho.

Junho é o mês da transição entre primavera e verão e as flores, principalmente as rosas, causaram uma explosão de cores nos jardins (o daqui de casa e os Jardins Operários).

Anne voltou da Palestina, onde ela esteve trabalhando por um mês, e trouxe presentes das minhas amigas que moram lá. Melado de romã, feito por Dragiša e essa bolsinha zapatista, enviada por Tati. 

As cerejeiras dos jardins operários estavam carregadas, mas esse ano não foi um bom ano pra cerejas, e muitas apodreceram no pé. Mas um belo dia de junho, um coletivo amigo conseguiu uma quantidade imensa de cereja (orgânica) de descarte e voltei pra casa com uma caixa cheia dessa preciosidade. Cerejas são uma das frutas que você só consegue comprar na estação e são bem caras. É fruta de gente rica, por isso não compro quase nunca. Então aquela caixa era um tesouro pra mim. Fartura. Agora é esperar até o ano que vem pra comer cereja novamente.

Degustei, feliz da vida, as favas que plantamos no quintal. Adoro fava e esse ano descobri, graças à uma amiga que também tem uma horta nos Jardins Operários, que quando elas são bem jovens dá pra comer com casca e tudo, sem debulhar, como uma vagem. Aqui fiz um macarrão com molho de urtiga e favas frescas, mais salsinha. E uma salada de folhas de beterraba, alface e dente de leão. Tudo, com excessão do macarrão, veio da nossa horta. 

Também foi o mês das framboesas. No lote que o nosso coletivo cultiva nos jardins operários tem vários pés. Nunca comi framboesas tão deliciosas, e tão grandes, na minha vida. Comi até no café da manhã, em cima da aveia dormida (mais amêndoas de cacau e castanha do Pará, que trouxe do Brasil).

A okupa que nos servia de base foi fechada e foi um momento triste pra todos os coletivos do território, pois era um lugar estratégico pra organizar as lutas aqui. Mas a gente sabe que ocupações são efêmeras e essa conseguiu sobreviver por três anos, o que é um milagre. Felizmente, as pessoas dessa okupa já encontraram outro imóvel pra fazer uma nova ocupação e passamos o mês inteiro fazendo a mudança (todos os coletivos ajudaram). Puxei, pela primeira vez, uma carrocinha na bicicleta, pra ir buscar comida de descarte pro pessoal de lá. Preciso dizer que caí no primeiro dia. Mas no segundo consegui fazer a viagem sem problemas, apesar da carga ser ainda mais pesada do que no dia anterior. Quando a gente diz que a militância é uma escola, acho que muita gente não imagina a imensa variedade de coisas que aprendemos nela.

Tomamos café da manhã todos os dias no jardim e isso, pra mim, é a definição de luxo.

Descobri que a borragem é rosa quando desabrocha, mas em poucas horas ela fica azul. (Observar o jardim e a horta são minhas atividades preferidas no momento.) Plantamos várias borragens na horta dos tomates porque as abelhas amam essa flor. E a gente ama as abelhas. Sabia que a borragem é comestível e tem um leve sabor iodado que algumas pessoas acham parecido com ostra? Não posso confirmar, nunca comi ostra na vida, mas adoro o sabor dessa flor. Só não como tudo na salada porque elas são mais importantes pras abelhas do que pra mim. 

Pelo segundo ano consecutivo organizamos uma festa pras crianças do CoHab onde fazemos, todo domingo, atividades de educação popular. Levamos um forno de pizza (emprestado) pra lá e cada criança pode fazer sua pizza com a massa, molho e legumes que tínhamos preparado. Como nosso coletivo se comprometeu com a luta antiespecista, toda a comida que preparamos/oferecemos é vegetal. Talvez surpreenda algumas pessoas me lendo, mas nenhuma criança estranhou a falta de produtos de origem animal e, mais uma vez, as pizzas foram um grande sucesso. Foi um dia inteiro de trabalho, sem contar o trabalho na semana anterior pra preparar a festa, que também teve muitas atividades lúdicas, e muitos braços pra acompanhar as crianças no preparo de 40 pizzas, além de cuidar do forno. Mas como esses momentos de partilha com a nossa comunidade são preciosos! A luta não é só uma lista de tarefas e sacrifícios: ela também oferece alguns dos momentos de maior alegria da minha vida. 

Umo, um dos habitantes da nossa casa, resolveu voltar. Ele decidiu sair de casa há uns três anos, e passou a morar na rua e a nos visitar somente de vez em quando. Mas parece que ele cansou da vida itinerante, pois umas semanas atrás ele se instalou no minúsculo jardim na frente da casa. Ele se recusa a entrar em casa, porque não se entende com os outros gatos moradores daqui, mas a gente coloca água e comida pra ele lá fora e pelo menos uma vez por dia saímos pra dar carinho pra ele. Apesar de preferir a liberdade da rua e de ter se emancipado das humanas que viviam com ele, Umo adora carinho e ainda pede nossa companhia de vez em quando. 

Esse mês também levei várias turmas de crianças de dois jardins de infância do bairro pra visitas as hortas dos Jardins Operários. Guiar turmas de escola nos jardins é uma das minhas tarefas no Coletivo de Defesa dos Jardins. É uma delícia ver as crianças se maravilharem diante das flores, das borboletas e descobrirem os legumes crescendo nos pés. Aproveito pra conversar com as crianças sobre comida vegetal e até provamos algumas coisas pelo caminho.

Mais pro final do mês aconteceu um encontro militante no interior da França, organizado pelo nosso coletivo de solidariedade popular. Convidamos alguns coletivos de outros territórios e foram 3 dias de muita troca e banho de rio. Eu organizei uma oficina chamada: “O lugar do antiespecismo nas nossas lutas” e fiquei muito feliz em ver a quantidade de pessoa que participou. Foi o primeiro encontro inter-coletivos que organizamos depois de termos decidido colocar a luta antiespecista na nossa declaração de princípios e, pela primeira vez, a comida foi totalmente vegetal e só recebemos elogios.

Mas teve um problema. Um problema de 14kg. Preparamos uma parte da comida antes de pegar a estrada, no dia anterior, e todo o hummus que eu tinha preparado fermentou. Sete potes de 2kg cada, ou seja, 14kg de hummus!!! Eu cheirei e provei tudo e decidi que dava pra comer um dos potes que tinha fermentado menos que os outros. Fomos na fé e todo mundo sobreviveu sem nem mesmo uma dor de barriga. Infelizmente tivemos que jogar o resto fora e isso me partiu o coração. 

Na volta pra minha periferia, no norte de Paris, fui cuidar da horta. Os pés de favas estavam secando (todas as favas tinhas sido comidas por nós). Arranquei tudo, agradeci pela comida oferecida e pelo nitrogênio que elas levaram pra terra, que vai beneficiar todas as outras plantas que crescem ali e coloquei na composteira. Ali os pés de favas vão virar terra novamente e o ciclo se fechará.  Olha que coisa mais linda as raízes das leguminosas. Repare nesses pequenos nódulos. São ali que elas hospedam as bactérias que capturam o nitrogênio (N2) do ar e o converte em uma forma utilizável pelas plantas. Por isso leguminosas são o verdadeiro adubo verde. Eu fico abestalhada diante da sofisticação e tecnologia das plantas.

O primeiro tomate brotou. Ainda vai demorar semanas pra gente poder comer tomates maduros e esperar pacientemente por esse momento só contribui pra que eles sejam ainda mais saborosos pra mim.

O lote do nosso coletivo está cada dia mais luxuriante. Plantamos tomate, abobrinha, couve, berinjela, manjericão, alecrim, cebolinha e azedinha. Tem também um pé de damasco (a safra foi curta e já comemos todos) e uma cerejeira jovem. A primeira abobrinha foi colhida (e comida) e outras já vieram depois. Cultivar a terra com camaradas me enche tanto de felicidade que nem consigo colocar em palavras. E cultivar a terra com as crianças dos camaradas, que estão sempre por ali se maravilhando com os bichinhos que moram naquela terra ou procurando framboesas pra comer, é gostoso demais.

Fiz meu primeiro arranjo floral, com flores do lote, pra receber uma grande amiga de 80 anos que veio jantar com a gente. De sobremesa, fiz o creme-mousse de chocolate branco, gergelim e missô que criei no ano passado e que é um sucesso total. Parece absurdo, mas é absurdamente bom. Servi com as framboesas dos Jardins Operários e minha amiga ficou encantada.

Fiz seis bolos num dia, pras atividades de educação popular com as crianças (no CoHab) e pro almoço com jardineiras e jardineiros dos Jardins operários. Das tarefas da militância, cozinhar é uma das que faço com mais frequência. O almoço nos jardins teve churrasco, mas teve também uma abundância de pratos vegetais. Nem uma jardineira é vegetariana, muito menos vegana, mas vários trouxeram contribuições vegetais pra compartilhar com todo mundo. Quase beijo o jardineiro português que fez esse feijão fradinho, que estava uma delícia. 

Apareceu o primeiro jerimum do quintal. Esse pé cresceu sozinho (não foi semeado) e está se espalhando pelo quintal inteiro. Aliás, impressionada com a proeza e abundância desse pé de jerimum, fui pesquisar pra saber se as folhas eram comestíveis. São! Comi, pela primeira vez na vida, folha de jerimum refogada e adorei. A generosidade da natureza…

Rolou um date de rompimento definitivo de namoro. É conceito. E a comida estava ótima. Mas, falando sério, acho importante celebrar finais tanto quanto celebrar começos. 

Falando em ex namorada, a newsletter desse mês foi sobre isso. Mais especificamente, sobre ter uma ex mítica (quase todo mundo tem). A minha é aquela das alcachofras. Envio uma newsletter mensal falando de amor, em sua imensa pluralidade e com narrativas que vão contra a visão uniformizada que nos é imposta culturalmente, pra agradecer quem apoia financeiramente o meu trabalho

Eu tenho alguns problemas de saúde que são aliviados quando faço musculação e esse mês encontrei uma academia perto de casa e bem baratinha. Sempre gostei de musculação, porque além de aliviar minhas dores, aumentar minha força física faz bem pra minha autoestima, e estou feliz por ter voltado a puxar ferro. 

E pra terminar, os jardins operários em toda a sua glória no crepúsculo do final de junho. 

“Se a gente quiser romper com esse sistema, não vai ser sem audácia” – entrevista com Larissa e Maria

Quando eu estive em Belém, em novembro passado, tive a honra de ser convidada pra tomar um tacacá na casa de Larissa e Maria. Assim como Michelle, que entrevistei aqui, Larissa (que todo mundo chama de “Lara”), é uma companheira do coletivo antiespecista VEM. Maria, também vegana, é a mãe dela. Passei uma tarde na casa delas, entre bonecas de Ângela Davis e Paulo Freire feitas por elas, tomando tacacá e conversando. Aproveitei pra entrevistar as duas, porque elas têm uma história com o veganismo que começou de uma maneira diferente de todas as outras pessoas que entrevistei aqui no blog até hoje. E porque elas disseram coisas que me tocaram profundamente e que eu levo pra vida e pra luta.

Podem se apresentar?

Larissa – Larissa Pontes, socióloga, um tanto artista das manualidades. Nortista meio manauara, meio belenense. Militante por um veganismo popular e integrante do coletivo VEM. 

Maria – Maria Melo, paraense, artesã, vegana mãe de vegana.

Como vocês chegaram no veganismo?

Larissa – Eu sempre tive vontade de conhecer, pela questão animal. Eu já tinha alguma ideia a respeito, mas não sabia exatamente como fazer. Até que a minha mãe desenvolveu uma doença autoimune e começou a ter crises sérias. A primeira coisa que eu fiz pra tentar ajuda-la foi pesquisar sobre o impacto da alimentação na saúde. Parece estranho dizer que eu encontrei uma oportunidade pra me tornar vegana, mas foi a conjuntura perfeita pra eu chegar pra ela e dizer: “Olha mãe, eu acho que a gente pode unir uma coisa à outra. A gente consegue ter uma alimentação mais ética com os animais e ao mesmo tempo vai melhorar a tua situação de saúde.” 

Maria –  Eu fiz um exame de colonoscopia antes de fazer a transição pra vegetariana e ali foi detectado pólipos no meu intestino. Já estava num processo inflamatório bem alto. Algumas pessoas olham pra isso e falam: “Faz parte do processo de envelhecimento”. É verdade, mas você pode melhorar o seu processo de envelhecimento. Eu fiz o exame alguns anos depois de ter me tornado vegana e não apareceu mais nenhum pólipo. Tenho certeza que a mudança na alimentação contribuiu com isso. Tem zero chance de voltar? Não sei, só sei que por enquanto  está tudo na paz.

Larissa – A gente tirou primeiro a carne, depois carne de frango e por último fizemos a despedida do peixe. A gente já estava sem comer peixe há um tempo quando fomos passar o fim do ano na praia, em Salinas. Aí vimos um pescador e a mãe disse: “Ai, eu queria tanto comer peixe!”. Ela foi buscar o peixe lá, junto com o pescador, mas eu já não consegui comer. Ela comeu e depois disse: “É, pra mim também não dá mais. Tá diferente.”

Diferente como?

Maria – Foi como se eu tivesse comendo uma coisa que não fosse comida. Não era mais comida. E olha que o bichinho tinha sido pescado ali, estava fresquinho, não era da indústria, não era congelado, era do pescador que morava ali na beira da praia. Imaginei que ia me dar um prazerzão. E foi três vezes pior quando tentei comer ovo novamente.

Larissa: Por que ovo é o que? É pitiú. 

(Aprendi essa palavra maravilhosa quando estive em Belém. “Pitiú” é, pra paraense, o que “catinga” é pra norte-rio-grandense: fedor, mal-cheiro.)

Maria – No início do veganismo eu tinha umas preocupações, achava que podia não estar me nutrindo bem. Então decidi comer um pouco de ovo. A gente tem amigos que tem sítio, tem ovos de galinha ‘feliz’. O ovo veio pra mesa, ovo caipira… Tentei comer e não deu certo mais, não teve condição. E não é porque tenho nojo, não.

Larissa – Aí eu falei pra ela : “É simples, vamos pro nutrólogo e vamos fazer exames com certa frequência.” No começo a gente fez exames de 6 em 6 meses, porque ela estava com medo de ter alguma carência. Depois de um tempo a gente passou a fazer exames uma vez por ano. Todos os médicos olhavam os resultados dos exames e perguntavam se a gente realmente não estava comendo carne. Não conseguiam acreditar que era possível.

Maria – A gente está mostrando que é possível. A gente faz reposição de B12, claro, e reposição de vitamina D, mas eu vejo que todo mundo, incluindo o povo que come carne, faz reposição também.

Larissa – Às vezes eu fico pensando… Se a gente teve que enriquecer a farinha de trigo com ferro e ácido fólico, por que não pode ter uma farinha, um alimento, enriquecido com B12?

(Quando a farinha de trigo passou a ser enriquecida com ácido fólico, não foi visando a população vegetariana/vegana, foi pra atender as necessidades das pessoas que comem carne, mas não comem vegetais suficiente. E vale lembrar que o sal é enriquecido em iodo.)

O que é veganismo pra vocês?

Maria – Eu não vou negar que no início não foi a questão animal que me fez abraçar o veganismo, apesar deu amar os animais. Foi uma questão de saúde. Eu estava num estado de sofrimento muito grande, por causa da doença autoimune, estava inchada e tendo que começar tratamentos mais agressivos. Fui pra uma consulta médica e naquele dia o meu médico estava muito triste porque tinha perdido uma paciente muito jovem por causa de um problema hepático, consequência do uso de corticoide. O corticoide detonou o fígado e o pâncreas dela. Aí eu fiquei olhando aquilo e falei: “Eu não quero isso pra mim”. Eu sei que um dia vou morrer, como todo mundo, mas até lá vou me esforçar pra viver. E pra viver bem. Então o veganismo foi uma porta, apresentada pela minha filha, que se abriu pra mim e me deu a possiblidade de estar aqui hoje, me sentindo bem, ao invés de estar deitada numa cama, com dor, inchada.

Larissa – Pra mim o veganismo é algo plural. É uma maneira de imaginar um horizonte diferente, onde os animais não são mais vistos como inferiores, nem como mercadoria. É ampliar a nossa visão e entender que a gente partilha esse planeta com outros seres vivos, além dos humanos. É solidariedade. E aí eu fui descobrindo mais coisas no caminho, fui aprofundando a minha consciência. E abriram-se muitas possibilidades de encontrar companheiros de luta, amigos. E eu pude ver a saúde da minha mãe melhorar. Então pra mim, o veganismo representa certas coisas muito pessoais e outras mais amplas. 

Veganismo é a vontade de transformar o mundo pra melhor. Porque está insustentável! E ninguém se responsabiliza por isso! Se está insustentável, a gente precisa construir algo sustentável, um lugar onde não só humanos possam viver. Pode ser que a gente não veja tudo se acabando durante a nossa vida, mas tem muita gente por vir. Então veganismo também é solidariedade com as gerações que virão. 

Pique-nique do coletivo VEM

É difícil ser vegana?

Maria – É maravilhoso alguém chegar pra você, com todo o carinho, fazer uma proposta de qualidade de vida melhor e você ter força pra abraçar. Não estou dizendo que é fácil fazer mudanças na sua alimentação depois de décadas com aquela rotina (com produtos animais). Mas é gostoso também! Você descobre que o que parecia ser um sacrifício passou a ser um prazer, uma satisfação. Você tem N possibilidades alimentares com aqueles ingredientes que antes eram olhados como enfeites no prato. 

