Pirão de maxixe – ainda melhor

No ano de nascimento desse blog, 2010, publiquei uma das minhas receitas preferidas: pirão de maxixe. Há anos faço esse prato pra minha família e ele até já esteve no cardápio de um restaurante vegano em João Pessoa, o Papoula Culinária Saudável. A história de como criei essa receita foi assim.

Pirão é um prato muito afetivo pra mim e pra boa parte das pessoas no meu território (Nordeste). Mas por aqui ele é sempre feito com peixe ou vaca. Quando me tornei vegana, decidi que não deixaria essa parte da minha cultura alimentar pra trás e criar um pirão gostoso, feito com vegetais, virou uma missão. Veja como são as coisas. Eu nunca tinha comido pirão de maxixe, mas lembrei que algum dia, em algum lugar, alguém tinha falado dele. Perguntei ao meu redor e ninguém lembrava de ter comido, mas teve quem disse: “Já ouvi falar”. Então não posso dizer que a ideia nasceu na minha cabeça mas, por falta de referência concreta, tive que inventar a receita. Não foi difícil, bastou seguir a cartilha do pirão: primeiro faz um caldo saboroso, depois junta farinha de mandioca e coloca no fogo pra dar o ponto.

Mas aí que entra o pulo do gato. No caso, da gata. Caldo de animais é feito cozinhando pedaços do animal em questão (peixe ou vaca) na água pra extrair o máximo de sabor deles. Pirão é conhecido entre as pessoas empobrecidas da minha região como uma maniera de esticar mais um pouquinho a comida animal. Num dia se come os músculos do animal, no outro se ferve os ossos ou a cabeça (se for peixe) pra extrair mais uma refeição. Só que maxixe já tem muita água, então decidi que ao invés de cozinha-lo na água pra fazer um caldo, o que deixaria a mistura sem muito sabor, eu cozinharia o maxixe sem acrescentar água nenhuma e ele se tornaria o próprio caldo. Basta bater o maxixe cozido no liquidificador e pronto: temos um líquido espesso e saboroso pra ser a base do pirão.

Um pirão que usa um vegetal que cresce em toda roça aqui, sem exigir muito de quem lavra a terra. Na verdade, escutei muitas agriculturas dizerem: “Maxixe nem precisa ser plantado, aparece sozinho nas roças.” Nesse canto do mundo que me viu nascer, ele é um alimento espontâneo, manifestação da generosidade da terra. Então fazer pirão com esse vegetal é muito simbólico pra mim, pois até o espírito do pirão, que é alimentar mais bocas quando a comida é pouca, foi mantido aqui.

Um pirão que alimenta quem não tem quase nada graças à generosidade da terra, sem precisar derramar o sangue de um irmão de outra espécie. Isso é a nossa cultura alimentar evoluindo na direção certa. A direção do amor, da partilha dessa Terra com os outros seres e do cuidado com o vivente.

E por que voltei com uma receita publicada aqui há 13 anos, você pergunta? Porque essa receita foi evoluindo ao longo dos anos e eu precisava compartilhar com vocês a versão mais atual, que conseguiu a proeza de ser ainda melhor que a antiga. Um desbunde, minha gente, um desbunde!

Eu tenho o costume de perguntar às pessoas o que elas gostariam de comer na sua última refeição na Terra. Imaginando, claro, que você viveu uma vida longa e feliz e que ainda tem os dentes e o apetite intactos. Esse pirão seria a entrada que eu pediria na minha última refeição.

Pirão de maxixe (que eu pediria na minha última refeição)

Esse pirão tem dois segredos. O primeiro, como expliquei no texto acima, é cozinhar o maxixe sem água e bater tudo no liquidificador depois pra criar um caldo encorpado e saboroso. O segundo é usar leite de coco fresco. Foi esse ingrediente que trouxe a dose de gordura que faltava, já que maxixe praticamente tem zero gordura, e deixou o pirão untuoso, elevando esse prato a outro patamar. Outra dica importante: maxixe é melhor quando está verde. Os maduros tem sementes e casca bem mais duras, então se puder escolher, compre os maxixes mais jovens que encontrar (veja foto no final da receita). Também é importante usar farinha fina, sem caroço. Se preciso, peneire a sua pra eliminar os caroços.

Maxixes, jovens (pequenos e verdes)

Leite de coco fresco (receita aqui)

Farinha de mandioca (fina, sem caroço)

Cebola

Tomate

Alho

Coentro

Pimenta de cheiro

Óleo (usei de babaçu, mas qualquer óleo ou azeite serve)

Suco de limão (opcional)

Sal e pimenta preta

Eu compro os maxixes limpos na feira. Se não for o caso, raspe os pitocos do maxixe com uma faca (como se raspa a casca da cenoura), pra tirar a maior parte deles, e corte os rabinhos. Em uma panela grande e, idealmente, de fundo espesso aqueça um pouco de óleo e refogue a cebola picada junto com os maxixes cortados em pedaços pequenos. Refogue, mexendo de vez em quando, até o maxixe começar a grelhar em alguns lugares e pegar um pouco de cor. Isso é importante pra aumentar o sabor.

Quando estiver como na foto acima, junte o alho (picado ou pilado) e os tomates. Tempere com um pouco e sal. Veja as fotos pra ter uma ideia da proporção maxixe/cebola/tomate. O alho e os outros temperos você coloca a gosto. Cozinhe os vegetais em fogo médio, coberto, sem acrescentar água, até o tomate desfazer completamente.

Deixe esfriar um pouco, cubra tudo com leite de coco (melhor se for fresco, feito em casa) e triture no liquidificador. Tudo bem se ficar não ficar completamente homogêneo.

Coloque a mistura de maxixe batido com leite de coco de volta na panela, junte uma pitada generosa de pimenta preta, um pouco de pimenta de cheiro picada e, ainda com o fogo apagado, alguns punhados de farinha de mandioca, juntando aos poucos e mexendo bem com uma colher de pau antes de acrescentar mais. Aqui você vai adaptar de acordo com a quantidade de maxixe que você tiver usado e com a textura de pirão que você prefere. Eu gosto de pirão mais fino, mas tem quem goste de pirão grosso. Junte farinha suficiente (fora do fogo!) até ficar mais líquido do que o desejado, já que o pirão ainda vai pro fogo e a farinha vai engrossar com o calor.

Cozinhe o pirão, mexendo sempre, até ferver e encorpar. A gente sabe quando o pirão tá cozido porque ele perde a cor esbranquiçada (dada pela farinha) e fica mais escuro. Se ficou mais fino do que o desejado, junte mais farinha, polvilhando aos poucos e mexendo bem pra não emboloar. Desligue o fogo e junte coentro picado e, se gostar, umas gotinhas de limão. Prove a corrija o sal (e a acidez), se necessário. Se gostar de pimenta, sirva acompanhado de um bom molho de pimenta (meu pai tem uma receita maravilhosa).

O maxixe à esquerda está bem jovem e isso é o ideal. O da direita já está maduro, com sementes maiores e mais duras e pele mais espessa. Dá pra fazer pirão com maxixes maduros (o pirão da foto foi feito com uma mistura de maxixes verdes e maduros) mas se puder, escolha sempre os mais jovens, pois são mais saborosos e tenros.

Tour político-vegano em Natal

Meu recesso de início de ano acabou essa semana, e junto com a retomada das atividades militantes (tenho muita coisa pra contar, aguardem!) coincidiu de um amigo alagoano da minha sobrinha Luna chegar pra visitar Natal. E, olha como são as coisas, Giovanni acontece de ser um leitor de longa data do blog e apoiador do meu trabalho desde o início da campanha no Apoia-se. A gente tinha se encontrado uma primeira vez em 2019, durante o primeiro ENUVA (Encontro Nacional da União Vegana de Ativismo), em Recife, mas não deu tempo de conversar daquela vez.

Luna, que é vegana, historiadora e apaixonada por Natal, tinha me prometido um “rolezinho natalense” desde o ano passado. Segundo ela, é o passeio que “o jovem natalense descolado faz”. Como faz tempo que deixei de ser jovem e nunca fui descolada, fiquei curiosa pra ver a minha cidade pelos olhos dela. Então combinamos de fazer isso quando Giovanni (que também é vegano e historiador!) estivesse aqui, porque já juntava a minha vontade de redescobrir minha cidade com a nossa vontade de mostrar a cidade pra ele. Deu certinho.

Passeamos pelo centro e fiquei muito triste ao constatar que a vida nessa parte da cidade está desaparecendo. Quando eu era adolescente, antes de ir morar no exterior, essa parte de Natal fervilhava de atividades e pessoas. Quase tudo era resolvido ali. Compras de qualquer tipo? Tinha. O único restaurante macrobiótico (e quase todo vegetariano) da cidade? Era lá. O último cinema de rua? Lá também. (Inclusive o último filme que vi naquele cinema foi “Billy Elliot”) Precisava de uma garrafada ou lambedor pra tosse? Tinha as barracas das erveiras e erveiros. Pilha pro relógio? Era só ir na rua das relojoarias. Tinha os bares boêmios do Beco da Lama. Esses últimos ainda fazem resistência, mas o resto ou já desapareceu ou está caminhando pra isso.

Mesmo com a tristeza de ver os espaços públicos abandonados, porque quase tudo migrou pra dentro de shopping centers, o dia foi ótimo. Além do centro histórico de Natal, onde tomamos mate, visitamos sebos e batemos perna nos becos, fomos almoçar no Libre, um café vegano (melhor comida vegetal da cidade!), e passeamos pela Mata Atlântica, dentro do Bosque dos Namorados (onde comemos ubaia doce, apanhada do chão).

O “rolezinho natalense” proposto pela minha sobrinha me inspirou e me deixou com muita vontade de propor tours no estilo do que eu fazia em Paris. Como vou chamar Natal de casa até o final do ano, é uma possibilidade pra 2024. Depois de ter guiado pessoas na Palestina e na França, ia ser gostoso guiar pessoas na minha cidade. Se a ideia for pra frente, volto pra contar. Mas se antes disso você aparecer por Natal, me avisa 😉

Depois de nos despedirmos de Giovanni, Luna e eu terminamos o rolezinho natalense em casa, tomando café com soda preta junto com Roberta (a cuidadora da minha mãe). Pra quem não conhece, “soda” (ou “sorda”) é um alimento delicioso, degustado no lanche, com uma textura entre o bolo e o biscoito, feito somente com farinha de trigo, mel de engenho (melado), especiarias e, às vezes, bicarbonato de sódio. Uma das comidas típicas do meu território que são tradicionalmente vegetais, mas que está caindo no esquecimento e desaparecendo, como é o caso de quase todo alimento tradicional. A resistência do centro histórico, apesar de pequena, existe, mas me pergunto quantas pessoas participam da resistência ao desaparecimento da nossa cultura alimentar.

Enquanto degustava minha soda pensei em como gostaria de compartilhar minha cultura alimentar com outras pessoas. Aí lembrei que foi exatamente esse sentimento, de querer compartilhar as belezas e os sabores ameaçados de um lugar, que me fez criar os tours na Palestina… A vida dá muitas voltas, mesmo.

PS Obrigada à Luna pelo rolezinho e pelas fotos que aparecem aqui. Obrigada a Giovanni pelas conversas, pela troca de conhecimentos e pelo apoio ao meu trabalho (e pela foto da ubaia doce).

Leite de castanha de caju

Leite de coco ainda é o meu queridinho pra muita coisa, mas atualmente uso mais o leite de coco pra cozinhar (preparar pratos salgados e doces) do que em bebidas (café, vitaminas). Descobri que leite de castanha de caju também é maravilhoso no café (tem quem diga que é ainda melhor, já que o sabor é muito mais suave, quase neutro, quando comparado ao leite de coco). Além de tudo é mais prático de fazer do que o leite de coco (não precisa coar!).

Sei que castanha de caju custa caro em muitos lugares do Brasil. Mas deixa eu argumentar que sou potiguar e atualmente estou morando no meu território, logo faz todo sentido tomar leite de castanha de caju. Caju e castanha fazem parte da minha cultura alimentar e um dia vou conseguir fazer com que leite de castanha seja o leite tradicional do meu estado.

Se você estiver em outro território, o mais lógico, ecológico e barato seria fazer um leite com algo do seu bioma. Mas, e esse é um “mas” de peso, se você se apaixonou por aquele leite de castanha de caju de caixinha que custa um rim, talvez fique bem mais barato fazer em casa, mesmo a castanha custando mais caro pra você aí do que ela custa pra mim aqui no RN. (Uma curiosidade: Olhando a informação nutricional do leite de castanha de caixinha famoso, vi que a versão industrializada usa uma quantidade menor de castanha do que eu uso no meu leite caseiro. Então se eu usasse a quantidade de castanha que a caixinha usa, meu leite, que já é muito em conta aqui, seria ainda mais barato.)

E com esse leite de castanha, que segue o tema das ultimas duas receitas (daqui a pouco vão sugerir que o nome desse blog mude pra “Papacaju”), fecho essa bodega até o ano que vem, porque também sou filha da deusa e mereço descanço. Volto no meio de janeiro e, até lá, desejo um ótimo final de ano pra vocês. Saúde, prosperidade, amor e muito leite de castanha de caju pra todo mundo que me acompanha aqui.

Leite de castanha de caju

Esse leite é delicioso, bem suave e muito prático, já que nem precisa coar. As medidas fazem 1 litro de leite cremoso e encorpado, perfeito pra tomar com café e com cacau (pra fazer um leite achocolatado). Ele se conserva alguns dias na geladeira, mas se achar que não vai beber tudo a tempo, faça metada da receita. Mas leia até o final pra ter dicas de como fazer pequenas porções de leite rapidinho.

120g de castanha de caju (natural, sem sal)

1 litro de água

Comece hidratando a castanha. Você tem duas opções: deixar de molho na água fria de um dia pro outro, ou então colocar a castanha na água, levar ao fogo, esperar ferver, desligar o fogo e deixar hidratando meia hora dentro dessa água. Hidratar as castanhas é essencial pra que elas fiquem macias e se desintegram quando liquidificadas. (Na foto abaixo as castanhas dentro da tigela estão hidratadas, as em cima da mesa, não.)

