Macarrão com molho de amendoim

Essa é a história de uma das melhores receitas que já saíram da minha cozinha e do dia em que ela me trouxe reconforto depois de uma das piores provações que já passei.

Algumas semanas atrás descobri um canal de receitas vegetais no Youtube que muito me agradou. Gosto da voz grave e calma do dono, e cozinheiro, do canal, das instruções simples e do tipo de receitas preparadas ali, muitas vindas da cultura culinária do rapaz, que é de Hong Kong. O engraçado é que ele não é vegano, mas criou um canal com receitas exclusivamente vegetais. Sorte a nossa.

A primeira receita que vi era de um macarrão udon (aquele macarrão japonês gordinho) com molho de amendoim. A receita me deixou com água na boca, mas eu não tinha quase nenhum dos ingredientes pra fazer o prato na minha cozinha. Só que achei a ideia principal da receita, a pasta de amendoim no molho, tão brilhante que resolvi cozinhar algo inspirado naquele prato.

A minha versão usa ingredientes que praticamente todo mundo tem em casa e é ainda mais simples e barata. Mas o resultado é algo delicioso, nutritivo e reconfortante. Bendito amendoim!

Falando nessa leguminosa, o amendoim é nativo do território conhecido como Brasil, sabia? Embora muita gente só consuma amendoim dentro da paçoquita (ou “paçoquinha”), ou em certos bolos típicos das festas juninas, o potencial desse alimento em receitas salgadas é enorme. Tanto que passei a acreditar que uma das minhas missões como defensora da culinária vegetal é mostrar as infinitas possibilidades do amendoim na mesa e convencer vocês que ele merece um lugar de muito destaque nos pratos principais.

Sobre o dia em que esse macarrão com amendoim me trouxe um imenso reconforto, depois de uma rude provação, ainda é doído contar essa história. Talvez um dia eu conte com detalhes, mas por hoje vou resumir. Eu fui presa por participar de um ato de solidariedade ao povo palestino em Paris, umas semanas atrás. Protestos em solidariedade à Palestina tinham sido proibidos pelo governo francês, que decidiu violar nosso direito constitucional de fazer manifestações, criminalizando a solidariedade através de uma decisão anti-democrática. Depois desse pesadelo, que durou 48h e que resultou em um processo contra mim, pude voltar pra casa. Exausta, suja, faminta e com uma luxação no polegar esquerdo, cortesia de um dos policiais que me prendeu. Apesar da fome, demorou um pouco pra eu sentir vontade de comer novamente. Eu ainda estava abalada emocionalmente e foi preciso mais 24h pra que a alma voltasse pro corpo. Quando isso aconteceu, fui tomada por um desejo intenso de…macarrão com amendoim.

Preparei o prato que vocês vêem na foto abaixo na segunda noite que passei em casa, depois de ter sido liberada da delegacia, e quando o gostinho familiar de amendoim com coentro invadiu a minha boca, senti como se uma mãe tivesse passado o braço sobre os meus ombros, me puxado pra perto dela e dito com a voz mansa: “Chega aqui, fia.” E naquele momento era exatamente disso que eu precisava.

Comida tem dessas coisas. Eu já gostava muito desse prato antes do ocorrido que descrevi acima, mas acho que agora ele sempre vai ter gosto de reconforto pra mim.

Sei que a experiência de vocês com esse prato não será, nem de longe, parecida com a minha. Mesmo assim insisto pra que vocês preparem essa delícia. Não é todo dia que a gente encontra uma receita tão simples, barata, que use ingredientes bem nossos e que tem um sabor tão delicioso.

Macarrão com molho de amendoim

Esse prato pode parecer estranho, mas confie. Ele é barato, nutritivo (amendoim é uma leguminosa, muito rico em proteína), fica pronto em minutos e o sabor é tão delicioso que tenho certeza que vai entrar na sua rotina culinária depois da primeira garfada. E ainda aposto que você vai espalhar a palavra do macarrão com pasta de amendoim pra toda a sua família e amigas. De nada:)

Espaguete (ou macarrão chinês, se tiver)

Pasta de amendoim (pura, sem açúcar)

Cebola e alho a gosto

Molho de soja (shoyu)

Coentro fresco (ou cebolinha)

Óleo ou azeite

Pimenta preta (ou calabresa)

Amendoim torrado (opcional)

Coloque uma panela com água pra cozinhar o macarrão no fogo. Não coloque sal na água. Enquanto a água ferve, prepare o molho.

Pique uma cebola (ou o quanto quiser) e um pouco de alho. Aqueça um tico de óleo (ou azeite) em uma frigideira e doure a cebola. Junte o alho e deixe cozinhar mais alguns segundos. Reserve. Pique um punhado de coentro ou, se coentro não for a sua praia, cebolinha. Reserve também.

Nesse ponto a água deve ter começado a ferver. Coloque o espaguete dentro da panela e enquanto a massa cozinha, continue preparando o molho.

Dissolva a pasta de amendoim em um pouco de água quente, retirada diretamente da panela onde o macarrão está cozinhando. Eu calculo mais ou menos uma colher de sopa cheia de pasta de amendoim por porção de macarrão (e umas 5-6 colheres de sopa de água quente pra cada colher de sopa de pasta de amendoim). Junte a água quente aos poucos, batendo bem com a colher, até a mistura ficar fluida, mas ainda cremosa. Acrescente molho de soja e pimenta preta (ou calabresa) a gosto. Prove. O molho de amendoim deve puxar um pouquinho pro lado do salgado, já que ele vai temperar todo o macarrão.

Reserve um xícara da água do cozimento do macarrão e escorra a massa. Imediatamente coloque o macarrão escorrido de volta na panela onde ele cozinhou, despeje o molho de amendoim por cima, a cebola e o alho refogados. Ligue o fogo bem baixinho, só pra aquecer o molho, e misture bem. Se o macarrão parecer seco, junte um pouco da água de cozimento. Prove e corrija o tempero, se necessário. Quando tudo estiver bem quente e envolto de um molho cremoso, desligue o fogo e sirva imediatamente polvilhado com o coentro (ou a cebolinha) e o amendoim torrado, se tiver usando.

4 de novembro de 2023

Eu tenho uma receita pra compartilhar com vocês há semanas, uma das melhores receitas que já cruzaram o meu caminho e que preenche todos os requisitos pra ser sucesso: extremamente simples, barata, que dialoga com nossa cultura alimentar e absurdamente deliciosa. Mas hoje, vigésimo nono dia de ataques israelenses à Faixa de Gaza, é um dia de solidariedade internacional ao povo palestino e me pareceu absurdo vir aqui falar de receitas. Então vou continuar o post anterior recomendando mais material sobre a Palestina, mas dessa vez se trata de vídeos que fiz com dois militantes que talvez vocês conheçam bem.

Há exatos três anos (4/11/2020), Vitor me chamou pra conversar sobre o que Palestina e veganismo e o que uma coisa tem a ver com a outra, mas na verdade preparamos uma aula bem didática sobre as origens do colonialismo sionista na Palestina.

Poucos meses depois, em maio de 2021, também tive uma conversa bem explicativa e didática sobre a luta do povo palestino com Dimitra Vulcana.

Espero que os atos e protestos de hoje sejam gigantes e que vocês gritem alto pelo povo palestino. Que nossas vozes cheguem aos ouvidos dos governantes, a maioria cúmplice desse genocídio, e os façam ter um mínimo de decência pra impor sanções a Israel até que parem de cometer crimes de guerra e contra a humanidade. E que palestinos e palestinas possam nos ouvir pra saber que, apesar dos nossos governos estarem do lado errado da História, nós estamos do lado certo. Palestina livre!

Sobre a Palestina e o seu povo

Se você descobriu esse blog recentemente talvez não saiba que a Palestina ocupa uma parte importante da minha vida. Visitei a região pela primeira vez em 2007 e morei lá de 2008 a 2013. Em seguida foram mais cinco anos, de 2014 a 2018, morando lá uma parte do ano, quando eu organizava tours políticos de solidariedade (veganos!) pra pessoas brasileiras que queriam conhecer a Palestina e a luta por autodeterminação do seu povo.

Por razões pessoais, não me encontro em condições de fazer análises políticas atuais sobre a colonização israelense na Palestina e seu projeto de Apartheid, limpeza étnica e genocídio. Mas quem conhece o meu trabalho sabe que sou uma militante muito comprometida com a causa palestina e que minha militância acontece na vida real, no terreno, não (apenas) na internet. Infelizmente, em tempos de ativismo de redes sociais, parece que se você não postar sobre X, então você não se importa com X e recebi várias críticas, mais ou menos explícitas, nas últimas semanas.

Estou cansada e abatida demais pra colocar pra fora, de maneira elegante e coesa, a minha frustração com esse tipo de comportamento. Quem quiser pensar que eu deixei de militar simplesmente porque não uso mais redes sociais, ou que parei de me importar com o povo palestino e sua luta por libertação porque não fiz um pronunciamento recente aqui, paciência. E quem mandou mensagens pedindo, de maneira educada e carinhosa, pra eu voltar a fazer conteúdo informativo sobre a Palestina porque “minha voz faz falta”, peço compreensão. Estou passando por um momento pessoal muito difícil, tanto por questões familiares quanto relacionadas à Palestina, e atravessar cada dia tem sido uma batalha. Mas tem muita gente fazendo isso no Brasil e no mundo (pra quem fala inglês) e tenho certeza que o mais acertado é ouvir vozes palestinas. Vou deixar algumas recomendações aqui.

Tem o trabalho da palestina, nascida no Brasil e que mora atualmente no Canadá, Hyatt Omar Tem também o grupo Juventude Sanaud e o Monitor do Oriente, uma “instituição independente de pesquisa de mídia fundada para promover uma cobertura justa e precisa das questões do Oriente Médio”. Em Inglês (mas nada que a ferramenta de tradução do Google não possa resolver pra quem não domina essa língua) recomendo o site independente de notícias The Electronic Intifada, que é palestino e, além de notícias, traz análises excelentes. E minha última recomendação é +972 Mag. Se trata de um site de notícias, também independente, mas israelense, de esquerda e anti-sionista.

Pra além das recomendações, eu vim aqui hoje pra fazer uma tentativa modesta. A desumanização do povo palestino continua sendo uma arma utilizada por Israel, e repetida pela grande mídia e governos mundo afora, pra impedir que a gente se solidarize com essas pessoas, justificando assim a sua dominação, opressão e abrindo caminho pro genocídio (anunciado e televisionado). Isso não foi algo inventado por Israel, basta estudar minimamente a História pra perceber que todo povo oprimido é desumanizado pelos seus opressores. Então eu vim lembrar vocês das muitas entrevistas e depoimentos de pessoas palestinas que publiquei aqui, além do relato de brasileiras que foram à Palestina comigo. E se você acaba de descobrir o Papacapim, aqui está um convite pra descobrir esse extenso material que há anos mora aqui, mas que não perdeu a relevância.

Começo com a série, em três episódios, “Histórias palestinas”, onde entrevistei dois amigos e uma amiga palestina. Essas pessoas, todas refugiadas, contam suas histórias de vida e como a ocupação israelense impacta absolutamente todos os aspectos do seu dia-a-dia e determinou o lugar onde nasceram e estão criando suas crianças.

Mustafa e Mohamad Alafandi

Meu nome é Mohamad Alafandi, tenho 76 anos e moro no campo de refugiados de Deheisha, na região de Belém. Nasci em Dayr Aban, a 21 km de Jerusalém, no que então ainda era a Palestina. Minha cidade resistiu enquanto pôde à invasão sionista, o que custou a vida de quarenta habitantes. A gente só tinha dois fuzis e os homens se revezavam pra defender nossas casas. Mas o exército sionista era muito mais bem equipado. No dia 18 de outubro de 1948 os soldados do recém-criado estado de Israel invadiram minha cidade e obrigaram a população a partir sem poder carregar absolutamente nada, abandonando nossas terras, casas, animais e pertences, deixando toda a nossa vida para trás. Eu tinha 14 anos quando isso aconteceu. Meu pai não suportou tão duro golpe e sofreu um derrame que o deixou paralisado. Fui obrigado a carregar meu pai nas costas durante todo o tempo em que caminhamos. Minha família errou durante um ano e meio, andando de cidade em cidade procurando um lugar para viver. Meu pai morreu um ano depois de ter sido expulso de sua cidade natal e eu, como filho mais velho, tive que tomar conta da minha mãe e dos meus irmãos. Acabamos chegando em Deheisha, um dos inúmeros campos criados pela ONU. Leia a continuação do depoimento aqui

Mustafa (à direita) com o pai, Mohamad, e o filho caçula, Aissa. Três gerações de refugiados.

Khoulud Ayyad

A vida no campo de refugiados nunca foi fácil, mas lembro de um período, quando eu era criança, que as coisas eram ainda piores. Durante a primeira intifada (entre 1987 e 1993) os soldados israelenses entravam no campo o tempo todo e muitas pessoas foram assassinadas. Todo mundo tinha medo de sair de casa e levar um tiro. Lembro que um dia, eu devia ter uns 8 anos, vi dois jovens correndo no campo. Pensei que os soldados estavam os perseguindo então abri a porta de casa e comecei a agitar os braços, chamando eles pra se esconderem ali. Quando meu avô viu a cena me colocou pra dentro e fechou a porta imediatamente. Depois explicou que aqueles jovens não eram palestinos fugindo de soldados israelenses e sim soldados israelenses a paisana correndo atrás de palestinos.Leia a continuação aqui

Tareq Jawabrah

Meus pais nasceram em Iraq Al-Manshya, um cidadezinha no litoral da Palestina histórica, entre Jafa e Gaza.  Meu pai era agricultor e junto com a família cultivava laranjas e outras frutas cítricas. Em 1948, quando as tropas sionistas invadiram nosso vilarejo, meu pai tinha 20 anos. Fazia já algum tempo que as notícias de expulsões e massacres de palestinos por soldados sionistas chegavam por lá e algumas pessoas tinham abandonado suas casas com medo do que iria acontecer quando a vez de Iraq Al-Manshya chegasse. Toda a população recebeu ordem de ir embora, mas muitas pessoas se recusaram a abandonar suas terras. Os que tentaram ficar foram executados e meu pai perdeu muitos amigos e um irmão. A família do meu pai foi pra Hebron (no sul da Cisjordânia). Quando eles chegaram lá, os habitantes da cidade se compadeceram com o triste destino dos refugiados e os acolheram em suas casas. Alguns meses depois eles escutaram que a ONU estava reagrupando o pessoal em campos de refugiados, na espera do retorno. Foi assim que a família da minha mãe, que também é de Iraq Al-Manshya, e a do meu pai vieram parar em Al Arroub. Um dia, em uma viagem organizada pela escola, fomos à Jafa ver o mar (a antiga cidade de Jafa foi anexada à Tel Aviv). No caminho eu vi uma placa indicando Qiryat Gat, a cidade israelense construída sobre as ruinas da nossa cidade, e pedi ao motorista pra passar por lá. Quando vi aquelas pessoas, que moram hoje nas terras que um dia pertenceram ao meu pai, olhando pra mim como se eu fosse um estrangeiro que não tinha direito nenhum de estar ali meu sangue ferveu e a revolta tomou conta de mim.Continua aqui

yemen e tareq

Muitas das pessoas que participaram dos tours políticos que organizei na Palestina (antes que perguntem, não faço mais esses tours) compartilharam esse vivência aqui no blog e eu também escrevi bastante sobre essas viagens de solidariedade. Além dos relatos, vocês podem ver muitas fotos da Palestina, que tem paisagens lindas, e da comida maravilhosa que degustamos por lá. Seguem alguns desses relatos (mas pra ver tudo, clique na página Receitas e dentro dela, na seção Outros)

“Se eu tivesse optado por um turismo convencional, mesmo tendo uma visão crítica a respeito da ocupação israelense de terras palestinas, muito provavelmente teria voltado com percepções bem diferentes do que esse tour político me proporcionou. Cheguei um dia antes do combinado para me encontrar com o grupo e fiquei hospedada em Jerusalém. Algumas voltas no entorno, vendo israelenses e alguns palestinos na mesma cidade, me deram a falsa impressão de normalidade, de que ambos ocupavam o mesmo espaço sob condições iguais.

Andando apenas em transportes usados por turistas, eu provavelmente não teria percebido que alguns ônibus são reservados apenas para palestinos e outros para israelenses, o sinal mais óbvio de apartheid. Andando pelas ruas e observando as construções, eu certamente acharia que era opção estética ter ou não caixas d’água no teto, ao invés de saber que palestinos não têm água disponível 24h, ao contrário dos israelenses, mesmo essa água tendo sido captada em terras palestinas. Se estivesse em uma excursão tradicional, em ônibus de viagem, teria passado por vários “check points” sem perceber, pois esses ônibus não seriam parados. Mais ainda, eu teria percorrido vários quilômetros de estrada cortando terras palestinas e não saberia que na maioria daquelas estradas só é permitido o tráfego de israelenses. Teria visto as imensas colônias israelenses em terras palestinas e concluído ser apenas mais uma cidade. Teria visitado o Mar Morto sem ver um só palestino e achado que eles não frequentavam outros resorts por opção.” Continue lendo o post “Estou disposto a fazer a minha parte”

“Pude dividir um pouco da Palestina que me emociona e me inspira com um grupo de pessoas maravilhosas, passei 14 dias incríveis e fiz um dos trabalhos mais significativos da minha vida. E além dos cinco brasileiros que decidiram embarcar nessa aventura o acaso trouxe uma islandesa pro nosso grupo, porque loucura pouca pra mim é bobagem. Nosso grupo era um óvni. Imaginem eu explicando a empreitada pros palestinos: “Opa! Tudo certinho? Eu tenho um blog de culinária vegetal em Português e estou guiando uns brasileiros, não, essa daí é islandesa (não, nem irlandesa nem finlandesa, islandesa da Islândia), num tour político-gastronômico pela Palestina e nós gostaríamos de bater um papinho sobre o papel das mulheres no movimento de resistência popular contra a ocupação. Pode ser?”. Juntos vivemos coisas intensas, emocionantes, revoltantes e inspiradoras. Nas fotos vocês podem ver alguns dos lugares que visitamos e algumas das pessoas, principalmente palestinas, mas também israelenses,  que encontramos durante essas duas semanas.” Essa sou eu falando e o relato do primeiro tour que organizei, em 2014, está aqui

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No tour do ano seguinte, participamos da colheita de azeitonas.