A manutenção do meu veganismo se dá por vários caminhos. Pela saúde, sim, mas também pelo caminho da delícia. A gente tem uma comida muito gostosa! Eu não sinto falta de nada parecido com carne, nada que lembre carne, nada com formato daquilo… Eu gosto das nossas comidas, gosto da beleza delas, do colorido. As pessoas tem uma ideia muito equivocada do que é a alimentação vegana. Você tem que interagir com o alimento: ele conversa com você e você conversa com ele. Quanto mais tempero natural você colocar, mais gostosa vai ficar a sua comida. Se você cozinhar só no vapor e não colocar um azeite, um salzinho, você vai olhar aquela batata e não vai dar vontade de comer. 

(Eu disse que a mesma coisa era válida sobre a culinária carnista. Pegar um pedaço de músculo de vaca ou um frango e cozinhar na água, sem tempero, não va ser gostoso. Maria respondeu que a galera do churrasco sempre vem com o argumento de que se for carne, “passou sal, botou na brasa, tá bom!” Aí Larissa lembrou que isso também é verdade no caso de vegetais. Afinal é o calor intenso e o defumado do fogo que conferem aquele sabor característico e tão apreciado. E concluiu dizendo: “Não precisa fazer nada pra uma fruta ficar gostosa. Você pega uma manga e ela é perfeita. Nossa comida já vem pronta.”) 

Junto com o veganismo a gente fez uma transição muito bacana que foi abrir mão, no máximo possível, do industrializado, do ultraprocessado. Não somos as veganas que compram não sei que produto ultraprocessado do futuro, do passado ou do presente, sei lá como é que chama esse negócio. Nem vamos usar glutamato monossódico como tempero. Tem sabores maravilhosos nas nossas folhas, nos nossos limões, tem vinagre de maçã, tem tanta coisa boa pra temperar a comida! Também tento comprar do pequeno produtor, do pequeno fabricante, daquela pessoa que está se esforçando pra sustentar a família. Lara tem uns amigos que fazem linguiça artesanal e é tudo de bom. A família toda é vegana.

Larissa – Essa coisa da dificuldade, eu vejo assim. Antes de se tornar vegana a gente estava nadando no sentido da corrente, estava ali com todo mundo, fazendo a mesma coisa. Aí a gente se torna vegana e a sensação que dá é que a gente passa a nadar ao contrário. Porque tudo vem contra a nossa decisão. Vão aparecer muitas dificuldades sociais e as pessoas vão dizer que tu não come nada. Mas, eu como, sim! Posso inclusive compartilhar a minha comida. Mas tem essas dificuldades no comecinho. 

Mas por que eu sou vegana? Tem gente que acha que não é importante ser vegana porque uma pessoa sozinha não faz diferença. Mas eu sei que eu não sou só uma. Eu quero que a pessoa que está pensando em ser vegana e acha que está sozinha olhe pro coletivo, pra essa ruma de gente que está se juntando, e diga “eu também não sou só uma”. O veganismo é um boicote, mas ao mesmo tempo a gente está dizendo pro mundo que dá pra viver de outra maneira. Acho que é uma ferramenta de reeducação. Quando a gente vive de outra maneira, a gente está dizendo: “Olha aqui, é possível!” Mas vivo isso com zero sentimento de superioridade. Não penso: “Nossa, como eu sou evoluída!”. Sou só o exemplo de uma coisa diferente, e as pessoas ao meu redor podem ver isso e se interessar. É assim que mudanças acontecem. É assim que a gente vai construindo coisas melhores.

Como é que a gente destrói o especismo?

Maria – Um dia eu escutei uma fala do pastor Ricardo que fez muito sentido pra mim. Ele disse: “O mal é extremamente audacioso e o bem é tímido.” Então eu acho que o caminho pra combater o especismo é esse: ser audacioso. A gente tem que ser audacioso e se juntar com quem é audacioso pra formar uma audácia maior ainda! 

Quando a gente chega em algum lugar e as pessoas reagem de maneira negativa ao nosso veganismo, quando dizem: “Você não come nada!”, eu respondo: “Eu como, sim, você que não tem pra me oferecer. Se você me convidou, deveria ter se preparado melhor porque uma boa anfitriã recebe bem um e outro.” A gente tem que ser mais afrontosa e mostrar que estamos aqui pra ficar. Às vezes ouço comentários como: “Ah, você pode ser vegana porque tem condição, porque  pode escolher.” Justamente! Aí falam: “Mas e se você estiver na floresta, no meio do mato?” Aí é que eu vou me dar bem! “E se estiver com uma vaca, no meio de uma ilha deserta?” Quais são as chances deu ir parar numa ilha deserta com uma galinha ou com uma vaca? Tem quem diga: “Não vou falar (sobre veganismo) porque não quero deixar as pessoas desconfortáveis.” Eu quero! Quero incomodar, quero desajustar a situação! 

Larissa – Se a gente quer romper com esse sistema especista, se a gente quer romper com o capitalismo, não vai ser sem audácia.

Maria – Então eu acho que é dessa forma que a gente vai colaborar pra destruir o especismo. Precisamos nos juntar com quem pensa assim e formar esse grande bom combate.

Larissa – É um trabalho de formiguinha. A gente destrói o especismo aos poucos, mas ao mesmo tempo sem cessar, sem desistir. Convencendo mais pessoas de que o nosso sistema de produção  é insustentável. Que a maneira como nos relacionamos com a natureza, e com os seres que partilham o mundo com a gente, é insustentável. A gente tem que buscar possibilidades pra fazer crescer o veganismo. Tem uma oportunidade na educação? Surgiu uma oportunidade ali, numa política pública? Quando a gente vê, de repente, o debate antiespecista não é mais invisível, não existe apenas dentro do nosso grupo. Se torna um rio, correndo pra todos os lados.

Como falar da luta antiespecista com a esquerda?

Larissa – Essa é uma das perguntas mais difíceis. A gente tem um grande amigo de esquerda, super politizado, que trabalha na base, viajando esse estado todinho politizando as pessoas, mas que se recusa firmemente a aceitar a importância do veganismo. E ele tem problemas de saúde, uma mudança de alimentação faria tanto bem pra ele. Ele come a nossa comida e gosta, mas sempre faz piadas depois. Hoje a gente já não responde mais, pra não perder a amizade. Mas é uma situação muito difícil.

Maria – Tem duas situações bastante mal resolvidas na minha cabeça e ainda não encontrei respostas pra elas. A primeira é a questão dos grupos de pessoas com doenças autoimunes dos quais faço parte. Elas não se interessam em aprender sobre alimentação vegana. Tem gente que posta todo tipo de tratamento irresponsável. Já me perguntaram por que não conto a minha história nas redes, mas não sei… As pessoas que consomem corticoides, por causa dessas doenças, acham que tomando esses remédios podem comer carne e vai ficar tudo bem. Não é verdade. Eu estava tomando uma carga pesada de corticoides antes de me tornar vegana e um dia comi um filé e tive uma crise séria, inchei muito. E que pensamento é esse, né? Preferir se encher de corticoide do que parar de comer carne. Não faz sentido.

E a outra situação difícil que eu vivo é dentro dos grupos de prática da solidariedade, que distribuem refeições pra pessoas em situação de rua e famílias carentes. Todo mês a gente faz uma lista com os alimentos necessários pra preparar as refeições e sempre pedem muita linguiça, charque, salsicha, muito embutido. Eu falei: “Trocando essas carnes por legumes a gente consegue oferecer duas refeições por semana, ao invés de uma, com o mesmo valor que gastamos por mês. E ainda melhoraria a qualidade das refeições.” Me responderam que as pessoas iriam estranhar uma comida sem carne, que pensariam:  “Eles comem carne, mas não querem nos dar.” Eu fico sem saber o que fazer. O dinheiro ia render mais, alimentar mais pessoas e alimentar melhor…

Larissa – A maneira como eu costumo falar sobre veganismo pra pessoas de esquerda é tentar mostrar que as opressões não ficam pedindo licença uma pra outra pra oprimir. “Ei, agora eu vou oprimir esse grupo aqui, então tu para. Fica quieta no teu canto que agora é a minha vez de oprimir! Vai pro final da fila e espera!” As opressões agem todas ao mesmo tempo. Elas estão batendo junto na gente há muito tempo, então como é que a gente vai bater de volta separado? Nunca encontrei alguém que conseguisse argumentar a favor desse ideia de deixar uma luta pra depois, enquanto focalizamos nas outras, então logo a pessoa leva pro individual e diz: “Mas é difícil ser vegana!” Ou então solta o token do indígena que caça. Eles caçam, certo, mas não são os indígenas que estão causando a ruptura na natureza. Nosso inimigo é outro.

Depois da entrevista fomos tomar o tacacá preparado por elas. Eu estava saltitante com a oportunidade de degustar algo tão emblemático da culinária paraense, mas não sabia bem o que esperar desse prato. Que negócio bom! Tacacá geralmente é servido com camarão, mas não faz falta. Larissa e Maria, além de pessoas lindas, são ótimas cozinheiras e saí da casa delas com vontade de voltar muitas vezes. Ser vizinha delas se tornou um dos meus objetivos na vida. Quero ser amiga, claro, mas amiga E vizinha. Quero essas duas do meu lado na luta, e na mesa. Como decidi visitar Belém novamente no ano que vem, dias atrás  mandei uma mensagem pra Larissa dizendo: “Pode ir esquentando o tacacá que eu tô chegando!”. E ela respondeu: “Vou esquentando o tacacá e guardando muruci pra gente fazer nosso queijo.” Porque Larissa e eu temos um projeto de queijo verdadeiramente decolonial que vai ser sucesso. Aguardem.

Torta de cebola caramelizada com vinagre e figo

Sei que a última receita que postei nesse blog foi uma torta, mas essa aqui não tem nada a ver com aquela lá. E, sendo bem sincera, a verdadeira receita é a cebola caramelizada. Ela dá uma torta saborosa e elegante? Sim, mas se quiser fazer só a cebola e usar como condimento ou pasta pra comer com pão, tens todo o meu apoio. Mais que apoio, incentivo! Tanto que vou parar esse texto por aqui pra você ir direto à receita.

Torta de cebola caramelizada com vinagre e figo (ou passas)

Você pode usar essa cebola caramelizada pra uma infinidade de coisas. Pra rechear uma torta salgada, como fiz aqui (use essa massa ou a que preferir). Como parte de um sanduíche ou pizza. Pra rechear uma empada ou pastel de forno. Ou simplesmente pra passar no pão (como um chutney). Se você tiver a sorte de ter queijo de castanha de caju por perto, os dois casam lindamente. Vou dar as medidas pra fazer recheio suficiente pra uma torta, mas use como um guia pra te dar uma ideia das proporções e adapte pra quantidade que você quiser fazer. 

4-5 cebolas médias (brancas)

3 figos desidratados (ou um punhadinho de uva-passa)

3 colheres de sopa de azeite

1 colher de sopa de vinagre balsâmico (se não tiver, use de vinho)

Um punhadinho de alecrim fresco (ou uma pitada generosa de alecrim seco)

Sal e pimenta preta

Pra massa:

1 caneca de farinha de trigo (200g)

5 colheres de sopa de azeite

6 colheres de sopa de água (leite de soja – sem açúcar- deixa a massa ainda melhor)

Sal

Corte as cebolas ao meio, depois corte cada metade em fatias. Aqueça o azeite em uma panela média e de fundo espesso. Cozinhe a cebola em fogo médio (coberta) até começar a dourar, depois baixe o fogo e cozinhe, sempre coberto, até a cebola começar a caramelizar. Mexa de vez em quando, usando uma colher de pau, pra que tudo cozinhe de maneira uniforme. O açúcar natural das cebolas vai ser liberado aos poucos, fazendo com que elas fiquem macias, doces e escureçam um pouco. Seja paciente: o processo de caramelização vai levar de meia hora a 40 minutos e quanto mais baixo o fogo, melhor (assim a caramelização vai acontecer sem que algumas cebolas queimem no processo). Junte o vinagre (a acidez é importante pra quebrar o doce e realçar o sabor aqui) e os figos secos picados (ou as passas) e deixe cozinhar até o vinagre evaporar. As cebolas estão prontas quando estiverem como na foto abaixo (essa é a torta antes de ir pro forno. As cebolas vão terminar o bronze lá dentro). Desligue o fogo, acrescente o alecrim e tempere com sal e pimenta preta.

Enquanto as cebolas cozinham, prepare a massa. Misture todos os ingredientes com as mãos, até formar uma bola coesa e elástica. Obs: dá pra inverter as proporções de azeite e água (ou leite de soja) pra deixar a massa mais amanteigada e menos elástica. Questão de preferência pessoa. Deixe descansar alguns minutos (fica mais fácil abrir a massa quando ela está relaxada) antes de espalhar numa forma (ou placa). Quando lembro, cubro a forma com um pedaço de papel manteiga (sai mais fácil depois) e abro a massa com as mão, mesmo, mas nada te impede de usar um rolo. A massa deve ficar fina pra assar direitinho (medi aqui em casa: ela tem que ficar com 26 cm de diâmetro – o tamanho do fundo de uma forma de quiche aqui- pra ficar na espessura ideal). 

Espalhe as cebolas caramelizadas sobre a massa, deixando um dedo de borda descoberta, e leve ao forno médio (180 graus), pré-aquecido ou não (às vezes esqueço de pré-aquecer e dá certo do mesmo jeito). Quando as bordas estiverem bem douradas (como na foto abaixo), tá pronta. Deixe esfriar um pouco antes de servir. Rende 4 pedaços/porções. 

Dicas:

-Coloque umas azeitonas pretas na sua torta, depois que sair do forno, pra deixá-la ainda mais especial. Azeitonas pretas e uma pitada de algas em flocos (ou uma folha de nori picada), então, e vira comida de festa.

-Se gostar de mostarda de Dijon, espalhe uma fina camada na massa crua, antes de colocar as cebolas. 

-Como eu disse, essas cebolas são uma delícia só com pão, então se quiser fazer só o recheio, vá em frente. Guarde em um pote de vidro com tampa e coloque na geladeira. Dura vários dias.

Versão com azeitonas pretas (eu tava distraída e deu uma queimada, ops)

Torta salgada de legumes

Há anos eu procurava uma receita de torta salgada que reunisse todos os critérios que fazem, na minha opinião, uma boa torta salgada. Não gosto de tortas que são secas ou com muita farinha de trigo (as “pizzas de liquidificador” da minha infância eram assim). Queria uma torta suculenta e com muito mais legume do que farinha, mas que ao mesmo tempo pudesse ser cortada em pedacinhos bonitos e servida em ocasiões festivas (ou como tira gosto no meu boteco imaginário). 

Tive o prazer de provar algumas tortas assim feitas por duas mulheres veganas do meu Nordeste (um cheiro pra Natália, de Fortaleza, e outro pra Bia, de Salvador). Mas quem disse que eu tenho a receita delas? Natália até me deu, anos atrás, a receita da torta com lentilhas que ela faz, mas eu perdi. E quando pedi a receita de Bia, ela respondeu que tinha feito no olhômetro, com o que tinha achado na cozinha naquele dia. Então tive que inventar minha própria receita. 

Mas preciso dizer que não iniciei essa empreitada sozinha. Parti da receita de torta de legumes de Ruan Félix (cheiro, Ruan!), que ele publicou no blog de dona Juliana Gomes (cheiro, Ju!). Eu não tinha todos os ingredientes da receita de Ruan, mas ela foi fundamental pra me ensinar o pulo do gato em matéria de torta de legumes suculentas sem usar ingredientes de origem animal: batata cozida. É a bruxaria que faz a beleza dessa receita. E, como ele explica, essas tortas em versão animal geralmente levam ovos, óleo/manteiga e queijo, então são bem gordurosas. Por isso a versão vegetal pode (e deve) caprichar na dose de gordura (ele usa uma maionese caseira, eu uso azeite, mas já usei pesto também). Meus testes também me mostraram que a abobrinha é mais que um “legume” na “torta de legumes”, ela garante a textura úmida que eu procurava.

Foram muitos testes pra entender quais ingredientes são essenciais,e quais são enfeites, e chegar nas proporções ideias. Percebi, por exemplo, que pra chegar na textura suculenta que eu queria, o fermento era desnecessário. Fiz uma versão com farinha de grão de bico e outra com lentilha, mas tenho planos de fazer outra receita-base usando leguminosas. Eu queria que essa receita aqui fosse o mais simples possível, com ingredientes acessíveis pro maior número de pessoas. E também que se mantivesse próxima das tortas de legumes mais tradicionais, embora eu ache que a minha versão é ainda melhor. 

Como precisei fazer quase uma dezena de testes antes de chegar na receita abaixo, pude compartilhar essa torta com várias pessoas e posso afirmar que o sucesso é garantido. E repare como essa torta é linda! Vão perguntar se tem queijo, por causa da maneira como ela fica douradinha por cima e do sabor maravilhoso (obra, em partes, da dose caprichada de gordura ). Responda que ela tem algo muito melhor: amor por todos os viventes e valorização dos vegetais.