Nos dois casos, escorra a castanha hidratada (demolhada ou fervida), coloque no liquidificador e junte 1 litro de água fria. Bata por alguns minutos, até as castanhas se desintegrarem completamente. Esfregue um pouco do leite entre os dedos pra sentir a textura. Se ainda estiver granulado, bata mais um pouco.

Seu leite de castanha de caju está pronto. Não precisa coar, pois castanha tem menos fibras, comparando com amêndoas ou castanhas do Pará, e esse leite praticamente não tem resíduo. Guarde na geladeira, em um recipiente com tampa. Se conserva na geladeira por alguns dias.

Dica: Aqui na casa da minha mãe a gente hidrata a castanha, separa porções pra fazer 1/2 litro de leite e congela. Assim, sempre que precisamos de leite, é só tirar um saquinho de castanha hidratada/congelada (não precisa descongelar), esquentar 1/2 litro de água e bater no liquidificador. Foi uma dica que peguei com a minha irmã Lu, que também é cozinheira e faz leite de castanha pra usar no café onde ela trabalha (Libre Café), aqui em Natal.

Medidas:

120g de castanha seca se transforma em 160g de castanha hidratada e faz 1 L de leite.

Se quiser congelar porçoes de castanha pra fazer 1/2 litro de leite, congele porções de 80g de castanha hidratada. Depois é só bater com 1/2 litro de água e você terá 1/2 litro de leite de castanha.

Aqui em casa hidrato uma quantidade grande de castanha e depois peso várias porções de 80g (peso depois de hidratar!) pra ter leite por duas semanas. Na foto abaixo dá pra ver tanto as porções de castanha hidratada quanto o saco grande de castanha seca. Compramos muitos quilos de castanha por vez, pois fica mais barato assim. (Esse bloco branco é goma fresca. Também compramos em quantidade e congelamos porções de 1kg, pra goma, e as tapiocas, ficarem sempre fresquinhas).

Estrogonofe potiguar

Quando coloquei na mesa, perguntaram se era estrogonofe. De início, resisti ao nome. “Que estrogonofe, o que! É carne de caju com creme de amendoim. Mas minha irmã Lu argumentou que “carne de caju com creme de amendoim” não ia deixar muita gente com vontade de comer a minha receita, então tive uma ideia. Se é pra chamar de estrogonofe, então só aceito de vier acompanhado de “potiguar”. A receita foi rebatizada de “estrogonofe potiguar”.

Semana passada postei uma receita maravilhosa (farofa de carne de caju) e expliquei que me dei por missão criar receitas salgadas à base dessa fruta nativa do meu território (o litoral do Nordeste). O caju é um elemento importante da nossa cultura alimentar e a suculência e versatilidade da sua carne são um prato cheio pra essa cozinheira aqui. Eu olho pra ele e vejo uma infinidade de possibilidades. Pra mim a verdadeira carne do futuro é essa: vegetal, que vem daqui e cresce no nosso território, que pode ser produzida por muitas agricultoras (e não concentrar riqueza na mão de uma start-up ou das multinacionais do agro-alimentar), que a gente prepara de mil maneiras em casa e que honra nossa cultura alimentar e as mãos que a plantaram.

A ideia de preparar carne de caju com creme de amendoim e coco veio da vontade de trabalhar com ingredientes nossos. O amendoim também é nativo do território conhecido como Brasil e embora o coco tenha vindo da Ásia, ele se adaptou muito bem nas nossas latitudes, se espalhou pelo litoral e acho que podemos considerar como tradicional na nossa cultura alimentar. Eu estava tentando criar uma receita pro fim do ano, pois é raro eu estar na minha terra, com a minha família, nessa época. Especial e que fizesse sentido pra nós, que somos potiguares. (Mas vai fazer sentido pra todo mundo que tem a sorte de morar não muito longe de cajueiros.)

Achei que precisaria de muitas tentativas pra chegar num resultado realmente delicioso e já estava me preparando pra comer só caju até o ano que vem. Mas ficou perfeito logo na primeira tentativa. Pasta de amendoim batida com leite de coco (fresco, feito em casa) se torna um creme aveludado no fogo, com um sabor delicado. Dá pra sentir o gostinho dele no final, mas ao invés de dominar o prato, o amendoim complementa lindamente o sabor do caju.

Se tiver caju numa feira aí onde você mora, eu recomendo muito preparar essa receita pro seu fim de ano. Ou pra qualquer ocasião especial (por exemplo, pra comemorar o fato de não ter perdido totalmente a cabeça no meio de tanta sandice, de ter voltado pra terapia, pra impressionar as gatinhas…).

Estrogonofe potiguar

Talvez eu diga isso com frequência, mas… Foi uma das melhores receitas que já criei. Estou toda orgulhosa e torcendo pra ela aparecer em muitas mesas aqui no Nordeste, principalmente no final do ano, quando se tem muitas datas comemorativas e a safra do caju ainda não acabou. O amendoim batido com leite de coco dá muita cremosidade ao prato, sem ficar com um sabor forte de amendoim. Acho que ele complementou lindamente o caju, sem se sobrepor. Eu expliquei como preparar carne de caju nessa receita de pastel de caju e foi a base que usei pra fazer esse prato. Pra facilitar o trabalho de vocês, vou repetir aqui pra ficar tudo no mesmo lugar. Dessa vez coloquei as quantidades, porque sei que muitas pessoas não se sentem seguras sem as medidas e não arriscariam fazer um prato sem a garantia de saber que vai dar certo. Mas são medidas aproximadas, tudo bem se colocar mais ou menos alguma coisa.

Pra fazer a carne de caju

5 cajus grandes (se seus cajus forem pequenos, use mais)

1 cebola, picada

1/2 pimentão verde, picado

2 tomates maduros, picados

3 dentes de alho, ralados ou picados

4 col. sopa de molho de soja (shoyu)

Suco de 2 limões

1 punhadinho de coentro (pode ser só os talos)

1 col. de sopa de óleo

Pimenta de cheiro (opcional)

Páprica doce (melhor se for defumada)

Sal e pimenta preta

Pra fazer o creme

2 colheres de sopa cheias de pasta de amendoim (pura, sem açúcar)

2 xícaras de leite de coco fresco (receita aqui)

Sal e pimenta preta

Coentro e cebolinha, pra finalizar

Comece preparando a carne de caju. Retire as castanhas e corte os cajus em tiras, no sentido do comprimento (pra essa receita, corte cada caju em 8 tiras). Coloque uma peneira em cima de uma vasilha (pra recolher o sumo do caju) e esprema as tiras de caju entre as mãos. Não precisa retirar todo o sumo, basta espremer um pouco pra que a carne não fique muito doce e pra que ela possa sugar o tempero depois. O sumo pode ser guardado em uma garrafa com tampa, na geladeira, pra ser consumido depois. Ou você pode beber tudo na hora.

Junte todos os outros ingredientes do recheio, menos o tomate, misture bem e deixe marinando na geladeira de um dia pro outro. O tempo marinando é muito importante: amansa o ranço do caju e o tempero penetra na carne.

Depois do tempo marinando, cozinhe a carne de caju. Aqueça um pouco de óleo em um frigideira grande, despeje a carne (junto com todos os temperos e líquido que tiver se formado) e cozinhe em fogo médio-alto, mexendo de vez em quando, até o caju ficar ligeiramente dourado. Nesse momento junte o tomate picado, tampe e deixe cozinhar, dessa vez em fogo baixo, até o tomate se desintegrar. Prove e corrija o sal, se necessário.

Prepare o creme. No liquidificador, bata o leite de coco fresco com a pasta de amendoim, mais uma pitada generosa de sal e um pouco de pimenta preta, até ficar completamente dissolvido. Jogue esse líquido na panela com a carne de caju e deixe ferver, mexendo de vez em quando. O líquido vai engrossar e virar um creme espesso. Se ficou muito grosso, acrescente um pouco mais de leite de coco fresco ou de água pra deixar na espessura desejada. Prove e corrija o sal, se necessário. Junte o coentro e a cebolinha (a parte verde e a branca) picados e sirva.

Farofa de caju

Primeiro, porque é época de caju. Segundo, porque sou potiguar e o meu estado é um dos maiores produtores de caju do Nordeste (e a quase totalidade da produção de caju no Brasil acontece no Nordeste). Terceiro, porque boa parte do caju cultivado é desprezado, pois a castanha tem um valor comercial muito maior. Quarto, porque adoro caju.

Por tudo isso, me dei por missão incentivar o consumo da carne de caju no nosso território. Como estou em Natal agora, vou aproveitar essa oportunidade pra criar novas receitas com essa fruta e inspirar vocês, principalmente vocês que estão no Nordeste, a comer mais caju. (Eu sei, o caju é um pseudofruto. O fruto do cajueiro é a castanha, mas vamos combinar de continuar chamando caju de fruta.)

Sei que não é a fruta mais fácil de gostar. Os taninos, responsáveis pelo ranço na garganta, incomodam muita gente. Esse é mais um motivo pra popularizar a carne de caju: na versão salgada, a adstringência da fruta desaparece. Não que isso seja problema pra mim. Eu amo caju e adoro a adstringência dele, então gosto tanto de chupar caju (fresco) quanto de degustá-lo em versão salgada (na minha terra falamos “chupar caju” e não “comer caju”. Aliás, também “chupamos” manga.) Mas se o perfume e o sabor dessa fruta ainda não te seduziram na versão fresca, tente a versão cozida e venha conversar comigo depois.

A receita de hoje é bem simples, mas muito, muito boa. Tanto que não entendo como ainda não se tornou um clássico da culinária nordestina. Mas, se depender de mim, vai passar a fazer parte da cultura alimentar do veganismo popular nordestino. Preparadas? Farofa de caju!

Usei a receita do recheio do meu pastel de caju (de forno, com massa de jerimum) e simplesmente acrescentei um pouco mais de gordura e, obviamente, farinha. Se você nunca preparou carne de caju, essa receita ensina a técnica de base. Tem quem chame de “carne de caju” a fibra da fruta, depois que todo sumo foi retirado (é só espremer bem). Eu acho essa técnica ruim por dois motivos. Ao retirar todo o suco da fruta, perde-se também sabor. E além de ter menos gosto (tem gente que até lava a fibra do caju depois de retirar o suco, pra que ela fique com gosto de nada), a carne perde a suculência e fica seca. Pra que fazer isso com o coitado do caju? Despautério!

Eu prefiro deixar a maior parte do suco na carne do caju, pelas razões citadas acima (retiro só um pouquinho pra não ficar doce demais), e não precisa se preocupar com o ranço/adstringência, pois o fogo vai dar cabo dele. Se você gosta de farofa e quer aprender a gostar de caju, recomendo demais essa receita. E se você já gosta de caju, vai se apaixonar.

Farofa de carne de caju

Na receita de pastel de caju ensino o passo-a-passo (com fotos) pra preparar a carne de caju básica. É ela que usamos como recheio pra torta, panqueca, pastel e que serve de base pra essa receita. Pra não repetir tudo aqui, deixando a receita longa demais, comece vendo o post do pastel de caju pra entender como preparar essa farofa. Depois que a carne de caju estiver pronta, essa receita fica pronta em segundos!

Carne de caju cozida e temperada (como expliquei nessa receita)

Farinha de mandioca (gosto da farinha fininha e ainda assim peneiro pra retirar todos os caroços)

Óleo (usei óleo de babaçu, que tem um sabor delicioso, mas qualquer um serve)

Pimenta de cheiro

Páprica (se for defumada, melhor), ou colorau (urucum)

Pimenta preta e sal a gosto

Em um tacho ou panela de fundo grosso, aqueça o óleo. A quantidade vai depender de quanto de carne de caju você estiver usando, mas não precisa muito (eu diria que pra uma xícara de carne de caju cozida você pode usar entre 2-4 colheres de sopa de óleo). Junte a carne de caju (já cozida e temperada) e farinha suficiente pro seu gosto (eu gosto de farofa úmida, mas se você gostar de farofa seca, use mais farinha). Tempere com páprica (ou colorau, pra deixar a farofa amarelinha), pimenta preta e sal. Deixe cozinhar uns 10 minutos, mexendo com uma colher de pau de vez em quando, pra tostar um pouco a farinha. Desligue o fogo e junte pimenta de cheiro picada a gosto. Prove e corrija o sal, se necessário.

O fim de um ciclo

Primeiro, deixa eu contar que semana que vem estarei no Brasil. Viajo daqui a alguns dias e tenho planos de ficar um ano inteiro em terras potiguares. Estou indo por razões familiares, mas vou aproveitar o tempo que estiver lá pra participar da luta antiespecista na minha cidade, Natal, e pra estar mais presente nas atividades da UVA.

Então estou fechando um ciclo aqui na França e não está sendo fácil. O contexto social no país está cada vez mais difícil pra quem é militante de esquerda. A conjuntura política atual está sendo instrumentalizada pra intensificar o racismo de Estado e acelerar a virada em direção ao fascismo que vemos mundo afora e que nós, que estamos aqui, vemos de perto e sentimos nos nossos corpos. E acompanhar o genocídio cometido por Israel contra a população palestina, que já entrou na sexta semana, enquanto a comunidade internacional se recusa a tomar toda e qualquer medida que possa impedir esses crimes de acontecerem, e a França segue apoiando politicamente e militarmente Israel é desesperador. Mas não me surpreende. Colonialistas são solidários entre si.

Por todas essas razões, estou feliz de sair daqui e de encontrar minha família brasileira. Minha experiência diz que se eu estiver comendo tapioca e macaxeira o sofrimento se torna um pouco mais suportável. E estar do lado de minhas irmãs e sobrinhas, também ajuda. Mas, por outro lado, não estou indo pro Brasil pra tirar férias prolongadas. Não será um ano sabático, longe disso. Outra batalha me espera do lado de lá do oceano Atlântico: acompanhar minha mãe num estado avançado de Alzheimer. E talvez essa seja a batalha mais difícil que eu já enfrentei. Eu sei o que me espera na minha terra, mas ainda não sei como meu coração, já tão angustiado, e meu corpo, que anda cansado e machucado, reagirão.

