Creme gelado de jaca com tapioca

Ela é aquela fruta que não deixa indiferente: ou você ama, ou detesta. Eu acho uma das coisas mais maravilhosas que esse planeta nos dá. Carlinhos, um companheiro quilombola que conheci recentemente, na Bahia, me contou que quando era pequeno comia jaca com farinha no café da manhã, depois comia jaca com farinha no almoço e, por último, lanchava jaca à tarde mas dessa vez sem farinha. Já minha amiga Mari contou uma vez que, se tivesse poderes mágicos, faria a jaca desaparecer do mundo.

Se você pula no bloco das apaixonadas por jaca, eu tenho um mimo e tanto pras suas papilas. Se você detesta, feche esse janela e volte aqui daqui a alguns dias, quando terá uma receita mais palatável pro seu gosto. E se, por algum acaso, você for uma das raras pessoas que acha o sabor da jaca gostoso, mas não come porque a textura te dá aflição, ou medo de engasgo, sua relação com jaca vai mudar agora e garanto que vai bastar uma colherada desse creme pra você se encantar.

Veja que curioso. Há anos faço um creme de jaca bem simples, que inventei pra resolver dois problemas. O primeiro era dar cabo de uma jaca, fruta grande e generosa, sem desperdiçar nada. Na minha família somos poucas a gostarem de jaca e precisaríamos de alguns dias pra conseguir comer uma jaca inteira. Então passei a congelar a jaca (descaroçada) em porções pequenas, pra fazer vitamina ou creme. Isso sanou outro problema pra mim: jaca, embora dona do meu coração, é doce demais pro meu paladar. Eu como ela pura, mas só consigo comer alguns gominhos, justamente pelo excesso de doçura. Já a jaca congelada e batida com um pouco de leite vegetal (sempre uso o de coco caseiro), fica um pouco menos doce. Mas ainda é bastante doce pra mim e é aí que entra a receita de hoje.

Há tempos eu pensava em acrescentar algo mais pra diluir um pouco o arroubo de doçura da jaca madura, mas o quê? O sabor intenso da jaca faz com que ela seja uma fruta difícil de combinar com outros ingredientes, e eu queria manter a integridade do sabor dela, pois é isso que me faz amar tanto essa fruta.

Estou voltando de uma semana de militância no sul da Bahia, no assentamento Terra Vista. E lá aprendi várias receitas típicas que não vejo a hora de reproduzir em casa. Uma delas foi o cuscuz de tapioca. Ainda não testei, então só vou poder compartilhar a receita mais pra frente. Porém o ingrediente principal do cuscuz de tapioca, a farinha de tapioca baiana, me deu uma ideia. E se eu usasse essa farinha de tapioca no meu creme de jaca? Testei ontem e o resultado superou minhas expectativas.

Algumas linhas pra explicar esse ingrediente mágico, pois tem muita confusão com os nomes até mesmo de um estado pra outro dentro do Nordeste. A goma de mandioca (a fécula) é hidratada e usada pra fazer o que aqui no RN chamamos de “tapioca”. Ensinei a fazer tapioca, e a conservar a goma fresca, aqui. “Farinha de tapioca” também é feita à partir da goma da mandioca, mas ela é torrada (num tacho), o que a faz estourar levemente e ficar durinha. O processo de fabricação é o mesmo da “farinha de tapioca” que encontrei no Pará, só que a irmã nortista deve ficar mais tempo no fogo, pois o produto final é diferente: mais flocada, leve, como uma pipoca. Essa farinha da foto acima, que comprei na Bahia, era mais miúda e durinha, de textura diferente da “farinha de tapioca” do Norte. Enquanto a farinha de tapioca do Norte está pronta pro consumo (só colocar em cima do açaí e ser feliz), a farinha de tapioca baiana precisa ser hidratada no leite de coco quente antes da degustação.

Sobre a receita, a farinha de tapioca hidratada no leite de coco fresco misturada com a jaca batida (congelada) com mais um tiquinho de leite de coco é uma combinação tão deliciosa que acabou de entrar no meu top 3 de sobremesas preferidas. Aproveite que ainda é época de jaca e se farte! E além do sabor maravilhoso, essa sobremesa só usa 3 ingredientes e não tem açúcar (só o naturalmente presente na fruta).

PS Pesquisando rapidamente na internet antes de postar a minha receita aqui, o que faço quase sempre pra ver se outras pessoas tiveram a mesma ideia que eu, fiquei chocada ao descobrir que o que o pessoal chama de “creme de jaca” ou “mousse de jaca” sempre leva leite condensado! Jesus me abane! A danada já é doce de repunar, como dizemos na minha terra, e enfiam leite condensado nela? E ainda acrescentam creme de leite, porque fomos muito bem doutrinadas pra acreditar que laticínio em sobremesa nunca é demais. É, o colonialismo alimentar e o projeto de dominação das nossas sobremesas pela Nestlé seguem firmes e fortes.

Creme de jaca com tapioca

Se não encontrar farinha de tapioca (da usada na Bahia pra fazer mingau, cuscuz e bolo de caroço), substitua pelo sagu quebradinho que também é chamado de “tapioca”. Mas essa parte da receita, embora a deixe mais interessante e menos doce, não é essencial. Você pode fazer só o creme de jaca, que por si só já é uma delícia.

Jaca madura (idealmente jaca mole)

Leite de coco fresco (receita aqui – pode substituir por leite de castanha)

Farinha de tapioca (leia instruções e sugestão de substituição acima)

Resumo pra quem tem muita autonomia na cozinha e sabe trabalhar a farinha de tapioca: bata a jaca congelada com o mínimo de leite de coco possível e sirva imediatamente acompanhada (ou não) da farinha de tapioca hidratada no leite de coco, gelada pra não esquentar seu creme de jaca.