Torta salgada de legumes

Essa é mais uma fórmula que pode ser usada pra criar várias tortas diferentes, dependendo do “legume saborizante” que você utilizar. A abobrinha da base é importante pra atingir a textura desejada, então ela não pode ser substituída aqui. Se estiver usando um legume de sabor forte no tempero (como azeitona ou tomate seco), aconselho usar apenas 1/2 medida dele e completar com algo de sabor mais suave. Cenoura ralada fica perfeito aqui e ajuda a baratear a receita (nesse caso ficaria 1/2 medida de tomate seco ou azeitona e 1/2 medida de cenoura ralada). Pra fazer uma torta pequena uso uma caneca como medida. Você pode dobrar a receita (mantendo a caneca como medida) pra fazer uma torta maior. Minha receita foi inspirada em grande parte pela receita de torta de legumes de Ruan Félix.

Base (1 medida = 1 copo ou 1 xícara ou 1 caneca):

1 medida de batata cozida e amassada

1 medida de abobrinha ralada com casca (aperte bem na hora de medir)

1 medida de farinha de trigo (branca ou integral)

1/4 medida de óleo

Sal e pimenta preta a gosto

Temperos

1 medida de um legume “saborizante” (tomate seco, palmito, azeitona, milho verde, ervilha, coração de alcachofra, cogumelo, cenoura ralada… pode ser uma mistura de mais de um)

Alho e/ou cebola a gosto (opcional)

Ervas secas ou frescas

Um pouquinho de suco de limão (opcional, mas eu gosto porque a acidez realça o sabor de tudo)

Misture tudo com uma colher de pau ou espátula. Prove e corrija o sal, se necessário. (Se estiver usando alho e cebola, pique esses ingredientes e refogue em um pouco de óleo por alguns minutos antes de acrescentar à massa.) A massa vai parecer seca e você vai se perguntar se não era pra acrescentar algo líquido ali. Confie, vai dar certo. Mas ATENÇÃO: se os ingredientes que você estiver usando pra dar sabor à torta (“legumes saborizantes”) forem bem secos (milho verde e ervilha, por exemplo), ou seja, não tiverem a umidade de uma cenoura ralada ou de corações de alcachofra, use um pouco menos de farinha (3/4 de medida, ao invés de 1 medida cheia) ou um pouco mais de abobrinha ralada pra equilibrar a massa.

Despeje a massa em uma forma untada com um pouco de óleo (não precisa enfarinhar), espalhe com as costas de uma colher e leve ao forno médio (não precisa pre-aquecer) até ficar bem dourado e levemente firme quando você apertar com o dedo. O ideal é que essa torta não fique muito espessa, então escolha uma forma onde caiba tudo em uma camada não muito alta. O tempo de cozimento vai depender do tamanho da sua forma, então fique de olho e não tenha medo de abrir a porta do forno pra checar regularmente e, nesse caso, é melhor assar demais (vai ficar ligeiramente crocante nas bordas) do que de menos.

Importante: deixe esfriar completamente antes de cortar e servir. Se ela ainda estiver morna na hora de cortar, o interior estará cremoso demais e vai ser purê de torta pra todos os lados. Somente depois de totalmente fria é que dá pra cortar pedaços perfeitos.

O que usei na torta da foto, que é grande (8 pedaços bons):

(Base) 2 canecas de batata amassada (4 batatas médias) + 2 canecas de abobrinha ralada (2 abobrinhas médias, apertei bastante pra entrar tudo na caneca) + 2 canecas de farinha de trigo semi-integral + 1/2 caneca de azeite (Temperos) 1 caneca de cenoura ralada (1 cenoura grande) + 1 caneca de ervilha cozida (compro congelada) + alho poró refogado (aproximadamente 1/2 caneca) + alho desidratado (porque estava com preguiça de descascar alho fresco) + um punhadinho de ervas secas (tomilho/manjericão/orégano) + sal e pimenta do reino + suco de limão.

Dicas:

-Tomate seco fica uma delícia aqui, mas se estiver usando tomates conservados no óleo, reduza um pouquinho a quantidade de óleo da receita. Eu não fiz isso e minha torta de tomate seco ficou bem gordurosa (saborosa, mas gordurosa – e ninguém reclamou dos dedos lambuzados de óleo).

-Se tiver pesto na geladeira, use no lugar do óleo. Fiz isso uma vez e ficou sublime, embora a torta fique verde, o que pode causar estranheza em algumas comedoras que torcem o nariz pra verduras.

-Sinta-se à vontade pra temperar sua torta como quiser. Uso páprica doce defumada e fica ótimo. E imagino que uma versão com curry e coentro fique supimpa também.

Redefinir o conceito de fartura

Esse causo aconteceu muitas luas atrás, numa das primeiras visitas que fiz à minha família, que mora no Sertão do RN, depois de ter me tornado vegana. A tia que me hospedou estava aflita: “O que vou fazer pra você almoçar agora?” Expliquei que ela poderia fazer o que fazia sempre pro almoço, eu só não comeria o animal. Minha tia achava que tinha que fazer algo diferente, já que agora eu tinha um “regime” diferente e eu insisti que, por morar fora do Brasil, o que mais me deixaria feliz era comer a comida da nossa terra, da qual sou privada na maior parte do tempo. Ela se pôs a cozinhar, mas não parecia convencida de que seria capaz de me alimentar. Quando sentei na mesa pra almoçar meus olhos viram um banquete. Além do feijão (Macaça -ou “feijão de corda”-, o mais cultivado no Sertão) com arroz, tinha jerimum, batata-doce, salada crua, suco… Enchi meu prato, que estava lindo e colorido, mas antes de dar a primeira garfada minha tia se aproximou de mim e, olhando pra comida que eu estava segurando, soltou essas palavras: “Minha fia não achou nada pra comer, não foi?” 

Ela estava segurando um prato praticamente idêntico ao meu, com uma única diferença: o dela tinha um pedaço de frango. Mas só o prato dela estava cheio. O meu, aos olhos dela, estava vazio. A comida que veio da terra, plantada por gente dali (com exceção do arroz, aqueles vegetais tinham sido cultivados na própria cidade), parecia não existir pra ela. A única “comida” era aquele pedaço de animal, comprado no mercadinho da esquina (criado confinado em algum galpão, morto, despedaçado e embalado não sabemos aonde). 

Contei essa história várias vezes nas palestras que dei Brasil afora porque ela ilustra perfeitamente os fenômenos de desvalorização do alimento da terra (vegetal) e de colonização da nossa alimentação. E quando o alimento vegetal é desvalorizado, a pessoa que o produz também é desvalorizada. Esse processo também faz com que a própria terra perca valor, já que os alimentos que ela produz não são mais vistos como alimentos nobres. Ao mesmo tempo, a supervalorização da carne animal na alimentação, ou produtos derivados de animais, significa que na nossa sociedade, o pecuarista tem muito mais poder e prestígio que a agricultora. E dar mais poder pra pecuária vem com consequências terríveis: mais latifúndio, monocultura, grilagem, conflitos no campo, roubo de terras indígenas, desmatamento, queimadas, exploração animal, exploração de trabalhadoras e trabalhadores em abatedouros e frigoríficos, zoonoses…

Mas eu abri esse texto contando sobre o almoço na casa da minha tia porque há tempos venho ruminando algo e essa história também fala sobre isso. Quando se trata de comida, o que consideramos “fartura”? Essa pergunta se instalou na minha cabeça uns anos atrás, quando eu estava em Natal, visitando a família. Senta que lá vem mais história. 

Quando estou em Natal uma das minhas tarefas na casa da minha mãe é fazer a feira da semana. Vamos no CECAFES (Central de Comercialização da Agricultura Familiar e Economia Solidária) de Natal e conseguimos comprar diretamente de alguns produtores/produtoras rurais. Tem até gente de assentamento da reforma agrária e a oferta de vegetais é maravilhosa. Quando volto da feira e coloco tudo na mesa pra lavar/guardar, sempre sinto um prazer imenso. Quanta fartura! Quanta vida! Quanta delícia! Saber quem plantou e colheu aquilo ali só aumenta a minha alegria.

Fartura pra mim é ver a fruteira cheia de frutas. É abrir o freezer e ver ele cheio de pacotinhos de coco ralado, pronto pra virar leite, e de polpa de jaca e graviola (cortadas e embaladas por mim), prontas pra virar vitamina. E uma ruma de macaxeira descascada, pronta pra ser cozinhada. É ter uma vasilha enorme cheia de hortaliças na geladeira. É ter sempre um quilo de goma na água, pra fazer as tapiocas mais fresquinhas e saborosas. É ter pratos coloridos a cada almoço, com verduras cruas e cozidas, mais uma fruta. É abrir a geladeira e ter pasta de feijão com amendoim e leite de coco fresco. É sentar pra tomar café da manhã e ter vários recheios pra minha tapioca (pasta de feijão, restos de legumes ensopados do almoço), leite de coco pronto pra colocar no meu cuscuz e no meu café e mamão docinho. É poder escolher preparar macaxeira, batata-doce ou cará pro jantar. É comer banana-da-terra cozida no café num dia, tapioca no outro e cuscuz no outro, variando sempre os prazeres. É ter pinha e manga maduras pra lanchar. Mas nem todo mundo na minha família pensa assim.

Um dia estávamos eu e minha irmã caçula, que também é vegana, nos maravilhando diante da fruteira cheia de frutas e da geladeira cheia de verduras, enquanto lanchávamos tapioca. Nesse momento uma das nossas sobrinhas chegou da casa do namorado. Ela abriu a geladeira e fechou quase imediatamente com irritação. Depois fez uma declaração que me lembrou a tia do Sertão e seu comentário sobre o suposto vazio no meu prato lotado de comida vegetal: “Não tem nada pra lanchar aqui!” Olhei surpresa pra minha irmã, que também não estava acreditando no que tinha ouvido. Como assim não tinha nada pra lanchar? Olha nós ali lanchando! “Tem tapioca, tem frutas, tem leite de coco feito…” Mas antes que pudéssemos terminar a lista das delícias que estavam ao alcance da mão, e da boca, dela naquele momento, ela falou: “Por isso que eu gosto de comer na casa do meu namorado. Lá tem muita fartura. Sempre tem iogurte e presunto na geladeira, sempre tem leite condensado e biscoito recheado no armário.” Nesse momento nossa surpresa se tornou indignação. O problema era outro. Mais uma vez, alguém estava me dizendo que comida da terra não era alimento. Comida, mesmo, a que conta, a que tem valor, a que é gostosa, é o que vem dos animais. E dessa vez, como se travava de uma pessoa jovem e que cresceu na cidade, tinha um elemento a mais: comida é o que vem dos animais e é ultraprocessado pela indústria. 

Quando entrevistei Michelle, em Belém, ela falou em como também percebeu que pessoas com práticas especistas (que vêem animais e seus derivados como comida, patrocinando e perpetuando, assim, a exploração animal) muitas vezes têm dificuldade em ver uma fruta ou um punhado de castanha do Pará como um lanche. Concordo com ela que uma das principais missões do veganismo é colocar o vegetal de volta no centro da mesa. E eu iria mais longe. Talvez a maior tarefa do veganismo (não do antiespecismo!*) seja redefinir a noção de fartura. (*A tarefa do antiespecismo é libertar os animais. Emancipação animal é o nosso horizonte.)

A gente sabe que, no Brasil, em um hectare se cria um boi ( 0,97 boi por hectare, pra ser precisa – fonte: Censo Agropecuário de 2017, feito pelo IBGE). Esse boi vai ser abatido em 3 anos e vai “produzir”, em média, 250 kg de carne (248,1kg é o peso médio da carcassa, de acordo com o Beef Report de 2022, feito pela Abiec – Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne).

Nesse mesmo hectare a gente pode plantar comida, no sistema agroflorestal, e colher 50 toneladas de vegetais por ano. Eu tive a oportunidade de visitar alguns assentamentos da reforma agrária onde as assentadas cultivavam a terra com práticas de agroecologia e agrofloresta e pude ver a imensa abundância de vegetais que crescia em espaços onde só poderíamos colocar uma ou duas vacas. É uma fartura de biodiversidade! 

Precisamos redefinir nosso conceito de “terra improdutiva” pra incluir pasto. E precisamos redefinir o nosso conceito de “fartura”. Eu sempre digo que o prato é uma janela pro campo. Sabe o que acontece quando você só consegue ler como “comida” um pedaço de animal, ou um produto feito com o que sai do corpo de animais, muitas vezes ultraprocessado? A monotonia no prato reflete a monocultura do campo (de soja) e a falta de biodiversidade do pasto. É uma imensidão de terra (latifúndio) na mão de poucos e uma imensidão de animais se tornando pouca comida e deixando a terra arrasada. De todos os ângulos que você olhar, é o extremo oposto de fartura. A única abundância aqui é o lucro dos ruralistas e do agro em geral, ganhado em cima da destruição das florestas e das reservas de água, do genocídio indígena, da saúde da terra e das pessoas e da exploração animal. 

“Fartura” é vegetal no prato, agroecologia no campo e floresta de pé. Pra isso precisamos de reforma agrária popular, claro. Está no programa de luta do veganismo popular. Mas tem algo que é ainda mais urgente e pode ser feito por todo mundo, nesse exato momento: valorizar a comida que vem da terra. 

Feijão macaça, jerimum de leite, pirão de maxixe, banana, salada de alface e tomate, macaxeira e batata-doce cozidas

A foto acima foi feita na casa da mesma tia, no Sertão, meses atrás. Quando cheguei pra visitá-la dessa vez, ela me recebeu com uma bacia de maxixe, que tinha pedido pro marido colher na roça do irmão. “Tem maxixe e coco pra você fazer aquele seu pirão”, ela falou animada. Meu pirão de maxixe é tão famoso na família que as primas vieram das outras casas pra degustá-lo com a gente. 

O melhor de maio

Estava aqui pensando com meus botões quando me dei conta que hoje é primeiro de junho! Parece que quanto mais intensos os dias, mais rápido eles passam. Aí tive uma ideia: guardar num cantinho esses pequenos momentos de alegria que passam por nós e a gente esquece quase que instantaneamente. O cantinho, no caso, é esse blog. O mês de maio foi rico em emoções e atividades. Muita alegria, pontuada por alguns momentos intensos de tristeza. Ou seja, a vida sendo a vida. Vou reunir aqui os melhores momentos do mês e, quem sabe, começo uma tradição no blog.

O mês começou com uma viagem a outra cidade pra comprar composto pro lote que cultivamos coletivamente nos Jardins Operários (nós = nosso coletivo de solidariedade popular). Nesse lugar você pega a pá e enche os sacos de composto (100% vegetal) com o suor do próprio rosto. O carro é pesado na chegada e em seguida na saída, depois de colocar os sacos de composto dentro, e assim sabemos quantos quilos levamos pra casa (o composto é vendido na tonelada). Éramos três mulheres e em uma hora carregamos a van (emprestada) com 750 kg de composto. O funcionário do local ficou impressionado com a nossa força (ele tinha olhado pra nossa cara na chegada e nos julgou fraquinhas). Respondemos: “Normal, somos lésbicas” e deixamos ele lá sem entender. (Segundo a minha melhor amiga, somos “lésbicas de sítio”. Ela diz que é uma categoria real: a lésbica que tem força no muque, entende de motor de carro a encanamento de cozinha e te tira de qualquer sufoco.)

Comecei a plantar a horta que cultivo no quintal. Sim, sou lavradora de quintal e isso me deixa profundamente feliz. Acontece que no início de maio ainda chovia um pouco e as lesmas sempre invadiam tudo depois da chuva. Eu plantava à tarde, chovia à noite e na manhã seguinte eu encontrava meu brotinho devorado pelas lesmas. (À esquerda: girassol. À direita: tagete). Nesse ponto eu só estava plantando flores e deixei pra plantar os legumes mais tarde, quando as chuvas tivessem parado.

Enquanto isso eu ia protegendo minhas flores como dava, com garrafas PET e outros recipientes de plástico. Felizmente a maior parte sobreviveu.

Plantei dois pezinhos de morango na horta e a primeira rosa do ano desabrochou no jardim.

Pascu seguiu representando sua categoria com orgulho e dormindo em todas as minhas roupas lavadas. As danadinhas das lesmas conseguiram, não sei como, entrar dentro de casa e comer meus brotinhos de couve. Acordei um dia e flagrei essa sapeca com a boquinha cheia de couve (juro!). Eu passei um sermão nela e a coloquei de volta no jardim, explicando que ela podia comer aquilo tudo ali.

Anne foi pra Palestina no início do mês e só volta em junho. Pela primeira vez pude desfrutar da casa só pra mim. Quer dizer, pra mim, Pascu e Satã, os gatos que moram com a gente (na primeira foto Pascu está dormindo no sofá-almofada, Satã está dormindo na poltrona). Faço parte do grupo de pessoas que adora morar sozinha e que curte momentos de solidão, então foi uma delícia. Também faço parte de um outro grupo, o grupo de pessoas casadas que acha que o segredo de uma relação duradoura é ter muitos momentos longe da esposa. Adoro. Aproveitei o tempo extra esse mês pra começar (finalmente!!!) a escrever o manifesto antiespecista que venho prometendo há anos (sim, na foto o computador está com o whatsapp aberto, mas juro que sentei a bunda nessa cadeira e trabalhei assiduamente no manifesto).