Na próxima vez que abrir esse blog pra escrever um post, estarei na casa da minha família. Com um pouco de sorte (minha) o choque emocional não será tão grande e eu poderei compartilhar coisas que trazem esperança. Porque, por mais que atravessemos tempos sombrios, me recuso a abandonar a esperança. Como disse Angela Davis, quando ela falou recentemente sobre a Palestina: “Não podemos abandonar a esperança, porque a esperança é a condição de todas as lutas.”

(A foto acima foi feita em um santuário antiespecista e anarquista no interior da França. Visitei esse lugar no final de setembro e o que vi por lá, e os encontros que fiz, me encheram de esperança.)

Macarrão com molho de amendoim

Essa é a história de uma das melhores receitas que já saíram da minha cozinha e do dia em que ela me trouxe reconforto depois de uma das piores provações que já passei.

Algumas semanas atrás descobri um canal de receitas vegetais no Youtube que muito me agradou. Gosto da voz grave e calma do dono, e cozinheiro, do canal, das instruções simples e do tipo de receitas preparadas ali, muitas vindas da cultura culinária do rapaz, que é de Hong Kong. O engraçado é que ele não é vegano, mas criou um canal com receitas exclusivamente vegetais. Sorte a nossa.

A primeira receita que vi era de um macarrão udon (aquele macarrão japonês gordinho) com molho de amendoim. A receita me deixou com água na boca, mas eu não tinha quase nenhum dos ingredientes pra fazer o prato na minha cozinha. Só que achei a ideia principal da receita, a pasta de amendoim no molho, tão brilhante que resolvi cozinhar algo inspirado naquele prato.

A minha versão usa ingredientes que praticamente todo mundo tem em casa e é ainda mais simples e barata. Mas o resultado é algo delicioso, nutritivo e reconfortante. Bendito amendoim!

Falando nessa leguminosa, o amendoim é nativo do território conhecido como Brasil, sabia? Embora muita gente só consuma amendoim dentro da paçoquita (ou “paçoquinha”), ou em certos bolos típicos das festas juninas, o potencial desse alimento em receitas salgadas é enorme. Tanto que passei a acreditar que uma das minhas missões como defensora da culinária vegetal é mostrar as infinitas possibilidades do amendoim na mesa e convencer vocês que ele merece um lugar de muito destaque nos pratos principais.

Sobre o dia em que esse macarrão com amendoim me trouxe um imenso reconforto, depois de uma rude provação, ainda é doído contar essa história. Talvez um dia eu conte com detalhes, mas por hoje vou resumir. Eu fui presa por participar de um ato de solidariedade ao povo palestino em Paris, umas semanas atrás. Protestos em solidariedade à Palestina tinham sido proibidos pelo governo francês, que decidiu violar nosso direito constitucional de fazer manifestações, criminalizando a solidariedade através de uma decisão anti-democrática. Depois desse pesadelo, que durou 48h e que resultou em um processo contra mim, pude voltar pra casa. Exausta, suja, faminta e com uma luxação no polegar esquerdo, cortesia de um dos policiais que me prendeu. Apesar da fome, demorou um pouco pra eu sentir vontade de comer novamente. Eu ainda estava abalada emocionalmente e foi preciso mais 24h pra que a alma voltasse pro corpo. Quando isso aconteceu, fui tomada por um desejo intenso de…macarrão com amendoim.

Preparei o prato que vocês vêem na foto abaixo na segunda noite que passei em casa, depois de ter sido liberada da delegacia, e quando o gostinho familiar de amendoim com coentro invadiu a minha boca, senti como se uma mãe tivesse passado o braço sobre os meus ombros, me puxado pra perto dela e dito com a voz mansa: “Chega aqui, fia.” E naquele momento era exatamente disso que eu precisava.

Comida tem dessas coisas. Eu já gostava muito desse prato antes do ocorrido que descrevi acima, mas acho que agora ele sempre vai ter gosto de reconforto pra mim.

Sei que a experiência de vocês com esse prato não será, nem de longe, parecida com a minha. Mesmo assim insisto pra que vocês preparem essa delícia. Não é todo dia que a gente encontra uma receita tão simples, barata, que use ingredientes bem nossos e que tem um sabor tão delicioso.

Macarrão com molho de amendoim

Esse prato pode parecer estranho, mas confie. Ele é barato, nutritivo (amendoim é uma leguminosa, muito rico em proteína), fica pronto em minutos e o sabor é tão delicioso que tenho certeza que vai entrar na sua rotina culinária depois da primeira garfada. E ainda aposto que você vai espalhar a palavra do macarrão com pasta de amendoim pra toda a sua família e amigas. De nada:)

Espaguete (ou macarrão chinês, se tiver)

Pasta de amendoim (pura, sem açúcar)

Cebola e alho a gosto

Molho de soja (shoyu)

Coentro fresco (ou cebolinha)

Óleo ou azeite

Pimenta preta (ou calabresa)

Amendoim torrado (opcional)

Coloque uma panela com água pra cozinhar o macarrão no fogo. Não coloque sal na água. Enquanto a água ferve, prepare o molho.

Pique uma cebola (ou o quanto quiser) e um pouco de alho. Aqueça um tico de óleo (ou azeite) em uma frigideira e doure a cebola. Junte o alho e deixe cozinhar mais alguns segundos. Reserve. Pique um punhado de coentro ou, se coentro não for a sua praia, cebolinha. Reserve também.

Nesse ponto a água deve ter começado a ferver. Coloque o espaguete dentro da panela e enquanto a massa cozinha, continue preparando o molho.

Dissolva a pasta de amendoim em um pouco de água quente, retirada diretamente da panela onde o macarrão está cozinhando. Eu calculo mais ou menos uma colher de sopa cheia de pasta de amendoim por porção de macarrão (e umas 5-6 colheres de sopa de água quente pra cada colher de sopa de pasta de amendoim). Junte a água quente aos poucos, batendo bem com a colher, até a mistura ficar fluida, mas ainda cremosa. Acrescente molho de soja e pimenta preta (ou calabresa) a gosto. Prove. O molho de amendoim deve puxar um pouquinho pro lado do salgado, já que ele vai temperar todo o macarrão.

Reserve um xícara da água do cozimento do macarrão e escorra a massa. Imediatamente coloque o macarrão escorrido de volta na panela onde ele cozinhou, despeje o molho de amendoim por cima, a cebola e o alho refogados. Ligue o fogo bem baixinho, só pra aquecer o molho, e misture bem. Se o macarrão parecer seco, junte um pouco da água de cozimento. Prove e corrija o tempero, se necessário. Quando tudo estiver bem quente e envolto de um molho cremoso, desligue o fogo e sirva imediatamente polvilhado com o coentro (ou a cebolinha) e o amendoim torrado, se tiver usando.

4 de novembro de 2023

Eu tenho uma receita pra compartilhar com vocês há semanas, uma das melhores receitas que já cruzaram o meu caminho e que preenche todos os requisitos pra ser sucesso: extremamente simples, barata, que dialoga com nossa cultura alimentar e absurdamente deliciosa. Mas hoje, vigésimo nono dia de ataques israelenses à Faixa de Gaza, é um dia de solidariedade internacional ao povo palestino e me pareceu absurdo vir aqui falar de receitas. Então vou continuar o post anterior recomendando mais material sobre a Palestina, mas dessa vez se trata de vídeos que fiz com dois militantes que talvez vocês conheçam bem.

Há exatos três anos (4/11/2020), Vitor me chamou pra conversar sobre o que Palestina e veganismo e o que uma coisa tem a ver com a outra, mas na verdade preparamos uma aula bem didática sobre as origens do colonialismo sionista na Palestina.

Poucos meses depois, em maio de 2021, também tive uma conversa bem explicativa e didática sobre a luta do povo palestino com Dimitra Vulcana.

Espero que os atos e protestos de hoje sejam gigantes e que vocês gritem alto pelo povo palestino. Que nossas vozes cheguem aos ouvidos dos governantes, a maioria cúmplice desse genocídio, e os façam ter um mínimo de decência pra impor sanções a Israel até que parem de cometer crimes de guerra e contra a humanidade. E que palestinos e palestinas possam nos ouvir pra saber que, apesar dos nossos governos estarem do lado errado da História, nós estamos do lado certo. Palestina livre!

Sobre a Palestina e o seu povo

Se você descobriu esse blog recentemente talvez não saiba que a Palestina ocupa uma parte importante da minha vida. Visitei a região pela primeira vez em 2007 e morei lá de 2008 a 2013. Em seguida foram mais cinco anos, de 2014 a 2018, morando lá uma parte do ano, quando eu organizava tours políticos de solidariedade (veganos!) pra pessoas brasileiras que queriam conhecer a Palestina e a luta por autodeterminação do seu povo.

Por razões pessoais, não me encontro em condições de fazer análises políticas atuais sobre a colonização israelense na Palestina e seu projeto de Apartheid, limpeza étnica e genocídio. Mas quem conhece o meu trabalho sabe que sou uma militante muito comprometida com a causa palestina e que minha militância acontece na vida real, no terreno, não (apenas) na internet. Infelizmente, em tempos de ativismo de redes sociais, parece que se você não postar sobre X, então você não se importa com X e recebi várias críticas, mais ou menos explícitas, nas últimas semanas.

Estou cansada e abatida demais pra colocar pra fora, de maneira elegante e coesa, a minha frustração com esse tipo de comportamento. Quem quiser pensar que eu deixei de militar simplesmente porque não uso mais redes sociais, ou que parei de me importar com o povo palestino e sua luta por libertação porque não fiz um pronunciamento recente aqui, paciência. E quem mandou mensagens pedindo, de maneira educada e carinhosa, pra eu voltar a fazer conteúdo informativo sobre a Palestina porque “minha voz faz falta”, peço compreensão. Estou passando por um momento pessoal muito difícil, tanto por questões familiares quanto relacionadas à Palestina, e atravessar cada dia tem sido uma batalha. Mas tem muita gente fazendo isso no Brasil e no mundo (pra quem fala inglês) e tenho certeza que o mais acertado é ouvir vozes palestinas. Vou deixar algumas recomendações aqui.

Tem o trabalho da palestina, nascida no Brasil e que mora atualmente no Canadá, Hyatt Omar Tem também o grupo Juventude Sanaud e o Monitor do Oriente, uma “instituição independente de pesquisa de mídia fundada para promover uma cobertura justa e precisa das questões do Oriente Médio”. Em Inglês (mas nada que a ferramenta de tradução do Google não possa resolver pra quem não domina essa língua) recomendo o site independente de notícias The Electronic Intifada, que é palestino e, além de notícias, traz análises excelentes. E minha última recomendação é +972 Mag. Se trata de um site de notícias, também independente, mas israelense, de esquerda e anti-sionista.

Pra além das recomendações, eu vim aqui hoje pra fazer uma tentativa modesta. A desumanização do povo palestino continua sendo uma arma utilizada por Israel, e repetida pela grande mídia e governos mundo afora, pra impedir que a gente se solidarize com essas pessoas, justificando assim a sua dominação, opressão e abrindo caminho pro genocídio (anunciado e televisionado). Isso não foi algo inventado por Israel, basta estudar minimamente a História pra perceber que todo povo oprimido é desumanizado pelos seus opressores. Então eu vim lembrar vocês das muitas entrevistas e depoimentos de pessoas palestinas que publiquei aqui, além do relato de brasileiras que foram à Palestina comigo. E se você acaba de descobrir o Papacapim, aqui está um convite pra descobrir esse extenso material que há anos mora aqui, mas que não perdeu a relevância.

Começo com a série, em três episódios, “Histórias palestinas”, onde entrevistei dois amigos e uma amiga palestina. Essas pessoas, todas refugiadas, contam suas histórias de vida e como a ocupação israelense impacta absolutamente todos os aspectos do seu dia-a-dia e determinou o lugar onde nasceram e estão criando suas crianças.

Mustafa e Mohamad Alafandi

Meu nome é Mohamad Alafandi, tenho 76 anos e moro no campo de refugiados de Deheisha, na região de Belém. Nasci em Dayr Aban, a 21 km de Jerusalém, no que então ainda era a Palestina. Minha cidade resistiu enquanto pôde à invasão sionista, o que custou a vida de quarenta habitantes. A gente só tinha dois fuzis e os homens se revezavam pra defender nossas casas. Mas o exército sionista era muito mais bem equipado. No dia 18 de outubro de 1948 os soldados do recém-criado estado de Israel invadiram minha cidade e obrigaram a população a partir sem poder carregar absolutamente nada, abandonando nossas terras, casas, animais e pertences, deixando toda a nossa vida para trás. Eu tinha 14 anos quando isso aconteceu. Meu pai não suportou tão duro golpe e sofreu um derrame que o deixou paralisado. Fui obrigado a carregar meu pai nas costas durante todo o tempo em que caminhamos. Minha família errou durante um ano e meio, andando de cidade em cidade procurando um lugar para viver. Meu pai morreu um ano depois de ter sido expulso de sua cidade natal e eu, como filho mais velho, tive que tomar conta da minha mãe e dos meus irmãos. Acabamos chegando em Deheisha, um dos inúmeros campos criados pela ONU. Leia a continuação do depoimento aqui

Mustafa (à direita) com o pai, Mohamad, e o filho caçula, Aissa. Três gerações de refugiados.

