Ano passado, durante os meses de outubro e novembro, estive na Amazônia fazendo um projeto multimídia com Anne, a talentosa fotógrafa que eu tenho a honra de chamar de esposa. São muitas camadas de material coletado (entrevistas, sons, fotos, vídeos, anotações) e de experiências, que vai decantando conforme os meses passam e vamos publicando aos pouquinhos (por enquanto em jornais e revistas aqui na Europa). Aqui no blog gostaria de tratar de uma parte da viagem que tem tudo a ver com a minha pesquisa pessoal sobre cultura alimentar, que ainda é o tema principal do Papacapim. Como o assunto é vasto, vou publicar por partes.
Comecemos pela castanha, a rainha absoluta da floresta. Tanto pela majestosa castanheira, uma árvore que pode atingir 50 metros de altura (um prédio de 16 andares) e viver 5 séculos, quanto pela riqueza da castanha em si. Estou falando aqui da fonte de renda de vários povos da floresta e da sua presença na culinária tradicional do Acre.
Momento polêmico: como chamar o que ficou conhecido fora da Amazônia como “castanha do Pará”? Só quando cheguei no Acre e me vi rodeada de castanheiras me dei conta que essa castanha é encontrada na Amazônia, não apenas no Pará. É mais lógico, e mais justo, chamar de “castanha-da-Amazônia”. Me oponho à “castanha-do-Brasil”, porque Amazônia vai muito além do território conhecido como Brasil. Correndo o risco de ofender minhas amigas paraenses, não só passei a chamar de “castanha-da-Amazônia”, como te incentivo a fazer o mesmo. (A menos que eu esteja no Pará, aí volta a ser “castanha-do-Pará” pra mim.) E se você se pergunta como o pessoal do Acre chama, chamam apenas de “castanha”. Faz sentido, pois aquele é o território dessa castanha. No RN, terra de cajueiros, nós também chamamos o que é conhecido fora do Nordeste como “castanha de caju” simplesmente de “castanha”.

Eu tive a honra de entrevistar o seringueiro Severino Silva, um dos anciãos da Reserva Chico Mendes, e ele me disse: “O leite de castanha era o tempero do seringueiro.” Seu Severino contou que era costume usar o leite de castanha pra preparar tudo, do feijão aos animais de caça, passando por vegetais (o jerimum com leite de castanha é particularmente apreciado). Saiba que a primeira vaca chegou no Acre em 1971, até então não existia pecuária no estado. Consequentemente, não existia leite de vaca naquele território. Além de preparar tudo com leite de castanha (segundo seu Severino, “a única coisa que não presta fazer com leite de castanha é galinha”), também se extraía o óleo da castanha pra cozinhar, embora, por ser mais trabalhoso, o mais comum era usar o leite, deixar apurar bem e isso servia como a fonte de gordura do prato preparado. Tive a sorte de encontrar óleo de castanha em Rio Branco e achei o sabor deliciosamente delicado. Uma maravilha pra temperar saladas (não usaria algo tão precioso pra cozinhar).
E o sabor da castanha fresca? Só depois de ter visitado a Amazônia descobri que castanha-da-Amazônia, quando fresca, tem uma textura leitosa similar ao coco maduro (aquele que usamos pra fazer leite). Confesso que desde então penso nelas quando mordo uma castanha desidratada. Sim, porque as castanhas que compramos e consumimos Brasil e mundo afora foram desidratadas antes de serem embaladas e comercializadas. Mas essa iguaria vai continuar reservada aos povos da floresta, ou quem decidiu morar por lá pois quando fresca, ela se estraga muito rápido.
Sabe o que também é originário da Amazônia? O cacau. (Como ele subiu até o México e se tornou moeda de troca e bebida popular entre os Astecas, eu ainda não pesquisei.) E quando estive no Reserva Extrativista Chico Mendes, descobri o “cacauí” (Theobroma speciosum), um parente do cacau e do cupuaçu. Ele é menor do que o cacau e o sabor, embora um pouco mais ácido e mais floral, é bem próximo do cacau. Pelo menos foi o que minhas papilas me disseram enquanto eu enchia a barriga de cacauí, mas eu teria que fazer uma comparação lado a lado pra confirmar essas impressões. As pessoas não dão muita bola pro pobre cacauí, que cresce de maneira selvagem na floresta, mas eu fiquei absolutamente encantada pensando nas sobremesas incríveis e nos chocolates que poderiam ser feitos com ele. Meu novo sonho é voltar pra Resex e trabalhar as potencializadas gastronômicas da floresta ali, junto com a população local.
Eu viajo com os olhos, ouvidos e papilas abertas e vou provando tudo que é comestível ao meu redor (animais são parentes, não comida). Fernando, que trabalha na Resex e aceitou que a gente o acompanhasse durante quatro dias lá dentro, vendo que eu queria provar tudo, fazia questão de compartilhar comigo os tesouros da floresta. Frutas (foi ele que me deu o primeiro cacauí) e coisas que eu nem imaginava que poderiam ser comestíveis! Desconfio até que ele me fez comer umas coisas só pra tirar onda com a minha cara, como as sementes de sumaúma (foto abaixo à direita). Mas eu adoro essas aventuras, então achei tudo maravilhoso.
Um dia ele me deu um fruto do jatobá (foto abaixo à esquerda) e disse que tinha comido muito aquilo quando era criança. Sim, jatobá, aquela árvore grande! Uma pena eu não ter feito uma foto pra mostrar como é por dentro. Fiquei surpresa com a textura (como um pó compactado e levemente úmido) e o sabor (muito doce e levemente enjoativo) e imediatamente pensei…nas possibilidades gastronômicas daquele fruto. Pra ajudar a entender a peculiaridade do jatobá, deixa eu dizer que se assemelha (sem ser idêntico, longe disso) a um leite em pó doce. Pensei: pudim de jatobá, sorvete de jatobá, doce de leite de jatobá…
Outra coisa que eu descobri no Acre, mas que existe em outras partes do Brasil, é macaxeira amarela (macaxeira manteiga). Que delícia! Cozida e sem nada além de sal ela já era uma delícia, mas grelhada com um pouco de gordura (azeite ou, como na foto abaixo, uma manteiga vegana à base de óleo de coco e palma) fica um desbunde. Um dia servi essa macaxeira cozida com cogumelos salteados e foi um grande sucesso. Se eu tivesse um restaurante colocaria esse prato no cardápio, com certeza.
Cuscuz com banana foi outra coisa que descobri no Acre, graças à minha amiga Cibele (que é de Sergipe, mas se mudou pra Rio Branco alguns anos atrás), mas que é consumido em outras partes do Brasil. Gostei tanto que postei a receita aqui ainda quando estava em Rio Branco. Abaixo uma foto minha em pleno trabalho de fotografia, pra provar de uma vez por todas que quem faz as fotos do blog sou eu, mesmo.