“Outubro é a época da colheita de azeitonas aqui na Palestina e é, na minha opinião, o melhor mês pra estar aqui. Eu não sabia nada sobre o cultivo de azeitonas nem sobre a produção de azeite até ter me mudado pra cá, em 2008. Fiquei encantada quando descobri a parte fundamental que a oliveira tem na cultura e na vida dos palestinos. Talvez o mais impressionante pra mim foi descobrir que não existem ‘cultivadores de azeitonas’. Como oliveiras precisam de pouquíssimo cuidado e só recebem água da chuva, os ‘donos’ das oliveiras têm todos uma profissão, que eles exercem durante as outras cinquenta semanas do ano. Durante duas semanas, no início ou no final do mês (de acordo com o amadurecimento das azeitonas), professores, médicos, pedreiros, advogados, estudantes, psicólogos, sociólogos, eletricistas, cozinheiros… todos largam temporariamente suas ocupações e vão pro campo. A família inteira, muitas vezes três gerações juntas, participa da colheita. Uma parte das azeitonas será marinada durante várias semanas e elas serão degustadas acompanhando o café da manhã típico daqui. Mas a maior parte delas vai ser prensada e virará azeite, que aparece na mesa familiar durante o ano inteiro.” O post completo está aqui

E falando em colheita, tem dois posts, de 2012, muito especiais pra mim. O primeiro mostra um pouco do que é esse momento tão importante pra cultura e economia palestina. E outro, no mesmo ano, onde compartilho um momento mágico: meu amigo Tawfic me levou pra uma prensa e pude ver como as azeitonas são transformadas em azeite.

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“O centro da produção de azeite palestino fica em Nablus, no norte, e lá tem mais prensas do que aqui. Porém, o azeite de Belém e das duas cidades vizinhas (Beit Jala e Beit Sahour) tem fama de ser o melhor de toda a Palestina. Meu amigo Tawfic explicou que essa região tem um micro clima perfeito pra produção de azeitonas e por isso o sabor do azeite daqui é superior. Eu posso confirmar: o azeite de Tawfic é o melhor que já provei na vida! Ele tem uma nota verde intensa, com um gosto de mato depois da chuva (nunca comi mato depois da chuva, mas tenho certeza que o gosto é idêntico ao cheiro), mas ao mesmo tempo é aveludado e tão cremoso que chega a ser (pasmem!) amanteigado. É difícil descrever um sabor tão complexo, só mesmo provando pra entender.” O post completo, com fotos do passa-a-passo, está aqui

Pra ver muitas fotos de lugares lindos e pratos típicos deliciosos, é só clicar aqui.

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Na seção Viagens (dentro da página Receitas) tem vários posts mostrando as belezas da Palestina e seu povo acolhedor. Vou só citar alguns, pra esse post não ficar ainda mais longo do que já está.

Tem um post sobre o Vale do Jordão, quando fiquei alguns dias plantando oliveiras em uma comunidade beduína.

E outro sobre o natal em Belém, que era onde eu morava. Imaginem comemorar o nascimento de Jesus…na cidade onde ele nasceu!

Espero que vocês reservem um tempinho pra ler esses relatos, admirar as fotos, salivar diante das comidas e se informar, através das fontes que recomendei. Termino esse post com mais imagens da Palestina, imagens que vocês não verão nesse momento, mas que não deviam sair da nossa mente. A Palestina é um território riquíssimo em história, cultura, culinária e tudo isso, além dos milhões de vidas humanas, está ameaçado.

Café de dente de leão

Andei fazendo muitas coisas estranhas ultimamente, incluindo preparar uma bebida parecida com café, mas feita com raiz de dente de leão.

Essa planta, que cresce de maneira espontânea por todos os lados e cujas folhas são comestíveis, entrou na minha alimentação no ano passado. Cresce aqui no quintal e nos Jardins Operários, onde cultivamos uma horta coletiva, e sempre que lembro vou buscar umas folhinhas pra colocar na salada. Eu acho uma delícia, mas o sabor amargo não empolga muita gente. Passei a achar que amargo, assim como picante, é um sabor que a gente aprende a gostar se o cultivarmos. Você come um pouquinho hoje, outro pouquinho amanhã, e de repente passa não só a achar aquilo gostoso, como a ter desejo por esses sabores. Pelo menos foi assim comigo.

Mas eu não vim aqui falar das folhas de dente de leão, e sim da raiz. Quando descobri que era possível torrar as raízes e fazer café com elas, fiquei empolgadíssima! Chamar a bebida de “café” é provavelmente exagero, mas o sabor lembra, um pouco, o danado. Embora, e espero que isso não afugente quem só curte café de qualidade, eu acho o sabor mais próximo de café instantâneo (aquele que vem acompanhado do prefixo “Nes”) do que de café passado. Mas eu detesto café instantâneo, não tomo nem pra ganhar dinheiro, e mesmo assim achei o sabor do “café” de raiz de dente de leão bem gostoso. Vai entender…

Não vou falar das propriedades medicinais dessa planta, que são muitas, porque isso você acha facilmente na Vasta Rede Mundial. Vou só ensinar como transformar as raízes em café porque, embora trabalhoso demais pra se tornar um substituto do café diário, vai que um dia essa informação te seja útil. Ninguém sabe o que esse mundo em colapso reserva pra nós e talvez em algum momento a gente seja grata por lembrar que dá pra fazer um cafezinho maroto com raízes de uma planta que cresce em toda rachadura de calçada. Ou, num pensamento menos “o fim do mundo está próximo”, é um projeto bacana de fazer num dia de folga e com certeza não vai deixar de impressionar suas convidadas quando você disser: “Aceita uma xícara de café de raiz de dente de leão, bem?”

Como fazer café com raiz de dente de leão

Como explico no texto acima, o sabor não é idêntico ao do café, mas é uma bebida saborosa, com notas que lembram o café e ao mesmo tempo, com sabor próprio. Gosto de ter esse café na cozinha quando quero beber algo quentinho e amargo, mas já está tarde demais pra ingerir cafeína sem que isso atrapalhe o meu sono. Gosto de degustar puro, acompanhando um pedaço de pão ou bolo, ou com um pouco de leite vegetal e uma pitada de canela.

Primeiro, aprenda a identificar a planta. É essa aqui:

As flores são amarelas, mas agora é outono e não tem nenhuma aberta por aqui (no cantinho da foto dá pra ver uma flor fechada, porque o colapso climático é real e tá fazendo 26 graus no norte da França em pleno mês de outubro).

Depois de identificar a planta, use uma pá pequena pra cava ao redor e liberar as raízes. Elas costumam ser profundas, então cave de acordo. Como as que desenterrei estavam num solo muito argiloso e compacto, não consegui retirar nenhuma inteira e todas se partiram durante a operação. As raízes liberam uma seiva leitosa quando cortadas (foto abaixo, à esquerda). Como as raízes variam de tamanho, dependendo da idade da planta, você provavelmente vai precisar arrancar vários pés de dente de leão pra conseguir uma quantidade razoável de raízes. Lembrando que depois de torradas elas reduzem bastante. (Lembrando também que você pode comer as folhas! Mas como eu tinha um monte de folhas, não consegui comer tudo.)

Raízes desenterradas, é hora de lavar/escovar bem pra retirar a terra e cortar em rodelas (assim torra mais rápido e de maneira mais uniforme).

Leve ao forno médio até elas ficarem bem secas (desidratadas) e torradas de acordo com o seu gosto. Quanto mais escura a cor (mais torrada), mais forte será o café. Exatamente como na torra dos grãos de café. Eu fiz uma torra média e o sabor ficou no ponto pra mim. Da primeira vez torrei mais, até ficar bem escuro, e a bebida ficou ainda mais parecida com café, embora com uma nota amarga (do mesmo jeito que acontece com café). Fique de olho no seu forno, abra regularmente pra checar e mexa de vez em quando. Cuidado pra não queimar (mas provavelmente os pedacinhos mais miúdos queimarão)!

Depois é só deixar esfriar e moer. Usei o liquidificador, mesmo. Se estiver fazendo uma quantidade bem pequena de café, vai ser difícil moer em um liquidificador normal (a menos que você tenha aqueles bem pequenininhos, chamados de “bullet”). Mas você pode usar um pilão e socar na mão (cuidado: se seu pilão for usado pra pilar alho, o sabor vai passar pro café!). Guarde em um vidro com tampa, em temperatura ambiente.

Na hora de preparar, use o pó de raiz de dente de leão exatamente como você usaria café: no filtro de papel ou pano, na prensa francesa… Quando quero preparar só uma xícara, coloco uma colher de chá cheia do pó de dente de leão numa caneca, despejo água fervente, cubro e espero 5 minutos. Depois passo por uma peneira fininha (despejando em outra canela) e degusto. Como tomo café sem açúcar, dá pra sentir as notas de sabor específicas da raiz de dente de leão. Se você tomar com açúcar e leite, talvez ache ainda mais parecido com café. Última dica: acho o pó bem intenso e acabo usando uma quantidade um pouco menor do que quando uso pó de café. Ou seja, rende mais do que café.

Tofu mexido com tahina

O verão (no hemisfério norte) acabou há uma semana. Aos poucos, meu quintal está a se cobrindo de folhas secas, tirei o edredom do armário uns dias atrás e de manhã o ar carrega o cheirinho típico dessa estação. Outono é a minha época preferida do ano, introspectiva e caseira que sou. Mas os tomates do verão vão deixar saudade.

Comecei a colher os últimos tomates da nossa horta de quintal e ando cheia de nostalgia. Os cafés da manhã e brunchs embaixo da magnólia branca, quando degustamos os tomates (14 variedades!) recém-colhidos, que plantamos e aguamos com carinho durante meses, fazem parte dos melhores momentos do meu ano.

Nossos tomates são tão saborosos que passei a come-los puros, sempre crus e sem nenhum tipo de tempero: nem azeite, nem mesmo sal! Vou ostentar um pouco agora. Um dia, durante o verão comprei tomates-cereja de uma loja de orgânicos (cultivados aqui na França, em plena estação e, obviamente, orgânicos). Eu estava na rua e precisava de um lanche pra comer no parque. Que arrependimento! Os tomates eram insípidos comparados aos que colho na nossa horta de quintal (e de lote nos jardins operários)! E pensar que uns anos atrás eu achava que tomates orgânicos de supermercado eram a “crème de la crème” em matéria de sabor.

Umas semanas atrás, quando nossa horta ainda estava nos dando uma pequena bacia de tomates por dia, nosso vizinho nos deus alguns tomates grandes da horta dele. Decidi desrespeitar minha regra de “comer-tomates-do-quintal-sempre-crus-pra-apreciar-plenamente-seu-sabor” e cozinhei os seus tomates dentro da minha versão preferida de tofu mexido. Eu compartilhei minha receita de tofu mexido com tomate e manjericão anos atrás e o prato de hoje é uma variação dela. Apesar de ser muito simples, acontece algum tipo de mágica quando você coloca tahina (pasta de gergelim) no tofu. Fica tão absurdamente gostoso que só provando pra entender.

E se tahina é a sua praia, tem várias receitas aqui no blog com ela. É um dos meus ingredientes preferidos então eu uso em tudo, de gratinados (batata gratinada com tomate) à sobremesas (pudim de chocolate e tahina), passando por biscoitos (biscoito de aveia, tahina e passas) e lanches (pão com banana, tahina e canela). Sem falar que é provavelmente o meu molho preferido pra saladas cruas (como o molho dessa salada de repolho roxo, beterraba e maçã), mil vezes melhor que maionese! E nem vou falar nas pastas pra passar no pão com tahina…(mas se quiser ver algumas das minhas receitas, é só procurar na lista de receitas de patês, cremes e pastas 😉

Tofu mexido com tahina

Tahina, ou tahine, é a pasta de gergelim tão adorada na culinária árabe. A melhor tahina é branca, ou seja, feita com gergelim descascado (tahina “integral” é muito mais amarga e granulosa). Eu gosto dessa receita com coentro, mas salsinha também casa muito bem com gergelim. Além de comer com pão, esse tofu é um ótimo recheio pra torta, pizza ou, ousemos, pastel. A quantidade dos ingredientes vai de acordo com o seu gosto, mas, como sempre, escrevo minhas receitas em ordem decrescente (o ingrediente utilizado em maior quantidade aparece primeiro).

Tofu

Tomates maduros, picados

Cebola, picada

Tahina (pasta de gergelim – leia os conselhos acima)

Coentro fresco (ou salsinha)

Alho, picado ou pilado

Azeite, ou outro óleo

Sal e pimenta preta

Aqueça um pouco de azeite em um frigideira grande, de preferência com o fundo grosso. Doure a cebola por alguns minutos, em fogo médio. Junte o alho e deixe cozinhar mais alguns segundos. Esmigalhe o tofu (com as mãos) sobre a frigideira e aumente o fogo. Cozinhe, mexendo frequentemente, até o tofu secar um pouco (o ideal é que tenha um pouco de espaço entre os montinhos de tofu pra que o ar circule e ele possa cozinhar direito). Isso leva alguns poucos minutos. Junte o tomate, salgue, baixe o fogo e deixe cozinhar, coberto, até o tomate se desintegrar. Eu gosto de usar quantidades iguais de tofu e tomate, mas se só tiver um tomate na cozinha, vai dar certo também.

Desligue o fogo e acrescente uma colher de sopa de tahina, ou várias (a quantidade vai depender do seu gosto – se você gosta do sabor ligeiramente amargo do gergelim ou não), pimenta preta e misture bem. Prove e corrija o sal, se necessário. Se você tiver usado pouco tomate, talvez a mistura fique seca e compacta. Nesse caso junte um pouquinho de água e misture novamente. O tofu tem que ficar bem molhadinho (veja foto acima), mas não nadando em líquido.

Junte o coentro (ou salsinha) picado e sirva imediatamente.

Nut…ela descolonizada

Aqui onde eu moro consigo encontrar tudo que preciso e gosto de comer: vegetais frescos, todas as leguminosas imagináveis, arroz, macarrão integral, tofu feito aqui perto, leites vegetais prontos… Tem até vários produtos ultraprocessados em versões vegetais , mas esses eu nunca trago pra casa. Além de fazer isso por razões de saúde (entenda aqui) e de paladar (não gosto), nos raros dias em que me bate a vontade de comer um doce, eu sou obrigada a inventar algo com o que tem na cozinha. E isso sempre estimulou muito a minha criatividade. Fico pensando no número de receitas que eu não teria criado se tivesse sempre um pacotinho de biscoitos ou um pote de pasta de chocolate açucarada ao alcance da mão.

Semana passada bateu uma imensa vontade de comer pão com algo doce por cima. Carboidrato com carboidrato, porque sim. E acabei inventando um lanche muito gostoso, que eu já repeti várias vezes desde então. Anne também adorou então pensei que, apesar de ser de uma simplicidade extrema e que talvez vocês já façam isso aí na cozinha de vocês há tempos, valia a pena compartilhar aqui.

A “receita” é uma pasta de amendoim e cacau que, pra mim, é muito melhor que vocês sabem o que. Mas confesso que nunca gostei daquele negócio. Acho enjoativo e doce pra muito além do meu limite. E também prefiro amendoim do que avelã (embora goste dela também). Como o amendoim e o cacau são nossos (entenda: são nativos da região conhecida como América do Sul), acho que essa deveria ser nossa pasta de chocolate oficial. Uma nutela descolonizada, porque além de tudo não tem leite (nem animal, nem vegetal, porque não precisa).

Gosto de fazer essa pasta 100% amarga, pra comer de colher no final da tarde, ou tarde da noite. Mas no dia que deu vontade de comer algo doce com pão, eu lembrei da geleia de amora que uma camarada do coletivo me deu de presente (amoras colhidas e transformadas em geléia por ela e o pai) e espalhei as duas, uma camada da pasta e outra da geleia, no pão. A geleia feita pela minha amiga não tem o arroubo de açúcar das geleias industrializadas, então a combinação ficou doce no ponto pra mim e a mistura de sabores é sublime! Se tiver uma geleia saborosa aí na sua cozinha, de uma fruta que você acha que combina com chocolate, não deixe de experimentar. (Nesse caso, posso sugerir não adoçar sua pasta pra não ficar enjoativo?)

Espero que vocês testem essa pasta maravilhosa , que decidi chamar de “amendolau” (porque é mais prático…e engraçado), em casa. Simples, rápida de fazer, barata, descolonizada e deliciosa. O que mais pedir?

Amendolau (pasta de amendoim e cacau)

Eu faço essa pasta somente com a manteiga de amendoim pura, cacau 100% e sal, porque gosto do meu chocolate totalmente amargo. Como assim mesmo ou, nos dias que tenho vontade de algo doce, misturo com geleia na hora de comer. Mas como sei que praticamente todo mundo prefere sabores doces, vou passar a receita adoçada com melado. Você pode usar outro xarope pra adoçar, como bordo, agave ou arroz. Ou simplesmente usar manteiga de amendoim adoçada (mais um pouco de melado, se quiser bem doce). Se eu estivesse no meu Nordeste, testaria uma versão com melado de caju.

Manteiga de amendoim (pura ou adoçada – leia as explicações acima)

Melado de cana (se estiver usando manteiga de amendoim pura)

Cacau em pó (100%, sem açúcar )

Sal

Misture (com uma colher, se estiver fazendo uma quantidade pequena, ou no liquidificador, se fizer uma quantidade maior) a manteiga de amendoim com cacau, melado de cana e uma pitada de sal. As quantidades vão depender do seu gosto: se quiser mais forte em chocolate, capriche no cacau. Se quiser mais doce, coloque mais melado… Se estiver usando manteiga de amendoim adoçada, vá com calma no melado (talvez nem precise). Vá juntando água aos pouquinhos até ficar com uma textura cremosa, mas ainda densa (veja foto abaixo). Deguste imediatamente.

Pode ser conservada na geladeira por alguns dias. A pasta vai ficar mais firme e mais densa, mas o sabor é o mesmo.