Khoulud Ayyad

A vida no campo de refugiados nunca foi fácil, mas lembro de um período, quando eu era criança, que as coisas eram ainda piores. Durante a primeira intifada (entre 1987 e 1993) os soldados israelenses entravam no campo o tempo todo e muitas pessoas foram assassinadas. Todo mundo tinha medo de sair de casa e levar um tiro. Lembro que um dia, eu devia ter uns 8 anos, vi dois jovens correndo no campo. Pensei que os soldados estavam os perseguindo então abri a porta de casa e comecei a agitar os braços, chamando eles pra se esconderem ali. Quando meu avô viu a cena me colocou pra dentro e fechou a porta imediatamente. Depois explicou que aqueles jovens não eram palestinos fugindo de soldados israelenses e sim soldados israelenses a paisana correndo atrás de palestinos.Leia a continuação aqui

Tareq Jawabrah

Meus pais nasceram em Iraq Al-Manshya, um cidadezinha no litoral da Palestina histórica, entre Jafa e Gaza.  Meu pai era agricultor e junto com a família cultivava laranjas e outras frutas cítricas. Em 1948, quando as tropas sionistas invadiram nosso vilarejo, meu pai tinha 20 anos. Fazia já algum tempo que as notícias de expulsões e massacres de palestinos por soldados sionistas chegavam por lá e algumas pessoas tinham abandonado suas casas com medo do que iria acontecer quando a vez de Iraq Al-Manshya chegasse. Toda a população recebeu ordem de ir embora, mas muitas pessoas se recusaram a abandonar suas terras. Os que tentaram ficar foram executados e meu pai perdeu muitos amigos e um irmão. A família do meu pai foi pra Hebron (no sul da Cisjordânia). Quando eles chegaram lá, os habitantes da cidade se compadeceram com o triste destino dos refugiados e os acolheram em suas casas. Alguns meses depois eles escutaram que a ONU estava reagrupando o pessoal em campos de refugiados, na espera do retorno. Foi assim que a família da minha mãe, que também é de Iraq Al-Manshya, e a do meu pai vieram parar em Al Arroub. Um dia, em uma viagem organizada pela escola, fomos à Jafa ver o mar (a antiga cidade de Jafa foi anexada à Tel Aviv). No caminho eu vi uma placa indicando Qiryat Gat, a cidade israelense construída sobre as ruinas da nossa cidade, e pedi ao motorista pra passar por lá. Quando vi aquelas pessoas, que moram hoje nas terras que um dia pertenceram ao meu pai, olhando pra mim como se eu fosse um estrangeiro que não tinha direito nenhum de estar ali meu sangue ferveu e a revolta tomou conta de mim.Continua aqui

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Muitas das pessoas que participaram dos tours políticos que organizei na Palestina (antes que perguntem, não faço mais esses tours) compartilharam esse vivência aqui no blog e eu também escrevi bastante sobre essas viagens de solidariedade. Além dos relatos, vocês podem ver muitas fotos da Palestina, que tem paisagens lindas, e da comida maravilhosa que degustamos por lá. Seguem alguns desses relatos (mas pra ver tudo, clique na página Receitas e dentro dela, na seção Outros)

“Se eu tivesse optado por um turismo convencional, mesmo tendo uma visão crítica a respeito da ocupação israelense de terras palestinas, muito provavelmente teria voltado com percepções bem diferentes do que esse tour político me proporcionou. Cheguei um dia antes do combinado para me encontrar com o grupo e fiquei hospedada em Jerusalém. Algumas voltas no entorno, vendo israelenses e alguns palestinos na mesma cidade, me deram a falsa impressão de normalidade, de que ambos ocupavam o mesmo espaço sob condições iguais.

Andando apenas em transportes usados por turistas, eu provavelmente não teria percebido que alguns ônibus são reservados apenas para palestinos e outros para israelenses, o sinal mais óbvio de apartheid. Andando pelas ruas e observando as construções, eu certamente acharia que era opção estética ter ou não caixas d’água no teto, ao invés de saber que palestinos não têm água disponível 24h, ao contrário dos israelenses, mesmo essa água tendo sido captada em terras palestinas. Se estivesse em uma excursão tradicional, em ônibus de viagem, teria passado por vários “check points” sem perceber, pois esses ônibus não seriam parados. Mais ainda, eu teria percorrido vários quilômetros de estrada cortando terras palestinas e não saberia que na maioria daquelas estradas só é permitido o tráfego de israelenses. Teria visto as imensas colônias israelenses em terras palestinas e concluído ser apenas mais uma cidade. Teria visitado o Mar Morto sem ver um só palestino e achado que eles não frequentavam outros resorts por opção.” Continue lendo o post “Estou disposto a fazer a minha parte”

“Pude dividir um pouco da Palestina que me emociona e me inspira com um grupo de pessoas maravilhosas, passei 14 dias incríveis e fiz um dos trabalhos mais significativos da minha vida. E além dos cinco brasileiros que decidiram embarcar nessa aventura o acaso trouxe uma islandesa pro nosso grupo, porque loucura pouca pra mim é bobagem. Nosso grupo era um óvni. Imaginem eu explicando a empreitada pros palestinos: “Opa! Tudo certinho? Eu tenho um blog de culinária vegetal em Português e estou guiando uns brasileiros, não, essa daí é islandesa (não, nem irlandesa nem finlandesa, islandesa da Islândia), num tour político-gastronômico pela Palestina e nós gostaríamos de bater um papinho sobre o papel das mulheres no movimento de resistência popular contra a ocupação. Pode ser?”. Juntos vivemos coisas intensas, emocionantes, revoltantes e inspiradoras. Nas fotos vocês podem ver alguns dos lugares que visitamos e algumas das pessoas, principalmente palestinas, mas também israelenses,  que encontramos durante essas duas semanas.” Essa sou eu falando e o relato do primeiro tour que organizei, em 2014, está aqui

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No tour do ano seguinte, participamos da colheita de azeitonas.

“Outubro é a época da colheita de azeitonas aqui na Palestina e é, na minha opinião, o melhor mês pra estar aqui. Eu não sabia nada sobre o cultivo de azeitonas nem sobre a produção de azeite até ter me mudado pra cá, em 2008. Fiquei encantada quando descobri a parte fundamental que a oliveira tem na cultura e na vida dos palestinos. Talvez o mais impressionante pra mim foi descobrir que não existem ‘cultivadores de azeitonas’. Como oliveiras precisam de pouquíssimo cuidado e só recebem água da chuva, os ‘donos’ das oliveiras têm todos uma profissão, que eles exercem durante as outras cinquenta semanas do ano. Durante duas semanas, no início ou no final do mês (de acordo com o amadurecimento das azeitonas), professores, médicos, pedreiros, advogados, estudantes, psicólogos, sociólogos, eletricistas, cozinheiros… todos largam temporariamente suas ocupações e vão pro campo. A família inteira, muitas vezes três gerações juntas, participa da colheita. Uma parte das azeitonas será marinada durante várias semanas e elas serão degustadas acompanhando o café da manhã típico daqui. Mas a maior parte delas vai ser prensada e virará azeite, que aparece na mesa familiar durante o ano inteiro.” O post completo está aqui

E falando em colheita, tem dois posts, de 2012, muito especiais pra mim. O primeiro mostra um pouco do que é esse momento tão importante pra cultura e economia palestina. E outro, no mesmo ano, onde compartilho um momento mágico: meu amigo Tawfic me levou pra uma prensa e pude ver como as azeitonas são transformadas em azeite.

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“O centro da produção de azeite palestino fica em Nablus, no norte, e lá tem mais prensas do que aqui. Porém, o azeite de Belém e das duas cidades vizinhas (Beit Jala e Beit Sahour) tem fama de ser o melhor de toda a Palestina. Meu amigo Tawfic explicou que essa região tem um micro clima perfeito pra produção de azeitonas e por isso o sabor do azeite daqui é superior. Eu posso confirmar: o azeite de Tawfic é o melhor que já provei na vida! Ele tem uma nota verde intensa, com um gosto de mato depois da chuva (nunca comi mato depois da chuva, mas tenho certeza que o gosto é idêntico ao cheiro), mas ao mesmo tempo é aveludado e tão cremoso que chega a ser (pasmem!) amanteigado. É difícil descrever um sabor tão complexo, só mesmo provando pra entender.” O post completo, com fotos do passa-a-passo, está aqui

Pra ver muitas fotos de lugares lindos e pratos típicos deliciosos, é só clicar aqui.

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Na seção Viagens (dentro da página Receitas) tem vários posts mostrando as belezas da Palestina e seu povo acolhedor. Vou só citar alguns, pra esse post não ficar ainda mais longo do que já está.

Tem um post sobre o Vale do Jordão, quando fiquei alguns dias plantando oliveiras em uma comunidade beduína.

E outro sobre o natal em Belém, que era onde eu morava. Imaginem comemorar o nascimento de Jesus…na cidade onde ele nasceu!

Espero que vocês reservem um tempinho pra ler esses relatos, admirar as fotos, salivar diante das comidas e se informar, através das fontes que recomendei. Termino esse post com mais imagens da Palestina, imagens que vocês não verão nesse momento, mas que não deviam sair da nossa mente. A Palestina é um território riquíssimo em história, cultura, culinária e tudo isso, além dos milhões de vidas humanas, está ameaçado.

Café de dente de leão

Andei fazendo muitas coisas estranhas ultimamente, incluindo preparar uma bebida parecida com café, mas feita com raiz de dente de leão.

Essa planta, que cresce de maneira espontânea por todos os lados e cujas folhas são comestíveis, entrou na minha alimentação no ano passado. Cresce aqui no quintal e nos Jardins Operários, onde cultivamos uma horta coletiva, e sempre que lembro vou buscar umas folhinhas pra colocar na salada. Eu acho uma delícia, mas o sabor amargo não empolga muita gente. Passei a achar que amargo, assim como picante, é um sabor que a gente aprende a gostar se o cultivarmos. Você come um pouquinho hoje, outro pouquinho amanhã, e de repente passa não só a achar aquilo gostoso, como a ter desejo por esses sabores. Pelo menos foi assim comigo.

Mas eu não vim aqui falar das folhas de dente de leão, e sim da raiz. Quando descobri que era possível torrar as raízes e fazer café com elas, fiquei empolgadíssima! Chamar a bebida de “café” é provavelmente exagero, mas o sabor lembra, um pouco, o danado. Embora, e espero que isso não afugente quem só curte café de qualidade, eu acho o sabor mais próximo de café instantâneo (aquele que vem acompanhado do prefixo “Nes”) do que de café passado. Mas eu detesto café instantâneo, não tomo nem pra ganhar dinheiro, e mesmo assim achei o sabor do “café” de raiz de dente de leão bem gostoso. Vai entender…

Não vou falar das propriedades medicinais dessa planta, que são muitas, porque isso você acha facilmente na Vasta Rede Mundial. Vou só ensinar como transformar as raízes em café porque, embora trabalhoso demais pra se tornar um substituto do café diário, vai que um dia essa informação te seja útil. Ninguém sabe o que esse mundo em colapso reserva pra nós e talvez em algum momento a gente seja grata por lembrar que dá pra fazer um cafezinho maroto com raízes de uma planta que cresce em toda rachadura de calçada. Ou, num pensamento menos “o fim do mundo está próximo”, é um projeto bacana de fazer num dia de folga e com certeza não vai deixar de impressionar suas convidadas quando você disser: “Aceita uma xícara de café de raiz de dente de leão, bem?”

Como fazer café com raiz de dente de leão

Como explico no texto acima, o sabor não é idêntico ao do café, mas é uma bebida saborosa, com notas que lembram o café e ao mesmo tempo, com sabor próprio. Gosto de ter esse café na cozinha quando quero beber algo quentinho e amargo, mas já está tarde demais pra ingerir cafeína sem que isso atrapalhe o meu sono. Gosto de degustar puro, acompanhando um pedaço de pão ou bolo, ou com um pouco de leite vegetal e uma pitada de canela.

Primeiro, aprenda a identificar a planta. É essa aqui:

As flores são amarelas, mas agora é outono e não tem nenhuma aberta por aqui (no cantinho da foto dá pra ver uma flor fechada, porque o colapso climático é real e tá fazendo 26 graus no norte da França em pleno mês de outubro).

Depois de identificar a planta, use uma pá pequena pra cava ao redor e liberar as raízes. Elas costumam ser profundas, então cave de acordo. Como as que desenterrei estavam num solo muito argiloso e compacto, não consegui retirar nenhuma inteira e todas se partiram durante a operação. As raízes liberam uma seiva leitosa quando cortadas (foto abaixo, à esquerda). Como as raízes variam de tamanho, dependendo da idade da planta, você provavelmente vai precisar arrancar vários pés de dente de leão pra conseguir uma quantidade razoável de raízes. Lembrando que depois de torradas elas reduzem bastante. (Lembrando também que você pode comer as folhas! Mas como eu tinha um monte de folhas, não consegui comer tudo.)

Raízes desenterradas, é hora de lavar/escovar bem pra retirar a terra e cortar em rodelas (assim torra mais rápido e de maneira mais uniforme).

Leve ao forno médio até elas ficarem bem secas (desidratadas) e torradas de acordo com o seu gosto. Quanto mais escura a cor (mais torrada), mais forte será o café. Exatamente como na torra dos grãos de café. Eu fiz uma torra média e o sabor ficou no ponto pra mim. Da primeira vez torrei mais, até ficar bem escuro, e a bebida ficou ainda mais parecida com café, embora com uma nota amarga (do mesmo jeito que acontece com café). Fique de olho no seu forno, abra regularmente pra checar e mexa de vez em quando. Cuidado pra não queimar (mas provavelmente os pedacinhos mais miúdos queimarão)!

Depois é só deixar esfriar e moer. Usei o liquidificador, mesmo. Se estiver fazendo uma quantidade bem pequena de café, vai ser difícil moer em um liquidificador normal (a menos que você tenha aqueles bem pequenininhos, chamados de “bullet”). Mas você pode usar um pilão e socar na mão (cuidado: se seu pilão for usado pra pilar alho, o sabor vai passar pro café!). Guarde em um vidro com tampa, em temperatura ambiente.

Na hora de preparar, use o pó de raiz de dente de leão exatamente como você usaria café: no filtro de papel ou pano, na prensa francesa… Quando quero preparar só uma xícara, coloco uma colher de chá cheia do pó de dente de leão numa caneca, despejo água fervente, cubro e espero 5 minutos. Depois passo por uma peneira fininha (despejando em outra canela) e degusto. Como tomo café sem açúcar, dá pra sentir as notas de sabor específicas da raiz de dente de leão. Se você tomar com açúcar e leite, talvez ache ainda mais parecido com café. Última dica: acho o pó bem intenso e acabo usando uma quantidade um pouco menor do que quando uso pó de café. Ou seja, rende mais do que café.