A luta pra salvar os Jardins Operários de Aubervilliers da destruição continua (contei tudo no podcast “Jardins da Comuna” e se você ainda não ouviu, corre lá) e dia 8 de maio fizemos a “Festa dos Jardins em Luta”. Nosso coletivo de solidariedade popular (BSP = Brigadas de Solidariedade Popular) tem uma cozinha solidária (que em Francês chamamos de “cantina solidária”) desde o ano passado e fomos nós que cozinhamos toda a comida pra festa, que reuniu cerca de 200 pessoas. Nossa cozinha é 100% vegetal e fui eu mesma que escrevi a mensagem acima (“Em solidariedade política com os animais, nossa cantina é vegana”). Usamos legumes de descarte (é assim que nossa cozinha solidária funciona) e legumes dos lotes, compartilhados pelas próprias operárias e operários que cultivam ali. Foi lindo demais.

Como parte da programação da festa dos jardins, nosso coletivo propos uma oficina de horta em lasanha (técnica pra plantar em camadas, que aprendi com uma das mulheres incríveis que cultivam nos Jardins Operários), pra compartilhar o conhecimento com a galera. Várias pessoas do bairro vieram aprender com a gente e aproveitamos a mão de obra voluntária pra fazer as lasanhas do nosso lote.

Fiz panquecas “americanas” pra minha namorada e o sucesso foi tamanho que repetimos a receita mais duas vezes esse mês. Fiz essa receita gringa aqui, mas adaptada (troquei o “cream cheese” por iogurte de coco e deixei o sal de fora). Ela gosta de comer coisas doces no café da manhã e até eu, que não gosto, adorei essas panquecas. Tanto que um dia fiz só pra mim, pro lanche da tarde. Comi no jardim, lendo o melhor livro que li esse ano. Se chama “As impacientes”, da escritora feminista camaronesa Djaïli Amadou Amal).

A raiva que sinto quando vejo frutas do Brasil pra vender aqui… E algumas vêm de avião! (Certo, isso não faz parte dos melhores momentos de maio, mas eu não queria passar raiva sozinha.) Entenda a minha raiva lendo essa reportagem do Joio e o Trigo. E o melão, que está secando a água no meu estado?

Tem que cuidar muito do mental e do físico pra aguentar o tranco. Então esse mês voltei pra terapia (tinha interrompido no final do ano passado) e passei a praticar ioga com mais regularidade. Isso quando Pascu deixa, claro. Por que gatos adoram tapetes de ioga? Nunca saberemos. Outro grande momento de alegria do meu mês foi descobrir que só tem duas pessoas entre eu e Brigitte Vasallo. Uma grande amiga minha tá namorando um boy que é unha e cutícula da escritora. Ela é o maior crush da minha vida, então imagina aí a minha emoção.

Participei de uma conversa com Nanda e Efe, junto com Ellen, transmitida pela rádio do MST, durante a feira de reforma agrária em São Paulo. Não ficou gravada, porque é rádio, mas foi muito bacana. Fico feliz demais com essa aproximação com o MST. (Não sabe o que o MST tem a ver com veganismo? Descubra aqui)

Na parte doída-triste-alegre-bonita, passei muito tempo com a minha namorada, de quem estou me separando. Nossa relação durou dois anos e o fim está sendo um processo. É um momento de reflexão e de crescimento, mas com muito, muito amor. Um dia escrevo mais sobre isso. Cozinhei bastante pra ela esse mês e essa torta de cebola roxa com azeitona foi um dos pratos que apareceu na nossa mesa em maio. Enquanto navegamos sem bússola pelas águas do fim de um tipo de relação -e começo de outra-, alheios a tudo isso, os morangos crescem na horta.

E falando em horta, lá pelo dia 20 plantei todos os pés de tomate (14 variedades!), jerimum, couve, couve-flor, brócolis, beterraba… Felizmente as lesmas estão se contentando das folhas que coloco ao redor das mudas pra elas e tá tudo indo muito bem.

Na mesma semana plantamos os pés de tomate no nosso lote, nos Jardins Operários. Lá também plantamos abobrinha e berinjela. A gente se reveza, entre camaradas, pra aguar as mudas e pelo menos uma vez por semana nos encontramos lá pra cuidar da manutenção do lote. Queríamos um lote coletivo pra plantar comida pra nós, claro, mas também pra poder compartilhar a alegria de trabalhar a terra com as pessoas que participam das nossas atividades (migrantes em situação de rua, menores refugiados, famílias em situação de vulnerabilidade econômica). Está sendo incrível e olha que ainda nem deu tomate!

Pausa pra admirar as rosas que uma camarada de coletivo, e vizinha, me deu (do jardim dela). Porque queremos pão, mas queremos rosas também. Outra pausa pra admirar o fato de eu estar em processo de fazer as pazes com meu melasma. Tirei essa foto pra mandar pra uma prima, que também tem melasma (temos um grupo de apoio só com nós duas). Repare que estou com protetor solar com cor aqui, então sem essa camada aí as manchas são bem mais escuras. Mas estou aprendendo a aceitar que é isso, mesmo. Processos, processos. A vida é feita de processos. (Por favor, não me recomende tratamentos pra melasma. Eu já tentei vários e estou numa fase em que só quero me amar e ser feliz. Tire o seu ácido do caminho que eu quero passar com a minha pele de mulher de 41 anos que nem sempre se protegeu do sol. Tô bem, me acho top pra minha idade, beijo, tchau.)

Mais pro final do mês, quando a temperatura já tinha aumentado o suficiente, plantei as mudinhas de berinjelas palestinas que minha amiga Draguitsa me mandou de presente (ela mandou as sementes). É uma semente crioula, selecionada pra suportar o calor da Palestina, então não sei se ela vai gostar de crescer na Europa. Estou torcendo que sim. A segunda rosa do meu jardim se abriu e à partir daí foram rosas e mais rosas todos os dias. A primeira coisa que faço quando acordo é ir até a roseira e cheirar uma rosa. Recomendo.

Segui trabalhando no manifesto, com a ajuda de Satã. E colhi minhas primeiras ervilhas tortas (na verdade a primeira colheita da horta esse ano). Elas foram plantadas no final do ano passado, junto com as favas.

Outro grande momento do mês: o lançamento do nosso coletivo antiespecista aqui na periferia. Começamos a nos reunir em setembro do ano passado, uma vez por mês, e dia 27 fizemos o lançamento público em grande estilo. Foi na ocupação onde mora a minha namorada, que também é uma camarada do coletivo, e teve brunch (cozinhado por nós, com comida de descarte), sessão de filmes sobre o antiespecismo e três mesas redondas. Uma sobre antiespecismo e feminismo, outra sobre antiespecismo e ecologia e uma terceira sobre antiespecismo decolonial (eu que organizei essa mesa). Nossa intenção era mostrar que as lutas da esquerda (e a esquerda radical em si) não podem mais se dar o luxo de ignorar a luta antiespecista. Por isso o título: “Nossas lutas não são desertos antiespecistas”. O evento foi um sucesso e fiquei impressionada com a quantidade de pessoas antiespecistas que moram na nossa periferia. Mês que vem vai rolar o segundo encontro e acho que esse é o começo de algo muito importante. (No prato tem: bolo de pera e chocolate, bolo-pudim de damasco e abacaxi, pepino com hortelã, pão, brócolis confitado e tofu mexido com creme de castanha.)

Depois de uma semana inteira preparando o evento de lançamento do coletivo antiespecista, você pensa que descansei? No dia seguinte nossa cozinha solidária tinha que preparar mais uma refeição pra uma atividade nos jardins: o encontro da coalizão nacional dos jardins operários em luta. Nosso grupo recebe muitos pedidos pra cozinhar em eventos militantes e, apesar de estarmos sempre cansadas e ocupadas, quase sempre aceitamos porque é uma oportunidade pra falar de antiespecismo com outros movimentos. Passei a noite do sábado (depois do evento antiespecista) e a manhã do domingo cozinhando com uma camarada do coletivo (que acontece de ser também a minha namorada. Por isso tiramos onda nos chamando reciprocamente de “camarada meu amor”. Porque anarquistas não se levam a sério, mesmo). O almoço foi um sucesso, mas como não tirei foto nem da comida nem do evento, deixo vocês com fotos dos Jardins Operários, suas cabanas de madeira, suas rosas magníficas e as framboesas do nosso lote, que tinham acabado de aparecer.

Já no finalzinho do mês fui levar minha solidariedade pros nossos amigos afegãos, que são entregadores de aplicativo (de bicicleta). Conheci vários quando trabalhei em uma mercearia chique em Paris, ano passado, e como muitos moravam na minha periferia, acabamos nos aproximando. Eles estavam precisando de ajuda pra resolver uns perrengues administrativos e como não falam Francês, fui lá ajudar os companheiros. Que aflição ser refugiada indocumentada, sem falar a língua do país, e com problemas pra resolver no telefone. Depois de horas no telefone com uma ruma de gente que não queria ajudar, fui recompensada com uma refeição preparada por eles (delícia!), toda vegetal, e com um chá de açafrão que um dos companheiros trouxe do Afeganistão. Imagina atravessar meio mundo com essa preciosidade. Ele guarda a garrafinha no quarto e só compartilha com visitas especiais. Me senti realmente muito especial. E o chá é muito gostoso!

A primeira colheita de favas da horta. Comi temperada com um punhadinho de coentro, também da minha horta. Eu amo favas. Profundamente.

Comi os primeiros morangos da horta. Segui colhendo as folhas plantadas (acelga e alface) e as que nascem de maneira espontânea no jardim (dente-de-leão, hortelã) a cada refeição. As primeiras flores que plantei pras abelhas se abriram. Coloquei urtigas (do nosso lote, nos jardins operários) em uma quantidade enorme de pratos. E tiveram mais momentos de alegria, outros de tristeza. Coisas mais ou menos íntimas, mas esse post já está longo demais. Espero que o mês de maio tenha sido florido e gostoso pra você também.

Bolinho salgado de amendoim e urtiga

Tenho consciência que o nome dessa receita vai dar medo em muita gente, mas tem duas lições incríveis nessa prato, então bora lá.

Já falei nesse post que 1-urtigas são comestíveis e 2- que são uma delícia. Também falei que elas são riquíssimas em ferro e vou acrescentar agora que elas são extremamente ricas em proteínas, comparada às outras plantas. Corre à boca miúda que elas tem duas vezes mais proteína que a idolatrada soja. Porém como a urtiga, por ser uma folha, é levinha, pra conseguir competir com a soja você vai precisar comer um arbusto de urtiga inteiro. Mas eu só queria compartilhar esse informação pra você brilhar nos jantares mundanos com seu conhecimento sobre plantas comestíveis, mesmo. Não compactuo da proteinolatria e carência de proteína não deveria ser uma preocupação pra você, nem pra galera vegana em geral. Coma urtiga porque é gostoso, nutritivo e um alimento gratuito.

Da esquerda pra direita: alecrim, urtiga branca (com flores) e melissa.

Expliquei no post do pesto de urtiga como colher e cozinhar essa planta (sim, é seguro) e não vou repetir aqui. Dá uma olhada lá e aproveita e pega a receita do pesto. Na receita de hoje usei urtiga branca (Lamium album) que é da família da urtiga (visualmente e gustativamente são praticamente idênticas), mas não queima. Sim, uma urtiga que não queima. Hoje fui no lote que cultivamos coletivamente nos Jardins Operários aqui da minha cidade e colhi algumas pra comer no almoço. Ando apaixonada por urtigas e coloco em tudo (sopas, grãomeletes), mas hoje decidi inovar e fazer bolinhos salgados com ela. E aqui vem o segundo aprendizado do post de hoje.

Sabia que com um pedaço de pão velho, uma colherada de pasta de amendoim e alguns temperos dá pra fazer bolinhos supimpa? A inspiração veio de uma receita de bolinho de pão e nozes, que vi num site de receitas belga. Fiz mais ou menos como o site mandava e ficou muito bom. E tudo que acho muito bom, eu quero compartilhar aqui no blog. Só que pra quem está no Brasil, nozes é algo caro e difícil de achar. Sem falar que é importado. Será que não dava pra fazer usando outra oleaginosa?

A resposta é “sim”. Usei sementes de girassol no lugar das nozes e ficou supimpa. Mas resolvi ir mais longe no esforço de deixar essa receita acessível. Qual ingrediente da categoria das oleaginosas é o mais abundante e barato no Brasil? Amendoim. Que inclusive, é nosso! Então fiz umas adaptações, reduzi ao máximo os ingredientes e o resultado ficou ainda melhor do que a receita original. Desde então sempre que tem um pedaço de pão envelhecendo, faço bolinhos.

(Eu sei que botanicamente falando amendoim é uma leguminosa, ou seja, é um tipo de feijão. Mas como é gorduroso como oleaginosas e usamos da mesma maneira que oleaginosas, decreto que culinariamente falando, amendoim é oleaginosa. E tenho dito.)

O que me encantou nessa receita é que usando basicamente 3 ingredientes (pão velho, pasta de amendoim e um vegetal – aqui, urtiga) você faz algo muito saboroso em pouquíssimo tempo. É receita de carestia, quando só tem um pedaço de pão dormido na cozinha, um vegetal triste na geladeira e um fundo de pasta de amendoim no armário. Mas apesar de humilde, o resultado ultrapassa as expectativas. Meu tipo de receita preferido.

E se você usar urtigas, o que recomendo demais, o sabor será incrível! Pode confiar.

Come urtiga, bem.

Bolinho salgado de amendoim e urtiga

Quanto de pão dormido é necessário? O tanto que você tiver. À partir dessa informação você dosa os outros ingredientes. Lembrando que os ingredientes aparecem em ordem decrescente, ou seja, o ingrediente usado em maior quantidade aparece primeiro e o usado em menor quantidade, por último. Os três ingredientes essenciais são pão + legume + pasta de amendoim, o resto é tempero e pode ser adaptado (embora eu recomende muito usar molho de soja, pois fica uma delícia com amendoim). Se quiser usar coentro ou salsinha fresca, maravilha! Se só tiver alho e shoyu, dá certo também.

Pão dormido

Urtigas frescas (ou outro legume – veja dicas no final da receita)

Pasta de amendoim (pura, sem açúcar)

Molho de soja (shoyu)

Alho

Raspas e suco de limão

Ervas (usei alecrim fresco porque era o que eu tinha, mas tomilho e orégano secos também são ótimo aqui)

Pimenta preta

Ferva as urtigas por alguns segundos, pique bem e esprema pra extrair a maior parte do líquido (como expliquei nesse post). Usei uma parte de pão pra uma parte de urtiga. (OBS Como dessa vez usei urtiga branca, que não queima, não cozinhei antes e bati crua junto com o pão).

Corte o pão dormido em pedaços médios e coloque no liquidificador junto com as urtigas cozidas e o alho. Bata (ou pulse) até ficar bem triturado, como uma farofa molhada. Transfira pra uma tigela e acrescente a pasta de amendoim (veja a foto acima pra ter uma ideia da proporção) e os temperos: raspas e suco de limão, molho shoyu, ervas e pimenta preta. Tudo a gosto. Misture bem com as mãos. Prove e corrija o tempero, se necessário. A massa deve ficar bem colante e formar bolinhas sem dificuldade quando apertada entre as mãos. Cuidado pra não ficar molhada demais: acrescente os ingredientes líquidos com cuidado (shoyu e suco de limão). Se ficou muito seca, junte um bocadinho de água.

Pra quem fica nervosa se não tiver medidas, usei 1 colher de sopa (não muito cheia) de pasta de amendoim pra mais ou menos 2 xícaras da mistura pão+urtiga, mais 1 colher de sopa bem cheia de shoyu, 1 dente de alho pequeno, raspas de meio limão galego e umas 2 colheres de chá de suco de limão. Não precisei acrescentar água pra dar o ponto. Essa quantidade deu 6 bolinhas, o suficiente pro meu almoço.

Faça bolinhas com essa massa (umedeça as mãos com água, pra não grudar) e frite em uma frigideira antiaderente (eu nem uso óleo, pois a gordura da pasta de amendoim é suficiente pra dourar os bolinhos – mas só funciona se a frigideira for realmente antiaderente!). Você também pode assar no forno. A vantagem é que dá pra fazer uma quantidade bem grande de uma vez, mas a desvantagem é que as bolinhas ficam mais secas (nada dramático).

São uma delícia quentes, mas guardei as bolinhas assadas na geladeira, em um vidro fechado, por vários dias e também achei gostoso frio. (Na verdade eu abria o pote e comia gelado, mesmo).

Dica: Não tem urtiga? Use couve picada ou cenoura ralada (ambas cruas). Bata a couve com o pão, como fiz com as urtigas. Mas se usar cenoura ralada, deixa pra acrescentar na tigela, junto com os temperos. Já fiz com cogumelos (champignons), salteados antes de entrar na massa, e ficou incrível (foto abaixo – aqui as bolinhas foram assadas no forno).

Omelete de feijão mungo

Dias atrás minha amiga Bárbara me mandou uma mensagem contando que tinha feito omelete com ervilha seca e que tinha ficado muito feliz com o resultado. Há tempos eu andava pensando em fazer omelete com outra leguminosa, seguindo a técnica que uso pra fazer omelete de grão de bico (vulgo grãomelete). A mensagem dela me deu ainda mais vontade de explorar novos caminhos, mas ao invés de usar ervilha seca, decidi usar feijão mungo.

