Bolinho salgado de amendoim e urtiga

Tenho consciência que o nome dessa receita vai dar medo em muita gente, mas tem duas lições incríveis nessa prato, então bora lá.

Já falei nesse post que 1-urtigas são comestíveis e 2- que são uma delícia. Também falei que elas são riquíssimas em ferro e vou acrescentar agora que elas são extremamente ricas em proteínas, comparada às outras plantas. Corre à boca miúda que elas tem duas vezes mais proteína que a idolatrada soja. Porém como a urtiga, por ser uma folha, é levinha, pra conseguir competir com a soja você vai precisar comer um arbusto de urtiga inteiro. Mas eu só queria compartilhar esse informação pra você brilhar nos jantares mundanos com seu conhecimento sobre plantas comestíveis, mesmo. Não compactuo da proteinolatria e carência de proteína não deveria ser uma preocupação pra você, nem pra galera vegana em geral. Coma urtiga porque é gostoso, nutritivo e um alimento gratuito.

Da esquerda pra direita: alecrim, urtiga branca (com flores) e melissa.

Expliquei no post do pesto de urtiga como colher e cozinhar essa planta (sim, é seguro) e não vou repetir aqui. Dá uma olhada lá e aproveita e pega a receita do pesto. Na receita de hoje usei urtiga branca (Lamium album) que é da família da urtiga (visualmente e gustativamente são praticamente idênticas), mas não queima. Sim, uma urtiga que não queima. Hoje fui no lote que cultivamos coletivamente nos Jardins Operários aqui da minha cidade e colhi algumas pra comer no almoço. Ando apaixonada por urtigas e coloco em tudo (sopas, grãomeletes), mas hoje decidi inovar e fazer bolinhos salgados com ela. E aqui vem o segundo aprendizado do post de hoje.

Sabia que com um pedaço de pão velho, uma colherada de pasta de amendoim e alguns temperos dá pra fazer bolinhos supimpa? A inspiração veio de uma receita de bolinho de pão e nozes, que vi num site de receitas belga. Fiz mais ou menos como o site mandava e ficou muito bom. E tudo que acho muito bom, eu quero compartilhar aqui no blog. Só que pra quem está no Brasil, nozes é algo caro e difícil de achar. Sem falar que é importado. Será que não dava pra fazer usando outra oleaginosa?

A resposta é “sim”. Usei sementes de girassol no lugar das nozes e ficou supimpa. Mas resolvi ir mais longe no esforço de deixar essa receita acessível. Qual ingrediente da categoria das oleaginosas é o mais abundante e barato no Brasil? Amendoim. Que inclusive, é nosso! Então fiz umas adaptações, reduzi ao máximo os ingredientes e o resultado ficou ainda melhor do que a receita original. Desde então sempre que tem um pedaço de pão envelhecendo, faço bolinhos.

(Eu sei que botanicamente falando amendoim é uma leguminosa, ou seja, é um tipo de feijão. Mas como é gorduroso como oleaginosas e usamos da mesma maneira que oleaginosas, decreto que culinariamente falando, amendoim é oleaginosa. E tenho dito.)

O que me encantou nessa receita é que usando basicamente 3 ingredientes (pão velho, pasta de amendoim e um vegetal – aqui, urtiga) você faz algo muito saboroso em pouquíssimo tempo. É receita de carestia, quando só tem um pedaço de pão dormido na cozinha, um vegetal triste na geladeira e um fundo de pasta de amendoim no armário. Mas apesar de humilde, o resultado ultrapassa as expectativas. Meu tipo de receita preferido.

E se você usar urtigas, o que recomendo demais, o sabor será incrível! Pode confiar.

Come urtiga, bem.

Bolinho salgado de amendoim e urtiga

Quanto de pão dormido é necessário? O tanto que você tiver. À partir dessa informação você dosa os outros ingredientes. Lembrando que os ingredientes aparecem em ordem decrescente, ou seja, o ingrediente usado em maior quantidade aparece primeiro e o usado em menor quantidade, por último. Os três ingredientes essenciais são pão + legume + pasta de amendoim, o resto é tempero e pode ser adaptado (embora eu recomende muito usar molho de soja, pois fica uma delícia com amendoim). Se quiser usar coentro ou salsinha fresca, maravilha! Se só tiver alho e shoyu, dá certo também.