Tofu mexido com tahina

O verão (no hemisfério norte) acabou há uma semana. Aos poucos, meu quintal está a se cobrindo de folhas secas, tirei o edredom do armário uns dias atrás e de manhã o ar carrega o cheirinho típico dessa estação. Outono é a minha época preferida do ano, introspectiva e caseira que sou. Mas os tomates do verão vão deixar saudade.

Comecei a colher os últimos tomates da nossa horta de quintal e ando cheia de nostalgia. Os cafés da manhã e brunchs embaixo da magnólia branca, quando degustamos os tomates (14 variedades!) recém-colhidos, que plantamos e aguamos com carinho durante meses, fazem parte dos melhores momentos do meu ano.

Nossos tomates são tão saborosos que passei a come-los puros, sempre crus e sem nenhum tipo de tempero: nem azeite, nem mesmo sal! Vou ostentar um pouco agora. Um dia, durante o verão comprei tomates-cereja de uma loja de orgânicos (cultivados aqui na França, em plena estação e, obviamente, orgânicos). Eu estava na rua e precisava de um lanche pra comer no parque. Que arrependimento! Os tomates eram insípidos comparados aos que colho na nossa horta de quintal (e de lote nos jardins operários)! E pensar que uns anos atrás eu achava que tomates orgânicos de supermercado eram a “crème de la crème” em matéria de sabor.

Umas semanas atrás, quando nossa horta ainda estava nos dando uma pequena bacia de tomates por dia, nosso vizinho nos deus alguns tomates grandes da horta dele. Decidi desrespeitar minha regra de “comer-tomates-do-quintal-sempre-crus-pra-apreciar-plenamente-seu-sabor” e cozinhei os seus tomates dentro da minha versão preferida de tofu mexido. Eu compartilhei minha receita de tofu mexido com tomate e manjericão anos atrás e o prato de hoje é uma variação dela. Apesar de ser muito simples, acontece algum tipo de mágica quando você coloca tahina (pasta de gergelim) no tofu. Fica tão absurdamente gostoso que só provando pra entender.

E se tahina é a sua praia, tem várias receitas aqui no blog com ela. É um dos meus ingredientes preferidos então eu uso em tudo, de gratinados (batata gratinada com tomate) à sobremesas (pudim de chocolate e tahina), passando por biscoitos (biscoito de aveia, tahina e passas) e lanches (pão com banana, tahina e canela). Sem falar que é provavelmente o meu molho preferido pra saladas cruas (como o molho dessa salada de repolho roxo, beterraba e maçã), mil vezes melhor que maionese! E nem vou falar nas pastas pra passar no pão com tahina…(mas se quiser ver algumas das minhas receitas, é só procurar na lista de receitas de patês, cremes e pastas 😉

Tofu mexido com tahina

Tahina, ou tahine, é a pasta de gergelim tão adorada na culinária árabe. A melhor tahina é branca, ou seja, feita com gergelim descascado (tahina “integral” é muito mais amarga e granulosa). Eu gosto dessa receita com coentro, mas salsinha também casa muito bem com gergelim. Além de comer com pão, esse tofu é um ótimo recheio pra torta, pizza ou, ousemos, pastel. A quantidade dos ingredientes vai de acordo com o seu gosto, mas, como sempre, escrevo minhas receitas em ordem decrescente (o ingrediente utilizado em maior quantidade aparece primeiro).

Tofu

Tomates maduros, picados

Cebola, picada

Tahina (pasta de gergelim – leia os conselhos acima)

Coentro fresco (ou salsinha)

Alho, picado ou pilado

Azeite, ou outro óleo

Sal e pimenta preta

Aqueça um pouco de azeite em um frigideira grande, de preferência com o fundo grosso. Doure a cebola por alguns minutos, em fogo médio. Junte o alho e deixe cozinhar mais alguns segundos. Esmigalhe o tofu (com as mãos) sobre a frigideira e aumente o fogo. Cozinhe, mexendo frequentemente, até o tofu secar um pouco (o ideal é que tenha um pouco de espaço entre os montinhos de tofu pra que o ar circule e ele possa cozinhar direito). Isso leva alguns poucos minutos. Junte o tomate, salgue, baixe o fogo e deixe cozinhar, coberto, até o tomate se desintegrar. Eu gosto de usar quantidades iguais de tofu e tomate, mas se só tiver um tomate na cozinha, vai dar certo também.

Desligue o fogo e acrescente uma colher de sopa de tahina, ou várias (a quantidade vai depender do seu gosto – se você gosta do sabor ligeiramente amargo do gergelim ou não), pimenta preta e misture bem. Prove e corrija o sal, se necessário. Se você tiver usado pouco tomate, talvez a mistura fique seca e compacta. Nesse caso junte um pouquinho de água e misture novamente. O tofu tem que ficar bem molhadinho (veja foto acima), mas não nadando em líquido.

Junte o coentro (ou salsinha) picado e sirva imediatamente.

Nut…ela descolonizada

Aqui onde eu moro consigo encontrar tudo que preciso e gosto de comer: vegetais frescos, todas as leguminosas imagináveis, arroz, macarrão integral, tofu feito aqui perto, leites vegetais prontos… Tem até vários produtos ultraprocessados em versões vegetais , mas esses eu nunca trago pra casa. Além de fazer isso por razões de saúde (entenda aqui) e de paladar (não gosto), nos raros dias em que me bate a vontade de comer um doce, eu sou obrigada a inventar algo com o que tem na cozinha. E isso sempre estimulou muito a minha criatividade. Fico pensando no número de receitas que eu não teria criado se tivesse sempre um pacotinho de biscoitos ou um pote de pasta de chocolate açucarada ao alcance da mão.

Semana passada bateu uma imensa vontade de comer pão com algo doce por cima. Carboidrato com carboidrato, porque sim. E acabei inventando um lanche muito gostoso, que eu já repeti várias vezes desde então. Anne também adorou então pensei que, apesar de ser de uma simplicidade extrema e que talvez vocês já façam isso aí na cozinha de vocês há tempos, valia a pena compartilhar aqui.

A “receita” é uma pasta de amendoim e cacau que, pra mim, é muito melhor que vocês sabem o que. Mas confesso que nunca gostei daquele negócio. Acho enjoativo e doce pra muito além do meu limite. E também prefiro amendoim do que avelã (embora goste dela também). Como o amendoim e o cacau são nossos (entenda: são nativos da região conhecida como América do Sul), acho que essa deveria ser nossa pasta de chocolate oficial. Uma nutela descolonizada, porque além de tudo não tem leite (nem animal, nem vegetal, porque não precisa).

Gosto de fazer essa pasta 100% amarga, pra comer de colher no final da tarde, ou tarde da noite. Mas no dia que deu vontade de comer algo doce com pão, eu lembrei da geleia de amora que uma camarada do coletivo me deu de presente (amoras colhidas e transformadas em geléia por ela e o pai) e espalhei as duas, uma camada da pasta e outra da geleia, no pão. A geleia feita pela minha amiga não tem o arroubo de açúcar das geleias industrializadas, então a combinação ficou doce no ponto pra mim e a mistura de sabores é sublime! Se tiver uma geleia saborosa aí na sua cozinha, de uma fruta que você acha que combina com chocolate, não deixe de experimentar. (Nesse caso, posso sugerir não adoçar sua pasta pra não ficar enjoativo?)

Espero que vocês testem essa pasta maravilhosa , que decidi chamar de “amendolau” (porque é mais prático…e engraçado), em casa. Simples, rápida de fazer, barata, descolonizada e deliciosa. O que mais pedir?

Amendolau (pasta de amendoim e cacau)

Eu faço essa pasta somente com a manteiga de amendoim pura, cacau 100% e sal, porque gosto do meu chocolate totalmente amargo. Como assim mesmo ou, nos dias que tenho vontade de algo doce, misturo com geleia na hora de comer. Mas como sei que praticamente todo mundo prefere sabores doces, vou passar a receita adoçada com melado. Você pode usar outro xarope pra adoçar, como bordo, agave ou arroz. Ou simplesmente usar manteiga de amendoim adoçada (mais um pouco de melado, se quiser bem doce). Se eu estivesse no meu Nordeste, testaria uma versão com melado de caju.

Manteiga de amendoim (pura ou adoçada – leia as explicações acima)

Melado de cana (se estiver usando manteiga de amendoim pura)

Cacau em pó (100%, sem açúcar )

Sal

Misture (com uma colher, se estiver fazendo uma quantidade pequena, ou no liquidificador, se fizer uma quantidade maior) a manteiga de amendoim com cacau, melado de cana e uma pitada de sal. As quantidades vão depender do seu gosto: se quiser mais forte em chocolate, capriche no cacau. Se quiser mais doce, coloque mais melado… Se estiver usando manteiga de amendoim adoçada, vá com calma no melado (talvez nem precise). Vá juntando água aos pouquinhos até ficar com uma textura cremosa, mas ainda densa (veja foto abaixo). Deguste imediatamente.

Pode ser conservada na geladeira por alguns dias. A pasta vai ficar mais firme e mais densa, mas o sabor é o mesmo.

Fica aqui o convite

Semana passada eu sentei pra almoçar no jardim e depois de fazer a pequena oração de agradecimento, que faço sempre antes de comer, fiquei admirando o meu prato. Não que a comida fosse extraordinária, muito pelo contrário. Era um simples prato de macarrão com couve, tomate e manjericão, vindos da nossa horta de quintal. Mas apesar de ser o segundo ano da nossa horta, ainda me maravilho com o ato de comer o que eu mesma plantei. 

Foi então que percebi que meu almoço ia na contramão de tudo que vejo sendo valorizado nas redes sociais. Aquela comida não era, pra usar as palavras da moda, “low carb”, nem “proteinada”, nem “fit”, nem mesmo “gluten free”. Eu sorri e degustei meu macarrão, feliz.

Vim aqui propor uma reflexão. Me assusta ver a obsessão geral com proteína. Se antes isso ficava restringido ao mundo de fisiculturistas, já faz um certo tempo que a coisa foi se espalhando e entrou na cabeça de quase todo mundo. É uma galera contando proteína a cada refeição, ingerindo vários ovos por dia, se atolando em carne de vaca e frango e entupindo tudo que passa pela frente de “whey protein”. Já vi até água “enriquecida” com “whey”. Minha gente, que mundo é esse em que até água, ÁGUA!, se tornou uma oportunidade pra ingerir mais proteína? Como se tivesse um crise de falta de proteína! No Brasil de 2023, enquanto a maior parte da população sofre com algum grau de insegurança alimentar, o grupinho dos apóstolos do culto à proteína (animal) devoram muito mais do que o necessário pra manter a saúde e muito, muito mais do que o aceitável em matéria de impacto ambiental e social. 

Seguir essa dieta ultra proteinada, transbordando de corpos animais, leite e ovos, significa escolher ter um impacto gigantesco no meio ambiente e isso é inaceitável. Em pleno colapso climático, é indecente escolher se alimentar da maneira com o maior impacto ecológico possível. E é egoísta, porque só é possível ter uma dieta ultra-proteinada (animal) pra alguns se for retirada a possiblidade da maioria de ter acesso ao suficiente. Se tem excesso do lado de cá, é porque não tem o suficiente do lado de lá. Enquanto uns pregam comer animais e seus derivados a cada refeição, a Amazônia se transforma em pasto, os povos indígenas são expulsos de seus territórios e assassinados e o Cerrado vira monocultura de soja (pra alimentar animais de abate). Sem falar no impacto nefasto do metano, produzido por todos esses animais criados pra serem devorados pelos adoradores de proteína (animal), na quantidade de água e terra necessária pra produzir uma dieta que oferece 3, 5, 10 vezes mais proteína do que a quantidade que o corpo precisa! Pense também no peso que isso coloca no sistema de saúde pública, já que a relação entre consumo de animais e seus derivados e o aparecimento de várias doenças não pode mais ser contestada por ninguém que tenha algum respeito pela ciência. 

Pra minha tristeza, o culto da proteína entrou até mesmo no mundo vegano. As receitas vegetais que vejo em blogs e canais do YouTube aparecem cada vez mais acompanhadas das palavras “proteinada” ou “high protein” e consumir proteína em pó “vegana” está se tornando cada vez mais comum. E o que dizer de ter gente chamando isso de “whey protein vegano”? Deve ser pra que além de sem necessidade, o produto seja sem sentido também. (“Whey” quer dizer “soro de leite” em Inglês, então já viu o quão ridículo é chamar proteína de ervilha, soja ou arroz de “soro de leite”, né?)

Agora vamos nos perguntar: a quem serve essa obsessão com proteína? Quem lucra com a supervalorização e idolatria de uma categoria de alimentos, essencialmente vindos da exploração animal?

Fica aqui o convite pra refletir também sobre quem dita o que a gente considera importante. Por que essa supervalorização de corpos animais e desvalorização ou até demonização de cereais (macarrão, arroz, pão, milho)? A proteinomania (vinda de animais) é irmã da fobia dos carboidratos (que vem dos vegetais). É uma reflexão que dialoga com esse post aqui sobre redefinir o conceito de fartura. Lembrando que o prato que mencionei no início desse texto foi só uma refeição. Naquele dia eu tinha tomado café aveia com chia e fruta, depois desse almoço lanchei alguma coisa e à noite jantei sopa de lentilha. Ninguém se desintegra por ter feito uma refeição mais rica em carboidrato do que em proteína (e sim, tem proteína aqui também, meu povo!).

Meu prato de macarrão com tomate e couve seria reprovado pelas gurus fits, até mesmo as veganas, que veriam uma “bomba” de carboidrato e azeite e um “vazio” de proteína. Pra muito além das vitaminas e minerais do tomate e da couve, das fibras e da proteína , eu olho pro meu almoço e vejo comida que me faz feliz, porque foi plantada por mim e cresceu no meu quintal. Comida que alimenta o meu corpo, me dando forças pra servir minha comunidade e transformar o mundo, sem pesar demais sobre a nossa Terra, que deve ser compartilhada com quase 8 bilhões de pessoas humanas e todas as pessoas outras que humanas. Comida gostosa e que reforça meus vínculos de afeto com a terra, com t minúsculo, e reafirma meu compromisso de solidariedade com a Terra, com T maiúsculo, e todos os viventes que moram nela.