Instruções detalhadas: Abra a jaca madura, retire os gomos, descarte os caroços (ou cozinhe e coma) e congele a polpa, em porções pequenas. Fica mais fácil bater assim, então mesmo se estiver planejando fazer essa receita pra várias pessoas, congele porções pequenas. Espere a jaca congelar completamente antes de fazer o creme.

Aqueça um pouco de leite de coco (caseiro) ou leite de castanha, e quando estiver bem quente desligue o fogo e acrescente a farinha de tapioca. A proporção é, mais ou menos, 2 colheres de sopa (rasas) de farinha de tapioca pra 1/2 xícara de leite de coco. Usei medidas caseiras, não colher/xícara medidora. Vai parecer muito leite pra pouca farinha, mas lembre que ela vai hidratar e absorver o líquido. Cubra (com um prato ou papel filme) e deixe hidratar por meia hora, mexendo de vez em quando pra que não forme blocos sólidos no fundo. Se estiver usando sagu quebradinho (“tapioca”), ferva junto com o leite e deixe cozinhar um minuto antes de apagar o fogo, cobrir e deixar terminar de hidratar, sempre mexendo de vez em quando pra ficar homogêneo. Quando a farinha de tapioca (ou o sagu quebradinho) estiver completamente hidratado, a textura final deve ser cremosa. Acrescente mais leite, se for preciso. Transfira pra geladeira (vai continuar firmando no frio). Reserve.

Bata a jaca congelada com um pouquinho de leite de coco fresco, só o suficiente pra conseguir bater. Quanto menos leite você usar, mais encorpado vai ficar o seu creme, então use o mínimo possível. Se preciso, desligue o liquidificador e use uma espátula pra mexer a jaca antes de continuar batendo.

Sirva imediatamente, acompanhado do creme de farinha de tapioca gelado. Você pode intercalar as duas preparações no copo, como fiz na foto (e colocar os copos montados no congelador até a hora de servir), ou simplesmente colocar uma colherada da farinha de tapioca hidratada no meio da cuia com creme de jaca.

4 comentários em “Creme gelado de jaca com tapioca

  1. Oi amada
    Teus textos maravilhosos, sempre nos trazendo aprendizados locais, descolonização do paladar e a possibilidade de encontrar um pedacinho do céu nas tuas receitas. Essa eu gostei muito, assim que possível que tiver com jaca( madura) em mãos, vou preparar a receita.
    Fiquei muito curiosa sobre o bolo de caroço que você citou no texto. Nunca tinha ouvido falar nele, eu adoro qualquer receita com tapioca. Fiquei obcecada e pesquisei várias receitas do bolo de caroço e sua história. Bom sobre a história achei foi quase nada, o que me deixou bem triste, e as receitas levam ovos e manteiga, fiquei me perguntando se é assim mesmo esse bolo. Ou será que sua receita original não leva nada disso. Se você souber alguma coisa sobre esse bolo e quiser compartilhar, eu adoraria mesmo saber, e vindo de ti sei que as fontes são confiáveis ❤️. Amo teu trabalho, obrigada por existir.

    1. Sobre o bolo de caroço, eu só ouvi falar e tive a mesma decepção que você quando pesquisei receitas na internet:/ Mas claro que já decidi que preciso fazer uma versão vegetal. Não vai ser difícil porque a tapioca já dá muita liga (não entendi a necessidade de colocar ovo nele). Mas como nunca provei o misterioso (pra mim) bolo de caroço, acho que vou esperar pelo menos ver um lá na Bahia pra entender a textura dele antes de tentar fazer a minha versão. Mas talvez você não tenha que esperar muito, porque já estou de viagem marcada pra Bahia novamente daqui a poucas semanas 😉 Aguarde.

  2. Ufa, finalmente estou conseguindo digitar uma resposta! Desde o post do pirão que essa função do blog se fazia de surda pra mim e simplesmente não abria a caixinha de digitação, não importava quantas vezes eu selecionasse essa opção! Mas o lado bom dessa demora: deu tempo de fazer as DUAS últimas receitas! Venho atestar que, de fato, são um desbunde! Eu já era adepta do pirão, mas dessa vez consegui encontrar coentros mais fresquinhos! Mas a jaca… Nunca tinha comido ela doce. Eu sempre cato jaca verde, pra desfiar e usar em receitas salgadas. Mais pelo desejo alheio de mimetismo, pq na verdade eu acho desfiada a mais desinteressante das texturas… Mas esse docinho!! Que delícia! Será que podemos concluir que TUDO fica bem com leite de coco fresco? Obrigada! Dito isso, enquanto escrevia essa resposta, fazia minha papa matinal de aveia árabe. O rio de janeiro não amanheceu fazendo 40° então me parece uma boa desculpa. Também tenho um extenso relatório pra preencher hoje e estou certa que só a papa de aveia árabe pode botar meus miolos pra funcionar. Um abraço!

    1. Poxa, Maya, sinto muito pelo meu blog ficar ocasionalmente boicotando seus comentários. Você é a segunda pessoa que me diz que nunca tinha comida jaca madura (a primeira nem sabia que jaca ficava doce depois de madura!). Que bom que minha receita te fez comer ela madura, pois seria uma pena provar essa fruta apenas na versão verde/salgada (que eu acho bem sem graça). E sim, tudo fica bom com leite de coco fresco 😀

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