Pão dormido

Urtigas frescas (ou outro legume – veja dicas no final da receita)

Pasta de amendoim (pura, sem açúcar)

Molho de soja (shoyu)

Alho

Raspas e suco de limão

Ervas (usei alecrim fresco porque era o que eu tinha, mas tomilho e orégano secos também são ótimo aqui)

Pimenta preta

Ferva as urtigas por alguns segundos, pique bem e esprema pra extrair a maior parte do líquido (como expliquei nesse post). Usei uma parte de pão pra uma parte de urtiga. (OBS Como dessa vez usei urtiga branca, que não queima, não cozinhei antes e bati crua junto com o pão).

Corte o pão dormido em pedaços médios e coloque no liquidificador junto com as urtigas cozidas e o alho. Bata (ou pulse) até ficar bem triturado, como uma farofa molhada. Transfira pra uma tigela e acrescente a pasta de amendoim (veja a foto acima pra ter uma ideia da proporção) e os temperos: raspas e suco de limão, molho shoyu, ervas e pimenta preta. Tudo a gosto. Misture bem com as mãos. Prove e corrija o tempero, se necessário. A massa deve ficar bem colante e formar bolinhas sem dificuldade quando apertada entre as mãos. Cuidado pra não ficar molhada demais: acrescente os ingredientes líquidos com cuidado (shoyu e suco de limão). Se ficou muito seca, junte um bocadinho de água.

Pra quem fica nervosa se não tiver medidas, usei 1 colher de sopa (não muito cheia) de pasta de amendoim pra mais ou menos 2 xícaras da mistura pão+urtiga, mais 1 colher de sopa bem cheia de shoyu, 1 dente de alho pequeno, raspas de meio limão galego e umas 2 colheres de chá de suco de limão. Não precisei acrescentar água pra dar o ponto. Essa quantidade deu 6 bolinhas, o suficiente pro meu almoço.

Faça bolinhas com essa massa (umedeça as mãos com água, pra não grudar) e frite em uma frigideira antiaderente (eu nem uso óleo, pois a gordura da pasta de amendoim é suficiente pra dourar os bolinhos – mas só funciona se a frigideira for realmente antiaderente!). Você também pode assar no forno. A vantagem é que dá pra fazer uma quantidade bem grande de uma vez, mas a desvantagem é que as bolinhas ficam mais secas (nada dramático).

São uma delícia quentes, mas guardei as bolinhas assadas na geladeira, em um vidro fechado, por vários dias e também achei gostoso frio. (Na verdade eu abria o pote e comia gelado, mesmo).

Dica: Não tem urtiga? Use couve picada ou cenoura ralada (ambas cruas). Bata a couve com o pão, como fiz com as urtigas. Mas se usar cenoura ralada, deixa pra acrescentar na tigela, junto com os temperos. Já fiz com cogumelos (champignons), salteados antes de entrar na massa, e ficou incrível (foto abaixo – aqui as bolinhas foram assadas no forno).

Omelete de feijão mungo

Dias atrás minha amiga Bárbara me mandou uma mensagem contando que tinha feito omelete com ervilha seca e que tinha ficado muito feliz com o resultado. Há tempos eu andava pensando em fazer omelete com outra leguminosa, seguindo a técnica que uso pra fazer omelete de grão de bico (vulgo grãomelete). A mensagem dela me deu ainda mais vontade de explorar novos caminhos, mas ao invés de usar ervilha seca, decidi usar feijão mungo.

Se você é nova no veganismo e/ou se tem pouca intimidade com a culinária vegetal, talvez o parágrafo acima tenha te deixado intrigada. “Por que danado veganas querem fazer omelete usando feijões ao invés de ovo?”, você deve estar se perguntando. A resposta é: porque é uma delícia! Quando você sai do padrão de culinária especista, que vê animais e os produtos do seu corpo como alimentos, abre-se um mundo de possibilidades na cozinha. Feijão pode ser a base de omeletes (grãomelete, feijãolete, chame como quiser) saborosos, nutritivos e facílimos de preparar. E por que chamar isso de “omelete”, se não tem ovo? Eu acredito que usar palavras que denominem receitas à base de animais e seus derivados pode ser útil pra te informar que a técnica de preparo (como no caso de queijos vegetais) ou a maneira de consumir (como no caso desse omelete) são as mesmas. Eu chamo de “omelete de feijão” pra sinalizar que a gente cozinha essa preparação como um omelete, que pode acrescentar os mesmos ingredientes que usaríamos pra incrementar um omelete de ovo e que consumimos como um omelete (acompanhado de vegetais no almoço / dentro de um pão no café ou jantar / puro, como um lanche rápido…).