Fica aqui o convite

Semana passada eu sentei pra almoçar no jardim e depois de fazer a pequena oração de agradecimento, que faço sempre antes de comer, fiquei admirando o meu prato. Não que a comida fosse extraordinária, muito pelo contrário. Era um simples prato de macarrão com couve, tomate e manjericão, vindos da nossa horta de quintal. Mas apesar de ser o segundo ano da nossa horta, ainda me maravilho com o ato de comer o que eu mesma plantei. 

Foi então que percebi que meu almoço ia na contramão de tudo que vejo sendo valorizado nas redes sociais. Aquela comida não era, pra usar as palavras da moda, “low carb”, nem “proteinada”, nem “fit”, nem mesmo “gluten free”. Eu sorri e degustei meu macarrão, feliz.

Vim aqui propor uma reflexão. Me assusta ver a obsessão geral com proteína. Se antes isso ficava restringido ao mundo de fisiculturistas, já faz um certo tempo que a coisa foi se espalhando e entrou na cabeça de quase todo mundo. É uma galera contando proteína a cada refeição, ingerindo vários ovos por dia, se atolando em carne de vaca e frango e entupindo tudo que passa pela frente de “whey protein”. Já vi até água “enriquecida” com “whey”. Minha gente, que mundo é esse em que até água, ÁGUA!, se tornou uma oportunidade pra ingerir mais proteína? Como se tivesse um crise de falta de proteína! No Brasil de 2023, enquanto a maior parte da população sofre com algum grau de insegurança alimentar, o grupinho dos apóstolos do culto à proteína (animal) devoram muito mais do que o necessário pra manter a saúde e muito, muito mais do que o aceitável em matéria de impacto ambiental e social. 

Seguir essa dieta ultra proteinada, transbordando de corpos animais, leite e ovos, significa escolher ter um impacto gigantesco no meio ambiente e isso é inaceitável. Em pleno colapso climático, é indecente escolher se alimentar da maneira com o maior impacto ecológico possível. E é egoísta, porque só é possível ter uma dieta ultra-proteinada (animal) pra alguns se for retirada a possiblidade da maioria de ter acesso ao suficiente. Se tem excesso do lado de cá, é porque não tem o suficiente do lado de lá. Enquanto uns pregam comer animais e seus derivados a cada refeição, a Amazônia se transforma em pasto, os povos indígenas são expulsos de seus territórios e assassinados e o Cerrado vira monocultura de soja (pra alimentar animais de abate). Sem falar no impacto nefasto do metano, produzido por todos esses animais criados pra serem devorados pelos adoradores de proteína (animal), na quantidade de água e terra necessária pra produzir uma dieta que oferece 3, 5, 10 vezes mais proteína do que a quantidade que o corpo precisa! Pense também no peso que isso coloca no sistema de saúde pública, já que a relação entre consumo de animais e seus derivados e o aparecimento de várias doenças não pode mais ser contestada por ninguém que tenha algum respeito pela ciência. 

Pra minha tristeza, o culto da proteína entrou até mesmo no mundo vegano. As receitas vegetais que vejo em blogs e canais do YouTube aparecem cada vez mais acompanhadas das palavras “proteinada” ou “high protein” e consumir proteína em pó “vegana” está se tornando cada vez mais comum. E o que dizer de ter gente chamando isso de “whey protein vegano”? Deve ser pra que além de sem necessidade, o produto seja sem sentido também. (“Whey” quer dizer “soro de leite” em Inglês, então já viu o quão ridículo é chamar proteína de ervilha, soja ou arroz de “soro de leite”, né?)

Agora vamos nos perguntar: a quem serve essa obsessão com proteína? Quem lucra com a supervalorização e idolatria de uma categoria de alimentos, essencialmente vindos da exploração animal?

Fica aqui o convite pra refletir também sobre quem dita o que a gente considera importante. Por que essa supervalorização de corpos animais e desvalorização ou até demonização de cereais (macarrão, arroz, pão, milho)? A proteinomania (vinda de animais) é irmã da fobia dos carboidratos (que vem dos vegetais). É uma reflexão que dialoga com esse post aqui sobre redefinir o conceito de fartura. Lembrando que o prato que mencionei no início desse texto foi só uma refeição. Naquele dia eu tinha tomado café aveia com chia e fruta, depois desse almoço lanchei alguma coisa e à noite jantei sopa de lentilha. Ninguém se desintegra por ter feito uma refeição mais rica em carboidrato do que em proteína (e sim, tem proteína aqui também, meu povo!).

Meu prato de macarrão com tomate e couve seria reprovado pelas gurus fits, até mesmo as veganas, que veriam uma “bomba” de carboidrato e azeite e um “vazio” de proteína. Pra muito além das vitaminas e minerais do tomate e da couve, das fibras e da proteína , eu olho pro meu almoço e vejo comida que me faz feliz, porque foi plantada por mim e cresceu no meu quintal. Comida que alimenta o meu corpo, me dando forças pra servir minha comunidade e transformar o mundo, sem pesar demais sobre a nossa Terra, que deve ser compartilhada com quase 8 bilhões de pessoas humanas e todas as pessoas outras que humanas. Comida gostosa e que reforça meus vínculos de afeto com a terra, com t minúsculo, e reafirma meu compromisso de solidariedade com a Terra, com T maiúsculo, e todos os viventes que moram nela.

Macarrão com couve e tomate cru

É uma daquelas receitas humildes, nível iniciante e que fica pronta em minutos. É importante usar tomates gostosos, bem maduros, e em grande quantidade pra massa ficar gostosa. Na verdade, seja generosa tudo: a couve, o azeite (o melhor que você puder usar), o manjericão… No mais, como expliquei no post acima, essa NÃO é uma receita “low carb”, nem “proteinada”, nem “fit”, nem “sem gluten” (mas pode ser, dependendo do tipo de espaguete utilizado). Mais do que rebeldia com as modas do mundo fit, se trata simplesmente de uma receita que apareceu na minha cozinha no meio da semana, usando ingredientes da minha horta de quintal, e que me fez muito feliz, além de me alimentar. 

Macarrão 

Couve

Tomates maduros (usei uma mistura de vários tomates)

Alho (opcional)

Manjericão 

Azeite

Sal e pimenta preta

Castanha do Pará (opcional)

Ferva uma panela com bastante água salgada (pra cozinhar o macarrão). Enquanto isso, corte a couve em tiras finas, corte os tomates em pedaços pequenos e pique o alho, se estiver usando.

Quando a água ferver, coloque o macarrão pra cozinhar até ficar do seu gosto (al dente ou bem cozido, não estou aqui pra julgar). Quando o macarrão tiver cozido desligue o fogo e retire meia xícara da água do cozimento (reserve). Jogue a couve picada na panela, mexa rapidamente e escorra tudo junto. A couve cozinha em segundos e esse mergulho na água fervente do macarrão é suficiente pra deixá-la no ponto. 

Transfira o macarrão e a couve pra panela onde foram cozinhados e junte os tomates, o alho, o manjericão (rasgado ou picado), mais um pouco de sal, pimenta preta e bastante azeite (seja generosa). Mexa e se o macarrão parecer um pouco seco, acrescente a água do cozimento do macarrão, que tinha sido reservada. Misture novamente, prove e corrija o sal/pimenta. Sirva imediatamente. Se quiser, rale uma castanha do Pará por cima (como na foto) antes de degustar.  

Bolo salgado de lentilha

Contei no post sobre a torta salgada de legumes que procuro uma receita de uma torta de lentilha há tempos. Semana passada, por obra do mais puro acaso, encontrei o que estava procurando no grupo Facebook “Veganismo sem firula“. Eu não uso Facebook, mas ainda tenho um perfil por lá. De vez em quando aparece uma notificação, que eu ignoro, só que deve ter sido uma anjinha que me falou pra clicar na notificação que apareceu enquanto eu trabalhava semana passada. Era sobre um post do grupo que mencionei acima, o que me fez lembrar que o grupo existia. Já que eu estava ali, resolvi dar uma olhada no que tinha sido postado ultimamente e foi assim que me deparei com uma receita chamada “bolinho de verdura com massa de lentilha rosa”, de uma participante do grupo chamada Emy Yokoyama de Almeida. Bingo! Era o que eu vinha procurando esse tempo todo.

Adoraria ter feito os bolinhos individuais da receita original, mas como só tenho formas grande, fiz um bolo grande. A textura da massa é muito mais leve, e ligeiramente seca (não é um defeito aqui!), diferente da minha torta de legumes, que é bem úmida e densa. Nada surpreendente, já que se trata de um “bolo” e não uma “torta”. Acho essa textura perfeita pra comer no lanche, junto com uma pasta/patê/creme.

Sobre as lentilhas. Sei que a lentilha consumida no Brasil é importada (quase tudo do Canadá, o maior produtor de lentilhas do mundo). Além disso, lentilha rosa (que eu chamo “coral”, porque acho que é a cor que melhor descreve essa leguminosa) não é facilmente encontrada por aí. Então vamos combinar que essa receita é algo especial, pra sair da rotina, mas que prometo seguir nos testes pra ver se é possível fazer com leguminosas cultivadas no Brasil. Espero conseguir desenvolver uma versão mais acessível, ecológica e que faça sentido na nossa cultura alimentar.

Enquanto isso, deixa eu dizer que uma receita de bolo salgado de liquidificador à base de lentilha, que você usa crua na massa e que cozinha junto dos outros ingredientes, no forno, é uma jóia! Facílima de preparar, extremamente versátil, muito nutritiva e deliciosa. Recomendo fortemente.

Bolo salgado de lentilha rosa

Segui a receita de Emy, fazendo adaptações minúsculas, e é a que compartilho aqui. Na segunda vez que fiz esse bolo esqueci o fermento e o vinagre e apesar de ter ficado gostoso, a textura ficou bem densa e muito menos agradável. O fermento traz leveza e o vinagre é essencial pra trazer uma certa maciez pra esse bolo. Use os legumes que quiser e não tenha medo de personalizar a receita. Os ingredientes essenciais são as lentilhas, a aveia (ajuda na liga), o azeite (maciez e sabor), o fermento (pra deixar leve) e o vinagre (pra ajudar na textura). Os temperos e verduras ficam ao seu gosto. Na foto acima usei cenoura e abobrinha, porque era o que eu tinha. Na segunda vez fiz com beterraba e também ficou ótimo.

1,5 xícara de lentilha rosa (crua)

1/2 x xícara de aveia (flocos finos)

1 xícara de água

3 colheres de sopa de azeite (ou outro óleo)

1 colher de chá de fermento (bem cheia)

1 colher de sopa de vinagre

2 xícaras de verduras raladas (usei cenoura e abobrinha na primeira vez, beterraba na segunda)

Sal e pimenta preta

Ervas finas desidratadas (usei uma mistura de manjerona, salsinha, orégano e alecrim)

Deixe a lentilha de molho por algumas horas. Descarte a água do molho e bata no liquidificador com 1 xícara de água até ficar completamente homogêneo. Em um recipiente grande, despeja essa “vitamina” de lentilha e misture com os outros ingredientes (junte o fermento e o vinagre por último). Nas fotos abaixo eu estava fazendo a segunda versão desse bolo, com beterraba ralada.

Transfira a massa pra uma forma untada e polvilhada com farinha de aveia (só triturar a aveia em flocos no liquidificador), ou cubra a forma com papel manteiga antes de despejar a massa. Você tem a opção de polvilhar com gergelim ou semente de papoula (o que fiz), mas nem precisa. Leve ao forno (eu não pré-aqueci e deu certo) médio e deixe assar até que passe no teste do palito.

Versão desse bolo com beterraba, polvilhado com za’atar (o fermento e o vinagre foram esquecidos, por isso a textura mais densa).

Ensopado de folha de jerimum

Esse ano plantei duas mudas de jerimum no quintal e, surpresa, cinco outras brotaram de maneira espontânea. Isso aconteceu porque usamos a terra da nossa composteira, onde tinha as sementes de jerimum, de vários tipos, que comemos durante o ano. Cultivamos em três lugares diferentes no quintal e um desses lugares, onde tem menos sol, é dedicado exclusivamente ao plantio de jerimum. Apesar de usarmos a mesma terra da composteira nas três hortinhas, o jerimum espontâneo resolveu brotar justo no cantinho onde eu tinha decidido plantar esse vegetal. Acho um mistério fascinante como as sementes combinaram de só brotarem ali, junto com as duas mudas de jerimum que eu já tinha plantado, e não no meio dos pés de tomate e couve das outras hortas.

Além dos pés plantados por nós e dos pés surgidos de maneira espontânea, a dona da casa plantou mais três. Quando o quintal começou a se encher com folhas e mais folhas de jerimum, peguei: “Não seria ótimo se elas fossem comestíveis?” Depois de ter perguntado ao pai dos interessados, o Google, descobri que elas eram comestíveis, sim, e que ainda por cima eram ricas em nutrientes e faziam parte da cultura alimentar de muitos países do continente africano.

Eu sei que as folhas têm um papel importante (proteger a terra da evaporação de umidade causada pelo sol, fotossíntese), mas são tantas folhas aqui no meu quintal que eu imaginei que retirar algumas não ia prejudicar a planta. Então naquele mesmo dia jantei folha de jerimum, refogada no azeite, com um tico de alho. Gostei demais do sabor, embora a textura me parecesse um pouco áspera (descobri depois que eu simplesmente não tinha cozinhado por tempo suficiente).

Desde então cozinhei mais algumas vezes, de outras maneiras. Uma vez joguei na sopa de lentilha, outra vez coloquei no feijão. Mas a melhor receita que desenvolvi até agora é essa aqui: com tomate e pasta de amendoim. Eu gosto muito de cozinhar com pasta de amendoim e acho que essa leguminosa (sim, é uma leguminosa), nativa da América do Sul, merece aparecer mais na nossa comida de panela. Por isso estou sempre buscando criar pratos salgados com pasta de amendoim e a combinação aqui ficou divina!

Tão maravilhosa que depois de ter feito essa receita algumas vezes fui mais uma vez no pai dos interessados pra ver se não era uma receita típica de algum lugar e acabei achando uma receita bem parecida no blog de Neide Rigo (uma grande professora pra mim), inspirada por uma receita do Zimbabwe. Isso acontece bastante: eu penso em uma receita, jogo no Google e descubro que uma infinidade de pessoas já pensou na mesma combinação de ingredientes. Mas foi a primeira vez que uma ideia de receita surgida na minha cabeça se parece com uma receita tradicional de outro país.

O objetivo principal desse post é contar pra vocês que folha de jerimum é comestível e muito saborosa. Vai que tem gente que, assim como eu até poucas semanas atrás, não faz ideia disso? Mas também queira compartilhar uma das receitas mais deliciosas que saíram da minha cozinha nos últimos tempos. Se você não planta jerimum no quintal e não tem acesso a esse ingrediente, nada tema. Você pode usar espinafre ou até couve aqui que vai ficar gostoso também.

Mas se por acaso um dia você se encontrar perto de um pé de jerimum, não deixe de colher umas folhinhas e correr pra cozinha com elas.

Ensopado de folha de jerimum com tomate e amendoim

Do jerimum, tudo se come: frutos, sementes, folhas, talos e flores. Todos os tipos de jerimum (abóbora). Escolha as folhas saudáveis, viçosas, e corte o caule junto. É bom retirar as veias espinhentas do caule antes de cozinhar. Veja nesse vídeo aqui como fazer isso. Se não tiver folhas de jerimum, use espinafre ou até folhas de couve que esse molho é bom demais pra não ser preparado com tudo.

Folhas de jerimum (leia instruções acima)

Tomate maduro

Cebola

Pasta de amendoim (pura, sem açúcar)

Coentro

Alho

Pimenta de cheiro (usei biquinho)

Azeite ou outro óleo

Sal e pimenta preta

Lave as folhas e retire as fibras espinhentas do talo (basta puxar com uma faca, na direção do talo pras folhas. Veja o vídeo pra entender).

Tudo bem se não sair absolutamente tudo. Eu gosto de cortar o talo em rodelinhas e enrolar as folhas e cortar miúdo, como fazemos com a couve.

Pique a cebola e refogue em um pouco de azeite/óleo. Junte o alho picado/socado e refogue por mais alguns segundos. Junte bastante tomate picado (uso três tomates pra cada cebola, mais ou menos) e deixe cozinhar até virar molho. Junte as folhas de jerimum picadas e acrescente um pouco de água (só o suficiente pra criar um caldinho no fundo). Tempere com sal e pimenta preta, cubra a panela e deixe cozinhar, em fogo baixo, por uns 10 minutos, ou até as folhas murcharem e ficarem bem macias.

Nesse momento junte uma ou duas colheres de sopa de pasta de amendoim (dependendo da quantidade de folhas que estiver usando), pimenta de cheiro picada (a gosto) e bastante coentro picado. Misture bem. O prato deve ter um molho encorpado, mas não muito abundante (use a foto acima como guia). Prove e corrija o tempero, se necessário.

Sirva como prato principal. (Imagino que acompanhado de feijão macaça, farofa e banana da terra frita fica um desbunde!)

Rolinho de verão com molho de amendoim

Se você descobriu esse blog há pouco, saiba que ele tem muitos anos. Treze, pra ser exata. E algumas das receitas que publiquei aqui tempos atrás foram modificadas. Na verdade, elas evoluem porque é o que acontece quando você cozinha todo dia: poucas são as receitas que repetimos de maneira exata. Foi o que aconteceu com esses rolinhos primavera que postei há exatos 10 anos. Só que a versão modificada acabou sendo a minha preferida e é a que repito sempre há muitas luas. Então eu precisava voltar aqui e compartilhar a outra receita.

A maior mudança foi o molho, mas ele faz toda a diferença! É um dos molhos mais saborosos que já saiu da minha cozinha e acredito que a inspiração veio de algo que comi em algum restaurante em algum lugar, mas foi há tanto tempo que já esqueci dos detalhes. Os vegetais que uso nos rolinhos são praticamente os mesmos, mas como agora o molho é bem cremoso e marcante, à base de amendoim, deixo o abacate de fora (acho que fica muito gorduroso, os dois juntos). Também acrescentei coentro, porque amendoim pede coentro. Pelo menos pra mim, ele pede. Dá pra substituir um vegetal por outro, dependendo do que estiver disponível na sua cozinha (leia a introdução da receita pra saber mais). O outro acréscimo foi o bifum (macarrão de arroz bem fininho), pra ter mais sustância e se transformar em prato principal.