Se você é nova no veganismo e/ou se tem pouca intimidade com a culinária vegetal, talvez o parágrafo acima tenha te deixado intrigada. “Por que danado veganas querem fazer omelete usando feijões ao invés de ovo?”, você deve estar se perguntando. A resposta é: porque é uma delícia! Quando você sai do padrão de culinária especista, que vê animais e os produtos do seu corpo como alimentos, abre-se um mundo de possibilidades na cozinha. Feijão pode ser a base de omeletes (grãomelete, feijãolete, chame como quiser) saborosos, nutritivos e facílimos de preparar. E por que chamar isso de “omelete”, se não tem ovo? Eu acredito que usar palavras que denominem receitas à base de animais e seus derivados pode ser útil pra te informar que a técnica de preparo (como no caso de queijos vegetais) ou a maneira de consumir (como no caso desse omelete) são as mesmas. Eu chamo de “omelete de feijão” pra sinalizar que a gente cozinha essa preparação como um omelete, que pode acrescentar os mesmos ingredientes que usaríamos pra incrementar um omelete de ovo e que consumimos como um omelete (acompanhado de vegetais no almoço / dentro de um pão no café ou jantar / puro, como um lanche rápido…).

Escolhi usar feijão mungo aqui por duas razões. Eu moro na periferia norte de Paris, onde tem uma comunidade indiana importante. Aqui tem várias mercearias com produtos indianos, super acessíveis e sempre encontro feijão mungo nesses lugares, já que ele é bastante utilizado na culinária indiana. A segunda razão é que tem alguma propriedade culinária no feijão mungo que faz com que ele se comporte um pouco como ovo. Não por acaso os produtos industrializados que se vendem como “ovos vegetais” geralmente usam proteína de feijão mungo. Eu queria ver se dava certo fazer omelete em casa, usando simplesmente o feijão inteiro, como já fiz com o grão de bico tempos atrás.

Trago boas novas! Não só é possível, como é muito fácil. O sabor é bem suave, principalmente se você coar a mistura antes de cozinhar (explicações na receita abaixo) e isso também é positivo. De um lado, esse feijãolete vai agradar os paladares cheios de melindres. Aqueles que foram formados sem muito contato com vegetais e tendem a rejeitar a comida da terra. E, por outro lado, o sabor discreto te convida a ser criativa e acrescentar outros ingredientes, pra incrementar a receita. E a textura realmente é mais próxima do omelete de ovo que a minha (amada, idolatrada, salve, salve) receita de grãomelete. Sabe aquela coisa ligeiramente gelatinosa e elástica do ovo? Você vai encontrar algo próximo aqui.

Um dia tentarei a versão de omelete vegetal de Bárbara, embora no momento eu esteja tão animada com a versão com feijão mungo que já repeti a receita 5 vezes em duas semanas. Mas agora que essa porta se abriu, vejo inúmeras versões de omelete de leguminosas no futuro.

Omelete de feijão mungo (feijãolete)

Feijão mungo cru (usei o grão partido aqui, mas funciona igualmente com o grão inteiro)

Água, sal e tempo

Óleo/azeite pra cozinhar

Opcional:

Cebola

Alho

Coentro

Páprica defumada

Pimenta preta

Deixe o feijão mungo de molho na água fria por pelo menos 12 horas (de um dia pro outro). Eu já deixei de molho por 24h e 48h (trocando a água do molho uma vez) e nos três casos dá certo. Aumentar o tempo da demolha deixa o grão mais digesto, então escolha de acordo com a sua sensibilidade pra digerir feijões.

Escorra o feijão demolhado, enxague rapidamente e bata no liquidificador com água apenas suficiente pra cobrir tudo (sem passar). Bata por alguns segundos, até o feijão se transformar em um líquido encorpado e liso (esfregue entre os dedos). Use uma peneira fina pra coar a mistura, separando as cascas e parte da fibra. Se quiser fazer seu omelete sem coar, fique à vontade. Saiba apenas que a casca deixa essa receita mais granulosa e com um sabor mais pronunciado, o que não é necessariamente desagradável (mas eu prefiro coar). A espessura da massa deve lembrar uma vitamina de banana (nem espessa demais que pode ser comida de colher, nem líquida como um leite).

É nesse momento que você pode incrementar seu omelete. Aqui eu juntei cebola roxa em tiras finas, alho picado, coentro, páprica defumada e pimenta preta. Misture tudo na massa e não esqueça de colocar sal a gosto.

Aqueça um pouco de óleo (ou azeite) em uma frigideira antiaderente. Quando estiver bem quente, despeje um pouco da mistura de feijão mungo (uma camada fina é melhor do que uma camada muito espessa). Cozinhe em fogo médio até o omelete se formar e for possível virar sem que ele se quebre. Baixe o fogo e cozinhe mais alguns minutos do outro lado. Quando estiver bem dourado dos dois lados, está pronto.

A massa de omelete (feijão mungo demolhado, triturado e coado) pode ser conservada por vários dias na geladeira. Sempre que quiser fazer um omelete, retire a quantidade necessária, tempere e cozinhe.

Veganismo Popular e Amazônida com Michelle Muriel

Um dia, muitas luas atrás, uma moça chamada Michelle me enviou uma mensagem pelo Instagram (na época eu ainda frequentava a plataforma) e trocamos algumas ideias. No final da conversa ela disse que era de Belém do Pará e me chamou pra conhecer a cidade. Eu disse que aceitava o convite com muito gosto, que era um sonho antigo visitar Belém, mas que não sabia quando isso iria acontecer. Anos depois eu desembarquei no aeroporto de Belém e lá estava ela me esperando, junto com outras camaradas, com um sorriso enorme e uma banana na bolsa. (Eu tinha enviado uma mensagem pra Michelle, antes de embarcar pra Belém, pedindo encarecidamente que ela levasse uma coisinha pra eu comer porque a jornada até lá seria longa e eu já estava morrendo de fome. Curiosamente quando eu entrevistei Michelle, dias depois, a questão de ver frutas como lanche acabou entrando na conversa e desencadeando uma reflexão profunda do meu lado.)

Michelle Muriel é gestora ambiental, ecofeminista e militante pelo veganismo popular na Amazônia. Ela faz parte do coletivo antiespecista VEM (Veganismo Em Movimento), que é associado à UVA. Como parte da Jornada do Veganismo Popular Contra o Fim do Mundo, que aconteceu durante todo o mês de novembro de 2022, em várias cidades do Brasil, as/os camaradas do VEM me receberam em Belém pra participar de um evento junto com Ana Felicien, uma companheira da Venezuela, e Gisiane Ferreira, uma companheira do MST. Foi um dos eventos mais potentes dos quais participei e ainda escuto os ecos daquela conversa dentro de mim. E o que dizer do pessoal do VEM? Ô povo maravilhoso! Que honra construir a luta antiespecista no Brasil do lado desse povo! 

Não era possível entrevistar todo mundo do coletivo, mas consegui tempo pra gravar uma conversa com duas companheiras do grupo e a primeira que vai aparecer aqui é Michelle. Ela me disse que nosso encontro foi uma pororoca e eu não poderia achar uma maneira mais linda e certeira de descrever o que senti. Foram quase duas horas de gravação, que eu transcrevi em nada menos que 11 páginas! Mesmo depois de duas semanas de edição, essa é a entrevista mais longa que já publiquei aqui no blog, mas te garanto que vale muito a pena ler até o final.

Tivemos essa conversa na ilha do Combu, dentro da floresta Amazônica e tenho certeza que as palavras dela vão provocar uma pororoca no peito de vocês também.

Como você se tornou vegana?

Em 2010 eu estava cursando gestão ambiental e visitei um abatedouro como parte de um trabalho pra faculdade. Eu já tinha duas cachorrinhas e quando cheguei lá e vi os animais no curral, imediatamente pensei nelas. Até hoje eu lembro do olhar dos animais na minha direção, da sensação de não poder fazer nada pra ajudá-los. Depois desse dia sempre que eu via carne no prato eu lembrava dos animais no abatedouro e não conseguia comer. Foi quando um amigo me falou sobre vegetarianismo. Eu não conhecia nenhuma pessoa vegetariana e pensei que aquilo não era pra mim. Eu repetia que ainda estava assustada com o que eu tinha visto no abatedouro, mas que em algum momento eu voltaria a sentir cheiro de carne sem associar aquilo com animais sendo queimados. Isso durou um ano e durante esse tempo não consegui comer carne diretamente, mas quando tinha carne no meio de alguma comida, charque por exemplo, eu colocava pro lado e comia o resto. Frango eu já não gostava de comer, então eu só comia peixe. Até que em 2011 eu me tornei vegetariana. 

Logo depois comecei a trabalhar na Secretaria Estadual de Meio Ambiente. Foi então que comecei a visitar abatedouros como parte do meu trabalho, fazendo fiscalização, recenseamento. Eu morei uma época em São Félix do Xingu, no sudeste paraense, que é onde tem o maior número de bovinos do estado. Quando você chega nessa região o agro está presente em tudo. Tu não vê mais mata, essa mata que a gente está vendo aqui, tudo foi devastado. À noite a fumaça das queimadas parece uma neblina. Tudo foi transformado em pasto. E o que eu via nos abatedouros? Uma cena de horror: sangue espalhado por todos os lados e tristeza. É horrível porque ninguém é feliz fazendo esse trabalho. Os trabalhadores nos abatedouros são uma mão de obra descartável. São corpos que, se acontecer alguma coisa com eles, não serão lembrados.

Sem falar no impacto ambiental. Aquele sangue, aquela gordura toda que sai dos animais mortos vai se acumulando numa vala. E é um negócio verde, um lodo. Aquilo deveria ser tratado antes de ser jogado num rio, só que na maioria dos casos isso não acontece. Nos lugares próximos aos abatedouros onde a água dos rios foi testada, foi constatado que ela é imprópria pra consumo, pra banho. Então as conexões foram sendo feitas na minha cabeça.

Aí teve o caso do abatedouro no Marajó… Fomos fazer uma inspeção e fiquei impacta quando vi que os animais estavam doentes, que tinha tumores nas carnes. Falamos que aquela carne tinha que ser jogada fora, mas o veterinário responsável disse: “Não! A gente tira a parte doente e vende o resto”. Mandamos descer toda a carne que estava dentro de um caminhão, indo pro frigorífico. O abatedouro foi fechado, lacramos tudo. Mas políticos influentes foram mobilizados e poucos dias depois o lugar estava funcionando novamente.

Comecei a perceber o impacto social da pecuária também. Eu via pessoas na miséria, morando nas margens do rio, mas sem a possiblidade de pescar porque o rio está poluído. E ao mesmo tempo eu via um grupo privilegiado, os pecuaristas, os donos dos abatedouros, se aproveitando daquela situação, exibindo riqueza como eu nunca tinha visto em Belém. Em lugares como Xinguara, São Felix do Xingu e Marabá eu via pessoas extremamente brancas, louras, enormes, totalmente diferentes das pessoas daqui, com botas de couro e bolsas de luxo que eu só tinha visto, até então, na televisão. E quem mora nas comunidades dessa região passa a servir aquele grupo, ser garçon, cozinheira nas churrascarias, diarista… 

Como eu estava mais próxima da classe trabalhadora, fui fazendo amizades com as pessoas que prestavam serviço ali. E elas me chamaram pra visitar a roça delas. Essas pessoas criavam animais pequenos, mas elas se alimentavam principalmente do que plantavam. Descobri que no fim de semana o pessoal da comunidade vendia verduras no mercado e comecei a fazer minhas compras lá. Era muito fácil, e farto, se alimentar com comida vegetal ali.

À noite eu via as manifestações dos indígenas falando sobre o avanço do agro, explicando que eles estavam sendo expulsos das terras, que estavam em luta… Então a situação ficou evidente pra mim. Existe um grupo muito poderoso, os pecuaristas, que está se beneficiando da situação e, ao mesmo tempo, oprimindo, vulnerabilizando, excluindo e marginalizando a população nativa. Na época eu não tinha teorias, mas é impossível estar ali e não fazer essas conexões.

Fale um pouco sobre o veganismo popular no seu território

Quando voltei pra Belém, voltei com vontade de me organizar. Foi quando eu entrei em contato com o pessoal do coletivo VEM (Veganismo Em Movimento). O coletivo já existia, mas estava parado. As eleições de 2018 estavam se aproximando e organizamos algumas ações pra mobilizar as pessoas e mostrar quem era Bolsonaro e ajudar Haddad a se eleger. A gente entendia que as lutas estavam conectadas e na época falávamos de veganismo interseccional. Ainda não conhecíamos o termo “veganismo popular”, mas o pensamento era o mesmo. Começamos a ler o blog Veganagente. Foi então que eu vi o seu vídeo com Sabrina Fernandes e comecei a ler o seu blog também. A gente pegou uns textos do seu blog, juntou com textos do Veganagente e nos reunimos pra ler e discutir. Foi assim que retomamos as atividades do VEM, com um veganismo politizado aqui em Belém. 

As tarefas são muitas e somos poucas pessoas no coletivo, mas estamos muito felizes com o sucesso dos eventos que organizamos. O VEM passou a ser uma referência aqui e somos convidados pra participar de discussões e construir junto de outras lutas. Em 2020 organizamos um encontro com as candidaturas pra vereadores e teve muito interesse da parte dos candidatos em aprender mais sobre o que defendemos. Conversamos muito sobre merenda escolar, alimentos agroecológicos e as várias políticas públicas que Bolsonaro derrubou, na verdade que vêm sendo derrubadas desde Temer, e que impactam diretamente os ribeirinhos que produzem alimentos aqui. Se não tiver políticas públicas de escoamento como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), articuladas com o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), os agricultores não vão conseguir escoar a produção e a comida não vai chegar nas escolas. Quem ganha são os monopólios alimentares, que vão conseguir levar seus produtos pra merenda. Sem as políticas públicas, quem produz tem o que comer, mas não consegue vender uma parte e não tem como garantir o resto do que precisa.

Talvez em reação a isso percebi que o número de cooperativas e associações rurais está aumentando. Elas se reuniram pra buscar uma forma autônoma de levar toda essa produção pras feiras municipais e pra beira das rodovias. Aqui em Belém tem um movimento de feira totalmente autônomo. Conseguem organizar transporte pra chegar até aqui, ficam no meio da rua, sem nenhum tipo de estrutura e vendem seus alimentos. Outro dia perguntei pra um feirante se tudo aquilo na barraca vinha da propriedade dele. O senhor respondeu: “É, minha filha, tudo isso aqui é da minha propriedade. Tem muita coisa lá, a gente fica com uma parte e o que sobra a gente traz pra vender. Tem tanta coisa que até estraga. Aí eu fico pensando nas pessoas da cidade, que moram na rua, que não tem o que comer… Lá é tão farto!” 

Eu vejo que as coisas andam juntas. No campo, as pessoas estão trabalhando e lutando muito pra estar naquele território. Elas criam laços com a terra e relações com as outras pessoas. São exemplos de sociedades muito solidárias. E ali está a sua identidade. Quem vem pra cidade, porque perdeu a possiblidade de viver da terra, perde essa rede de apoio. Na cidade elas são marginalizadas, empurradas pra beira dos rios ou pras periferias, lugares que não são vistos, ou acabam na rua e começam a passar fome. É necessário uma sensibilidade pra gente perceber isso. Na cidade as pessoas estão cada vez mais individualistas e você acaba ficando mais endurecido, perdendo a sensibilidade pra olhar pro outro. 

O que é o veganismo pra você?

O veganismo tem uma dimensão política, é uma luta coletiva por libertação animal e humana. Mas como amazônida, ele também tem uma dimensão muito particular pra mim. Estando aqui na Amazônia e encontrando as pessoas nas comunidades, eu vejo que ele é um espaço que agrega e acolhe as pessoas que estão em luta. 

Porque você chega nas comunidades e tem luta. Elas estão lutando pra serem reconhecidas, pra não serem invisibilizadas, pras que políticas públicas cheguem até elas. Estão defendendo suas causas, seu território, sua identidade. Muita gente acha que ao falar de veganismo a gente se distancia das pessoas que consomem animais pra subsistência. A verdade é que estamos muito mais próximas delas, pois elas têm uma relação muito forte com a natureza. E eu encontro no veganismo um lugar onde eu posso me apoiar pra tratar desse aspecto, que é bem sensível: a conexão com a natureza.

Quando a gente nasce e cresce aqui aprende desde pequenininha que tem que pedir a permissão da natureza pra entrar no rio, pra entrar na floresta. “Com licença, mãe natureza!” Quando vamos plantar, a gente conversa com a natureza e pede a permissão. Na hora de colher, também. Tem a época em que o caranguejo sai pra namorar e ninguém, nem o pegador de carangueijo, pega carangueijo nessa época. Ele espera o tempo do carangueijo crescer. Aqui a gente respeita a lua, as estações, o inverno amazônico, o verão amazônico. Meus bisavós e avós cresceram na beira do rio, na beira do mangue. Entrou ali, não se pega nada sem permissão. Nem um animal, nem uma folha, nem uma casca. A gente aprende a ter esse respeito. Então quando eu conheci o veganismo eu me identifiquei, porque é esse respeito que eu quero. 

O veganismo pra mim tem essa dimensão política coletiva que casa muito bem com o veganismo amazônida. Nós, amazônidas, estamos com essa sensibilidade aflorada em defesa da Amazônia e nossas raízes estão clamando isso. Não tem como você mergulhar numa praia em Mosqueiro, numa praia no Marajó e não querer lutar por isso. Porque se a gente não lutar por isso, o preço que vamos pagar é alto demais: vamos perder nossa identidade.