Macarrão com couve e tomate cru

É uma daquelas receitas humildes, nível iniciante e que fica pronta em minutos. É importante usar tomates gostosos, bem maduros, e em grande quantidade pra massa ficar gostosa. Na verdade, seja generosa tudo: a couve, o azeite (o melhor que você puder usar), o manjericão… No mais, como expliquei no post acima, essa NÃO é uma receita “low carb”, nem “proteinada”, nem “fit”, nem “sem gluten” (mas pode ser, dependendo do tipo de espaguete utilizado). Mais do que rebeldia com as modas do mundo fit, se trata simplesmente de uma receita que apareceu na minha cozinha no meio da semana, usando ingredientes da minha horta de quintal, e que me fez muito feliz, além de me alimentar. 

Macarrão 

Couve

Tomates maduros (usei uma mistura de vários tomates)

Alho (opcional)

Manjericão 

Azeite

Sal e pimenta preta

Castanha do Pará (opcional)

Ferva uma panela com bastante água salgada (pra cozinhar o macarrão). Enquanto isso, corte a couve em tiras finas, corte os tomates em pedaços pequenos e pique o alho, se estiver usando.

Quando a água ferver, coloque o macarrão pra cozinhar até ficar do seu gosto (al dente ou bem cozido, não estou aqui pra julgar). Quando o macarrão tiver cozido desligue o fogo e retire meia xícara da água do cozimento (reserve). Jogue a couve picada na panela, mexa rapidamente e escorra tudo junto. A couve cozinha em segundos e esse mergulho na água fervente do macarrão é suficiente pra deixá-la no ponto. 

Transfira o macarrão e a couve pra panela onde foram cozinhados e junte os tomates, o alho, o manjericão (rasgado ou picado), mais um pouco de sal, pimenta preta e bastante azeite (seja generosa). Mexa e se o macarrão parecer um pouco seco, acrescente a água do cozimento do macarrão, que tinha sido reservada. Misture novamente, prove e corrija o sal/pimenta. Sirva imediatamente. Se quiser, rale uma castanha do Pará por cima (como na foto) antes de degustar.  

Bolo salgado de lentilha

Contei no post sobre a torta salgada de legumes que procuro uma receita de uma torta de lentilha há tempos. Semana passada, por obra do mais puro acaso, encontrei o que estava procurando no grupo Facebook “Veganismo sem firula“. Eu não uso Facebook, mas ainda tenho um perfil por lá. De vez em quando aparece uma notificação, que eu ignoro, só que deve ter sido uma anjinha que me falou pra clicar na notificação que apareceu enquanto eu trabalhava semana passada. Era sobre um post do grupo que mencionei acima, o que me fez lembrar que o grupo existia. Já que eu estava ali, resolvi dar uma olhada no que tinha sido postado ultimamente e foi assim que me deparei com uma receita chamada “bolinho de verdura com massa de lentilha rosa”, de uma participante do grupo chamada Emy Yokoyama de Almeida. Bingo! Era o que eu vinha procurando esse tempo todo.

Adoraria ter feito os bolinhos individuais da receita original, mas como só tenho formas grande, fiz um bolo grande. A textura da massa é muito mais leve, e ligeiramente seca (não é um defeito aqui!), diferente da minha torta de legumes, que é bem úmida e densa. Nada surpreendente, já que se trata de um “bolo” e não uma “torta”. Acho essa textura perfeita pra comer no lanche, junto com uma pasta/patê/creme.

Sobre as lentilhas. Sei que a lentilha consumida no Brasil é importada (quase tudo do Canadá, o maior produtor de lentilhas do mundo). Além disso, lentilha rosa (que eu chamo “coral”, porque acho que é a cor que melhor descreve essa leguminosa) não é facilmente encontrada por aí. Então vamos combinar que essa receita é algo especial, pra sair da rotina, mas que prometo seguir nos testes pra ver se é possível fazer com leguminosas cultivadas no Brasil. Espero conseguir desenvolver uma versão mais acessível, ecológica e que faça sentido na nossa cultura alimentar.

Enquanto isso, deixa eu dizer que uma receita de bolo salgado de liquidificador à base de lentilha, que você usa crua na massa e que cozinha junto dos outros ingredientes, no forno, é uma jóia! Facílima de preparar, extremamente versátil, muito nutritiva e deliciosa. Recomendo fortemente.

Bolo salgado de lentilha rosa

Segui a receita de Emy, fazendo adaptações minúsculas, e é a que compartilho aqui. Na segunda vez que fiz esse bolo esqueci o fermento e o vinagre e apesar de ter ficado gostoso, a textura ficou bem densa e muito menos agradável. O fermento traz leveza e o vinagre é essencial pra trazer uma certa maciez pra esse bolo. Use os legumes que quiser e não tenha medo de personalizar a receita. Os ingredientes essenciais são as lentilhas, a aveia (ajuda na liga), o azeite (maciez e sabor), o fermento (pra deixar leve) e o vinagre (pra ajudar na textura). Os temperos e verduras ficam ao seu gosto. Na foto acima usei cenoura e abobrinha, porque era o que eu tinha. Na segunda vez fiz com beterraba e também ficou ótimo.

1,5 xícara de lentilha rosa (crua)

1/2 x xícara de aveia (flocos finos)

1 xícara de água

3 colheres de sopa de azeite (ou outro óleo)

1 colher de chá de fermento (bem cheia)

1 colher de sopa de vinagre

2 xícaras de verduras raladas (usei cenoura e abobrinha na primeira vez, beterraba na segunda)

Sal e pimenta preta

Ervas finas desidratadas (usei uma mistura de manjerona, salsinha, orégano e alecrim)

Deixe a lentilha de molho por algumas horas. Descarte a água do molho e bata no liquidificador com 1 xícara de água até ficar completamente homogêneo. Em um recipiente grande, despeja essa “vitamina” de lentilha e misture com os outros ingredientes (junte o fermento e o vinagre por último). Nas fotos abaixo eu estava fazendo a segunda versão desse bolo, com beterraba ralada.

Transfira a massa pra uma forma untada e polvilhada com farinha de aveia (só triturar a aveia em flocos no liquidificador), ou cubra a forma com papel manteiga antes de despejar a massa. Você tem a opção de polvilhar com gergelim ou semente de papoula (o que fiz), mas nem precisa. Leve ao forno (eu não pré-aqueci e deu certo) médio e deixe assar até que passe no teste do palito.

Versão desse bolo com beterraba, polvilhado com za’atar (o fermento e o vinagre foram esquecidos, por isso a textura mais densa).

Ensopado de folha de jerimum

Esse ano plantei duas mudas de jerimum no quintal e, surpresa, cinco outras brotaram de maneira espontânea. Isso aconteceu porque usamos a terra da nossa composteira, onde tinha as sementes de jerimum, de vários tipos, que comemos durante o ano. Cultivamos em três lugares diferentes no quintal e um desses lugares, onde tem menos sol, é dedicado exclusivamente ao plantio de jerimum. Apesar de usarmos a mesma terra da composteira nas três hortinhas, o jerimum espontâneo resolveu brotar justo no cantinho onde eu tinha decidido plantar esse vegetal. Acho um mistério fascinante como as sementes combinaram de só brotarem ali, junto com as duas mudas de jerimum que eu já tinha plantado, e não no meio dos pés de tomate e couve das outras hortas.

Além dos pés plantados por nós e dos pés surgidos de maneira espontânea, a dona da casa plantou mais três. Quando o quintal começou a se encher com folhas e mais folhas de jerimum, peguei: “Não seria ótimo se elas fossem comestíveis?” Depois de ter perguntado ao pai dos interessados, o Google, descobri que elas eram comestíveis, sim, e que ainda por cima eram ricas em nutrientes e faziam parte da cultura alimentar de muitos países do continente africano.

Eu sei que as folhas têm um papel importante (proteger a terra da evaporação de umidade causada pelo sol, fotossíntese), mas são tantas folhas aqui no meu quintal que eu imaginei que retirar algumas não ia prejudicar a planta. Então naquele mesmo dia jantei folha de jerimum, refogada no azeite, com um tico de alho. Gostei demais do sabor, embora a textura me parecesse um pouco áspera (descobri depois que eu simplesmente não tinha cozinhado por tempo suficiente).

Desde então cozinhei mais algumas vezes, de outras maneiras. Uma vez joguei na sopa de lentilha, outra vez coloquei no feijão. Mas a melhor receita que desenvolvi até agora é essa aqui: com tomate e pasta de amendoim. Eu gosto muito de cozinhar com pasta de amendoim e acho que essa leguminosa (sim, é uma leguminosa), nativa da América do Sul, merece aparecer mais na nossa comida de panela. Por isso estou sempre buscando criar pratos salgados com pasta de amendoim e a combinação aqui ficou divina!

Tão maravilhosa que depois de ter feito essa receita algumas vezes fui mais uma vez no pai dos interessados pra ver se não era uma receita típica de algum lugar e acabei achando uma receita bem parecida no blog de Neide Rigo (uma grande professora pra mim), inspirada por uma receita do Zimbabwe. Isso acontece bastante: eu penso em uma receita, jogo no Google e descubro que uma infinidade de pessoas já pensou na mesma combinação de ingredientes. Mas foi a primeira vez que uma ideia de receita surgida na minha cabeça se parece com uma receita tradicional de outro país.

O objetivo principal desse post é contar pra vocês que folha de jerimum é comestível e muito saborosa. Vai que tem gente que, assim como eu até poucas semanas atrás, não faz ideia disso? Mas também queira compartilhar uma das receitas mais deliciosas que saíram da minha cozinha nos últimos tempos. Se você não planta jerimum no quintal e não tem acesso a esse ingrediente, nada tema. Você pode usar espinafre ou até couve aqui que vai ficar gostoso também.

Mas se por acaso um dia você se encontrar perto de um pé de jerimum, não deixe de colher umas folhinhas e correr pra cozinha com elas.

Ensopado de folha de jerimum com tomate e amendoim

Do jerimum, tudo se come: frutos, sementes, folhas, talos e flores. Todos os tipos de jerimum (abóbora). Escolha as folhas saudáveis, viçosas, e corte o caule junto. É bom retirar as veias espinhentas do caule antes de cozinhar. Veja nesse vídeo aqui como fazer isso. Se não tiver folhas de jerimum, use espinafre ou até folhas de couve que esse molho é bom demais pra não ser preparado com tudo.

Folhas de jerimum (leia instruções acima)

Tomate maduro

Cebola

Pasta de amendoim (pura, sem açúcar)

Coentro

Alho

Pimenta de cheiro (usei biquinho)

Azeite ou outro óleo

Sal e pimenta preta

Lave as folhas e retire as fibras espinhentas do talo (basta puxar com uma faca, na direção do talo pras folhas. Veja o vídeo pra entender).

Tudo bem se não sair absolutamente tudo. Eu gosto de cortar o talo em rodelinhas e enrolar as folhas e cortar miúdo, como fazemos com a couve.

Pique a cebola e refogue em um pouco de azeite/óleo. Junte o alho picado/socado e refogue por mais alguns segundos. Junte bastante tomate picado (uso três tomates pra cada cebola, mais ou menos) e deixe cozinhar até virar molho. Junte as folhas de jerimum picadas e acrescente um pouco de água (só o suficiente pra criar um caldinho no fundo). Tempere com sal e pimenta preta, cubra a panela e deixe cozinhar, em fogo baixo, por uns 10 minutos, ou até as folhas murcharem e ficarem bem macias.

Nesse momento junte uma ou duas colheres de sopa de pasta de amendoim (dependendo da quantidade de folhas que estiver usando), pimenta de cheiro picada (a gosto) e bastante coentro picado. Misture bem. O prato deve ter um molho encorpado, mas não muito abundante (use a foto acima como guia). Prove e corrija o tempero, se necessário.

Sirva como prato principal. (Imagino que acompanhado de feijão macaça, farofa e banana da terra frita fica um desbunde!)

Rolinho de verão com molho de amendoim

Se você descobriu esse blog há pouco, saiba que ele tem muitos anos. Treze, pra ser exata. E algumas das receitas que publiquei aqui tempos atrás foram modificadas. Na verdade, elas evoluem porque é o que acontece quando você cozinha todo dia: poucas são as receitas que repetimos de maneira exata. Foi o que aconteceu com esses rolinhos primavera que postei há exatos 10 anos. Só que a versão modificada acabou sendo a minha preferida e é a que repito sempre há muitas luas. Então eu precisava voltar aqui e compartilhar a outra receita.

A maior mudança foi o molho, mas ele faz toda a diferença! É um dos molhos mais saborosos que já saiu da minha cozinha e acredito que a inspiração veio de algo que comi em algum restaurante em algum lugar, mas foi há tanto tempo que já esqueci dos detalhes. Os vegetais que uso nos rolinhos são praticamente os mesmos, mas como agora o molho é bem cremoso e marcante, à base de amendoim, deixo o abacate de fora (acho que fica muito gorduroso, os dois juntos). Também acrescentei coentro, porque amendoim pede coentro. Pelo menos pra mim, ele pede. Dá pra substituir um vegetal por outro, dependendo do que estiver disponível na sua cozinha (leia a introdução da receita pra saber mais). O outro acréscimo foi o bifum (macarrão de arroz bem fininho), pra ter mais sustância e se transformar em prato principal.

Se não tiver folha de papel de arroz, essa receita pode se tornar uma salada maravilhosa. Basta misturar todos os ingredientes e regar generosamente com o molho na hora de servir. Mas vale a pena fazer o esforço de procurar papel de arroz pelo menos uma vez, pois fazer os rolinhos é parte do prazer dessa receita. Gosto de cortar tudo e colocar na mesa, pra que cada pessoa prepare/enrole seu rolinho. Por isso é a receita que mais faço no verão quando temos convidadas pra comer com a gente. É divertido comer assim, colocando a mão na comida e preparando o seu rolinho, e exige pouco esforço da anfitriã: em poucos minutos eu corto os vegetais e preparo o molho, depois cada uma se vira. Recomendo muito.