Se não tiver folha de papel de arroz, essa receita pode se tornar uma salada maravilhosa. Basta misturar todos os ingredientes e regar generosamente com o molho na hora de servir. Mas vale a pena fazer o esforço de procurar papel de arroz pelo menos uma vez, pois fazer os rolinhos é parte do prazer dessa receita. Gosto de cortar tudo e colocar na mesa, pra que cada pessoa prepare/enrole seu rolinho. Por isso é a receita que mais faço no verão quando temos convidadas pra comer com a gente. É divertido comer assim, colocando a mão na comida e preparando o seu rolinho, e exige pouco esforço da anfitriã: em poucos minutos eu corto os vegetais e preparo o molho, depois cada uma se vira. Recomendo muito.

E já falei que é absurdamente delicioso?

Rolinho de verão com molho de amendoim

Eu tinha chamado a outra versão de “rolinho primavera”, mas como rolinho primavera é frito, acho que faz mais sentido chamar de rolinho de verão. Os legumes essenciais são: pepino, cenoura e pimentão vermelho. Quando tenho repolho roxo, uso também (a mistura de cores fica linda). Dessa vez eu tinha couve-rábano (que tem gosto de repolho), e foi o que usei. Brotos são deliciosos aqui, mas se não encontrar, tudo bem. Normalmente eu uso alface, mas estava sem nesse dia. E como eu tinha ganhado umas flores de jerimum da vizinha, usei (cruas) no lugar da alface. Se não tiver bifum (macarrão de arroz), não tem problemas. Seus rolinhos ficarão mais leves e você vai precisar comer mais pra encher o bucho (nesse caso você pode servir como entrada).

Folhas de papel de arroz

Bifum (macarrão de arroz fininho)

Pepino

Cenoura

Pimentão vermelho

Alface

Broto de alfafa (ou broto de soja)

Coentro

Hortelã (fresca)

Tofu firme (melhor se for defumado)

Azeite e shoyu pra temperar o tofu (se não for defumado)

Molho de amendoim

Pasta de amendoim (pura, sem açúcar)

Shoyu (molho de soja)

Suco de limão

Melado (ou xarope de agave)

Gengibre fresco

Alho (opcional)

Comece preparando o tofu. Se estiver usando tofu defumado, não precisa fazer nada além de cortar em tiras finas. Se estiver usando tofu convencional, corte em tiras finas , aqueça um pouco de azeite em um frigideira e grelhe levemente dos dois lados. Tempere com um pouco de shoyu e reserve.

Coloque água pra ferver e prepare o bifum de acordo com as instruções no pacote. Reserve (Eu jogo água fervente por cima, cubro e deixo repousar ali enquanto preparo o resto dos ingredientes. Antes de servir passo embaixo da água fria.)

Corte o pepino, cenoura, pimentão vermelho (e repolho, se estiver usando) em tiras finas.

Coloque todos os ingredientes do molho no liquidificador (lembre que a ordem é decrescente, então a pasta de amendoim é o ingrediente usado em maior quantidade) e triture até ficar homogêneo. Acrescente um pouco de água: o molho deve ficar cremoso e semi-líquido. Prove e veja se está do seu agrado. O molho de ter um sabor equilibrado entre o salgado (do shoyu), o doce (do melado) e o ácido (do limão). O gengibre deve temperar de acordo com o seu gosto (eu gosto de colocar bastante gengibre) e o alho deve ser discreto. Se você realmente precisa de medidas, lá vai: usei aproximadamente 2 colheres de sopa (bem cheias) de pasta de amendoim, um limão (galego) pequeno, umas 3 colheres de sopa de shoyu, 1 colher de sopa de melado, um polegar de gengibre (bem grosso) e um dente pequeno de alho, mais um tiquinho de água. Comece por aqui, prove e veja se está bom pra você. Achou muito ardido (por causa do gengibre)? Coloque mais pasta de amendoim e mais água. Tá faltando sal? Coloque mais shoyu. E assim por diante. Se seu liquidificador for fraquinho, talvez seja melhor ralar o gengibre antes de bater (ele é bem fibroso).

Coloque todos os ingredientes na mesa (coloco o molho em potinhos pra que cada convidada tenha o seu), juntamente com uma bacia com água fria, e chame suas convidadas. Cada uma vai mergulhar a folha de papel de arroz na água fria, retirar, deixar escorrer um pouco e colocar no prato. Ela ainda vai estar dura, mas não se preocupe: ela vai continuar a se re-hidratar enquanto você monta o rolinho. Se você deixar a folha na água até amolecer, vai ser impossível retirá-la da água e colocar no prato sem que ela se dobre e cole nela mesma, virando uma melecada.

Pra preparar os rolinhos coloque um pouco de tudo (vegetais/ervas/tofu/bifum) na folha de papel de arroz, sem exagerar (senão não vai ter como fechar depois sem rasgar o papel). Eu coloco galhinhos de coentro, muitos, mas retiro as folhas de hortelã do talo e uso só as folhas. Depois enrole como um burito. No post sobre a outra versão desses rolinhos, fiz um passo-a-passo com fotos mostrando como fazer isso (de cabeça pra baixo, só me dei conta hoje!). Dá uma olhada lá.

Pra comer: mergulhe a ponta do rolinho no molho de amendoim e morda. Se delicie, me mande um abraço de agradecimento mentalmente e use uma colher pra ir colocando mais molho no rolinho (mergulhar o rolinho mordido no molho pode causar queda de alguns ingredientes).

Se sobrar molho, ele se conserva na geladeira por alguns dias e fica bom com quase tudo.

As histórias que a comida conta

Começou dois anos atrás, no verão. De repente olhei pro meu jantar e me dei conta de que os alimentos naquele prato tinham chegado até a mim por diferentes caminhos, através das mãos de amigas e camaradas. Não lembro exatamente do conteúdo daquela refeição, mas sei que naquele momento vislumbrei pela primeira vez os fios que partiam do meu prato e me conectavam a várias pessoas conhecidas. Foi quando eu escutei a história que aquela comida contava e percebi que tinha uma teia de solidariedade local ao meu redor. Lembro da alegria e gratidão que senti e da certeza de ser uma pessoa extremamente afortunada. 

Desde então esse é um exercício que repito com frequência quando estou comendo e eu sempre me dizia que um dia iria fotografar minhas refeições e escrever as suas histórias, pra compartilhar e não esquecer. Só que eu tenho muitas, muitas ideias ótimas que nunca saem da minha cabeça. Até que uns dias atrás eu estava jantando e ao contar pra Anne de onde vinha cada um daqueles ingredientes vi que eram tantas pessoas envolvidas que não resisti: interrompi o jantar, fui buscar o celular (na nossa casa celular é proibido na mesa – e na cama) e fiz uma foto. Fotografei também o almoço e o jantar do dia seguinte e vim aqui contar as histórias dessas três refeições.

Salada: os tomates vieram da nossa horta de quintal e da horta de uma amiga, a azedinha (escondida embaixo da alface) veio do lote que cultivamos coletivamente (junto com nosso coletivo) nos Jardins Operários, o pepino foi comprado numa loja de orgânicos e a alface veio do lixo dessa mesma loja de orgânicos.

Pausa pra explicar que toda semana buscamos comida no lixo da loja de orgânicos, comida perfeitamente comestível, apenas um pouco murcha ou machucada, mas que é jogada fora. Também pegamos vegetais de descarte nas feiras livres da nossa cidade, mas nesse caso os feirantes deixam a gente pegar antes de jogar no lixo. (O que não é o caso na loja de orgânicos).

O prato principal foi macarrão, comprado na loja de orgânicos de onde pegamos comida do lixo, com cogumelos e espinafre, ambos vindos do lixo da loja de orgânicos, tofu do mercado chinês do nosso bairro (feito aqui, com soja não-transgênica) e creme de castanha de caju, que veio de uma ocupação aqui no nosso território. Essa okupa recebe doações de comida que passou da data de validade, mas que ainda pode ser consumida, e distribui pra toda uma rede de pessoas precarizadas, incluindo nós, do coletivo. Desde o ano passado comemos pasta de castanha de caju, orgânica (!!!!), pois a doação foi gigante!

De sobremesa teve dois tipos de ameixas: as alongadas foram apanhadas no chão dos Jardins Operários (é época de ameixas e nos Jardins tem muitas ameixeiras, então o solo em vários lugares está coberto com essas frutas) e as redondas, menores, vieram da nossa vizinha de lote. As uvas foram presentes da minha vizinha e vizinho, um casal do Sri Lanka que compartilha o nosso entusiasmo por plantar (só que a horta delas é muito maior do que a nossa!). A gente conversa muito por cima da cerca que separa nossos quintais e Vigi, a vizinha, já me deu vegetais, sementes, mudas e conselhos. Na manhã daquele dia eu estava tomando café curtindo um solzinho quando a vizinha e o vizinho me chamaram por cima da cerca pra me oferecer um pouco das uvas que estavam colhendo.

Depois do jantar gosto de ir pra cama com uma caneca de chá de ervas (infusão), que degusto enquanto leio. É um ritual que adoro e aqui fiz chá com a verbena-limão que tinha colhido naquele dia no lote de Chabha, nos Jardins Operários. Chabha, uma senhora argelina, precisou viajar e perguntou se alguém poderia cuidar da horta dela durante a sua ausência. Como já faz um certo tempo que comecei a ajudá-la a regar a horta (é pesado pras costas dela ir buscar água e regar tudo sozinha), estou cuidando do pedacinho de terra dela durante o mês de agosto. E como ela tem um pé de verbena-limão, uma das minhas infusões preferidas, sempre que passo por lá colho uns raminhos pra tomar à noite.

No dia seguinte, depois do café da manhã, Anne foi regar as plantas do apartamento de uma camarada do coletivo, que saiu de férias, e na volta passou por uma das feiras livres da cidade. A feira já tinha acabado e os feirantes estavam descartando os restos. Já disse que temos o costume de pegar comida de descarte na feira e foi exatamente isso que ela fez. A gente só anda de bicicleta por aqui e temos bagageiros sólidos pra poder trazer pra casa a comida que cruza o nosso caminho. Aqui ela pegou uma das caixas de madeira que estavam sendo jogadas fora e fez uma ótima colheita: um melão, um pouco de uva verde, pêssegos e várias bananas. Evitamos comprar frutas e verduras que vêm de longe, então as únicas vezes em que como banana ou abacate, por exemplo, é quando encontramos no lixo da loja de orgânicos ou pegamos do descarte da feira. Como as bananas de descarte sempre são bem maduras, eu descasco, corto e congelo assim que chego em casa. Depois uso pra fazer vitamina, sorvete ou coloco na papa de aveia. Dessa vez tinha bananas verdes (perfeitas!) e elas estão amadurecendo na cozinha nesse exato momento.

No almoço comemos o resto do macarrão com tofu/espinafre/cogumelo/creme de castanha da noite anterior, mais uma salada com a alface do lixo da loja de orgânicos, grão de bico (francês) comprado na loja de orgânicos, folhas de capuchinha do quintal, algas francesas que ganhei de uma amiga, cebolinha do nosso lote, salsinha da nossa horta de quintal e tomates do lote de outra amiga. Essa outra amiga, Dolorès, também está viajando e estamos regando, junto com outras camaradas e jardineiras, o lote dela no momento. E vocês já entenderam que quem cuida do lote ganha o direito de colher o que estiver maduro no dia, né? Nossas amigas agricultoras insistem sempre pra gente colher o que quiser, como modo de nos agradecer o favor e porque quem cultiva a terra sabe que o que não for colhido, se perde. Ou seja, plantar te ensina a compartilhar, incentiva a generosidade.

De sobremesa comemos o resto das uvas da vizinha e alguns dos pêssegos de descarte (que Anne trouxe de manhã).

À tarde fui buscar duas cestas de orgânicos, no esquema CSA (Comunidade que Sustenta a Agricultura), de uma amiga e um amigo, ambas camaradas do coletivo de defesa dos Jardins Operários. As duas saíram de férias com a família (julho e agosto são as férias de verão aqui) e as cestas iam se perder. Você se compromete a pagar um valor fixo por mês e tem direito a uma cesta semanal com vegetais da estação. Como a ideia é apoiar as agricultoras locais, não é possível cancelar nas semanas em que viajamos. Sorte nossa, pois nossas amigas, que também moram pertinho de nós, deixaram as cestas da semana passada e dessa semana pra gente. Uma das amigas, Vivianne, tem uma filha pequena e às vezes, quando ela tem um imprevisto no trabalho, ela me pede pra ir buscar a menina na escola. Nossa comunidade é bem unida e se ajuda mutualmente o tempo todo.

Minha bicicleta voltou carregada com as duas cestas de orgânicos e pude até congelar algumas coisas pra comer nas semanas seguintes.

Fiz lasanha pro jantar e essa refeição é um exemplo perfeito da teia de solidariedade que falei no início do texto. A massa foi comprada, na loja de orgânicos, mas além disso, do azeite e do alho (mais o sal e a pimenta preta), todo o resto dessa refeição foi conseguido de forma gratuita. Comida não deveria ser mercadoria e saber que uma parte, às vezes importante, do que comemos chega na nossa mesa sem passar por lógicas mercadológicas, me deixa muito feliz.

A lasanha tem berinjela e pimentão da cesta de orgânicos da amiga, tomates da cesta da amiga e do lote de Dolorès (vou escolhendo os mais maduros, por isso sempre rola mistura de origem), abobrinha do nosso lote, manjericão da nossa horta de quintal, cebola do lote de Chabha e creme feito com a pasta de castanha de caju da ocupação. A salada tem: alface da cesta de orgânicos do amigo e do lixo da loja de orgânicos, melão de descarte (da feira) e folhas de dente-de-leão do quintal. De sobremesa teve pêssegos de descarte (da feira).

Uma nota sobre PANCs. Uns meses atrás comecei a incluir sistematicamente um alimento selvagem, ou uma PANC (planta alimentícia não convencional), nas minhas refeições principais. Geralmente elas vem do meu quintal ou dos Jardins Operários (dente-de-leão, capuchinha -as flores e as folhas, urtiga, folha de jerimum, azedinha) e minha intenção é diversificar minha alimentação e expandir meu paladar pra sabores menos convencionais, mas também enriquecer minha microbiota intestinal. Não é um sacrifício, é um prazer imenso descobrir novos sabores.

Toda comida te conecta a alguém ou alguma coisa. A quem a sua comida te conecta? A quem a produziu, claro. A agricultora que selecionou a semente, plantou, regou, cuidou e colheu. Mas quem mais entrou no caminho entre a terra e o seu prato? Que histórias sua comida conta? 

A melhor salada de cenoura

No final do mês passado eu passei uns dias no interior da França, na casa do meu sogro. Todos os anos a família inteira se reúne ali por alguns dias, no verão (que na Europa é de junho à agosto). É a ocasião de juntar todo mundo embaixo do mesmo teto, pois uns moram em Berlim, outras moram no sul do país, outras moram no norte.

Além de curtir o jardim maravilhoso do pai de Anne, organizamos passeios no bosque da família. Quem é leitora raiz do blog vai lembrar desse post sobre a colheita de cogumelos no outono, que fez um enorme sucesso quando publiquei. Ainda estava cedo pra colher cogumelos, embora a gente tenha encontrado alguns, mas os arbustos estavam cheios de mirtilos e tinha morangos selvagens, minúsculos, por todos os lados. No final colhemos o suficiente pra enfeitar nosso café da manhã (comemos com aveia dormida) e pra acompanhar o mousse de chocolate que fiz de sobremesa uma noite.

Uma coisa que nós, mulheres da família, sempre fazemos nesses momentos é cozinhar juntas e trocar receitas vegetais. Sorte minha, as duas cunhadas são vegetarianas e a cuncunhada alemã prefere alimentos do reino vegetal, então o verão é o momento em que preparamos várias saladas (cruas, cozidas, com leguminosas, com folhas) e nosso prato é uma explosão de cores e texturas a cada refeição.

Céline, a irmã do meio de Anne, que já apareceu aqui através dessa receita, faz a melhor salada de cenoura crua que eu já comi. Ela é uma pessoa muito generosa e é interessante ver como a maneira que ela cozinha é uma continuação da personalidade dela: é tudo farto, rico em texturas e cores e com uma imensa variedade de sabores. Essa salada é tudo isso. As adultas adoraram, mas a surpresa foi ver o sucesso com as crianças/adolescentes, que não são os maiores fãs de comida da terra. A doçura da cenoura é acentuada pela mação, tem duas ervas frescas, dois cítricos no molho, várias sementes e oleaginosas… Vou compartilhar a receita dela, mas se não tiver tudo isso na sua cozinha, deixe alguns ingredientes de fora ou adapte, como eu fiz aqui.

Salada de cenoura de Céline

Céline usa salsinha e coentro nessa salada, mais sementes de girassol, jerimum (abóbora) e amêndoas. Infelizmente nesse dia eu só tinha salsinha (fica muito mais saborosa com o coentro), mas usei também um pouco de cebolinha. Na categoria “sementes”, só tinha semente de jerimum em casa e juntei também semente de papoula, pois fica uma delícia com cenoura (é um ingrediente difícil de achar no Brasil). Use as ervas e as sementes/oleaginosas que preferir que não tem como dar errado.

Cenoura

Maçã (use 1/3 de maçã pra 2/3 de cenoura)

Salsinha e coentro frescos

Um punhado de sementes e oleaginosas (sementes de jerimum, girassol ou gergelim, castanhas, amêndoas…)

Suco de laranja e limão (metade-metade, ambos frescos)

Azeite (ou o óleo da sua preferência)

Sal e pimenta preta

Rale a cenoura e a maçã (cruas). Regue com o suco de limão e laranja e reserve.

Coloque as sementes/oleaganiosas pra tostar em uma frigideira limpa (sem acrescentar mais nada) e toste por alguns minutos, até o aroma se intensificar. Enquanto isso, pique as ervas.

Junte as sementes tostadas e as ervas picadas com a cenoura e a maçã raladas, regue com azeite e tempere com uma pitada de sal e pimenta preta. Misture bem, prove e corrija o tempero, se necessário.