Abaixo algumas refeições que fiz em Rio Branco, com pratos que pretendo reproduzir em casa. 1-Kibe de macaxeira recheado com jambu (que na verdade é um croquete, mas independente de como você chamar, é uma delícia) 2- moqueca de banana da terra com pirão (menos colorida do que as que fazemos no Nordeste, mas adorei a ideia de usar uma parte do caldo pra fazer pirão) 3- ceviche de caju (como nunca pensei nisso antes? e olha que nem tem muito cajueiro no Acre, já que essa árvore é nativa do meu território e se dá melhor por lá) 4- purê de banana da terra e 5- tacacá com lentilhas. Esse último prato é criação da chef Rafaella Brozzo, que comanda a cozinha do restaurante do Tribunal de Justiça e que também fez o ceviche de caju. Eu sei que não é ortodoxo e entendo se houver reações negativas da parte das amazônidas lendo esse blog.

O Acre está bem longe de ser um lugar que ganharia um selo “vegan friendly”. Não tem nenhum restaurante vegano na capital, Rio Branco (muito menos nas cidades menores), e o que o pessoal me indicava como “comida tradicional” era sempre churrasco de vaca. Vaca, uma comida tradicional na Amazônia? A primeira vaca chegou no Acre em 1971, lembra? Então claro que o “tradicional” aqui é bastante novo. Mas o fato é que o estado está colonizado (e escolhi essa palavra intencionalmente) de restaurantes-churrascarias.
Porém eu trouxe essa informação aqui pra dizer que comida vegetal não precisa de selo “vegano” nem é exclusividade de restaurantes “veganos”. Mesmo nos restaurantes onde a especialidade era carne de animais (domesticados, trazidos pelos colonizadores, explorados como ferramenta de expansão/roubo territorial e de destruição da floresta – o tempero do churrasco no Brasil), ainda assim nós encontramos comida vegetal suficiente pra nos alimentar. Sempre tinha um feijão sem animais, verduras cozidas, verduras cruas e cereais (arroz e/ou macarrão). E até alguma fruta fresca (na parte das saladas cruas), que servia de sobremesa pra mim. Claro que estou falando aqui de restaurantes no peso (self-service), que sempre salvam as veganas em viagem.
Anotem aí. Comida “vegana” é feijão, arroz, farinha, verduras, frutas e tudo mais que sai da terra. E isso (ainda) é encontrado na maior parte dos lugares que servem comida no peso. Quem acha que precisa de um(vários) prato(s) com etiqueta “vegana” pra poder “ser vegana”, não entendeu do que se trata o veganismo.
Os três pratos abaixo são exemplos perfeitos disso. Comi o primeiro num restaurante meio chique em Rio Branco (reparei que quanto mais chique o restaurante, menos opções 100% vegetal). O segundo veio de uma churrascaria de bairro, também em Rio Branco. O terceiro prato foi degustado em Brasiléia, quando estávamos indo de Rio Branco pra Reserva, num restaurante bem simples. Como sempre, o foco principal do restaurante era carne de animais domesticados, mas mesmo assim tinha uma parte “buffet” com opções suficientes pra compor uma refeição vegana.