Então aonde eu vou lutar? Vou lutar aonde tem respeito por todos os seres, que é junto do veganismo popular. E não sou só eu que falo isso: tem meus companheiros do VEM, os companheiros do MST, a UVA… É uma luta pelo nosso território, pela nossa identidade, pela nossa história. Pelos meus avós, bisavós, os que estavam aqui antes, resistindo pra não sucumbir e os que morreram lutando. A terra onde eles lutaram permanece e é a terra onde lutamos hoje. Pra mim o veganismo é isso.

Por que você é vegana?

Primeiro porque eu não consigo ver o corpo de um animal como alimento. Pra mim o alimento é vegetal. Eu me disponho a ser uma amiga e companheira de luta desses animais, de todos os animais. Segundo porque, sem precisar falar nada, quando escolho um prato totalmente vegetal as pessoas a minha volta percebem e fazem perguntas. Assim o meu existir já demonstra a minha prioridade de vida, que é lutar em defesa da Amazônia e dos animais. 

No veganismo eu consigo conectar o que acredito ser necessário individualmente e coletivamente pra construir a sociedade que a gente almeja. É uma luta que não está lá na frente. Ela vive aqui, no presente, e já existia lá atrás. A gente chega em qualquer comunidade na Amazônia e vê a luta pela defesa dos animais, pela defesa da natureza.

Veja o exemplo da pesca industrial. Colocam barcos industriais na cabeceira do rio e o peixe não entra nas comunidades, os ribeirinhos não podem fazer pesca artesanal. A pesca artesanal luta contra a pesca industrial e como é que a gente não vai lutar do lado dessas pessoas? Se a gente não faz uma luta contra os grandes monopólios da indústria não teremos condições de viver o veganismo, de alcançar libertação animal. As pessoas vão comer o quê? Um ultra processado? Vão sucumbir? Vão vir pras periferias ou viver uma vida deplorável no meio da rua? Primeiramente devemos lutar com os pescadores artesanais contra a grande indústria. Quando eles tiverem seu lugar garantido e condições de escolher o que fazer, só então terão a possibilidade de considerar os animais como seus companheiros de luta. E é à partir daí que a gente vai poder levar a discussão do antiespecismo até eles. 

Lembrei de uma história.  A pesca industrial estava afetando várias comunidades em Marapanim e apesar das pessoas que moravam ali denunciarem a situação, os órgãos ambientais e a Câmara repetiam que “não tem ninguém nessas comunidades”. Como sempre, a Amazônia é vista como um grande vazio demográfico. Então uma liderança comunitária ribeirinha organizou várias pessoas num caminhão, cada uma levando um cartaz com o nome da sua comunidade e foram na câmara pra dizer “a gente existe”. No final de uma luta de 12 anos conseguiram uma reserva extrativista marinha que protege essas comunidades de agricultures familiares, de pescadores artesanais e de marisqueiras (que é uma atividade feita por mulheres). A reserva se chama “Reserva Mestre Lucindo”. Mestre Lucindo foi um músico de carimbó e perguntei por que deram o nome dele pra reserva. Me explicaram que ele também era pescador artesanal e compunha suas músicas nas noites de luar, enquanto pescava. Ele morre, mas renasce como reserva extrativista. Ele renasce pra proteger os membros da comunidade. Aqui a existência das pessoas permanece, as lembranças, as memórias, os ensinamentos… Isso é muito forte pra nós.

Estamos na Amazônia, onde o projeto colonial avança sem pausa há séculos. Você acredita que o veganismo se articula com a luta decolonial?

O veganismo popular fala da defesa do território, da identidade, do que está aqui, dos antepassados que defenderam a terra e produziram uma cultura alimentar tão forte e diversa. Ele vem com o principio de fortalecer a cultura alimentar do seu local e pra mim isso é decolonial. Veja que isso não é algo novo dentro dos espaços de luta. Que as pessoas aqui descrevam sua luta como “decolonial” ou não, é escolha delas, mas essa luta sempre existiu. O veganismo vem se somar a isso tudo e eu percebo que ele vem organizar as pessoas e nomear as coisas. Você chega aqui na comunidade do Combu e consegue identificar o que é colonial. Então a gente se soma de uma forma organizada e já denominada, explicando com todas as palavras o que você observa aqui nas comunidades que já estão na luta. Se eles produzem, a gente vai consumir. Organizamos encontros com as candidaturas tanto em 2020 quanto agora, em 2022, pra falar sobre soberania alimentar e formas de fortalecer a cultura alimentar. Aqui no Ver o Peso tem essa força ainda. Mas a gente tem que ficar atento e vigilante, porque o colonialismo vem devagarzinho, pelas laterais.

(Contei pra Michelle o que vi na minha visita ao mercado Ver o Peso no dia anterior: farinha de tapioca e coco seco sendo vendidos banhados em leite condensado. A Nestlé conseguiu se enfiar até em produtos tão tradicionais, no mercado que é um dos maiores símbolos da cultura alimentar paraense.) 

Sim, a gente tem que ficar vigilante. 

É complicado ser vegana na Amazônia? 

Aqui é muito fácil se alimentar bem, de maneira farta e dentro da nossa cultura alimentar, sendo vegana. Meu pai carrega muito essa cultura alimentar raiz. Quando é época de pupunha, ele cozinha pupunha na casa dele, coloca um pouco num potinho e deixa na portaria do meu prédio. Aí eu já subo com minha pupunha cozida, faço um cafezinho e é meu lanche ou café da manhã. Quando a minha família fala: “Vamos fazer um café da tarde?”, eu levo um milho cozido, uma macaxeira cozida, uma pupunha cozida. E ninguém vai se espantar e dizer: “Ah, isso aqui que a Michelle trouxe é vegano!” Não, as pessoas vão dizer: “Eu adoro milho cozido, adoro macaxeira!” As pessoas comem o que eu levo e o pão, aquele pão de supermercado que alguém colocou na mesa, vai ficando de lado. Se tiver um bolinho de macaxeira, que a minha mãe faz, ou um bolinho de tapioca, as pessoas adoram porque esses pratos são carregados de memória afetiva. Talvez isso esteja se perdendo entre as pessoas mais jovens, mas a minha geração ainda tem essa lembrança de infância da vó fazendo mingau de carimã, mingau de milho, mingau de banana. Antigamente não tinha leite de vaca, era sempre com leite de coco, porque é o mais prático aqui. Também tem o leite de castanha (do Pará). 

Já escutei muitas pessoas afirmarem, no Brasil e na Europa, que veganismo não faz sentido porque “indígenas caçam”. Pior, que o veganismo é “anti-indígena” e “busca separar o humano da natureza”. O que você diria pra essas pessoas?

Antes de falar, é bom ouvir. Ninguém pode falar por ninguém, incluindo nós, no movimento vegano. A gente tem que ouvir as pessoas da Amazônia. Pra se somar a essa luta, precisamos estar no local, ouvir as pessoas e ter a sensibilidade de entender que elas são as protagonistas. Se um grupo indígena está falando, vamos ouvir. Eu tenho certeza que eles não estão falando que é pra matar não sei quantas cabeças de gado. Não tão falando isso, não. A gente tem que chegar, sentar e ouvir. Depois se perguntar: “Onde posso ajudar?” Estamos olhando pro mesmo destino, pro mesmo horizonte? Estamos, então vamos lá juntos. As pessoas falam: “Ah, o veganismo é isso, o veganismo é aquilo…” Quantas dessas pessoas vão estar lá pra lutar ao lado dos indígenas?

Essas pessoas têm uma ideia estereotipada dos grupos indígenas. E usam isso pra desconsiderar o veganismo e continuar vivendo sua vidinha no ar condicionado, comendo carne, numa bolha de conforto, sem conseguir enxergar quem está do seu lado? Ouçam o que eles estão falando ao invés de falar o que vocês acham deles.

Gostaria que as pessoas tivessem a oportunidade de sentar e tomar um cafezinho com uma comunidade indígena ou ribeirinha. Se você sentar e tomar um café com essas pessoas elas vão te oferecer uma macaxeira cozida. Provavelmente vão te oferecer um suco de cupuaçu, ou de bacuri, uma banana da terra frita… E quando você falar da defesa da natureza, da defesa dos animais, elas serão as primeiras a concordar. Elas utilizam os animais pra subsistência, mas a visão delas é muito próxima da nossa luta pela defesa da natureza, dos animais e da Amazônia. 

Ouvi dizer por aí que o veganismo pode até ter alguma relevância nas cidades, mas que não tem sentido chegar pras comunidades indígenas e falar pra elas comerem estrogonofe de soja. Desde então fiquei com essa dúvida. (contém ironia) Vocês realmente querem que  indígenas parem de pescar e comam estrogonofe de soja no lugar?

Mais uma vez, isso é a visão do veganismo de alguém que não conhece a luta. Se você quer ter uma opinião sobre algo que você não conhece, sem estar no local onde essa luta acontece, converse com alguém que está lá. É importante se informar antes de falar!

Nós, do movimento vegano, não estamos chegando em nenhuma comunidade indígena ou ribeirinha falando: “Vamos fazer um escondidinho de soja?” Não! Quando eu vou pra essas comunidades muita gente me pergunta o que eu vou comer. Eu levo minha comidinha, minha marmita? Levo, até porque gosto de compartilhar. Mas eu vou tranquila porque sei que essas pessoas não vão me julgar. Eu vou sentar na mesa com elas e vai ter um peixe, uma galinha caipira, mas também vai ter macaxeira, açaí, farinha, tapioca. Sempre tem feijão de corda, feijão verde. Se tiver pupunha, eu coloco no meu prato. Se só tiver açaí e farinha, eu já almocei!  Ninguém vai ficar te questionando por você não comer a galinha ou o peixe, muito pelo contrário! Eles vão experimentar o que eu tiver levado, eu vou comer os vegetais que eles tiverem preparado e vamos socializar ao redor da comida compartilhada.

Mas o que a gente pode discutir aqui é um pensamento muito colonial e neoliberal que vai chegando nos lugares e transformando a maneira como vemos a comida. Então as pessoas passam a não enxergar os frutos, as frutas, os alimentos vegetais em geral, como alimento. Isso faz parte da missão do veganismo: lutar pro vegetal ter um papel central na mesa.

Eu cheguei em um lugar uma vez, a trabalho, e tinha muito coco. Todo mundo estava bebendo água de coco. Estava naquele intervalo entre o café e o almoço, então eu comecei a comer a carninha do coco. Quando eu vi, todo mundo estava fazendo igual. Porque é gostoso! Mas até então ninguém tinha pensado em comer a carninha do coco. Eu gosto de comer o cupuaçu, quebrar e comer a polpa. O bacuri também. Como a fruta diretamente. Nesses lugares tem muita polpa, porque as comunidades comercializam, então você pode pegar a polpa e fazer um suco… Também tem sempre biju, que é diferente da tapioca. O biju é feito com a farinha d’água misturada com água e um pouquinho de açúcar. É um lanche da tarde pra mim. 

(Explico que pra mim uma das maiores contribuições do veganismo é passar a enxergar o vegetal, uma simples fruta, como um lanche satisfatório. A gente vê comida onde as pessoas especistas vêem ausência de comida. Sempre que me dizem: “Você não come carne, nem laticínios, nem ovos? Então não come nada!” eu percebo a que ponto as pessoas especistas vêem o vegetal como uma não-comida. Michelle falou de como a Amazônia é considerada, por quem quer explorá-la, como “um vazio demográfico” e agora estou me dando conta que comida vegetal também é vista como uma espécie de vazio alimentar.)

Exatamente. Também é comum ter castanha (do Pará) em todos os lugares. Você chega e as mulheres estão cortando a castanha, preparando pra vender. Aquilo ali com um cafezinho, pra mim já é um lanche! Outro dia eu estava com meus colegas de trabalho e tinha muito capim santo no lugar onde estávamos. Fizemos uma panela de chá, que meus colegas tomaram com biscoito de castanha. O biscoito levava leite, então eu tomei o meu chá com as castanhas, mesmo. Como você disse, muita gente não vê isso como lanche, como refeição.

Como falar da luta antiespecista dentro da esquerda?

Esse está sendo o nosso maior desafio. É onde a gente vê mais resistência. Quando a gente chega numa comunidade e leva sua comida vegetal, ou faz seu prato, é tranquilo. Mas quando a esquerda percebe que você é vegana, é muito comum fazerem uma crítica não embasada. Dizem que vamos ficar com deficiência de nutrientes, que comer animais é cultural…

A gente tenta trazer a esquerda pro veganismo explicando que existe um ponto comum nas nossas lutas: a exploração dos corpos, dos corpos de todos os animais, humanos e não-humanos. Mostramos que a exploração dos animais tem por finalidade a acumulação e o lucro e que com isso vem todas as questões socio-ambientais, como a exploração dos trabalhadores, a destruição da floresta, a poluição dos rios… A gente tenta conectar isso pra que as pessoas percebam que lutamos contra um inimigo em comum. Pra elas enxergarem a relevância em defender os animais, porque estamos todos conectados num grande sistema. 

Muita gente não consegue perceber o quão conectados estamos… Basta pensar que todo mundo precisa do ar. Se tirar o ar, a gente morre. Precisamos dos rios, das florestas, dos animas… Se a gente não se perceber como parte importante desse processo, assim como os outros animais, a gente quebra os pilares importantes pra reprodução da vida.

Acho que na esquerda tem muito a questão de rigidez, de não mudar o que fazem, o que falam. Mas aqui, por causa do que a pecuária está fazendo com a Amazônia, as pessoas na esquerda conseguem conectar isso, perceber a importância, mas sem necessariamente se tornarem veganas.

Existe uma resistência com a questão antiespecista. Minha leitura é que como as pessoas teriam que fazer um esforço, se quiserem se tornar veganas, e como não tem ninguém cobrando essa postura delas dentro da esquerda, é muito mais fácil deixar pra lá. Dizem: “Isso não é urgente, então vamos deixar pra depois”. 

A gente convida o pessoal na esquerda a lutar pelo antiespecismo de maneira paralela. Porque nós, veganas, militamos de maneira paralela. A gente luta contra a opressão, então construimos condições pra fazer as lutas acontecerem de maneira simultânea. Dá pra você viver sem consumir nada de origem animal e, juntamente com a defesa da luta antiespecista, você pode se aliar à luta LGBT, à luta antiracista… Dá pra fazer todas as tarefas da militância na esquerda sendo antiespecista e a gente mostra isso através do exemplo. 

Algumas pessoas de esquerda, quando entendem o que é o veganismo, conseguem conectar as pautas imediatamente. Outras precisam fazer um esforço maior pra superar a questão do paladar. Mas sabe uma coisa que eu vejo, principalmente aqui em Belém? O lado social. A gente tem a síndrome do vira-lata. A gente não quer parecer nortista, não quer parecer caboquinho. “Nossa, isso é coisa de caboquinho, não faz isso!” 

O que é ser caboquinho?

É a mistura do indígena com o negro, a miscigenação de etnias aqui. É o caboclo, aquele que mora no interior, que está perto da natureza, que tem uma outra forma de se alimentar e de se relacionar com a natureza. Aí a gente pensa: “Não quero parecer um caboquinho! Quero dizer que vou pro Sudeste, que viajo pelo menos uma vez por ano pra Europa com a minha família, que tenho uma empregada doméstica, que tenho um carro novo, mesmo que eu esteja cheia de dívidas…” A gente mora aqui, mas não quer parecer com as pessoas daqui. Antigamente as pessoas tinham vergonha de estar com a boca suja de açaí, porque quem tomava açaí eram os caboquinhos. A comida, a base alimentar do ribeirinho, do caboquinho, é o açaí, então eles sempre estão com a boca e os lábios roxos. Tucupi também é comida de caboquinho, mas quando chefs de fora começaram a falar do tucupi, todo mundo passou a dar valor. Agora você chega na Estação das Docas e tem tudo isso lá, só que em versões muito mais caras.

E pra não ser identificado como caboquinho, é preciso comer o que? 

Comer mais animais. Comer vegetais locais traz essa dificuldade social, mesmo pra quem é de esquerda. É um comportamento que vai te denunciar, que vai mostrar que você é caboquinho. Como vou chegar pro meu grupo de amigos de esquerda, que são cool, que são a galera que consome a cultura do Sudeste, que conhece certas teorias, e recusar a carne do churrasco? Vão te olhar e dizer: “Ah, tu não quer comer carne? Então não vou mais te chamar pros churrascos.” Nessas horas eu sempre falo: “Me chama que eu levo o meu churrasco de vegetais!” Mas quando as pessoas falam “Não dá mais pra sair contigo”, o que eles querem dizer, na verdade, é que você não faz mais parte daquele grupo. Todo mundo quer se sentir pertencente e pra fazer parte do grupo não pode comer pupunha, que é comida de caboquinho. Tem que comer o churrasco. A gente quer ser o de fora, o mais branco. Isso vem de uma dor muito grande que ainda não curamos: a dor da colonização.

Gostaria de agradecer a Michelle pelo tempo concedido pra gente fazer essa entrevista, pelo carinho, pelos passeios, por ter compartilhado tanta informação preciosa comigo, por tudo que ela me ensinou em poucos dias, por me inspirar na luta antiespecista e pela banana levada pro aeroporto (e que ela esqueceu de me dar). Obrigada por tudo, amiga samaumeira. Sigamos criando raízes e nos tornando floresta.