Tartare de algas

Os vegetais do mar, as algas, são um ingrediente que eu gostaria de ver mais no prato das pessoas. No Brasil, esse alimento saboroso e nutritivo ainda não faz parte da nossa alimentação, o que é uma pena. Mar e algas, nosso litoral tem francos. E o cultivo de algas pode ser uma atividade transformadora, em vários aspectos. (Pra ter uma ideia do que estou falando, leia essa reportagem sobre um grupo de mulheres que cultiva algas de maneira ecológica em uma pequena comunidade do Ceará.) Então meu coração antiespecista, e meu estômago que adora sabores marinhos, tem fé que em breve algas entrarão na nossa cultura alimentar, pra muito além do sushi. 

Aqui na França, onde o consumo de algas ainda é tímido, mas já é mais popular do que no Brasil, tem um prato que eu adoro: tartare de algas. Se trata de algo que se assemelharia a um patê de algas e se você quiser chamá-lo assim, eu apoio. É bem simples, basta misturar algas cruas e picadinhas com cebola, alho e alcaparras, depois capricha na acidez (vinagre de sidra, limão e picles de pepino) e no azeite, pra realçar tudo, e tempera com sal e pimenta preta. Depois é só deixar descansar algumas horas na geladeira ou, idealmente, uma noite inteira, pros sabores apurarem e servir com torradas. Eu adoro e poderia comer baldes, mas o sabor super intenso de mar faz com que muita gente torça o nariz pra esse prato. 

Apesar de ser facílimo de preparar, quase ninguém faz porque dá pra comprar pronto em lojas de produtos orgânicos e alguns supermercados. Eu mesma nunca tinha feito em casa até duas semanas atrás. Foi quando fiz um piquenique no nosso lote com um um amigo meu daqui, Nox, e o pai dele, JL, que é do interior e estava aqui de passagem. O pai é vegano, assim como o filho, e a gente sabe que quando pessoas veganas se encontram elas fazem o quê? Compartilham comida e receitas. JL me ensinou a fazer o tartare dele e disse que era um sucesso imenso na família. Eu fiz poucos dias depois e não me arrependi. 

Tartare de algas

(Pronuncie “tartár”) O sabor marinho é muito intenso aqui. Se você não gosta do sabor dos vegetais do mar (que muitas pessoas associam ao sabor de peixe), essa receita não é pra você. Eu segui as instruções de JL e são elas que vou passar adiante. Lembrando que sempre escrevo a ordem dos ingredientes de maneira decrescente: o primeiro ingrediente é o usado em maior quantidade, e depois vai diminuindo. As quantidades exatas ficam ao gosto da freguesa. A receita usa algas desidratadas, mas usei algas frescas, porque tinha ganhado de presente de uma amiga. Aqui na França consigo encontrar facilmente alga desidratada em flocos, cultivadas no litoral norte do país. Acho que no Brasil o mais fácil vai ser usar folhas de nori (a alga que usamos pra fazer sushi) e usar uma tesoura pra cortar miudinho antes de hidratar. Enquanto espero nossas algas nacionais, vamos ter que nos virar com a nori importada (insira emoji triste).

Algas desidratadas (leia instruções acima)

Azeite

Cebola

Picles e alcaparras (opcional)

Alho

Limão

Vinagre de sidra

Sal e pimenta preta

O tartare precisa descansar uma noite na geladeira, pros sabores se misturarem, então faça essa receita na véspera.

Cubra os flocos de algas (que você cortou bem miudinho com a tesoura, se estiver usando folhas de nori) com água fria e deixe hidratar por meia hora. (Se estiver usando algas frescas, não precisa hidratar.) Enquanto isso, prepare os outros ingredientes.

Pique miúdo um pouco de cebola roxa e de alho (a quantidade de alho deve ser adaptada ao seu apreço por alho cru) e reserve. Pique um punhadinho de picles (aqueles mini pepinos em conserva) e de alcaparras (esses ingredientes são opcionais, mas tradicionais).

Escorra os flocos de alga (use uma peneira) e aperte bem pra retirar o máximo de água. Misture com a cebola, alho, picles e alcaparras picadas. Tempere com limão e vinagre de Sidra (metade-metade, ou só limão, se não achar vinagre de sidra), sal e pimenta preta. Regue generosamente com azeite. Misture bem, prove e corrija o tempero, se necessário. Se quiser pulsar tudo algumas vezes no liquidificador, pra ficar mais homogêneo e sem os pedaços inteiros da cebola, fique à vontade (foi o que fiz aqui). O tartare deve ficar salgado na medida, com uma acidez marcante, mas sem chegar a ser azedo. Vai ficar parecendo a lama do pântano? Vai, por isso enfeitei minhas torradinhas com tomate (vermelho e amarelo) e cebolinha. Mas é uma lama deliciosa, então esses enfeites são totalmente dispensáveis. 

Coloque em um recipiente fechado e deixe uma noite na geladeira antes de consumir. Deguste com pão (melhor se tostar as fatias antes). Se você não comeu tudo de uma vez, dá pra conservar o tartare na geladeira por até uma semana.

Dicas:

-Além de ser degustado como patê, você pode usa-lo como condimento em pratos onde o sabor marinho for bem-vindo, como saladas cruas, sopas ou salada cozidas. 

-Também fica uma delícia com molho de tomate, servido com macarrão.

Panqueca de abobrinha e grão de bico

O lote que cultivamos coletivamente, nos Jardins Operários, está dando muita abobrinha no momento. Os pés de abobrinha que eu mesma plantei e que me foram presenteados por Maria, uma das operárias que cultivam aquela terra, pertinho do nosso lote. E, procurando novas maneiras de cozinhar abobrinha, decidi fazer essas panquecas um dia e foi um sucesso tão grande que agora pra todo lugar que vou, chego com elas embaixo do braço. Em duas semanas elas apareceram em pique-niques, reunião com o coletivo, jantar de comemoração nos jardins, jantar com as amigas aqui em casa e até levei pra reconfortar uma camarada no dia em que ela perdeu sua cadela velhinha. 

A receita segue o mesmo princípio dessa “mini fritada de couve-flor”. Não duvido que seja possível utilizar essa base com uma infinidade de outros vegetais, mas a mistura de abobrinha com grão de bico me pareça perfeita. E o molho de tahina é um velho conhecido aqui do blog, mas dessa vez acrescentei coentro pra ficar ainda melhor. Se você odeia coentro, basta usar salsinha que também fica supimpa.

Panqueca salgada de abobrinha e grão de bico com molho de tahina e coentro

Abobrinhas variam muito de tamanho, então adapte a receita ao que você tiver em casa e/ou ao número de pessoas comendo. Como sempre, aqui vão os ingredientes e as instruções de preparo, mas sem as medidas. O importante é ter uma ideia da proporção de abobrinha e farinha de grão de bico, o resto é tempero e você decide o quanto quer usar. A mesma coisa é válida pro molho, que é opcional, mas altamente recomendado. 

Abobrinha (italiana)

Farinha de grão de bico (bem fina)

Cebolinha

Sal e pimenta preta

Azeite ou óleo

Molho de tahina e coentro

Tahina (pasta de gergelim)

Suco de limão

Coentro ou salsinha

Alho (opcional)

Sal e pimenta preta

No dia anterior misture a farinha de grão de bico com um pouco de água, aos poucos, mexendo bem com uma colher pra ficar homogêneo e sem carocinhos. A textura deve ser bem espessa, pois no dia seguinte você vai acrescentar a abobrinha e ela traz muito líquido à mistura. É importante fazer isso na véspera de quando quiser comer as panquecas, pois a farinha de grão de bico fica muito mais saborosa, e cozinha melhor, se for hidratada por 12 horas antes de ir pra frigideira. Eu vou além e deixo minha massa fermentar um pouco, como dá pra ver na foto abaixo, à esquerda (fermentação natural, só colocar em um local quentinho da cozinha que numa noite começa a fermentar).

Depois da noite de descanso (no dia seguinte), rale a abobrinha, com casca e sementes, no ralo grosso. Salgue e deixe descansar 5 minutos pra liberar um pouco do líquido do vegetal. Enquanto isso corte miúdo um pouco de cebolinha, a parte branca e a verde. Depois coloque a abobrinha ralada numa peneira e use a palma da mão pra espremer a abobrinha contra a peneira. Não precisa espremer muito, basta retirar um pouco da água. Misture a abobrinha ralada/espremida com a massa de farinha de grão de bico que estava repousando. O ideal é usar o dobro de volume de abobrinha – depois de espremida- em comparação ao volume de massa de grão de bico. Acrescente a cebolinha cortada, um pouco de sal e tempere com pimenta preta. Prove pra ver se precisa corrigir o sal. 

Aqueça um pouco de azeite/óleo em uma frigideira anti-aderente e despeje colheradas da mistura. Pra cozinhar direito e virar com facilidade, não faça panquecas grandes: uma colher de sopa bem cheia por panqueca é ideal. Tampe (minha frigideira não tem tampa, então cubro com outra frigideira) e deixe cozinhar em fogo baixo até as bordas ficarem douradas. Destampe a frigideira e use uma espátula pra virar os bolinhos. Deixe cozinhar do outro lado, dessa vez sem cobrir. Quando estiver dourado dos dois lados, está pronto. Repita a operação com o resto da mistura. Deixe amornar antes de servir, pra textura firmar um pouco dentro do bolinho. 

(Eu gosto de ir colocando as panquecas prontas dentro de uma travessa de vidro, umas em cima das outras, e tampada. Assim o vapor criado dentro do recipiente continua cozinhando levemente as panquecas, deixando tudo bem macio, e ao mesmo tempo elas amornam o suficiente pra ficar na textura perfeita, sem ficarem fria. Mas mesmo frias, são deliciosas.) 

Se estiver servindo com o molho de tahina, aqui vão as instruções de preparo. Misture a tahina com um pouco de suco de limão e mexa bem. Vá acrescentando água aos pouquinhos, mexendo bem, até atingir a textura de um creme fluido. Junte alho (pilado ou ralado – a gosto), se estiver usando, tempere com sal e pimenta preta. Prove e decida se precisa de mais limão ou mais sal. Ficou líquido demais? Junte mais tahina. Ácido demais? Junte mais tahina e mais água. E assim por diante. Use seu paladar pra te guiar, basta respeitar a textura: cremosa e fluida. Pique um punhado de coentro (ou salsinha) bem miúdo e misture ao molho. Sirva com os bolinhos. 

Esse molho pode acompanhar uma infinidade de coisas. Pode inclusive ser degustado simplesmente com pão.

Junho

Mês passado fiz um post que chamei de “o melhor de maio” e disse que talvez virasse uma tradição mensal nesse blog. Redes sociais acostumaram o pessoal a ver tudo que todo mundo faz (e pensa) em tempo real. Embora eu não queira mais isso pra minha vida, compartilhar momentos do meu dia-a-dia uma vez por mês é uma maneira de trazer as pessoas que leem o blog mais pra perto do meu cotidiano, mas de maneira menos invasiva (pra mim). Estou atrasada pra falar do mês passado, mas bora lá. Fazer um diário visual de um mês inteiro renderia um post longo demais e nem tudo que faço, eu desejo compartilhar. Então aqui estão alguns momentos (escolhidos) que vivi em junho.

Junho é o mês da transição entre primavera e verão e as flores, principalmente as rosas, causaram uma explosão de cores nos jardins (o daqui de casa e os Jardins Operários).

Anne voltou da Palestina, onde ela esteve trabalhando por um mês, e trouxe presentes das minhas amigas que moram lá. Melado de romã, feito por Dragiša e essa bolsinha zapatista, enviada por Tati. 

As cerejeiras dos jardins operários estavam carregadas, mas esse ano não foi um bom ano pra cerejas, e muitas apodreceram no pé. Mas um belo dia de junho, um coletivo amigo conseguiu uma quantidade imensa de cereja (orgânica) de descarte e voltei pra casa com uma caixa cheia dessa preciosidade. Cerejas são uma das frutas que você só consegue comprar na estação e são bem caras. É fruta de gente rica, por isso não compro quase nunca. Então aquela caixa era um tesouro pra mim. Fartura. Agora é esperar até o ano que vem pra comer cereja novamente.

Degustei, feliz da vida, as favas que plantamos no quintal. Adoro fava e esse ano descobri, graças à uma amiga que também tem uma horta nos Jardins Operários, que quando elas são bem jovens dá pra comer com casca e tudo, sem debulhar, como uma vagem. Aqui fiz um macarrão com molho de urtiga e favas frescas, mais salsinha. E uma salada de folhas de beterraba, alface e dente de leão. Tudo, com excessão do macarrão, veio da nossa horta. 

Também foi o mês das framboesas. No lote que o nosso coletivo cultiva nos jardins operários tem vários pés. Nunca comi framboesas tão deliciosas, e tão grandes, na minha vida. Comi até no café da manhã, em cima da aveia dormida (mais amêndoas de cacau e castanha do Pará, que trouxe do Brasil).

A okupa que nos servia de base foi fechada e foi um momento triste pra todos os coletivos do território, pois era um lugar estratégico pra organizar as lutas aqui. Mas a gente sabe que ocupações são efêmeras e essa conseguiu sobreviver por três anos, o que é um milagre. Felizmente, as pessoas dessa okupa já encontraram outro imóvel pra fazer uma nova ocupação e passamos o mês inteiro fazendo a mudança (todos os coletivos ajudaram). Puxei, pela primeira vez, uma carrocinha na bicicleta, pra ir buscar comida de descarte pro pessoal de lá. Preciso dizer que caí no primeiro dia. Mas no segundo consegui fazer a viagem sem problemas, apesar da carga ser ainda mais pesada do que no dia anterior. Quando a gente diz que a militância é uma escola, acho que muita gente não imagina a imensa variedade de coisas que aprendemos nela.

Tomamos café da manhã todos os dias no jardim e isso, pra mim, é a definição de luxo.

Descobri que a borragem é rosa quando desabrocha, mas em poucas horas ela fica azul. (Observar o jardim e a horta são minhas atividades preferidas no momento.) Plantamos várias borragens na horta dos tomates porque as abelhas amam essa flor. E a gente ama as abelhas. Sabia que a borragem é comestível e tem um leve sabor iodado que algumas pessoas acham parecido com ostra? Não posso confirmar, nunca comi ostra na vida, mas adoro o sabor dessa flor. Só não como tudo na salada porque elas são mais importantes pras abelhas do que pra mim. 

Pelo segundo ano consecutivo organizamos uma festa pras crianças do CoHab onde fazemos, todo domingo, atividades de educação popular. Levamos um forno de pizza (emprestado) pra lá e cada criança pode fazer sua pizza com a massa, molho e legumes que tínhamos preparado. Como nosso coletivo se comprometeu com a luta antiespecista, toda a comida que preparamos/oferecemos é vegetal. Talvez surpreenda algumas pessoas me lendo, mas nenhuma criança estranhou a falta de produtos de origem animal e, mais uma vez, as pizzas foram um grande sucesso. Foi um dia inteiro de trabalho, sem contar o trabalho na semana anterior pra preparar a festa, que também teve muitas atividades lúdicas, e muitos braços pra acompanhar as crianças no preparo de 40 pizzas, além de cuidar do forno. Mas como esses momentos de partilha com a nossa comunidade são preciosos! A luta não é só uma lista de tarefas e sacrifícios: ela também oferece alguns dos momentos de maior alegria da minha vida. 

Umo, um dos habitantes da nossa casa, resolveu voltar. Ele decidiu sair de casa há uns três anos, e passou a morar na rua e a nos visitar somente de vez em quando. Mas parece que ele cansou da vida itinerante, pois umas semanas atrás ele se instalou no minúsculo jardim na frente da casa. Ele se recusa a entrar em casa, porque não se entende com os outros gatos moradores daqui, mas a gente coloca água e comida pra ele lá fora e pelo menos uma vez por dia saímos pra dar carinho pra ele. Apesar de preferir a liberdade da rua e de ter se emancipado das humanas que viviam com ele, Umo adora carinho e ainda pede nossa companhia de vez em quando. 

Esse mês também levei várias turmas de crianças de dois jardins de infância do bairro pra visitas as hortas dos Jardins Operários. Guiar turmas de escola nos jardins é uma das minhas tarefas no Coletivo de Defesa dos Jardins. É uma delícia ver as crianças se maravilharem diante das flores, das borboletas e descobrirem os legumes crescendo nos pés. Aproveito pra conversar com as crianças sobre comida vegetal e até provamos algumas coisas pelo caminho.

Mais pro final do mês aconteceu um encontro militante no interior da França, organizado pelo nosso coletivo de solidariedade popular. Convidamos alguns coletivos de outros territórios e foram 3 dias de muita troca e banho de rio. Eu organizei uma oficina chamada: “O lugar do antiespecismo nas nossas lutas” e fiquei muito feliz em ver a quantidade de pessoa que participou. Foi o primeiro encontro inter-coletivos que organizamos depois de termos decidido colocar a luta antiespecista na nossa declaração de princípios e, pela primeira vez, a comida foi totalmente vegetal e só recebemos elogios.

Mas teve um problema. Um problema de 14kg. Preparamos uma parte da comida antes de pegar a estrada, no dia anterior, e todo o hummus que eu tinha preparado fermentou. Sete potes de 2kg cada, ou seja, 14kg de hummus!!! Eu cheirei e provei tudo e decidi que dava pra comer um dos potes que tinha fermentado menos que os outros. Fomos na fé e todo mundo sobreviveu sem nem mesmo uma dor de barriga. Infelizmente tivemos que jogar o resto fora e isso me partiu o coração. 

Na volta pra minha periferia, no norte de Paris, fui cuidar da horta. Os pés de favas estavam secando (todas as favas tinhas sido comidas por nós). Arranquei tudo, agradeci pela comida oferecida e pelo nitrogênio que elas levaram pra terra, que vai beneficiar todas as outras plantas que crescem ali e coloquei na composteira. Ali os pés de favas vão virar terra novamente e o ciclo se fechará.  Olha que coisa mais linda as raízes das leguminosas. Repare nesses pequenos nódulos. São ali que elas hospedam as bactérias que capturam o nitrogênio (N2) do ar e o converte em uma forma utilizável pelas plantas. Por isso leguminosas são o verdadeiro adubo verde. Eu fico abestalhada diante da sofisticação e tecnologia das plantas.