E já falei que é absurdamente delicioso?

Rolinho de verão com molho de amendoim

Eu tinha chamado a outra versão de “rolinho primavera”, mas como rolinho primavera é frito, acho que faz mais sentido chamar de rolinho de verão. Os legumes essenciais são: pepino, cenoura e pimentão vermelho. Quando tenho repolho roxo, uso também (a mistura de cores fica linda). Dessa vez eu tinha couve-rábano (que tem gosto de repolho), e foi o que usei. Brotos são deliciosos aqui, mas se não encontrar, tudo bem. Normalmente eu uso alface, mas estava sem nesse dia. E como eu tinha ganhado umas flores de jerimum da vizinha, usei (cruas) no lugar da alface. Se não tiver bifum (macarrão de arroz), não tem problemas. Seus rolinhos ficarão mais leves e você vai precisar comer mais pra encher o bucho (nesse caso você pode servir como entrada).

Folhas de papel de arroz

Bifum (macarrão de arroz fininho)

Pepino

Cenoura

Pimentão vermelho

Alface

Broto de alfafa (ou broto de soja)

Coentro

Hortelã (fresca)

Tofu firme (melhor se for defumado)

Azeite e shoyu pra temperar o tofu (se não for defumado)

Molho de amendoim

Pasta de amendoim (pura, sem açúcar)

Shoyu (molho de soja)

Suco de limão

Melado (ou xarope de agave)

Gengibre fresco

Alho (opcional)

Comece preparando o tofu. Se estiver usando tofu defumado, não precisa fazer nada além de cortar em tiras finas. Se estiver usando tofu convencional, corte em tiras finas , aqueça um pouco de azeite em um frigideira e grelhe levemente dos dois lados. Tempere com um pouco de shoyu e reserve.

Coloque água pra ferver e prepare o bifum de acordo com as instruções no pacote. Reserve (Eu jogo água fervente por cima, cubro e deixo repousar ali enquanto preparo o resto dos ingredientes. Antes de servir passo embaixo da água fria.)

Corte o pepino, cenoura, pimentão vermelho (e repolho, se estiver usando) em tiras finas.

Coloque todos os ingredientes do molho no liquidificador (lembre que a ordem é decrescente, então a pasta de amendoim é o ingrediente usado em maior quantidade) e triture até ficar homogêneo. Acrescente um pouco de água: o molho deve ficar cremoso e semi-líquido. Prove e veja se está do seu agrado. O molho de ter um sabor equilibrado entre o salgado (do shoyu), o doce (do melado) e o ácido (do limão). O gengibre deve temperar de acordo com o seu gosto (eu gosto de colocar bastante gengibre) e o alho deve ser discreto. Se você realmente precisa de medidas, lá vai: usei aproximadamente 2 colheres de sopa (bem cheias) de pasta de amendoim, um limão (galego) pequeno, umas 3 colheres de sopa de shoyu, 1 colher de sopa de melado, um polegar de gengibre (bem grosso) e um dente pequeno de alho, mais um tiquinho de água. Comece por aqui, prove e veja se está bom pra você. Achou muito ardido (por causa do gengibre)? Coloque mais pasta de amendoim e mais água. Tá faltando sal? Coloque mais shoyu. E assim por diante. Se seu liquidificador for fraquinho, talvez seja melhor ralar o gengibre antes de bater (ele é bem fibroso).

Coloque todos os ingredientes na mesa (coloco o molho em potinhos pra que cada convidada tenha o seu), juntamente com uma bacia com água fria, e chame suas convidadas. Cada uma vai mergulhar a folha de papel de arroz na água fria, retirar, deixar escorrer um pouco e colocar no prato. Ela ainda vai estar dura, mas não se preocupe: ela vai continuar a se re-hidratar enquanto você monta o rolinho. Se você deixar a folha na água até amolecer, vai ser impossível retirá-la da água e colocar no prato sem que ela se dobre e cole nela mesma, virando uma melecada.

Pra preparar os rolinhos coloque um pouco de tudo (vegetais/ervas/tofu/bifum) na folha de papel de arroz, sem exagerar (senão não vai ter como fechar depois sem rasgar o papel). Eu coloco galhinhos de coentro, muitos, mas retiro as folhas de hortelã do talo e uso só as folhas. Depois enrole como um burito. No post sobre a outra versão desses rolinhos, fiz um passo-a-passo com fotos mostrando como fazer isso (de cabeça pra baixo, só me dei conta hoje!). Dá uma olhada lá.

Pra comer: mergulhe a ponta do rolinho no molho de amendoim e morda. Se delicie, me mande um abraço de agradecimento mentalmente e use uma colher pra ir colocando mais molho no rolinho (mergulhar o rolinho mordido no molho pode causar queda de alguns ingredientes).

Se sobrar molho, ele se conserva na geladeira por alguns dias e fica bom com quase tudo.

As histórias que a comida conta

Começou dois anos atrás, no verão. De repente olhei pro meu jantar e me dei conta de que os alimentos naquele prato tinham chegado até a mim por diferentes caminhos, através das mãos de amigas e camaradas. Não lembro exatamente do conteúdo daquela refeição, mas sei que naquele momento vislumbrei pela primeira vez os fios que partiam do meu prato e me conectavam a várias pessoas conhecidas. Foi quando eu escutei a história que aquela comida contava e percebi que tinha uma teia de solidariedade local ao meu redor. Lembro da alegria e gratidão que senti e da certeza de ser uma pessoa extremamente afortunada. 

Desde então esse é um exercício que repito com frequência quando estou comendo e eu sempre me dizia que um dia iria fotografar minhas refeições e escrever as suas histórias, pra compartilhar e não esquecer. Só que eu tenho muitas, muitas ideias ótimas que nunca saem da minha cabeça. Até que uns dias atrás eu estava jantando e ao contar pra Anne de onde vinha cada um daqueles ingredientes vi que eram tantas pessoas envolvidas que não resisti: interrompi o jantar, fui buscar o celular (na nossa casa celular é proibido na mesa – e na cama) e fiz uma foto. Fotografei também o almoço e o jantar do dia seguinte e vim aqui contar as histórias dessas três refeições.

Salada: os tomates vieram da nossa horta de quintal e da horta de uma amiga, a azedinha (escondida embaixo da alface) veio do lote que cultivamos coletivamente (junto com nosso coletivo) nos Jardins Operários, o pepino foi comprado numa loja de orgânicos e a alface veio do lixo dessa mesma loja de orgânicos.

Pausa pra explicar que toda semana buscamos comida no lixo da loja de orgânicos, comida perfeitamente comestível, apenas um pouco murcha ou machucada, mas que é jogada fora. Também pegamos vegetais de descarte nas feiras livres da nossa cidade, mas nesse caso os feirantes deixam a gente pegar antes de jogar no lixo. (O que não é o caso na loja de orgânicos).

O prato principal foi macarrão, comprado na loja de orgânicos de onde pegamos comida do lixo, com cogumelos e espinafre, ambos vindos do lixo da loja de orgânicos, tofu do mercado chinês do nosso bairro (feito aqui, com soja não-transgênica) e creme de castanha de caju, que veio de uma ocupação aqui no nosso território. Essa okupa recebe doações de comida que passou da data de validade, mas que ainda pode ser consumida, e distribui pra toda uma rede de pessoas precarizadas, incluindo nós, do coletivo. Desde o ano passado comemos pasta de castanha de caju, orgânica (!!!!), pois a doação foi gigante!

De sobremesa teve dois tipos de ameixas: as alongadas foram apanhadas no chão dos Jardins Operários (é época de ameixas e nos Jardins tem muitas ameixeiras, então o solo em vários lugares está coberto com essas frutas) e as redondas, menores, vieram da nossa vizinha de lote. As uvas foram presentes da minha vizinha e vizinho, um casal do Sri Lanka que compartilha o nosso entusiasmo por plantar (só que a horta delas é muito maior do que a nossa!). A gente conversa muito por cima da cerca que separa nossos quintais e Vigi, a vizinha, já me deu vegetais, sementes, mudas e conselhos. Na manhã daquele dia eu estava tomando café curtindo um solzinho quando a vizinha e o vizinho me chamaram por cima da cerca pra me oferecer um pouco das uvas que estavam colhendo.

Depois do jantar gosto de ir pra cama com uma caneca de chá de ervas (infusão), que degusto enquanto leio. É um ritual que adoro e aqui fiz chá com a verbena-limão que tinha colhido naquele dia no lote de Chabha, nos Jardins Operários. Chabha, uma senhora argelina, precisou viajar e perguntou se alguém poderia cuidar da horta dela durante a sua ausência. Como já faz um certo tempo que comecei a ajudá-la a regar a horta (é pesado pras costas dela ir buscar água e regar tudo sozinha), estou cuidando do pedacinho de terra dela durante o mês de agosto. E como ela tem um pé de verbena-limão, uma das minhas infusões preferidas, sempre que passo por lá colho uns raminhos pra tomar à noite.

No dia seguinte, depois do café da manhã, Anne foi regar as plantas do apartamento de uma camarada do coletivo, que saiu de férias, e na volta passou por uma das feiras livres da cidade. A feira já tinha acabado e os feirantes estavam descartando os restos. Já disse que temos o costume de pegar comida de descarte na feira e foi exatamente isso que ela fez. A gente só anda de bicicleta por aqui e temos bagageiros sólidos pra poder trazer pra casa a comida que cruza o nosso caminho. Aqui ela pegou uma das caixas de madeira que estavam sendo jogadas fora e fez uma ótima colheita: um melão, um pouco de uva verde, pêssegos e várias bananas. Evitamos comprar frutas e verduras que vêm de longe, então as únicas vezes em que como banana ou abacate, por exemplo, é quando encontramos no lixo da loja de orgânicos ou pegamos do descarte da feira. Como as bananas de descarte sempre são bem maduras, eu descasco, corto e congelo assim que chego em casa. Depois uso pra fazer vitamina, sorvete ou coloco na papa de aveia. Dessa vez tinha bananas verdes (perfeitas!) e elas estão amadurecendo na cozinha nesse exato momento.

No almoço comemos o resto do macarrão com tofu/espinafre/cogumelo/creme de castanha da noite anterior, mais uma salada com a alface do lixo da loja de orgânicos, grão de bico (francês) comprado na loja de orgânicos, folhas de capuchinha do quintal, algas francesas que ganhei de uma amiga, cebolinha do nosso lote, salsinha da nossa horta de quintal e tomates do lote de outra amiga. Essa outra amiga, Dolorès, também está viajando e estamos regando, junto com outras camaradas e jardineiras, o lote dela no momento. E vocês já entenderam que quem cuida do lote ganha o direito de colher o que estiver maduro no dia, né? Nossas amigas agricultoras insistem sempre pra gente colher o que quiser, como modo de nos agradecer o favor e porque quem cultiva a terra sabe que o que não for colhido, se perde. Ou seja, plantar te ensina a compartilhar, incentiva a generosidade.

De sobremesa comemos o resto das uvas da vizinha e alguns dos pêssegos de descarte (que Anne trouxe de manhã).

À tarde fui buscar duas cestas de orgânicos, no esquema CSA (Comunidade que Sustenta a Agricultura), de uma amiga e um amigo, ambas camaradas do coletivo de defesa dos Jardins Operários. As duas saíram de férias com a família (julho e agosto são as férias de verão aqui) e as cestas iam se perder. Você se compromete a pagar um valor fixo por mês e tem direito a uma cesta semanal com vegetais da estação. Como a ideia é apoiar as agricultoras locais, não é possível cancelar nas semanas em que viajamos. Sorte nossa, pois nossas amigas, que também moram pertinho de nós, deixaram as cestas da semana passada e dessa semana pra gente. Uma das amigas, Vivianne, tem uma filha pequena e às vezes, quando ela tem um imprevisto no trabalho, ela me pede pra ir buscar a menina na escola. Nossa comunidade é bem unida e se ajuda mutualmente o tempo todo.

Minha bicicleta voltou carregada com as duas cestas de orgânicos e pude até congelar algumas coisas pra comer nas semanas seguintes.

Fiz lasanha pro jantar e essa refeição é um exemplo perfeito da teia de solidariedade que falei no início do texto. A massa foi comprada, na loja de orgânicos, mas além disso, do azeite e do alho (mais o sal e a pimenta preta), todo o resto dessa refeição foi conseguido de forma gratuita. Comida não deveria ser mercadoria e saber que uma parte, às vezes importante, do que comemos chega na nossa mesa sem passar por lógicas mercadológicas, me deixa muito feliz.

A lasanha tem berinjela e pimentão da cesta de orgânicos da amiga, tomates da cesta da amiga e do lote de Dolorès (vou escolhendo os mais maduros, por isso sempre rola mistura de origem), abobrinha do nosso lote, manjericão da nossa horta de quintal, cebola do lote de Chabha e creme feito com a pasta de castanha de caju da ocupação. A salada tem: alface da cesta de orgânicos do amigo e do lixo da loja de orgânicos, melão de descarte (da feira) e folhas de dente-de-leão do quintal. De sobremesa teve pêssegos de descarte (da feira).

Uma nota sobre PANCs. Uns meses atrás comecei a incluir sistematicamente um alimento selvagem, ou uma PANC (planta alimentícia não convencional), nas minhas refeições principais. Geralmente elas vem do meu quintal ou dos Jardins Operários (dente-de-leão, capuchinha -as flores e as folhas, urtiga, folha de jerimum, azedinha) e minha intenção é diversificar minha alimentação e expandir meu paladar pra sabores menos convencionais, mas também enriquecer minha microbiota intestinal. Não é um sacrifício, é um prazer imenso descobrir novos sabores.

Toda comida te conecta a alguém ou alguma coisa. A quem a sua comida te conecta? A quem a produziu, claro. A agricultora que selecionou a semente, plantou, regou, cuidou e colheu. Mas quem mais entrou no caminho entre a terra e o seu prato? Que histórias sua comida conta? 