Tudo que pode conter numa pausa

A ausência de post semana passada (alimento esse blog semanalmente) não significa que estou fazendo uma pausa. Repare que quanto menos coisas aparecem aqui, mais coisas aparecem do outro lado da tela. E as últimas semanas foram cheias de uma infinidade de coisas, grandes e pequenas.

No lado profissional, teve o convite pra participar de um pequeno projeto que me deixou extremamente feliz e, ao mesmo tempo, ativou uma mini crise de síndrome da impostora (gostaria de dizer que não sofro disso, mas mentir é feio). A militância anda a todo vapor, com a criação de mais um coletivo (o terceiro do qual faço parte no meu território!), só que dessa vez se trata de um coletivo antiespecista. Porque queremos mostrar que veganismo não é coisa de parisiense branca e rica e que nossa quebrada não é um deserto antiespecista.

Nosso coletivo anarquista conseguiu um lote nos Jardins Operários, um fato histórico. Nós estamos na luta pra salvar a última zona agrícola, e uma das poucas áreas verdes, da nossa periferia e somos o primeiro coletivo a receber um lote. Ele faz parte dos lotes ameaçados por um projeto de centro comercial, totalmente inútil, que é o cavalo de Troia do momento pra passar o cimento por cima dessa terra que alimenta uma parte da classe trabalhadora, e imigrante, no nosso território. Como sempre, só a luta muda a vida.

Agora temos mais uma tarefa na nossa longa lista de tarefas da militância: plantar e compartilhar os frutos do nosso lote. Militar pode adquirir muitas formas e confesso que cultivar a terra é uma das maneiras mais prazerosas de militar. Além de nos transformar profundamente. Como canta Zé Pinto: “Amar a terra e nela botar semente / a gente cultiva ela e ela cultiva a gente”.

Passei a manhã e uma parte da tarde trabalhando no lote, junto com camaradas do coletivo, e voltamos pra casa com uma sacola cheia de comida dos jardins, presente das nossas vizinhas de lote. Percebi que cultivar a terra também deixa a gente mais generosa.

No lado pessoal, é tanta coisa que a atividade acontecendo da pele pra dentro é ainda mais intensa do que o que faço da pele pra fora. E ainda teve a visita de um dos meus sobrinhos e da namorada, que veio pedir a mão dela em casamento aqui (com a ajuda dessa tia, que escolheu o lugar e fez as fotos do pedido). Foi lindo e ela disse “sim”.

Paralelo a tudo isso estou trabalhando na transcrição da entrevista de duas companheiras de luta antiespecista que fiz em Belém (Pará), ano passado. Está preparada pra ouvir a palavra antiespecista amazônida? Mal vejo a hora de compartilhar com vocês!

Sem falar que transformamos nossa casa em berçário de plantas pra nossa horta (e pra horta do coletivo também). Começamos a semear em fevereiro e atualmente quase não tem espaço pras duas moradoras humanas, já que é muda pra todos os lados. Na foto acima tem apenas uma parte das nossas mudinhas, o que significa que todo dia passo pelo menos uma hora aguando tudo, colocando do lado de fora pra levar sol e depois trazendo tudo de volta pra dentro no final do dia. Fizemos bastante pra poder compartilhar com as amigas também. E muitas dessas sementes vieram dos Jardins Operários.

Esse foi o almoço de hoje e olhar pro meu prato sempre oferece uma janela pra ver a riqueza que é a minha vida. Aqui tem uma salada com dois tipos de alface selvagem, que ganhei hoje de manhã de Hugo, um dos operários-jardineiros, enquanto trabalhava no nosso lote. As laranjas (orgânicas, da Itália) eu consegui na ocupação onde mora minha namorada, que ganhou uma imensa caixa dessa fruta de uma vizinha que também é militante no nosso território. A couve veio do lote de Lucas, outro operário-jardineiro (que eu entrevistei no quinto episódio do podcast “Jardins da Comuna”, que criei junto com a Biblioteca Terra Livre). Lucas tem uma floresta de couve no lote dele e disse que eu podia pegar o tanto que eu quisesse, sempre que precisasse. O pão tradicional de semolina é feito por uma senhora argelina que trabalha na minha padaria preferida, perto da minha casa. E dentro do potinho tem hummus, feito por mim, com tahina libanesa que encontro na mercearia árabe também aqui perto (no pé do Cohab onde eu morei), de uma família marroquina que é uma simpatia só.

Além de alimentar o corpo e a alma, comida também pode nos inserir numa complexa rede de solidariedade e apoio mútuo. Uma refeição simples, mas que me conecta a várias pessoas bacanas e em luta e a espaços de resistência.

Coma arroz…

Tem dias em que sinto meu nível de energia no chão. Hoje é um desses dias.

Eles não aparecem do nada, esses dias sem energia. Ou, usando as palavras de Anne pra descrever o meu estado, esses dias em que “minha força vital parece ter sigo completamente drenada”. Eles são o resultado de vários dias (ou semanas, ou meses) de intenso esforço físico e, principalmente, emocional. As últimas semanas foram puxadas e eu gostaria dizer que vou tirar um tempo pra descansar e pra recarregar as baterias, mas a verdade é que coisas que precisam da minha atenção continuam acontecendo ao meu redor e pessoas que eu amo precisam de mim nesse momento.

Dividimos a casa com a proprietária, que mora no andar de cima (nós moramos no térreo e compartilhamos o jardim com ela). Ela é mexicana e viajou pro México, pro aniversário de 90 anos da mãe, algumas horas atrás. Anne saiu depois do café e foi montar uma exposição em um teatro aqui da periferia. As duas estariam fora de casa no horário de almoço, em trânsito ou sem a possibilidade de encontrar comida vegetal. Então acordei e cozinhei duas marmitas pra elas.

Eu queria dizer que cuidar das mulheres da minha vida me dá energia e que por isso fiz o almoço delas, sem que elas tenham me pedido. Mas não sei se é inteiramente verdade. Me dá prazer cuidar de pessoas que eu amo, principalmente mulheres. E ao mesmo tempo tenho consciência de que, por ser mulher, essa prática, quase um reflexo automático, de cuidar de outras pessoas é algo condicionado pelo sistema patriarcal. Algo imposto por causa do meu gênero, do lugar que ocupo na sociedade. Mas talvez eu encontre um prazer genuíno aqui. Sei disso porque quando faço esse trabalho de cuidado pra um homem (o que acontece raramente, glória à Deusa!) a reação do meu corpo e os sentimentos que me invadem são completamente diferentes.

Cozinhar pra mulheres não vai trazer de volta a minha energia no momento. Mas posso dizer com certeza que nutrir o corpo delas me dá prazer e alegria.

O prato que preparei hoje é a minha última invenção pra transformar restos em algo delicioso. Fiz uma ou duas vezes, com o que achei na geladeira, e o resultado foi tão espetacular que resolvi vir aqui compartilhar. Apesar de ter sido criado pra aproveitar as sobras de outras refeições, esse prato pode (e deve) ser preparado mesmo quando não tem nenhum resto na sua geladeira (foi o que aconteceu hoje).

Gostaria de oferecer um prato desse arroz pra cada mulher me lendo que também está esgotada, mas continua cuidado das pessoas ao redor dela, apesar do cansaço. Vou pensar em vocês quando for comer a minha parte de arroz, daqui a pouco. E parece que alguém soprou no meu ouvido: “Coma arroz, tenha fé nas mulheres.”

“Coma arroz tenha fé nas mulheres
O que eu não sei
Eu ainda posso aprender
Se estou sozinha agora
Estarei com elas mais tarde
Se estou fraca agora
Posso me tornar forte
Lentamente, lentamente
Se aprender, posso ensinar as outras
Se as outras aprenderem antes
Eu devo acreditar
Que elas voltarão e me ensinarão

Mulheres vindas de mulheres
Indo para mulheres
Tentando fazer tudo que pudermos
Com as palavras
Em seguida, tentar trabalhar com ferramentas
Ou com nossos corpos
Tentando ficar o tempo que for preciso
Lendo livros quando não há professores
Ou quando eles estão muito distantes
Ensinando a nós mesmas
Imaginando outras lutando
Devo acreditar que nós estaremos juntas
E construir confiança o suficiente
Para que quando eu precise lutar sozinha
Eu saiba que há irmãs que
Ajudariam se soubessem
Irmãs que viriam
Para me apoiar mais tarde

Canções que nos lembram de nós mesmas
E nos fazem querer continuar com o que importa para nós

Vamos sair de novo
Encontrando as mulheres que saem pela primeira vez
Sabendo que esse amor faz uma boa diferença em nós
Afirmando uma vida contínua com mulheres
Devemos ser amantes médicas soldadas
Artistas mecânicas agricultoras
Todas em nossas vidas
Ondas de mulheres
Tremendo de amor e raiva

Coma arroz tenha fé nas mulheres
O que eu não sei agora
Ainda posso aprender
Lentamente, lentamente
Seu eu aprender posso ensinar as outras
Se as outras aprendem antes
Eu devo acreditar
Que elas voltarão e me ensinarão”

(Partes do poema “Coma arroz, tenha fé nas mulheres”, de Fran Winant. Tradução por Marcella. O poema inteiro pode ser lido aqui.)

Arroz com legumes e molho de amendoim

Como expliquei no texto, essa é uma receita pra usar os restos da geladeira. A fórmula é bem simples: uma parte de arroz cozido pra uma parte de legumes cozidos, mais o molho de amendoim, que é o que faz toda a diferença aqui. Dá pra deixar a receita ainda mais rica acrescentando tofu ou tempeh. Ou, como fiz aqui, grãomelete em tirinhas. Mas isso é opcional. Se for cozinhar legumes especialmente pra essa receita, minha sugestão é: repolho (salteado), cenoura (em palitos fininhos, crua ou ligeiramente salteada) e couve (salteada). Acho que é a mistura mais perfeita com esse molho. Sou nordestina e acho que o coentro aqui é essencial, mas se quiser deixar de fora, quem manda na sua receita é você.

Arroz cozido (qualquer um. Usei arroz integral)

Legumes cozidos (Usei: ervilha -congelada, que cozinhei na água e sal- repolho verde, couve e cogumelo Paris)

Grãomelete em tirinhas (opcional. Você pode substituir por tofu ou tempeh. Ou nada)

Coentro

Molho de amendoim

Pasta de amendoim (pura, sem açúcar)

Limão

Molho shoyu (molho de soja)

Melado de cana (ou um tico de açúcar – melhor se for mascavo)

Cebola picada (opcional. Usei chalota, que é mais suave)

Alho picado

Pimenta calabresa (opcional. Usei pimenta d’Espelette, que é bem forte)

Água

Se estiver usando restos, misture tudo e aqueça em fogo brando (pra não queimar). Enquanto isso prepare o molho. Se estiver cozinhando os elementos especialmente pra fazer esse prato, cozinhe o arroz, os legumes e o grãomelete (ou tofu/tempeh), se tiver usando.

Misture todos os ingredientes do molho e junte água aos pouquinhos, uma colher de sopa por vez, até que ele se torne líquido mas ainda bem cremoso. Pra quem precisa de proporção, usei 2 colheres de sopa cheias de pasta de amendoim, um limão galego pequeno, umas 2-3 colheres de sopa de shoyu, 1 colher de sopa de melado, 1 chalota pequena, um dente de alho grande e um pouquinho de pimenta. Depois acrescentei água aos poucos. Se estiver usando restos que já estão salgados, cuidado pra não exagerar no shoyu do molho, mas como cozinhei tudo especialmente pra fazer essa receita, não salguei o arroz e coloquei pouquíssimo sal nos legumes, por isso fiz o molho um pouco mais salgado.

Quando o arroz/legumes/grãomelete (ou tofu/tempeh) estiverem bem quentes, desligue o fogo e despeje o molho por cima. Misture bem, junte o coentro e misture novamente. Prove e corrija o sal, se necessário. Esse prato tem que ficar suculento: nem seco demais, nem nadando em molho. Se fez pouco molho e seu arroz ficou meio seco, faça mais um pouco pra corrigir. Se colocou molho demais e a coisa virou sopa, danou-se! Mas vai ficar gostoso mesmo assim.

Sirva imediatamente, com mais coentro e pimenta calabresa polvilhada por cima.

Esperando por tomates

Ontem foi o equinócio de primavera aqui no hemisfério norte, o que marca oficialmente o primeiro dia da primavera. Mas hoje amanheceu chovendo, o clima esfriou bastante e na minha cozinha nada lembra as estações mais quentes: só tem batata, repolho, jerimum e alho-poró. Ainda tem cheiro de inverno por aqui e estou escrevendo essas linhas colada no aquecedor, embaixo de várias camadas de roupa.

Mas aos poucos a estação está mudando e a vida começou a brotar ao meu redor. A imensa árvore do jardim, pelada durante meses, já cobriu seus galhos de olhos verdinhos, de onde sairão as próximas folhas. Os passarinhos estão cantando mais alto. Os narcisos floriram e os botões de tulipas já estão visíveis, avisando que em breve estarão aqui.

Já comecei a semear as plantas que irão pra horta esse ano e, emocionada com o sucesso do ano passado, tem mudas de mais de 10 variedades de tomates na minha varanda. Posso explicar esse entusiasmo.

Eu cresci comendo tomates de supermercado, sempre comprados verdes e consumidos antes de atingirem a maturação. Aliás o costume de comer tomate verdoso é tão forte que um tomate maduro, na sua suculência e fragilidade, é visto como algo a ser evitado: muitas pessoas vão dizer que está “maduro demais”, que assim, “mole”, ele não é gostoso. Só depois de ter acesso a tomates de estação, orgânicos e colhidos/consumidos maduros, pude notar o abismo de diferença em matéria de sabor. E depois de ter começado a plantar meus próprios tomates, selecionando as variedades mais gostosas, colhendo apenas quando eles estão prestes a explodir de tão maduros e degustando imediatamente depois da colheita, minha relação com tomate mudou completamente.

Não compro tomates fora de estação, apesar de poder encontrar tomates (produzidos em estufas ou importados de países quentes) o ano inteiro nos supermercados franceses. E quando estou em Natal e só tenho acesso a tomates de supermercado, quase nunca como cru. Então espero o ano inteiro pelos dois, três meses quando terei acesso aos melhores tomates, aqueles que crescem no meu quintal. E são semanas de puro deleite!

Se você está me lendo no hemisfério sul talvez tenha tomates maduros na sua cozinha nesse exato momento. Nesse caso, eu tenho um presente pra você. 

Tem uma receita que guardo pra essa época do ano, minha receita preferida de macarrão. Eu a descobri anos atrás, em um blog que não existe mais. A versão original usava animais, mas foi fácil adaptar. O ingrediente principal aqui é o tomate, que entra cru na receita. Sim, um molho de tomate cru. Por isso espero o verão chegar com seus tomates suculentos e saborosos. Essa receita também pede abacates maduros no ponto. Pode parecer estranho colocar abacate em uma receita de macarrão, mas peço que confie que vai dar muito certo. É uma mistura mágica, tomate, abacate e manjericão, realçados pour um tico de tofu defumado (usado aqui como tempero). Tão deliciosa que vale a pena esperar o ano inteiro por ela.

Macarrão com tomate cru e abacate

O tomate é a estrela aqui, então só faça esse prato se tiver tomates verdadeiramente maduros (incrivelmente vermelhos, pesados, macios e recheados de suco) e, idealmente, orgânicos. O tofu defumado leva o sabor desse prato pras alturas, mas na falta dele, tofu comum quebra o galho. Nesse caso,  fumaça em pó (em lojas de temperos) acrescenta a profundidade de sabor característica de alimentos defumados.

Macarrão da sua preferência

Tomates maduros (os melhores e mais saborosos que encontrar)

Abacate (no ponto)

Tofu defumado (ou tofu comum + fumaça em pó, se encontrar)

Manjericão fresco

Azeite

Molho de soja (shoyu)

Sal e pimenta preta

Os tomates e abacate devem estar em temperatura ambiente, então se eles estavam na geladeira, retire algumas horas antes de começar a cozinhar.

O molho fica pronto em minutos, então pode começar colocando a água pra cozinhar o macarrão no fogo (não esqueça de salgar a água). 

Enquanto espera ela ferver corte o tofu defumado em cubos pequenos (não precisa usar muito, só o suficiente pra dar sabor) e, numa frigideira, frite em um pouco de azeite até  ficar levemente dourado. Tempere com shoyu (molho de soja) e reserve. Se estiver usando tofu comum, frite do mesmo jeito, mas tempere com uma mistura de shoyu e fumaça em pó (se a sua for salgada, cuidado pra não exagerar no shoyu e deixar o tofu salgado demais!). Reserve.

Coloque o macarrão na água fervente e, enquanto ele cozinha, corte os tomates em pedaços pequenos e transfira pra um recipiente grande (onde você for servir o macarrão). Use bastante tomate. Junte pedaços médios de abacate (a proporção deve ser um pouco menos de abacate do que de tomate), tempere tudo  com sal e pimenta preta (seja generosa com a pimenta) e regue generosamente com azeite. Por último junte os cubos de tofu e o manjericão (se usar folhas grandes, rasque com as mãos. Se as folhas forem pequenas, pode deixar inteiras).

Escorra o macarrão cozido e despeje por cima da mistura tomate/abacate/tofu/manjericão. Misture bem, prove, junte mais sal/pimenta, se necessário, e sirva imediatamente.

Eu prefiro esse prato quente, mas ele também pode ser servido frio/gelado, como uma salada de macarrão.