O primeiro tomate brotou. Ainda vai demorar semanas pra gente poder comer tomates maduros e esperar pacientemente por esse momento só contribui pra que eles sejam ainda mais saborosos pra mim.

O lote do nosso coletivo está cada dia mais luxuriante. Plantamos tomate, abobrinha, couve, berinjela, manjericão, alecrim, cebolinha e azedinha. Tem também um pé de damasco (a safra foi curta e já comemos todos) e uma cerejeira jovem. A primeira abobrinha foi colhida (e comida) e outras já vieram depois. Cultivar a terra com camaradas me enche tanto de felicidade que nem consigo colocar em palavras. E cultivar a terra com as crianças dos camaradas, que estão sempre por ali se maravilhando com os bichinhos que moram naquela terra ou procurando framboesas pra comer, é gostoso demais.

Fiz meu primeiro arranjo floral, com flores do lote, pra receber uma grande amiga de 80 anos que veio jantar com a gente. De sobremesa, fiz o creme-mousse de chocolate branco, gergelim e missô que criei no ano passado e que é um sucesso total. Parece absurdo, mas é absurdamente bom. Servi com as framboesas dos Jardins Operários e minha amiga ficou encantada.

Fiz seis bolos num dia, pras atividades de educação popular com as crianças (no CoHab) e pro almoço com jardineiras e jardineiros dos Jardins operários. Das tarefas da militância, cozinhar é uma das que faço com mais frequência. O almoço nos jardins teve churrasco, mas teve também uma abundância de pratos vegetais. Nem uma jardineira é vegetariana, muito menos vegana, mas vários trouxeram contribuições vegetais pra compartilhar com todo mundo. Quase beijo o jardineiro português que fez esse feijão fradinho, que estava uma delícia. 

Apareceu o primeiro jerimum do quintal. Esse pé cresceu sozinho (não foi semeado) e está se espalhando pelo quintal inteiro. Aliás, impressionada com a proeza e abundância desse pé de jerimum, fui pesquisar pra saber se as folhas eram comestíveis. São! Comi, pela primeira vez na vida, folha de jerimum refogada e adorei. A generosidade da natureza…

Rolou um date de rompimento definitivo de namoro. É conceito. E a comida estava ótima. Mas, falando sério, acho importante celebrar finais tanto quanto celebrar começos. 

Falando em ex namorada, a newsletter desse mês foi sobre isso. Mais especificamente, sobre ter uma ex mítica (quase todo mundo tem). A minha é aquela das alcachofras. Envio uma newsletter mensal falando de amor, em sua imensa pluralidade e com narrativas que vão contra a visão uniformizada que nos é imposta culturalmente, pra agradecer quem apoia financeiramente o meu trabalho

Eu tenho alguns problemas de saúde que são aliviados quando faço musculação e esse mês encontrei uma academia perto de casa e bem baratinha. Sempre gostei de musculação, porque além de aliviar minhas dores, aumentar minha força física faz bem pra minha autoestima, e estou feliz por ter voltado a puxar ferro. 

E pra terminar, os jardins operários em toda a sua glória no crepúsculo do final de junho. 

“Se a gente quiser romper com esse sistema, não vai ser sem audácia” – entrevista com Larissa e Maria

Quando eu estive em Belém, em novembro passado, tive a honra de ser convidada pra tomar um tacacá na casa de Larissa e Maria. Assim como Michelle, que entrevistei aqui, Larissa (que todo mundo chama de “Lara”), é uma companheira do coletivo antiespecista VEM. Maria, também vegana, é a mãe dela. Passei uma tarde na casa delas, entre bonecas de Ângela Davis e Paulo Freire feitas por elas, tomando tacacá e conversando. Aproveitei pra entrevistar as duas, porque elas têm uma história com o veganismo que começou de uma maneira diferente de todas as outras pessoas que entrevistei aqui no blog até hoje. E porque elas disseram coisas que me tocaram profundamente e que eu levo pra vida e pra luta.

Podem se apresentar?

Larissa – Larissa Pontes, socióloga, um tanto artista das manualidades. Nortista meio manauara, meio belenense. Militante por um veganismo popular e integrante do coletivo VEM. 

Maria – Maria Melo, paraense, artesã, vegana mãe de vegana.

Como vocês chegaram no veganismo?

Larissa – Eu sempre tive vontade de conhecer, pela questão animal. Eu já tinha alguma ideia a respeito, mas não sabia exatamente como fazer. Até que a minha mãe desenvolveu uma doença autoimune e começou a ter crises sérias. A primeira coisa que eu fiz pra tentar ajuda-la foi pesquisar sobre o impacto da alimentação na saúde. Parece estranho dizer que eu encontrei uma oportunidade pra me tornar vegana, mas foi a conjuntura perfeita pra eu chegar pra ela e dizer: “Olha mãe, eu acho que a gente pode unir uma coisa à outra. A gente consegue ter uma alimentação mais ética com os animais e ao mesmo tempo vai melhorar a tua situação de saúde.” 

Maria –  Eu fiz um exame de colonoscopia antes de fazer a transição pra vegetariana e ali foi detectado pólipos no meu intestino. Já estava num processo inflamatório bem alto. Algumas pessoas olham pra isso e falam: “Faz parte do processo de envelhecimento”. É verdade, mas você pode melhorar o seu processo de envelhecimento. Eu fiz o exame alguns anos depois de ter me tornado vegana e não apareceu mais nenhum pólipo. Tenho certeza que a mudança na alimentação contribuiu com isso. Tem zero chance de voltar? Não sei, só sei que por enquanto  está tudo na paz.

Larissa – A gente tirou primeiro a carne, depois carne de frango e por último fizemos a despedida do peixe. A gente já estava sem comer peixe há um tempo quando fomos passar o fim do ano na praia, em Salinas. Aí vimos um pescador e a mãe disse: “Ai, eu queria tanto comer peixe!”. Ela foi buscar o peixe lá, junto com o pescador, mas eu já não consegui comer. Ela comeu e depois disse: “É, pra mim também não dá mais. Tá diferente.”

Diferente como?

Maria – Foi como se eu tivesse comendo uma coisa que não fosse comida. Não era mais comida. E olha que o bichinho tinha sido pescado ali, estava fresquinho, não era da indústria, não era congelado, era do pescador que morava ali na beira da praia. Imaginei que ia me dar um prazerzão. E foi três vezes pior quando tentei comer ovo novamente.

Larissa: Por que ovo é o que? É pitiú. 

(Aprendi essa palavra maravilhosa quando estive em Belém. “Pitiú” é, pra paraense, o que “catinga” é pra norte-rio-grandense: fedor, mal-cheiro.)

Maria – No início do veganismo eu tinha umas preocupações, achava que podia não estar me nutrindo bem. Então decidi comer um pouco de ovo. A gente tem amigos que tem sítio, tem ovos de galinha ‘feliz’. O ovo veio pra mesa, ovo caipira… Tentei comer e não deu certo mais, não teve condição. E não é porque tenho nojo, não.

Larissa – Aí eu falei pra ela : “É simples, vamos pro nutrólogo e vamos fazer exames com certa frequência.” No começo a gente fez exames de 6 em 6 meses, porque ela estava com medo de ter alguma carência. Depois de um tempo a gente passou a fazer exames uma vez por ano. Todos os médicos olhavam os resultados dos exames e perguntavam se a gente realmente não estava comendo carne. Não conseguiam acreditar que era possível.

Maria – A gente está mostrando que é possível. A gente faz reposição de B12, claro, e reposição de vitamina D, mas eu vejo que todo mundo, incluindo o povo que come carne, faz reposição também.

Larissa – Às vezes eu fico pensando… Se a gente teve que enriquecer a farinha de trigo com ferro e ácido fólico, por que não pode ter uma farinha, um alimento, enriquecido com B12?

(Quando a farinha de trigo passou a ser enriquecida com ácido fólico, não foi visando a população vegetariana/vegana, foi pra atender as necessidades das pessoas que comem carne, mas não comem vegetais suficiente. E vale lembrar que o sal é enriquecido em iodo.)

O que é veganismo pra vocês?

Maria – Eu não vou negar que no início não foi a questão animal que me fez abraçar o veganismo, apesar deu amar os animais. Foi uma questão de saúde. Eu estava num estado de sofrimento muito grande, por causa da doença autoimune, estava inchada e tendo que começar tratamentos mais agressivos. Fui pra uma consulta médica e naquele dia o meu médico estava muito triste porque tinha perdido uma paciente muito jovem por causa de um problema hepático, consequência do uso de corticoide. O corticoide detonou o fígado e o pâncreas dela. Aí eu fiquei olhando aquilo e falei: “Eu não quero isso pra mim”. Eu sei que um dia vou morrer, como todo mundo, mas até lá vou me esforçar pra viver. E pra viver bem. Então o veganismo foi uma porta, apresentada pela minha filha, que se abriu pra mim e me deu a possiblidade de estar aqui hoje, me sentindo bem, ao invés de estar deitada numa cama, com dor, inchada.

Larissa – Pra mim o veganismo é algo plural. É uma maneira de imaginar um horizonte diferente, onde os animais não são mais vistos como inferiores, nem como mercadoria. É ampliar a nossa visão e entender que a gente partilha esse planeta com outros seres vivos, além dos humanos. É solidariedade. E aí eu fui descobrindo mais coisas no caminho, fui aprofundando a minha consciência. E abriram-se muitas possibilidades de encontrar companheiros de luta, amigos. E eu pude ver a saúde da minha mãe melhorar. Então pra mim, o veganismo representa certas coisas muito pessoais e outras mais amplas. 

Veganismo é a vontade de transformar o mundo pra melhor. Porque está insustentável! E ninguém se responsabiliza por isso! Se está insustentável, a gente precisa construir algo sustentável, um lugar onde não só humanos possam viver. Pode ser que a gente não veja tudo se acabando durante a nossa vida, mas tem muita gente por vir. Então veganismo também é solidariedade com as gerações que virão. 

Pique-nique do coletivo VEM

É difícil ser vegana?

Maria – É maravilhoso alguém chegar pra você, com todo o carinho, fazer uma proposta de qualidade de vida melhor e você ter força pra abraçar. Não estou dizendo que é fácil fazer mudanças na sua alimentação depois de décadas com aquela rotina (com produtos animais). Mas é gostoso também! Você descobre que o que parecia ser um sacrifício passou a ser um prazer, uma satisfação. Você tem N possibilidades alimentares com aqueles ingredientes que antes eram olhados como enfeites no prato. 

A manutenção do meu veganismo se dá por vários caminhos. Pela saúde, sim, mas também pelo caminho da delícia. A gente tem uma comida muito gostosa! Eu não sinto falta de nada parecido com carne, nada que lembre carne, nada com formato daquilo… Eu gosto das nossas comidas, gosto da beleza delas, do colorido. As pessoas tem uma ideia muito equivocada do que é a alimentação vegana. Você tem que interagir com o alimento: ele conversa com você e você conversa com ele. Quanto mais tempero natural você colocar, mais gostosa vai ficar a sua comida. Se você cozinhar só no vapor e não colocar um azeite, um salzinho, você vai olhar aquela batata e não vai dar vontade de comer. 

(Eu disse que a mesma coisa era válida sobre a culinária carnista. Pegar um pedaço de músculo de vaca ou um frango e cozinhar na água, sem tempero, não va ser gostoso. Maria respondeu que a galera do churrasco sempre vem com o argumento de que se for carne, “passou sal, botou na brasa, tá bom!” Aí Larissa lembrou que isso também é verdade no caso de vegetais. Afinal é o calor intenso e o defumado do fogo que conferem aquele sabor característico e tão apreciado. E concluiu dizendo: “Não precisa fazer nada pra uma fruta ficar gostosa. Você pega uma manga e ela é perfeita. Nossa comida já vem pronta.”) 

Junto com o veganismo a gente fez uma transição muito bacana que foi abrir mão, no máximo possível, do industrializado, do ultraprocessado. Não somos as veganas que compram não sei que produto ultraprocessado do futuro, do passado ou do presente, sei lá como é que chama esse negócio. Nem vamos usar glutamato monossódico como tempero. Tem sabores maravilhosos nas nossas folhas, nos nossos limões, tem vinagre de maçã, tem tanta coisa boa pra temperar a comida! Também tento comprar do pequeno produtor, do pequeno fabricante, daquela pessoa que está se esforçando pra sustentar a família. Lara tem uns amigos que fazem linguiça artesanal e é tudo de bom. A família toda é vegana.

Larissa – Essa coisa da dificuldade, eu vejo assim. Antes de se tornar vegana a gente estava nadando no sentido da corrente, estava ali com todo mundo, fazendo a mesma coisa. Aí a gente se torna vegana e a sensação que dá é que a gente passa a nadar ao contrário. Porque tudo vem contra a nossa decisão. Vão aparecer muitas dificuldades sociais e as pessoas vão dizer que tu não come nada. Mas, eu como, sim! Posso inclusive compartilhar a minha comida. Mas tem essas dificuldades no comecinho. 

Mas por que eu sou vegana? Tem gente que acha que não é importante ser vegana porque uma pessoa sozinha não faz diferença. Mas eu sei que eu não sou só uma. Eu quero que a pessoa que está pensando em ser vegana e acha que está sozinha olhe pro coletivo, pra essa ruma de gente que está se juntando, e diga “eu também não sou só uma”. O veganismo é um boicote, mas ao mesmo tempo a gente está dizendo pro mundo que dá pra viver de outra maneira. Acho que é uma ferramenta de reeducação. Quando a gente vive de outra maneira, a gente está dizendo: “Olha aqui, é possível!” Mas vivo isso com zero sentimento de superioridade. Não penso: “Nossa, como eu sou evoluída!”. Sou só o exemplo de uma coisa diferente, e as pessoas ao meu redor podem ver isso e se interessar. É assim que mudanças acontecem. É assim que a gente vai construindo coisas melhores.

Como é que a gente destrói o especismo?

Maria – Um dia eu escutei uma fala do pastor Ricardo que fez muito sentido pra mim. Ele disse: “O mal é extremamente audacioso e o bem é tímido.” Então eu acho que o caminho pra combater o especismo é esse: ser audacioso. A gente tem que ser audacioso e se juntar com quem é audacioso pra formar uma audácia maior ainda! 

Quando a gente chega em algum lugar e as pessoas reagem de maneira negativa ao nosso veganismo, quando dizem: “Você não come nada!”, eu respondo: “Eu como, sim, você que não tem pra me oferecer. Se você me convidou, deveria ter se preparado melhor porque uma boa anfitriã recebe bem um e outro.” A gente tem que ser mais afrontosa e mostrar que estamos aqui pra ficar. Às vezes ouço comentários como: “Ah, você pode ser vegana porque tem condição, porque  pode escolher.” Justamente! Aí falam: “Mas e se você estiver na floresta, no meio do mato?” Aí é que eu vou me dar bem! “E se estiver com uma vaca, no meio de uma ilha deserta?” Quais são as chances deu ir parar numa ilha deserta com uma galinha ou com uma vaca? Tem quem diga: “Não vou falar (sobre veganismo) porque não quero deixar as pessoas desconfortáveis.” Eu quero! Quero incomodar, quero desajustar a situação! 

Larissa – Se a gente quer romper com esse sistema especista, se a gente quer romper com o capitalismo, não vai ser sem audácia.

Maria – Então eu acho que é dessa forma que a gente vai colaborar pra destruir o especismo. Precisamos nos juntar com quem pensa assim e formar esse grande bom combate.

Larissa – É um trabalho de formiguinha. A gente destrói o especismo aos poucos, mas ao mesmo tempo sem cessar, sem desistir. Convencendo mais pessoas de que o nosso sistema de produção  é insustentável. Que a maneira como nos relacionamos com a natureza, e com os seres que partilham o mundo com a gente, é insustentável. A gente tem que buscar possibilidades pra fazer crescer o veganismo. Tem uma oportunidade na educação? Surgiu uma oportunidade ali, numa política pública? Quando a gente vê, de repente, o debate antiespecista não é mais invisível, não existe apenas dentro do nosso grupo. Se torna um rio, correndo pra todos os lados.

Como falar da luta antiespecista com a esquerda?

Larissa – Essa é uma das perguntas mais difíceis. A gente tem um grande amigo de esquerda, super politizado, que trabalha na base, viajando esse estado todinho politizando as pessoas, mas que se recusa firmemente a aceitar a importância do veganismo. E ele tem problemas de saúde, uma mudança de alimentação faria tanto bem pra ele. Ele come a nossa comida e gosta, mas sempre faz piadas depois. Hoje a gente já não responde mais, pra não perder a amizade. Mas é uma situação muito difícil.

Maria – Tem duas situações bastante mal resolvidas na minha cabeça e ainda não encontrei respostas pra elas. A primeira é a questão dos grupos de pessoas com doenças autoimunes dos quais faço parte. Elas não se interessam em aprender sobre alimentação vegana. Tem gente que posta todo tipo de tratamento irresponsável. Já me perguntaram por que não conto a minha história nas redes, mas não sei… As pessoas que consomem corticoides, por causa dessas doenças, acham que tomando esses remédios podem comer carne e vai ficar tudo bem. Não é verdade. Eu estava tomando uma carga pesada de corticoides antes de me tornar vegana e um dia comi um filé e tive uma crise séria, inchei muito. E que pensamento é esse, né? Preferir se encher de corticoide do que parar de comer carne. Não faz sentido.