Escolhi usar feijão mungo aqui por duas razões. Eu moro na periferia norte de Paris, onde tem uma comunidade indiana importante. Aqui tem várias mercearias com produtos indianos, super acessíveis e sempre encontro feijão mungo nesses lugares, já que ele é bastante utilizado na culinária indiana. A segunda razão é que tem alguma propriedade culinária no feijão mungo que faz com que ele se comporte um pouco como ovo. Não por acaso os produtos industrializados que se vendem como “ovos vegetais” geralmente usam proteína de feijão mungo. Eu queria ver se dava certo fazer omelete em casa, usando simplesmente o feijão inteiro, como já fiz com o grão de bico tempos atrás.

Trago boas novas! Não só é possível, como é muito fácil. O sabor é bem suave, principalmente se você coar a mistura antes de cozinhar (explicações na receita abaixo) e isso também é positivo. De um lado, esse feijãolete vai agradar os paladares cheios de melindres. Aqueles que foram formados sem muito contato com vegetais e tendem a rejeitar a comida da terra. E, por outro lado, o sabor discreto te convida a ser criativa e acrescentar outros ingredientes, pra incrementar a receita. E a textura realmente é mais próxima do omelete de ovo que a minha (amada, idolatrada, salve, salve) receita de grãomelete. Sabe aquela coisa ligeiramente gelatinosa e elástica do ovo? Você vai encontrar algo próximo aqui.

Um dia tentarei a versão de omelete vegetal de Bárbara, embora no momento eu esteja tão animada com a versão com feijão mungo que já repeti a receita 5 vezes em duas semanas. Mas agora que essa porta se abriu, vejo inúmeras versões de omelete de leguminosas no futuro.

Omelete de feijão mungo (feijãolete)

Feijão mungo cru (usei o grão partido aqui, mas funciona igualmente com o grão inteiro)

Água, sal e tempo

Óleo/azeite pra cozinhar

Opcional:

Cebola

Alho

Coentro

Páprica defumada

Pimenta preta

Deixe o feijão mungo de molho na água fria por pelo menos 12 horas (de um dia pro outro). Eu já deixei de molho por 24h e 48h (trocando a água do molho uma vez) e nos três casos dá certo. Aumentar o tempo da demolha deixa o grão mais digesto, então escolha de acordo com a sua sensibilidade pra digerir feijões.

Escorra o feijão demolhado, enxague rapidamente e bata no liquidificador com água apenas suficiente pra cobrir tudo (sem passar). Bata por alguns segundos, até o feijão se transformar em um líquido encorpado e liso (esfregue entre os dedos). Use uma peneira fina pra coar a mistura, separando as cascas e parte da fibra. Se quiser fazer seu omelete sem coar, fique à vontade. Saiba apenas que a casca deixa essa receita mais granulosa e com um sabor mais pronunciado, o que não é necessariamente desagradável (mas eu prefiro coar). A espessura da massa deve lembrar uma vitamina de banana (nem espessa demais que pode ser comida de colher, nem líquida como um leite).

É nesse momento que você pode incrementar seu omelete. Aqui eu juntei cebola roxa em tiras finas, alho picado, coentro, páprica defumada e pimenta preta. Misture tudo na massa e não esqueça de colocar sal a gosto.

Aqueça um pouco de óleo (ou azeite) em uma frigideira antiaderente. Quando estiver bem quente, despeje um pouco da mistura de feijão mungo (uma camada fina é melhor do que uma camada muito espessa). Cozinhe em fogo médio até o omelete se formar e for possível virar sem que ele se quebre. Baixe o fogo e cozinhe mais alguns minutos do outro lado. Quando estiver bem dourado dos dois lados, está pronto.

A massa de omelete (feijão mungo demolhado, triturado e coado) pode ser conservada por vários dias na geladeira. Sempre que quiser fazer um omelete, retire a quantidade necessária, tempere e cozinhe.