Também tive a honra de ser alimentada por pessoas acreanas, que vivem na Reserva, e entendi muita coisa compartilhando a mesa com elas. Abaixo, um jantar na casa de uma família que pratica agroecologia, além da coleta da borracha, e produz boa parte do que consome. Macaxeira manteiga, feijão, verduras e a farinha de mandioca deliciosa daquelas bandas. E às vezes o almoço era só feijão com arroz (as pessoas não veganas com quem estávamos comeram ovo frito também) e tudo bem.
Percebi que as pessoas que comem verduras são as que ainda as plantam. Me parece lógico pra quem mora na floresta, longe de feiras e sacolões. Já as pessoas que passaram a criar animais pro abate foram deixando as roças de lado e, consequentemente, as verduras sumiram do prato. Triste.


E um dia, quando já não tem mais nada pra comer e estávamos todas azul de fome, a gente parou embaixo de uma mangueira carregada, na beira do caminho. O chão estava coberto de frutas e ainda conseguimos tirar algumas (mais firmes) do pé. Manga, minha fruta preferida. Num dia de muita fome, elas fizeram a alegria do nosso grupo e ficaram gravadas na minha memória como algumas das mangas mais saborosas que já comi na vida.
Agora deixa eu falar um pouco dos horrores alimentares que vi por lá. Veja as fotos abaixo e se perguntem comigo: em que ônibus subimos pra chegar nesse ponto? Que obsessão com proteína (e creatina) é essa que precisam pegar algo tão importante na nossa cultura alimentar, a tapioca, e transformar em ultraprocessado? Faz meses que fiz essas fotos e ainda me revolto quando as vejo.
Algo que me chocou bastante no Acre (e olha que muita coisa me chocou no Acre) foi descobrir que todas as cozinhas são turbinadas no glutamato monossódio (“Ajinomoto”, como é mais conhecido entre nós). Lembra que um dia o leite de castanha-da-Amazônia já foi o “tempero do seringueiro”? Pois hoje é o tal do glutamato. Segundo minhas fontes locais, o glutamato é presença obrigatória até nos mais tradicionais tacacás. E você tinha ficado chocada com as lentilhas no tatacá da chef Rafaella…
Também fiquei decepcionada com a qualidade das frutas que encontrei nos mercados. Cibele me explicou que as frutas não nativas (que não crescem na Amazônia) vem de longe, o que faz sentido. Encontrei até melão de Mossoró, no RN (meu estado). Uma pena as frutas locais não serem mais facilmente encontradas (cacauí nem é comercializado!).
E já que o assunto é fruta, uma nota sobre açaí. Que decepção! O açaí da foto abaixo é puro, que eu recheie com algumas coisas (tapioca, castanha, banana e paçoquinha), o que não é tradicional, eu sei. Foi um lanche rápido que fiz na casa da amiga que estava nos hospedando. Mas a decepção não veio desse lanche. Você achava que toda a Amazônia comia o açaí tradicional, não adoçado e acompanhado com farinha? Descobri que a maior parte do açaí consumido no Acre já é vendida misturada com leite condensado, creme de leite e gordura hidrogenada, chamado de “açaí cremoso”. Olha o que o colonialismo alimentar, e a ditadura dos laticínios (palmas pra Nestlé e seu projeto de dominação), fizeram com a cultura alimentar nessa parte da Amazônia!

Pra não terminar esse post com algo tão negativo, deixa eu falar dos óleos da Amazônia. Eu só conheci alguns (buriti, patauá, tucumã, andiroba, copaíba, além da castanha-da-Amazônia) e fiquei encantada. Muitos (todos?) são medicinais e vários tem um potencial culinário incrível. Fiquei pensado que num país onde tem tantas possibilidades de óleos deliciosos, não faz sentido nenhum seguir priorizando o azeite de oliva, que é importado. Um dia eu volto pro Acre pra aprender mais sobre tudo isso e, quem sabe, ajudar a levar essas possibilidades pra cozinha fora de lá.

Volto em breve pra falar das comidas amazônidas nos outos lugares que visitei e com a receita da minha versão de X-caboquinho. Só de lembrar fico com água na boca.