Bolo cremoso de jerimum

Desde o ano passado falo que vou compartilhar essa receita… Acontece que, como digo sempre, comida de panela é de Humanas, mas bolo é de Exatas. O que significa que a alquimia delicada entre os ingredientes e, principalmente, as proporções, exigem precisão. E eu ainda não estava 100% segura com a minha receita.

Durante os testes, às vezes dava muito certo, às vezes ficava muito gorduroso, outras vezes não ficava doce o suficiente. Os bolos-testes sempre eram comidos, e apreciados, mas eu queria chegar numa fórmula estável antes de compartilhar a receita com vocês. Foi uma das receitas que mais exigiu testes na minha cozinha: comecei em 2021 e só agora, em março de 2023, cheguei onde queria. Pois é, vocês não imaginam o investimento de tempo e ingredientes que entra no desenvolvimento de receitas. Sem falar na quantidade de louça suja que esse trabalho gera! Mas finalmente vou poder compartilhar a versão final, perfeitinha, com vocês.

“Mas que danado de bolo trabalhoso é esse, mulher?”, vocês devem estar perguntando. Talvez o que vou dizer agora surpreenda quem não é íntima da cozinha, mas geralmente são as receitas mais simples que dão mais trabalho. A boa notícia é que agora que a receita está no ponto, vai ser muito fácil pra vocês prepará-la em casa. É um bolo humilde, singelo, mas que representa muito pra mim em termos de sabor e de memória afetiva.

Quem é de Natal (minha cidade) conhece o famosíssimo “Bolo da Moça”. Em outros lugares do Nordeste (e acho que do Norte também) ele é conhecido por outros nomes, mas a receita é basicamente a mesma: uma quantidade grande de ovos e um arroubo de laticínios (leite condensado + leite de vaca + manteiga). Como ele leva pouca farinha, o resultado final é entre o bolo e o pudim, denso e quase cremoso. Se a gente quiser ser malvada com esse bolo podemos dizer que parece um bolo “solado” (um bolo que não cresceu). Eu gostava desse bolo, por ter essa textura tão peculiar, mas lembro que o cheiro forte de ovo sempre me incomodou. Sem falar que ele é exageradamente doce.

Pesquisei a origem desse bolo e parece que é uma adaptação do “Bolo de Leite” português, que leva muitos ovos e muito leite de vaca líquido. Só que na versão brasileira ele era feito com leite de coco. Claro que aquela multinacional que explora vacas em números estratosféricos e que colonizou quase todas as nossas sobremesas não ia deixar de colonizar mais essa receita! Assim o leite de coco foi substituído por leite condensado. Muitas pessoas acreditam que vem daí o nome do bolo (“da moça”, como a moça da lata).

Se levei você a pensar que vou propor aqui uma versão vegetal do Bolo da Moça, não é bem isso. Minha ideia inicial era fazer um bolo de jerimum (abóbora), mas como logo nos primeiros testes ele ficou com a textura densa e cremosa do Bolo da Moça, não pude não pensar nele. Não era minha intenção “veganizar” esse bolo tão popular na culinária do meu estado, mas acabei desenvolvendo um bolo que é maravilhoso por si só, mas que também pode ser lido como uma evolução duplamente descolonizada da receita especista. 

Já passei muita raiva com o “raio gourmetizador”, aquela tendência de transformar nossas receitas típicas em algo mais caro e mais pretensioso, mas não necessariamente mais gostoso. Basicamente adicionando Nutela e leite Ninho em tudo (mais uma vez, entupindo tudo de laticínios! Eu ouvi colonialismo alimentar novamente?). Minha alegria hoje é ver o quanto a culinária vegetal não só retira nossa alimentação do padrão especista, parando de ver animais e suas secreções como “ingredientes” e valorizando o que vem da terra (e, por tabela, quem está na terra plantando), mas também tem o poder de descolonizar a maneira como cozinhamos. 

Voltemos pro bolo. Essa receita é uma base que pode ser adaptada em várias direções. Os ingredientes são acessíveis pra quem está em qualquer lugar do território, basta fazer algumas alterações em função do que você encontra na sua cidade. E é um bolo perfeito pra quem não tem costume de fazer bolos: como ele não vai crescer nem ficar fofinho, não tem como você “solar” o seu bolo. Ele também é o primeiro bolo de liquidificador que publico aqui e que coisa maravilhosa é fazer bolo desse jeito! Tão simples, tão rápido, pouca louça suja depois… 

O sabor do jerimum vai ser mais ou menos presente dependendo do tipo de jerimum utilizado. Idem pra cor alaranjada do bolo. Em Natal eu uso jerimum de leite (meu preferido) ou jerimum caboclo, que são cultivados no RN. Aqui na França já fiz com abóboras do tipo butternut e moranga. Aconselho assar o jerimum pra que ele fique mais concentrado, quase caramelizado, mas se não puder, cozinhe no vapor que também dá certo. Só não cozinhe na água, pois ele vai ficar encharcado, atrapalhando a textura do bolo, e deixando o sabor um pouco aguado. 

Quem acompanha o meu trabalho sabe que não sou uma grande apreciadora de doces. Mas esse bolo acabou se tornando muito especial pra mim. Imagina a alegria dessa potiguar ao criar um bolo tão cremoso e delicioso quanto o outro lá, mas sem exploração animal e honrando o nosso vegetal mais amado? Se você ainda não sabe, quem nasce no Rio Grande do Norte é chamada de “papa-jerimum”.  Mas mesmo pra quem é de outros estados, não deixe de experimentar esse bolo. A cremosidade e a delicadeza dele vão te conquistar.

Bolo cremoso de jerimum (abóbora)

Aviso: esse bolo está mais perto de um pudim/flan do que dos bolos fofinhos e entupidos de recheios que costumamos ver em padarias. Mas o sabor quase caramelizado e a textura cremosa são um carinho pras papilas. Use o leite vegetal que mais gostar. Em Natal, uso leite de coco fresco e confesso que é o meu preferido (apesar de deixar o bolo um tico mais gorduroso). Aqui na França uso leite de soja e também fica muito bom (a soja, rica em proteína, carameliza até melhor). Um óleo vegetal neutro é ideal (girassol, por exemplo), mas já fiz com óleo de coco e ficou bom, embora o sabor de coco domine tudo (nem todo mundo na minha família aprovou). Pra perfumar o bolo você pode usar canela, uma mistura de especiarias, extrato de baunilha ou, pra ficar deliciosamente brasileiro, cumaru ralado na hora. Mas é opcional. Essa receita faz um bolo pequeno e isso é intencional: assim ele assa de maneira homogênea e atinge a textura ideal (cremosa, mas no ponto de corte). Ainda nutro a ideia de fazer uma versão sem trigo, usando fécula de mandioca ou amido de milho, mas essa versão vai ter que esperar mais um pouco. Dependendo do tipo de leite (se usar leite industrializado adoçado) e do jerimum, você vai precisar de mais ou menos açúcar. Uso 1/2 xícara quando faço esse bolo aqui em casa, porque gosto de bolos com pouco açúcar. Mas quando cozinho pra outras pessoas, uso 2/3 de xícara (o bolo fica doce, mas sem exagero).  

*A medida na receita é uma xícara, mas você não precisa ter uma xícara medidora em casa. Use um copo pequeno ou qualquer caneca pequena que tiver no armário como medida, basta respeitar as proporções (Ex: 2 copos de jerimum, 1 copo de farinha, 1/3 de copo de leite etc).*

2 xícaras de jerimum (abóbora), assado ou cozido no vapor

1 xícara de farinha de trigo

2/3 de xícara de leite vegetal (de coco fresco ou de soja)

1/3 de xícara de óleo vegetal (de sabor neutro)

2/3 de xícara de açúcar (leia explicações sobre o açúcar acima)

Opcional (escolha um):

Canela

Mistura de especiarias (canela + cravo + noz moscada)

Cumaru (ralado na hora)

Extrato (ou essência) de baunilha

Comece assando o seu jerimum. Corte-o pela metade, se for bem pequeno, ou em pedaços médios, se for grande e leve ao forno médio pra assar até ficar bem macio. O tempo de cozimento vai depender do tipo de jerimum e do tamanho dos pedaços, então espete com um garfo pra verificar. 

Quando estiver bem macio retire do forno e use uma colher pra retirar as sementes e separar a polpa da casca. Dependendo do jerimum (abóbora de pescoço ou moranga), eu como com casca, mas descarte essa parte se a sua for muito dura. Meça duas xícaras de jerimum assado (aperte bem na hora de medir) e bata no liquidificador com o leite vegetal, o óleo, o açúcar e a canela, se estiver usando (ou a baunilha, ou o cumaru), até ficar bem cremoso. Por último acrescente a farinha de trigo e bata mais alguns segundos, na velocidade baixa, só até ficar bem misturado. 

Despeje a massa em uma forma pequena (se tiver uma forma de pudim, aquelas com o furo no meio, melhor ainda), previamente untada (com óleo) e enfarinhada, e leve ao forno baixo-médio (180 graus). Não precisa pré-aquecer, já que esse bolo não vai crescer, mas se você assou o seu jerimum, seu forno ainda estará quentinho. O tempo de cozimento vai depender do seu forno, então você vai ter que abrir a porta e verificar algumas vezes (mais uma vez, esse bolo não cresce, então pode abrir a porta do forno sem medo de estragar tudo). O bolo está pronto quando ficar levemente inchado (um pouco como um suflê), as bordas começam a se soltar da forma e a parte de cima ficar bem corada (marrom), como na foto abaixo. No meu forno levou exatos 42 minutos (cronometrei).

Não faça o teste do palito aqui, pois esse bolo sai do forno ainda bem mole. Ele vai ficar firme depois de frio. Por isso tem que esperar ele esfriar completamente antes de degustá-lo.

Rende um bolo pequeno. Se conserva em temperatura ambiente (se colocar na geladeira, a textura muda e fica mais densa).

O Rubacão de Fran

Quem leu meu último post sabe que falei de pratos completos como uma maneira de sair da estrutra culinária especista (carne animal + vegetais como acompanhamentos). Apesar de ser a maneira que cozinho no dia-a-dia há muitos anos, porque é mais prático, rápido e suja menos louça, além de reciclar os restos da geladeira, percebi que tem poucas receitas de pratos completos aqui no blog. Vim engrossar a lista com mais uma e não é qualquer uma, não! Hoje vou compartilhar a receita do famoso rubacão de Fran. 

Conheci Fran através de uma amiga de Recife, Camila, que é uma das leitoras mais antigas do blog. E além de ser uma pessoa maravilhosa, Fran é cozinheira e vegana. Ela cresceu entre o Norte e o Nordeste, mas a família dela é da Paraíba. E na Paraíba tem o quê? Rubacão.

Se você nunca ouviu falar nesse prato emblemático da Paraíba, deixa eu começar dizendo que ele é bem controverso. Algumas pessoas pensam que “rubacão” é sinônimo de “baião de dois”, mas são pratos distintos, apesar de parecidos. Enquanto o baião de dois é composto por arroz, feijão verde, carnes e, opcionalmente, queijo, o rubacão tem tudo isso mais uma dose obscena de nata. Ou seja, dá pra resumir dizendo que é um baião de dois cremoso. Mas aí tem gente que coloca nata no seu baião de dois e a coisa fica confusa. 

Outra informação importante sobre o rubacão: ele é feito com arroz da terra (arroz vermelho), um arroz típico da Paraíba. Esse é o meu arroz preferido e além de ter um sabor maravilhoso, ele é muito rico em amido e adquire uma textura ultra cremosa depois de cozido. É por essa razão que, no RN, sempre preparamos arroz da terra no leite (de vaca ou de coco). 

E como se faz um prato tão especista, com tantos pedaços de animais e suas secreções, em versão vegetal (“vegana”)? Fran tem o segredo. 

A cremosidade, que seria dada pela nata, fica por conta de uma mistura de leite de coco e de amendoim (ambos frescos). Como ela defuma o coco antes de fazer o leite, o prato tem um gostinho defumado que, na cozinha especista, é trazido por algumas carnes de animais. E, falando em carne, na versão vegetal tem cogumelos que, pra mim, é a verdadeira carne da terra, tanto pela textura quanto pelo sabor intenso. O resto segue igual: feijão verde, arroz da terra, coentro, cebola, alho…

Fran usa feijão verde, o que é tradicional no rubacão, mas ouso sugerir (que a deusa tape as oiças de Fran pra ela não ouvir isso!) que com feijão macaça fica ainda melhor.  Pra quem não tem acesso a feijão macaça nem ao feijão verde (que é o feijão macaça colhido antes de amadurecer), o fradinho pode ser usado aqui também. 

Rubacão é um dos meus pratos preferidos e uma riqueza da culinária nordestina. É uma receita elaborada, o que contradiz a declaração que fiz no início desse post (“pratos completas são mais simples e sujam menos louça”). Mas entenda que se trata de um prato pra comemorar ocasiões especiais. Como cada passo dado em direção ao fim do especismo e da supremacia humana.

O rubacão de Fran

Use uma proporção de 2/3 de feijão verde pra 1/3 de arroz cru. Ou, se tiver usando feijão macaça, que é seco, use 1 parte de feijão cru pra 1 parte de arroz cru. A diferença é que feijão verde não aumenta quase nada depois de cozido, contrariamente ao feijão macaça (que dobra de volume). No final queremos aproximadamente a mesma quantidade de feijão e de arroz cozidos. O resto vai sem medidas exatas, basta usar um pouco de bom senso culinário e se deixar guiar pelos seus gostos.

Feijão verde (ou macaça ou fradinho)

Arroz da terra (vermelho)

Amendoim cru

Coco seco

Cogumelo shimeji fresco

Cogumelo shitake seco

Cebola

Tomate

Coentro

Alho

Óleo

Sal e pimenta preta

Na véspera: 

– Coloque o amendoim (descascado, mas com a película) de molho em bastante água fria. Ele deve ficar de molho por pelo menos 12 horas. 

-Coloque o feijão macaça, ou fradinho, de molho (Não precisa fazer isso se estiver usando feijão verde).

-Coloque o arroz da terra de molho (Fran não faz isso, mas eu acho importante pro arroz cozinhar mais rápido e de maneira mais homogênea).

No dia seguinte:

Escorra a água da demolha e bata o amendoim com água limpa. Use aproximadamente 1 medida de amendoim (escorrido) pra 2 medidas de água. Deixe o liquidificador funcionando até a mistura ficar bem macia. Coe o leite de amendoim (idealmente usando um voal, mas pode usar uma peneira de metal fina, se não tiver) e leve ao fogo até ferver (essencial, pois esse amendoim aí tá cru!). Você vai perceber que o leite vai engrossar, o que é normal (e desejável). Reserve.

Faça o leite de coco como ensinei aqui. Se quiser fazer como Fran, coloque o coco seco (depois de ter feito um furo pra retirar a água – procure o olho do coco) diretamente na chama do fogão até ele ficar levemente chamuscado. Isso vai perfumar o coco e seu leite vai ficar com um gostinho de defumado. Depois é só seguir as instruções da receita de leite de coco.

Escorra o feijão macaça (ou fradinho) e cozinhe na pressão com um pouco de sal. Se estiver usando feijão verde, cozinhe em bastante água salgada, mas em uma panela comum (feijão verde  é fresco cozinha muito mais rápido que feijão seco). 

Em outra panela, cozinhe o arroz da terra (pode ser na água do molho) com um pouco de sal até ficar macio. 

Ferva um pouco de água e jogue por cima do cogumelo shitake seco (o suficiente pra cobrir tudo). Deixe hidratar, coberto, por pelo menos 20 minutos. Não precisa usar muito shitake, um punhado já é suficiente pra perfumar uma panela de rubacão.

Enquanto o feijão cozinha e o shitake hidrata, prepare os outros ingredientes. Pique a cebola, o tomate (em quantidades iguais) e o alho e reserve em recipientes separados. Corte (ou rasque) o shimeji em pedaços grandes. Escorra o shitake que estava de molho (reserve o caldo) e corte em pedaços miúdos.

Agora você tem todos os elementos do rubacão (feijão cozido, arroz cozido, leite de amendoim, leite de coco, shitake hidratado e verduras picadas) e só falta juntar tudo e finalizar.

Em uma panela grande e, idealmente, com o fundo grosso, refogue o cogumelo shimeji em um pouco de óleo até ficar bem dourado. Retire da panela e reserve. 

Na mesma panela (não precisa lavar), junte um pouco mais de óleo e refogue a cebola. Quando estiver começando a dourar, junte o alho e refogue por mais alguns segundos. Acrescente o tomate e deixe cozinhar no fogo alto, mexendo de vez em quando, até se tornar um molho espesso. 

Despeje o arroz cozido, o feijão cozido, o shimeji salteado, o shitake hidratado e o caldo do shitake nessa panela, sobre o molho de ceboa/tomate e misture bem. Junte partes iguais de leite de amendoim e de coco, tempere com sal e pimenta preta a gosto e cozinhe em fogo baixo, até tudo ficar borbulhante e bem espesso. Se preciso, vá acrescentando mais leite de coco e de amendoim aos poucos. O rubacão deve ficar bem cremoso, como um risoto. Prove e corrija o sal/pimenta, se necessário. 

Por último junte bastante coentro picado, mexa uma última vez, apague o fogo e deixe descansar, coberto, por uns 15 minutos antes de servir. O sabor fica ainda mais apurado depois do descanso.