A melhor salada de cenoura

No final do mês passado eu passei uns dias no interior da França, na casa do meu sogro. Todos os anos a família inteira se reúne ali por alguns dias, no verão (que na Europa é de junho à agosto). É a ocasião de juntar todo mundo embaixo do mesmo teto, pois uns moram em Berlim, outras moram no sul do país, outras moram no norte.

Além de curtir o jardim maravilhoso do pai de Anne, organizamos passeios no bosque da família. Quem é leitora raiz do blog vai lembrar desse post sobre a colheita de cogumelos no outono, que fez um enorme sucesso quando publiquei. Ainda estava cedo pra colher cogumelos, embora a gente tenha encontrado alguns, mas os arbustos estavam cheios de mirtilos e tinha morangos selvagens, minúsculos, por todos os lados. No final colhemos o suficiente pra enfeitar nosso café da manhã (comemos com aveia dormida) e pra acompanhar o mousse de chocolate que fiz de sobremesa uma noite.

Uma coisa que nós, mulheres da família, sempre fazemos nesses momentos é cozinhar juntas e trocar receitas vegetais. Sorte minha, as duas cunhadas são vegetarianas e a cuncunhada alemã prefere alimentos do reino vegetal, então o verão é o momento em que preparamos várias saladas (cruas, cozidas, com leguminosas, com folhas) e nosso prato é uma explosão de cores e texturas a cada refeição.

Céline, a irmã do meio de Anne, que já apareceu aqui através dessa receita, faz a melhor salada de cenoura crua que eu já comi. Ela é uma pessoa muito generosa e é interessante ver como a maneira que ela cozinha é uma continuação da personalidade dela: é tudo farto, rico em texturas e cores e com uma imensa variedade de sabores. Essa salada é tudo isso. As adultas adoraram, mas a surpresa foi ver o sucesso com as crianças/adolescentes, que não são os maiores fãs de comida da terra. A doçura da cenoura é acentuada pela mação, tem duas ervas frescas, dois cítricos no molho, várias sementes e oleaginosas… Vou compartilhar a receita dela, mas se não tiver tudo isso na sua cozinha, deixe alguns ingredientes de fora ou adapte, como eu fiz aqui.

Salada de cenoura de Céline

Céline usa salsinha e coentro nessa salada, mais sementes de girassol, jerimum (abóbora) e amêndoas. Infelizmente nesse dia eu só tinha salsinha (fica muito mais saborosa com o coentro), mas usei também um pouco de cebolinha. Na categoria “sementes”, só tinha semente de jerimum em casa e juntei também semente de papoula, pois fica uma delícia com cenoura (é um ingrediente difícil de achar no Brasil). Use as ervas e as sementes/oleaginosas que preferir que não tem como dar errado.

Cenoura

Maçã (use 1/3 de maçã pra 2/3 de cenoura)

Salsinha e coentro frescos

Um punhado de sementes e oleaginosas (sementes de jerimum, girassol ou gergelim, castanhas, amêndoas…)

Suco de laranja e limão (metade-metade, ambos frescos)

Azeite (ou o óleo da sua preferência)

Sal e pimenta preta

Rale a cenoura e a maçã (cruas). Regue com o suco de limão e laranja e reserve.

Coloque as sementes/oleaganiosas pra tostar em uma frigideira limpa (sem acrescentar mais nada) e toste por alguns minutos, até o aroma se intensificar. Enquanto isso, pique as ervas.

Junte as sementes tostadas e as ervas picadas com a cenoura e a maçã raladas, regue com azeite e tempere com uma pitada de sal e pimenta preta. Misture bem, prove e corrija o tempero, se necessário.

Tartare de algas

Os vegetais do mar, as algas, são um ingrediente que eu gostaria de ver mais no prato das pessoas. No Brasil, esse alimento saboroso e nutritivo ainda não faz parte da nossa alimentação, o que é uma pena. Mar e algas, nosso litoral tem francos. E o cultivo de algas pode ser uma atividade transformadora, em vários aspectos. (Pra ter uma ideia do que estou falando, leia essa reportagem sobre um grupo de mulheres que cultiva algas de maneira ecológica em uma pequena comunidade do Ceará.) Então meu coração antiespecista, e meu estômago que adora sabores marinhos, tem fé que em breve algas entrarão na nossa cultura alimentar, pra muito além do sushi. 

Aqui na França, onde o consumo de algas ainda é tímido, mas já é mais popular do que no Brasil, tem um prato que eu adoro: tartare de algas. Se trata de algo que se assemelharia a um patê de algas e se você quiser chamá-lo assim, eu apoio. É bem simples, basta misturar algas cruas e picadinhas com cebola, alho e alcaparras, depois capricha na acidez (vinagre de sidra, limão e picles de pepino) e no azeite, pra realçar tudo, e tempera com sal e pimenta preta. Depois é só deixar descansar algumas horas na geladeira ou, idealmente, uma noite inteira, pros sabores apurarem e servir com torradas. Eu adoro e poderia comer baldes, mas o sabor super intenso de mar faz com que muita gente torça o nariz pra esse prato. 

Apesar de ser facílimo de preparar, quase ninguém faz porque dá pra comprar pronto em lojas de produtos orgânicos e alguns supermercados. Eu mesma nunca tinha feito em casa até duas semanas atrás. Foi quando fiz um piquenique no nosso lote com um um amigo meu daqui, Nox, e o pai dele, JL, que é do interior e estava aqui de passagem. O pai é vegano, assim como o filho, e a gente sabe que quando pessoas veganas se encontram elas fazem o quê? Compartilham comida e receitas. JL me ensinou a fazer o tartare dele e disse que era um sucesso imenso na família. Eu fiz poucos dias depois e não me arrependi. 

Tartare de algas

(Pronuncie “tartár”) O sabor marinho é muito intenso aqui. Se você não gosta do sabor dos vegetais do mar (que muitas pessoas associam ao sabor de peixe), essa receita não é pra você. Eu segui as instruções de JL e são elas que vou passar adiante. Lembrando que sempre escrevo a ordem dos ingredientes de maneira decrescente: o primeiro ingrediente é o usado em maior quantidade, e depois vai diminuindo. As quantidades exatas ficam ao gosto da freguesa. A receita usa algas desidratadas, mas usei algas frescas, porque tinha ganhado de presente de uma amiga. Aqui na França consigo encontrar facilmente alga desidratada em flocos, cultivadas no litoral norte do país. Acho que no Brasil o mais fácil vai ser usar folhas de nori (a alga que usamos pra fazer sushi) e usar uma tesoura pra cortar miudinho antes de hidratar. Enquanto espero nossas algas nacionais, vamos ter que nos virar com a nori importada (insira emoji triste).

Algas desidratadas (leia instruções acima)

Azeite

Cebola

Picles e alcaparras (opcional)

Alho

Limão

Vinagre de sidra

Sal e pimenta preta

O tartare precisa descansar uma noite na geladeira, pros sabores se misturarem, então faça essa receita na véspera.

Cubra os flocos de algas (que você cortou bem miudinho com a tesoura, se estiver usando folhas de nori) com água fria e deixe hidratar por meia hora. (Se estiver usando algas frescas, não precisa hidratar.) Enquanto isso, prepare os outros ingredientes.

Pique miúdo um pouco de cebola roxa e de alho (a quantidade de alho deve ser adaptada ao seu apreço por alho cru) e reserve. Pique um punhadinho de picles (aqueles mini pepinos em conserva) e de alcaparras (esses ingredientes são opcionais, mas tradicionais).

Escorra os flocos de alga (use uma peneira) e aperte bem pra retirar o máximo de água. Misture com a cebola, alho, picles e alcaparras picadas. Tempere com limão e vinagre de Sidra (metade-metade, ou só limão, se não achar vinagre de sidra), sal e pimenta preta. Regue generosamente com azeite. Misture bem, prove e corrija o tempero, se necessário. Se quiser pulsar tudo algumas vezes no liquidificador, pra ficar mais homogêneo e sem os pedaços inteiros da cebola, fique à vontade (foi o que fiz aqui). O tartare deve ficar salgado na medida, com uma acidez marcante, mas sem chegar a ser azedo. Vai ficar parecendo a lama do pântano? Vai, por isso enfeitei minhas torradinhas com tomate (vermelho e amarelo) e cebolinha. Mas é uma lama deliciosa, então esses enfeites são totalmente dispensáveis. 

Coloque em um recipiente fechado e deixe uma noite na geladeira antes de consumir. Deguste com pão (melhor se tostar as fatias antes). Se você não comeu tudo de uma vez, dá pra conservar o tartare na geladeira por até uma semana.

Dicas:

-Além de ser degustado como patê, você pode usa-lo como condimento em pratos onde o sabor marinho for bem-vindo, como saladas cruas, sopas ou salada cozidas. 

-Também fica uma delícia com molho de tomate, servido com macarrão.

Panqueca de abobrinha e grão de bico

O lote que cultivamos coletivamente, nos Jardins Operários, está dando muita abobrinha no momento. Os pés de abobrinha que eu mesma plantei e que me foram presenteados por Maria, uma das operárias que cultivam aquela terra, pertinho do nosso lote. E, procurando novas maneiras de cozinhar abobrinha, decidi fazer essas panquecas um dia e foi um sucesso tão grande que agora pra todo lugar que vou, chego com elas embaixo do braço. Em duas semanas elas apareceram em pique-niques, reunião com o coletivo, jantar de comemoração nos jardins, jantar com as amigas aqui em casa e até levei pra reconfortar uma camarada no dia em que ela perdeu sua cadela velhinha. 

A receita segue o mesmo princípio dessa “mini fritada de couve-flor”. Não duvido que seja possível utilizar essa base com uma infinidade de outros vegetais, mas a mistura de abobrinha com grão de bico me pareça perfeita. E o molho de tahina é um velho conhecido aqui do blog, mas dessa vez acrescentei coentro pra ficar ainda melhor. Se você odeia coentro, basta usar salsinha que também fica supimpa.

Panqueca salgada de abobrinha e grão de bico com molho de tahina e coentro

Abobrinhas variam muito de tamanho, então adapte a receita ao que você tiver em casa e/ou ao número de pessoas comendo. Como sempre, aqui vão os ingredientes e as instruções de preparo, mas sem as medidas. O importante é ter uma ideia da proporção de abobrinha e farinha de grão de bico, o resto é tempero e você decide o quanto quer usar. A mesma coisa é válida pro molho, que é opcional, mas altamente recomendado. 

Abobrinha (italiana)

Farinha de grão de bico (bem fina)

Cebolinha

Sal e pimenta preta

Azeite ou óleo

Molho de tahina e coentro

Tahina (pasta de gergelim)

Suco de limão

Coentro ou salsinha

Alho (opcional)

Sal e pimenta preta

No dia anterior misture a farinha de grão de bico com um pouco de água, aos poucos, mexendo bem com uma colher pra ficar homogêneo e sem carocinhos. A textura deve ser bem espessa, pois no dia seguinte você vai acrescentar a abobrinha e ela traz muito líquido à mistura. É importante fazer isso na véspera de quando quiser comer as panquecas, pois a farinha de grão de bico fica muito mais saborosa, e cozinha melhor, se for hidratada por 12 horas antes de ir pra frigideira. Eu vou além e deixo minha massa fermentar um pouco, como dá pra ver na foto abaixo, à esquerda (fermentação natural, só colocar em um local quentinho da cozinha que numa noite começa a fermentar).

Depois da noite de descanso (no dia seguinte), rale a abobrinha, com casca e sementes, no ralo grosso. Salgue e deixe descansar 5 minutos pra liberar um pouco do líquido do vegetal. Enquanto isso corte miúdo um pouco de cebolinha, a parte branca e a verde. Depois coloque a abobrinha ralada numa peneira e use a palma da mão pra espremer a abobrinha contra a peneira. Não precisa espremer muito, basta retirar um pouco da água. Misture a abobrinha ralada/espremida com a massa de farinha de grão de bico que estava repousando. O ideal é usar o dobro de volume de abobrinha – depois de espremida- em comparação ao volume de massa de grão de bico. Acrescente a cebolinha cortada, um pouco de sal e tempere com pimenta preta. Prove pra ver se precisa corrigir o sal. 

Aqueça um pouco de azeite/óleo em uma frigideira anti-aderente e despeje colheradas da mistura. Pra cozinhar direito e virar com facilidade, não faça panquecas grandes: uma colher de sopa bem cheia por panqueca é ideal. Tampe (minha frigideira não tem tampa, então cubro com outra frigideira) e deixe cozinhar em fogo baixo até as bordas ficarem douradas. Destampe a frigideira e use uma espátula pra virar os bolinhos. Deixe cozinhar do outro lado, dessa vez sem cobrir. Quando estiver dourado dos dois lados, está pronto. Repita a operação com o resto da mistura. Deixe amornar antes de servir, pra textura firmar um pouco dentro do bolinho. 

(Eu gosto de ir colocando as panquecas prontas dentro de uma travessa de vidro, umas em cima das outras, e tampada. Assim o vapor criado dentro do recipiente continua cozinhando levemente as panquecas, deixando tudo bem macio, e ao mesmo tempo elas amornam o suficiente pra ficar na textura perfeita, sem ficarem fria. Mas mesmo frias, são deliciosas.) 

Se estiver servindo com o molho de tahina, aqui vão as instruções de preparo. Misture a tahina com um pouco de suco de limão e mexa bem. Vá acrescentando água aos pouquinhos, mexendo bem, até atingir a textura de um creme fluido. Junte alho (pilado ou ralado – a gosto), se estiver usando, tempere com sal e pimenta preta. Prove e decida se precisa de mais limão ou mais sal. Ficou líquido demais? Junte mais tahina. Ácido demais? Junte mais tahina e mais água. E assim por diante. Use seu paladar pra te guiar, basta respeitar a textura: cremosa e fluida. Pique um punhado de coentro (ou salsinha) bem miúdo e misture ao molho. Sirva com os bolinhos. 

Esse molho pode acompanhar uma infinidade de coisas. Pode inclusive ser degustado simplesmente com pão.