E a outra situação difícil que eu vivo é dentro dos grupos de prática da solidariedade, que distribuem refeições pra pessoas em situação de rua e famílias carentes. Todo mês a gente faz uma lista com os alimentos necessários pra preparar as refeições e sempre pedem muita linguiça, charque, salsicha, muito embutido. Eu falei: “Trocando essas carnes por legumes a gente consegue oferecer duas refeições por semana, ao invés de uma, com o mesmo valor que gastamos por mês. E ainda melhoraria a qualidade das refeições.” Me responderam que as pessoas iriam estranhar uma comida sem carne, que pensariam:  “Eles comem carne, mas não querem nos dar.” Eu fico sem saber o que fazer. O dinheiro ia render mais, alimentar mais pessoas e alimentar melhor…

Larissa – A maneira como eu costumo falar sobre veganismo pra pessoas de esquerda é tentar mostrar que as opressões não ficam pedindo licença uma pra outra pra oprimir. “Ei, agora eu vou oprimir esse grupo aqui, então tu para. Fica quieta no teu canto que agora é a minha vez de oprimir! Vai pro final da fila e espera!” As opressões agem todas ao mesmo tempo. Elas estão batendo junto na gente há muito tempo, então como é que a gente vai bater de volta separado? Nunca encontrei alguém que conseguisse argumentar a favor desse ideia de deixar uma luta pra depois, enquanto focalizamos nas outras, então logo a pessoa leva pro individual e diz: “Mas é difícil ser vegana!” Ou então solta o token do indígena que caça. Eles caçam, certo, mas não são os indígenas que estão causando a ruptura na natureza. Nosso inimigo é outro.

Depois da entrevista fomos tomar o tacacá preparado por elas. Eu estava saltitante com a oportunidade de degustar algo tão emblemático da culinária paraense, mas não sabia bem o que esperar desse prato. Que negócio bom! Tacacá geralmente é servido com camarão, mas não faz falta. Larissa e Maria, além de pessoas lindas, são ótimas cozinheiras e saí da casa delas com vontade de voltar muitas vezes. Ser vizinha delas se tornou um dos meus objetivos na vida. Quero ser amiga, claro, mas amiga E vizinha. Quero essas duas do meu lado na luta, e na mesa. Como decidi visitar Belém novamente no ano que vem, dias atrás  mandei uma mensagem pra Larissa dizendo: “Pode ir esquentando o tacacá que eu tô chegando!”. E ela respondeu: “Vou esquentando o tacacá e guardando muruci pra gente fazer nosso queijo.” Porque Larissa e eu temos um projeto de queijo verdadeiramente decolonial que vai ser sucesso. Aguardem.

Torta de cebola caramelizada com vinagre e figo

Sei que a última receita que postei nesse blog foi uma torta, mas essa aqui não tem nada a ver com aquela lá. E, sendo bem sincera, a verdadeira receita é a cebola caramelizada. Ela dá uma torta saborosa e elegante? Sim, mas se quiser fazer só a cebola e usar como condimento ou pasta pra comer com pão, tens todo o meu apoio. Mais que apoio, incentivo! Tanto que vou parar esse texto por aqui pra você ir direto à receita.

Torta de cebola caramelizada com vinagre e figo (ou passas)

Você pode usar essa cebola caramelizada pra uma infinidade de coisas. Pra rechear uma torta salgada, como fiz aqui (use essa massa ou a que preferir). Como parte de um sanduíche ou pizza. Pra rechear uma empada ou pastel de forno. Ou simplesmente pra passar no pão (como um chutney). Se você tiver a sorte de ter queijo de castanha de caju por perto, os dois casam lindamente. Vou dar as medidas pra fazer recheio suficiente pra uma torta, mas use como um guia pra te dar uma ideia das proporções e adapte pra quantidade que você quiser fazer. 

4-5 cebolas médias (brancas)

3 figos desidratados (ou um punhadinho de uva-passa)

3 colheres de sopa de azeite

1 colher de sopa de vinagre balsâmico (se não tiver, use de vinho)

Um punhadinho de alecrim fresco (ou uma pitada generosa de alecrim seco)

Sal e pimenta preta

Pra massa:

1 caneca de farinha de trigo (200g)

5 colheres de sopa de azeite

6 colheres de sopa de água (leite de soja – sem açúcar- deixa a massa ainda melhor)

Sal

Corte as cebolas ao meio, depois corte cada metade em fatias. Aqueça o azeite em uma panela média e de fundo espesso. Cozinhe a cebola em fogo médio (coberta) até começar a dourar, depois baixe o fogo e cozinhe, sempre coberto, até a cebola começar a caramelizar. Mexa de vez em quando, usando uma colher de pau, pra que tudo cozinhe de maneira uniforme. O açúcar natural das cebolas vai ser liberado aos poucos, fazendo com que elas fiquem macias, doces e escureçam um pouco. Seja paciente: o processo de caramelização vai levar de meia hora a 40 minutos e quanto mais baixo o fogo, melhor (assim a caramelização vai acontecer sem que algumas cebolas queimem no processo). Junte o vinagre (a acidez é importante pra quebrar o doce e realçar o sabor aqui) e os figos secos picados (ou as passas) e deixe cozinhar até o vinagre evaporar. As cebolas estão prontas quando estiverem como na foto abaixo (essa é a torta antes de ir pro forno. As cebolas vão terminar o bronze lá dentro). Desligue o fogo, acrescente o alecrim e tempere com sal e pimenta preta.

Enquanto as cebolas cozinham, prepare a massa. Misture todos os ingredientes com as mãos, até formar uma bola coesa e elástica. Obs: dá pra inverter as proporções de azeite e água (ou leite de soja) pra deixar a massa mais amanteigada e menos elástica. Questão de preferência pessoa. Deixe descansar alguns minutos (fica mais fácil abrir a massa quando ela está relaxada) antes de espalhar numa forma (ou placa). Quando lembro, cubro a forma com um pedaço de papel manteiga (sai mais fácil depois) e abro a massa com as mão, mesmo, mas nada te impede de usar um rolo. A massa deve ficar fina pra assar direitinho (medi aqui em casa: ela tem que ficar com 26 cm de diâmetro – o tamanho do fundo de uma forma de quiche aqui- pra ficar na espessura ideal). 

Espalhe as cebolas caramelizadas sobre a massa, deixando um dedo de borda descoberta, e leve ao forno médio (180 graus), pré-aquecido ou não (às vezes esqueço de pré-aquecer e dá certo do mesmo jeito). Quando as bordas estiverem bem douradas (como na foto abaixo), tá pronta. Deixe esfriar um pouco antes de servir. Rende 4 pedaços/porções. 

Dicas:

-Coloque umas azeitonas pretas na sua torta, depois que sair do forno, pra deixá-la ainda mais especial. Azeitonas pretas e uma pitada de algas em flocos (ou uma folha de nori picada), então, e vira comida de festa.

-Se gostar de mostarda de Dijon, espalhe uma fina camada na massa crua, antes de colocar as cebolas. 

-Como eu disse, essas cebolas são uma delícia só com pão, então se quiser fazer só o recheio, vá em frente. Guarde em um pote de vidro com tampa e coloque na geladeira. Dura vários dias.

Versão com azeitonas pretas (eu tava distraída e deu uma queimada, ops)

Torta salgada de legumes

Há anos eu procurava uma receita de torta salgada que reunisse todos os critérios que fazem, na minha opinião, uma boa torta salgada. Não gosto de tortas que são secas ou com muita farinha de trigo (as “pizzas de liquidificador” da minha infância eram assim). Queria uma torta suculenta e com muito mais legume do que farinha, mas que ao mesmo tempo pudesse ser cortada em pedacinhos bonitos e servida em ocasiões festivas (ou como tira gosto no meu boteco imaginário). 

Tive o prazer de provar algumas tortas assim feitas por duas mulheres veganas do meu Nordeste (um cheiro pra Natália, de Fortaleza, e outro pra Bia, de Salvador). Mas quem disse que eu tenho a receita delas? Natália até me deu, anos atrás, a receita da torta com lentilhas que ela faz, mas eu perdi. E quando pedi a receita de Bia, ela respondeu que tinha feito no olhômetro, com o que tinha achado na cozinha naquele dia. Então tive que inventar minha própria receita. 

Mas preciso dizer que não iniciei essa empreitada sozinha. Parti da receita de torta de legumes de Ruan Félix (cheiro, Ruan!), que ele publicou no blog de dona Juliana Gomes (cheiro, Ju!). Eu não tinha todos os ingredientes da receita de Ruan, mas ela foi fundamental pra me ensinar o pulo do gato em matéria de torta de legumes suculentas sem usar ingredientes de origem animal: batata cozida. É a bruxaria que faz a beleza dessa receita. E, como ele explica, essas tortas em versão animal geralmente levam ovos, óleo/manteiga e queijo, então são bem gordurosas. Por isso a versão vegetal pode (e deve) caprichar na dose de gordura (ele usa uma maionese caseira, eu uso azeite, mas já usei pesto também). Meus testes também me mostraram que a abobrinha é mais que um “legume” na “torta de legumes”, ela garante a textura úmida que eu procurava.

Foram muitos testes pra entender quais ingredientes são essenciais,e quais são enfeites, e chegar nas proporções ideias. Percebi, por exemplo, que pra chegar na textura suculenta que eu queria, o fermento era desnecessário. Fiz uma versão com farinha de grão de bico e outra com lentilha, mas tenho planos de fazer outra receita-base usando leguminosas. Eu queria que essa receita aqui fosse o mais simples possível, com ingredientes acessíveis pro maior número de pessoas. E também que se mantivesse próxima das tortas de legumes mais tradicionais, embora eu ache que a minha versão é ainda melhor. 

Como precisei fazer quase uma dezena de testes antes de chegar na receita abaixo, pude compartilhar essa torta com várias pessoas e posso afirmar que o sucesso é garantido. E repare como essa torta é linda! Vão perguntar se tem queijo, por causa da maneira como ela fica douradinha por cima e do sabor maravilhoso (obra, em partes, da dose caprichada de gordura ). Responda que ela tem algo muito melhor: amor por todos os viventes e valorização dos vegetais.

Torta salgada de legumes

Essa é mais uma fórmula que pode ser usada pra criar várias tortas diferentes, dependendo do “legume saborizante” que você utilizar. A abobrinha da base é importante pra atingir a textura desejada, então ela não pode ser substituída aqui. Se estiver usando um legume de sabor forte no tempero (como azeitona ou tomate seco), aconselho usar apenas 1/2 medida dele e completar com algo de sabor mais suave. Cenoura ralada fica perfeito aqui e ajuda a baratear a receita (nesse caso ficaria 1/2 medida de tomate seco ou azeitona e 1/2 medida de cenoura ralada). Pra fazer uma torta pequena uso uma caneca como medida. Você pode dobrar a receita (mantendo a caneca como medida) pra fazer uma torta maior. Minha receita foi inspirada em grande parte pela receita de torta de legumes de Ruan Félix.

Base (1 medida = 1 copo ou 1 xícara ou 1 caneca):

1 medida de batata cozida e amassada

1 medida de abobrinha ralada com casca (aperte bem na hora de medir)

1 medida de farinha de trigo (branca ou integral)

1/4 medida de óleo

Sal e pimenta preta a gosto

Temperos

1 medida de um legume “saborizante” (tomate seco, palmito, azeitona, milho verde, ervilha, coração de alcachofra, cogumelo, cenoura ralada… pode ser uma mistura de mais de um)

Alho e/ou cebola a gosto (opcional)

Ervas secas ou frescas

Um pouquinho de suco de limão (opcional, mas eu gosto porque a acidez realça o sabor de tudo)

Misture tudo com uma colher de pau ou espátula. Prove e corrija o sal, se necessário. (Se estiver usando alho e cebola, pique esses ingredientes e refogue em um pouco de óleo por alguns minutos antes de acrescentar à massa.) A massa vai parecer seca e você vai se perguntar se não era pra acrescentar algo líquido ali. Confie, vai dar certo. Mas ATENÇÃO: se os ingredientes que você estiver usando pra dar sabor à torta (“legumes saborizantes”) forem bem secos (milho verde e ervilha, por exemplo), ou seja, não tiverem a umidade de uma cenoura ralada ou de corações de alcachofra, use um pouco menos de farinha (3/4 de medida, ao invés de 1 medida cheia) ou um pouco mais de abobrinha ralada pra equilibrar a massa.

Despeje a massa em uma forma untada com um pouco de óleo (não precisa enfarinhar), espalhe com as costas de uma colher e leve ao forno médio (não precisa pre-aquecer) até ficar bem dourado e levemente firme quando você apertar com o dedo. O ideal é que essa torta não fique muito espessa, então escolha uma forma onde caiba tudo em uma camada não muito alta. O tempo de cozimento vai depender do tamanho da sua forma, então fique de olho e não tenha medo de abrir a porta do forno pra checar regularmente e, nesse caso, é melhor assar demais (vai ficar ligeiramente crocante nas bordas) do que de menos.

Importante: deixe esfriar completamente antes de cortar e servir. Se ela ainda estiver morna na hora de cortar, o interior estará cremoso demais e vai ser purê de torta pra todos os lados. Somente depois de totalmente fria é que dá pra cortar pedaços perfeitos.

O que usei na torta da foto, que é grande (8 pedaços bons):

(Base) 2 canecas de batata amassada (4 batatas médias) + 2 canecas de abobrinha ralada (2 abobrinhas médias, apertei bastante pra entrar tudo na caneca) + 2 canecas de farinha de trigo semi-integral + 1/2 caneca de azeite (Temperos) 1 caneca de cenoura ralada (1 cenoura grande) + 1 caneca de ervilha cozida (compro congelada) + alho poró refogado (aproximadamente 1/2 caneca) + alho desidratado (porque estava com preguiça de descascar alho fresco) + um punhadinho de ervas secas (tomilho/manjericão/orégano) + sal e pimenta do reino + suco de limão.

Dicas:

-Tomate seco fica uma delícia aqui, mas se estiver usando tomates conservados no óleo, reduza um pouquinho a quantidade de óleo da receita. Eu não fiz isso e minha torta de tomate seco ficou bem gordurosa (saborosa, mas gordurosa – e ninguém reclamou dos dedos lambuzados de óleo).

-Se tiver pesto na geladeira, use no lugar do óleo. Fiz isso uma vez e ficou sublime, embora a torta fique verde, o que pode causar estranheza em algumas comedoras que torcem o nariz pra verduras.

-Sinta-se à vontade pra temperar sua torta como quiser. Uso páprica doce defumada e fica ótimo. E imagino que uma versão com curry e coentro fique supimpa também.

Redefinir o conceito de fartura

Esse causo aconteceu muitas luas atrás, numa das primeiras visitas que fiz à minha família, que mora no Sertão do RN, depois de ter me tornado vegana. A tia que me hospedou estava aflita: “O que vou fazer pra você almoçar agora?” Expliquei que ela poderia fazer o que fazia sempre pro almoço, eu só não comeria o animal. Minha tia achava que tinha que fazer algo diferente, já que agora eu tinha um “regime” diferente e eu insisti que, por morar fora do Brasil, o que mais me deixaria feliz era comer a comida da nossa terra, da qual sou privada na maior parte do tempo. Ela se pôs a cozinhar, mas não parecia convencida de que seria capaz de me alimentar. Quando sentei na mesa pra almoçar meus olhos viram um banquete. Além do feijão (Macaça -ou “feijão de corda”-, o mais cultivado no Sertão) com arroz, tinha jerimum, batata-doce, salada crua, suco… Enchi meu prato, que estava lindo e colorido, mas antes de dar a primeira garfada minha tia se aproximou de mim e, olhando pra comida que eu estava segurando, soltou essas palavras: “Minha fia não achou nada pra comer, não foi?” 

Ela estava segurando um prato praticamente idêntico ao meu, com uma única diferença: o dela tinha um pedaço de frango. Mas só o prato dela estava cheio. O meu, aos olhos dela, estava vazio. A comida que veio da terra, plantada por gente dali (com exceção do arroz, aqueles vegetais tinham sido cultivados na própria cidade), parecia não existir pra ela. A única “comida” era aquele pedaço de animal, comprado no mercadinho da esquina (criado confinado em algum galpão, morto, despedaçado e embalado não sabemos aonde). 

Contei essa história várias vezes nas palestras que dei Brasil afora porque ela ilustra perfeitamente os fenômenos de desvalorização do alimento da terra (vegetal) e de colonização da nossa alimentação. E quando o alimento vegetal é desvalorizado, a pessoa que o produz também é desvalorizada. Esse processo também faz com que a própria terra perca valor, já que os alimentos que ela produz não são mais vistos como alimentos nobres. Ao mesmo tempo, a supervalorização da carne animal na alimentação, ou produtos derivados de animais, significa que na nossa sociedade, o pecuarista tem muito mais poder e prestígio que a agricultora. E dar mais poder pra pecuária vem com consequências terríveis: mais latifúndio, monocultura, grilagem, conflitos no campo, roubo de terras indígenas, desmatamento, queimadas, exploração animal, exploração de trabalhadoras e trabalhadores em abatedouros e frigoríficos, zoonoses…

Mas eu abri esse texto contando sobre o almoço na casa da minha tia porque há tempos venho ruminando algo e essa história também fala sobre isso. Quando se trata de comida, o que consideramos “fartura”? Essa pergunta se instalou na minha cabeça uns anos atrás, quando eu estava em Natal, visitando a família. Senta que lá vem mais história. 

Quando estou em Natal uma das minhas tarefas na casa da minha mãe é fazer a feira da semana. Vamos no CECAFES (Central de Comercialização da Agricultura Familiar e Economia Solidária) de Natal e conseguimos comprar diretamente de alguns produtores/produtoras rurais. Tem até gente de assentamento da reforma agrária e a oferta de vegetais é maravilhosa. Quando volto da feira e coloco tudo na mesa pra lavar/guardar, sempre sinto um prazer imenso. Quanta fartura! Quanta vida! Quanta delícia! Saber quem plantou e colheu aquilo ali só aumenta a minha alegria.

Fartura pra mim é ver a fruteira cheia de frutas. É abrir o freezer e ver ele cheio de pacotinhos de coco ralado, pronto pra virar leite, e de polpa de jaca e graviola (cortadas e embaladas por mim), prontas pra virar vitamina. E uma ruma de macaxeira descascada, pronta pra ser cozinhada. É ter uma vasilha enorme cheia de hortaliças na geladeira. É ter sempre um quilo de goma na água, pra fazer as tapiocas mais fresquinhas e saborosas. É ter pratos coloridos a cada almoço, com verduras cruas e cozidas, mais uma fruta. É abrir a geladeira e ter pasta de feijão com amendoim e leite de coco fresco. É sentar pra tomar café da manhã e ter vários recheios pra minha tapioca (pasta de feijão, restos de legumes ensopados do almoço), leite de coco pronto pra colocar no meu cuscuz e no meu café e mamão docinho. É poder escolher preparar macaxeira, batata-doce ou cará pro jantar. É comer banana-da-terra cozida no café num dia, tapioca no outro e cuscuz no outro, variando sempre os prazeres. É ter pinha e manga maduras pra lanchar. Mas nem todo mundo na minha família pensa assim.

Um dia estávamos eu e minha irmã caçula, que também é vegana, nos maravilhando diante da fruteira cheia de frutas e da geladeira cheia de verduras, enquanto lanchávamos tapioca. Nesse momento uma das nossas sobrinhas chegou da casa do namorado. Ela abriu a geladeira e fechou quase imediatamente com irritação. Depois fez uma declaração que me lembrou a tia do Sertão e seu comentário sobre o suposto vazio no meu prato lotado de comida vegetal: “Não tem nada pra lanchar aqui!” Olhei surpresa pra minha irmã, que também não estava acreditando no que tinha ouvido. Como assim não tinha nada pra lanchar? Olha nós ali lanchando! “Tem tapioca, tem frutas, tem leite de coco feito…” Mas antes que pudéssemos terminar a lista das delícias que estavam ao alcance da mão, e da boca, dela naquele momento, ela falou: “Por isso que eu gosto de comer na casa do meu namorado. Lá tem muita fartura. Sempre tem iogurte e presunto na geladeira, sempre tem leite condensado e biscoito recheado no armário.” Nesse momento nossa surpresa se tornou indignação. O problema era outro. Mais uma vez, alguém estava me dizendo que comida da terra não era alimento. Comida, mesmo, a que conta, a que tem valor, a que é gostosa, é o que vem dos animais. E dessa vez, como se travava de uma pessoa jovem e que cresceu na cidade, tinha um elemento a mais: comida é o que vem dos animais e é ultraprocessado pela indústria. 

Quando entrevistei Michelle, em Belém, ela falou em como também percebeu que pessoas com práticas especistas (que vêem animais e seus derivados como comida, patrocinando e perpetuando, assim, a exploração animal) muitas vezes têm dificuldade em ver uma fruta ou um punhado de castanha do Pará como um lanche. Concordo com ela que uma das principais missões do veganismo é colocar o vegetal de volta no centro da mesa. E eu iria mais longe. Talvez a maior tarefa do veganismo (não do antiespecismo!*) seja redefinir a noção de fartura. (*A tarefa do antiespecismo é libertar os animais. Emancipação animal é o nosso horizonte.)

A gente sabe que, no Brasil, em um hectare se cria um boi ( 0,97 boi por hectare, pra ser precisa – fonte: Censo Agropecuário de 2017, feito pelo IBGE). Esse boi vai ser abatido em 3 anos e vai “produzir”, em média, 250 kg de carne (248,1kg é o peso médio da carcassa, de acordo com o Beef Report de 2022, feito pela Abiec – Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne).

Nesse mesmo hectare a gente pode plantar comida, no sistema agroflorestal, e colher 50 toneladas de vegetais por ano. Eu tive a oportunidade de visitar alguns assentamentos da reforma agrária onde as assentadas cultivavam a terra com práticas de agroecologia e agrofloresta e pude ver a imensa abundância de vegetais que crescia em espaços onde só poderíamos colocar uma ou duas vacas. É uma fartura de biodiversidade! 

Precisamos redefinir nosso conceito de “terra improdutiva” pra incluir pasto. E precisamos redefinir o nosso conceito de “fartura”. Eu sempre digo que o prato é uma janela pro campo. Sabe o que acontece quando você só consegue ler como “comida” um pedaço de animal, ou um produto feito com o que sai do corpo de animais, muitas vezes ultraprocessado? A monotonia no prato reflete a monocultura do campo (de soja) e a falta de biodiversidade do pasto. É uma imensidão de terra (latifúndio) na mão de poucos e uma imensidão de animais se tornando pouca comida e deixando a terra arrasada. De todos os ângulos que você olhar, é o extremo oposto de fartura. A única abundância aqui é o lucro dos ruralistas e do agro em geral, ganhado em cima da destruição das florestas e das reservas de água, do genocídio indígena, da saúde da terra e das pessoas e da exploração animal. 

“Fartura” é vegetal no prato, agroecologia no campo e floresta de pé. Pra isso precisamos de reforma agrária popular, claro. Está no programa de luta do veganismo popular. Mas tem algo que é ainda mais urgente e pode ser feito por todo mundo, nesse exato momento: valorizar a comida que vem da terra. 

Feijão macaça, jerimum de leite, pirão de maxixe, banana, salada de alface e tomate, macaxeira e batata-doce cozidas

A foto acima foi feita na casa da mesma tia, no Sertão, meses atrás. Quando cheguei pra visitá-la dessa vez, ela me recebeu com uma bacia de maxixe, que tinha pedido pro marido colher na roça do irmão. “Tem maxixe e coco pra você fazer aquele seu pirão”, ela falou animada. Meu pirão de maxixe é tão famoso na família que as primas vieram das outras casas pra degustá-lo com a gente. 

O melhor de maio

Estava aqui pensando com meus botões quando me dei conta que hoje é primeiro de junho! Parece que quanto mais intensos os dias, mais rápido eles passam. Aí tive uma ideia: guardar num cantinho esses pequenos momentos de alegria que passam por nós e a gente esquece quase que instantaneamente. O cantinho, no caso, é esse blog. O mês de maio foi rico em emoções e atividades. Muita alegria, pontuada por alguns momentos intensos de tristeza. Ou seja, a vida sendo a vida. Vou reunir aqui os melhores momentos do mês e, quem sabe, começo uma tradição no blog.

O mês começou com uma viagem a outra cidade pra comprar composto pro lote que cultivamos coletivamente nos Jardins Operários (nós = nosso coletivo de solidariedade popular). Nesse lugar você pega a pá e enche os sacos de composto (100% vegetal) com o suor do próprio rosto. O carro é pesado na chegada e em seguida na saída, depois de colocar os sacos de composto dentro, e assim sabemos quantos quilos levamos pra casa (o composto é vendido na tonelada). Éramos três mulheres e em uma hora carregamos a van (emprestada) com 750 kg de composto. O funcionário do local ficou impressionado com a nossa força (ele tinha olhado pra nossa cara na chegada e nos julgou fraquinhas). Respondemos: “Normal, somos lésbicas” e deixamos ele lá sem entender. (Segundo a minha melhor amiga, somos “lésbicas de sítio”. Ela diz que é uma categoria real: a lésbica que tem força no muque, entende de motor de carro a encanamento de cozinha e te tira de qualquer sufoco.)

Comecei a plantar a horta que cultivo no quintal. Sim, sou lavradora de quintal e isso me deixa profundamente feliz. Acontece que no início de maio ainda chovia um pouco e as lesmas sempre invadiam tudo depois da chuva. Eu plantava à tarde, chovia à noite e na manhã seguinte eu encontrava meu brotinho devorado pelas lesmas. (À esquerda: girassol. À direita: tagete). Nesse ponto eu só estava plantando flores e deixei pra plantar os legumes mais tarde, quando as chuvas tivessem parado.

Enquanto isso eu ia protegendo minhas flores como dava, com garrafas PET e outros recipientes de plástico. Felizmente a maior parte sobreviveu.

Plantei dois pezinhos de morango na horta e a primeira rosa do ano desabrochou no jardim.

Pascu seguiu representando sua categoria com orgulho e dormindo em todas as minhas roupas lavadas. As danadinhas das lesmas conseguiram, não sei como, entrar dentro de casa e comer meus brotinhos de couve. Acordei um dia e flagrei essa sapeca com a boquinha cheia de couve (juro!). Eu passei um sermão nela e a coloquei de volta no jardim, explicando que ela podia comer aquilo tudo ali.

Anne foi pra Palestina no início do mês e só volta em junho. Pela primeira vez pude desfrutar da casa só pra mim. Quer dizer, pra mim, Pascu e Satã, os gatos que moram com a gente (na primeira foto Pascu está dormindo no sofá-almofada, Satã está dormindo na poltrona). Faço parte do grupo de pessoas que adora morar sozinha e que curte momentos de solidão, então foi uma delícia. Também faço parte de um outro grupo, o grupo de pessoas casadas que acha que o segredo de uma relação duradoura é ter muitos momentos longe da esposa. Adoro. Aproveitei o tempo extra esse mês pra começar (finalmente!!!) a escrever o manifesto antiespecista que venho prometendo há anos (sim, na foto o computador está com o whatsapp aberto, mas juro que sentei a bunda nessa cadeira e trabalhei assiduamente no manifesto).

A luta pra salvar os Jardins Operários de Aubervilliers da destruição continua (contei tudo no podcast “Jardins da Comuna” e se você ainda não ouviu, corre lá) e dia 8 de maio fizemos a “Festa dos Jardins em Luta”. Nosso coletivo de solidariedade popular (BSP = Brigadas de Solidariedade Popular) tem uma cozinha solidária (que em Francês chamamos de “cantina solidária”) desde o ano passado e fomos nós que cozinhamos toda a comida pra festa, que reuniu cerca de 200 pessoas. Nossa cozinha é 100% vegetal e fui eu mesma que escrevi a mensagem acima (“Em solidariedade política com os animais, nossa cantina é vegana”). Usamos legumes de descarte (é assim que nossa cozinha solidária funciona) e legumes dos lotes, compartilhados pelas próprias operárias e operários que cultivam ali. Foi lindo demais.

Como parte da programação da festa dos jardins, nosso coletivo propos uma oficina de horta em lasanha (técnica pra plantar em camadas, que aprendi com uma das mulheres incríveis que cultivam nos Jardins Operários), pra compartilhar o conhecimento com a galera. Várias pessoas do bairro vieram aprender com a gente e aproveitamos a mão de obra voluntária pra fazer as lasanhas do nosso lote.

Fiz panquecas “americanas” pra minha namorada e o sucesso foi tamanho que repetimos a receita mais duas vezes esse mês. Fiz essa receita gringa aqui, mas adaptada (troquei o “cream cheese” por iogurte de coco e deixei o sal de fora). Ela gosta de comer coisas doces no café da manhã e até eu, que não gosto, adorei essas panquecas. Tanto que um dia fiz só pra mim, pro lanche da tarde. Comi no jardim, lendo o melhor livro que li esse ano. Se chama “As impacientes”, da escritora feminista camaronesa Djaïli Amadou Amal).

A raiva que sinto quando vejo frutas do Brasil pra vender aqui… E algumas vêm de avião! (Certo, isso não faz parte dos melhores momentos de maio, mas eu não queria passar raiva sozinha.) Entenda a minha raiva lendo essa reportagem do Joio e o Trigo. E o melão, que está secando a água no meu estado?

Tem que cuidar muito do mental e do físico pra aguentar o tranco. Então esse mês voltei pra terapia (tinha interrompido no final do ano passado) e passei a praticar ioga com mais regularidade. Isso quando Pascu deixa, claro. Por que gatos adoram tapetes de ioga? Nunca saberemos. Outro grande momento de alegria do meu mês foi descobrir que só tem duas pessoas entre eu e Brigitte Vasallo. Uma grande amiga minha tá namorando um boy que é unha e cutícula da escritora. Ela é o maior crush da minha vida, então imagina aí a minha emoção.

Participei de uma conversa com Nanda e Efe, junto com Ellen, transmitida pela rádio do MST, durante a feira de reforma agrária em São Paulo. Não ficou gravada, porque é rádio, mas foi muito bacana. Fico feliz demais com essa aproximação com o MST. (Não sabe o que o MST tem a ver com veganismo? Descubra aqui)

Na parte doída-triste-alegre-bonita, passei muito tempo com a minha namorada, de quem estou me separando. Nossa relação durou dois anos e o fim está sendo um processo. É um momento de reflexão e de crescimento, mas com muito, muito amor. Um dia escrevo mais sobre isso. Cozinhei bastante pra ela esse mês e essa torta de cebola roxa com azeitona foi um dos pratos que apareceu na nossa mesa em maio. Enquanto navegamos sem bússola pelas águas do fim de um tipo de relação -e começo de outra-, alheios a tudo isso, os morangos crescem na horta.

E falando em horta, lá pelo dia 20 plantei todos os pés de tomate (14 variedades!), jerimum, couve, couve-flor, brócolis, beterraba… Felizmente as lesmas estão se contentando das folhas que coloco ao redor das mudas pra elas e tá tudo indo muito bem.

Na mesma semana plantamos os pés de tomate no nosso lote, nos Jardins Operários. Lá também plantamos abobrinha e berinjela. A gente se reveza, entre camaradas, pra aguar as mudas e pelo menos uma vez por semana nos encontramos lá pra cuidar da manutenção do lote. Queríamos um lote coletivo pra plantar comida pra nós, claro, mas também pra poder compartilhar a alegria de trabalhar a terra com as pessoas que participam das nossas atividades (migrantes em situação de rua, menores refugiados, famílias em situação de vulnerabilidade econômica). Está sendo incrível e olha que ainda nem deu tomate!

Pausa pra admirar as rosas que uma camarada de coletivo, e vizinha, me deu (do jardim dela). Porque queremos pão, mas queremos rosas também. Outra pausa pra admirar o fato de eu estar em processo de fazer as pazes com meu melasma. Tirei essa foto pra mandar pra uma prima, que também tem melasma (temos um grupo de apoio só com nós duas). Repare que estou com protetor solar com cor aqui, então sem essa camada aí as manchas são bem mais escuras. Mas estou aprendendo a aceitar que é isso, mesmo. Processos, processos. A vida é feita de processos. (Por favor, não me recomende tratamentos pra melasma. Eu já tentei vários e estou numa fase em que só quero me amar e ser feliz. Tire o seu ácido do caminho que eu quero passar com a minha pele de mulher de 41 anos que nem sempre se protegeu do sol. Tô bem, me acho top pra minha idade, beijo, tchau.)

Mais pro final do mês, quando a temperatura já tinha aumentado o suficiente, plantei as mudinhas de berinjelas palestinas que minha amiga Draguitsa me mandou de presente (ela mandou as sementes). É uma semente crioula, selecionada pra suportar o calor da Palestina, então não sei se ela vai gostar de crescer na Europa. Estou torcendo que sim. A segunda rosa do meu jardim se abriu e à partir daí foram rosas e mais rosas todos os dias. A primeira coisa que faço quando acordo é ir até a roseira e cheirar uma rosa. Recomendo.

Segui trabalhando no manifesto, com a ajuda de Satã. E colhi minhas primeiras ervilhas tortas (na verdade a primeira colheita da horta esse ano). Elas foram plantadas no final do ano passado, junto com as favas.

Outro grande momento do mês: o lançamento do nosso coletivo antiespecista aqui na periferia. Começamos a nos reunir em setembro do ano passado, uma vez por mês, e dia 27 fizemos o lançamento público em grande estilo. Foi na ocupação onde mora a minha namorada, que também é uma camarada do coletivo, e teve brunch (cozinhado por nós, com comida de descarte), sessão de filmes sobre o antiespecismo e três mesas redondas. Uma sobre antiespecismo e feminismo, outra sobre antiespecismo e ecologia e uma terceira sobre antiespecismo decolonial (eu que organizei essa mesa). Nossa intenção era mostrar que as lutas da esquerda (e a esquerda radical em si) não podem mais se dar o luxo de ignorar a luta antiespecista. Por isso o título: “Nossas lutas não são desertos antiespecistas”. O evento foi um sucesso e fiquei impressionada com a quantidade de pessoas antiespecistas que moram na nossa periferia. Mês que vem vai rolar o segundo encontro e acho que esse é o começo de algo muito importante. (No prato tem: bolo de pera e chocolate, bolo-pudim de damasco e abacaxi, pepino com hortelã, pão, brócolis confitado e tofu mexido com creme de castanha.)

Depois de uma semana inteira preparando o evento de lançamento do coletivo antiespecista, você pensa que descansei? No dia seguinte nossa cozinha solidária tinha que preparar mais uma refeição pra uma atividade nos jardins: o encontro da coalizão nacional dos jardins operários em luta. Nosso grupo recebe muitos pedidos pra cozinhar em eventos militantes e, apesar de estarmos sempre cansadas e ocupadas, quase sempre aceitamos porque é uma oportunidade pra falar de antiespecismo com outros movimentos. Passei a noite do sábado (depois do evento antiespecista) e a manhã do domingo cozinhando com uma camarada do coletivo (que acontece de ser também a minha namorada. Por isso tiramos onda nos chamando reciprocamente de “camarada meu amor”. Porque anarquistas não se levam a sério, mesmo). O almoço foi um sucesso, mas como não tirei foto nem da comida nem do evento, deixo vocês com fotos dos Jardins Operários, suas cabanas de madeira, suas rosas magníficas e as framboesas do nosso lote, que tinham acabado de aparecer.

Já no finalzinho do mês fui levar minha solidariedade pros nossos amigos afegãos, que são entregadores de aplicativo (de bicicleta). Conheci vários quando trabalhei em uma mercearia chique em Paris, ano passado, e como muitos moravam na minha periferia, acabamos nos aproximando. Eles estavam precisando de ajuda pra resolver uns perrengues administrativos e como não falam Francês, fui lá ajudar os companheiros. Que aflição ser refugiada indocumentada, sem falar a língua do país, e com problemas pra resolver no telefone. Depois de horas no telefone com uma ruma de gente que não queria ajudar, fui recompensada com uma refeição preparada por eles (delícia!), toda vegetal, e com um chá de açafrão que um dos companheiros trouxe do Afeganistão. Imagina atravessar meio mundo com essa preciosidade. Ele guarda a garrafinha no quarto e só compartilha com visitas especiais. Me senti realmente muito especial. E o chá é muito gostoso!

A primeira colheita de favas da horta. Comi temperada com um punhadinho de coentro, também da minha horta. Eu amo favas. Profundamente.

Comi os primeiros morangos da horta. Segui colhendo as folhas plantadas (acelga e alface) e as que nascem de maneira espontânea no jardim (dente-de-leão, hortelã) a cada refeição. As primeiras flores que plantei pras abelhas se abriram. Coloquei urtigas (do nosso lote, nos jardins operários) em uma quantidade enorme de pratos. E tiveram mais momentos de alegria, outros de tristeza. Coisas mais ou menos íntimas, mas esse post já está longo demais. Espero que o mês de maio tenha sido florido e gostoso pra você também.