Veganismo Popular e Amazônida com Michelle Muriel

Um dia, muitas luas atrás, uma moça chamada Michelle me enviou uma mensagem pelo Instagram (na época eu ainda frequentava a plataforma) e trocamos algumas ideias. No final da conversa ela disse que era de Belém do Pará e me chamou pra conhecer a cidade. Eu disse que aceitava o convite com muito gosto, que era um sonho antigo visitar Belém, mas que não sabia quando isso iria acontecer. Anos depois eu desembarquei no aeroporto de Belém e lá estava ela me esperando, junto com outras camaradas, com um sorriso enorme e uma banana na bolsa. (Eu tinha enviado uma mensagem pra Michelle, antes de embarcar pra Belém, pedindo encarecidamente que ela levasse uma coisinha pra eu comer porque a jornada até lá seria longa e eu já estava morrendo de fome. Curiosamente quando eu entrevistei Michelle, dias depois, a questão de ver frutas como lanche acabou entrando na conversa e desencadeando uma reflexão profunda do meu lado.)

Michelle Muriel é gestora ambiental, ecofeminista e militante pelo veganismo popular na Amazônia. Ela faz parte do coletivo antiespecista VEM (Veganismo Em Movimento), que é associado à UVA. Como parte da Jornada do Veganismo Popular Contra o Fim do Mundo, que aconteceu durante todo o mês de novembro de 2022, em várias cidades do Brasil, as/os camaradas do VEM me receberam em Belém pra participar de um evento junto com Ana Felicien, uma companheira da Venezuela, e Gisiane Ferreira, uma companheira do MST. Foi um dos eventos mais potentes dos quais participei e ainda escuto os ecos daquela conversa dentro de mim. E o que dizer do pessoal do VEM? Ô povo maravilhoso! Que honra construir a luta antiespecista no Brasil do lado desse povo! 

Não era possível entrevistar todo mundo do coletivo, mas consegui tempo pra gravar uma conversa com duas companheiras do grupo e a primeira que vai aparecer aqui é Michelle. Ela me disse que nosso encontro foi uma pororoca e eu não poderia achar uma maneira mais linda e certeira de descrever o que senti. Foram quase duas horas de gravação, que eu transcrevi em nada menos que 11 páginas! Mesmo depois de duas semanas de edição, essa é a entrevista mais longa que já publiquei aqui no blog, mas te garanto que vale muito a pena ler até o final.

Tivemos essa conversa na ilha do Combu, dentro da floresta Amazônica e tenho certeza que as palavras dela vão provocar uma pororoca no peito de vocês também.

Como você se tornou vegana?

Em 2010 eu estava cursando gestão ambiental e visitei um abatedouro como parte de um trabalho pra faculdade. Eu já tinha duas cachorrinhas e quando cheguei lá e vi os animais no curral, imediatamente pensei nelas. Até hoje eu lembro do olhar dos animais na minha direção, da sensação de não poder fazer nada pra ajudá-los. Depois desse dia sempre que eu via carne no prato eu lembrava dos animais no abatedouro e não conseguia comer. Foi quando um amigo me falou sobre vegetarianismo. Eu não conhecia nenhuma pessoa vegetariana e pensei que aquilo não era pra mim. Eu repetia que ainda estava assustada com o que eu tinha visto no abatedouro, mas que em algum momento eu voltaria a sentir cheiro de carne sem associar aquilo com animais sendo queimados. Isso durou um ano e durante esse tempo não consegui comer carne diretamente, mas quando tinha carne no meio de alguma comida, charque por exemplo, eu colocava pro lado e comia o resto. Frango eu já não gostava de comer, então eu só comia peixe. Até que em 2011 eu me tornei vegetariana. 

Logo depois comecei a trabalhar na Secretaria Estadual de Meio Ambiente. Foi então que comecei a visitar abatedouros como parte do meu trabalho, fazendo fiscalização, recenseamento. Eu morei uma época em São Félix do Xingu, no sudeste paraense, que é onde tem o maior número de bovinos do estado. Quando você chega nessa região o agro está presente em tudo. Tu não vê mais mata, essa mata que a gente está vendo aqui, tudo foi devastado. À noite a fumaça das queimadas parece uma neblina. Tudo foi transformado em pasto. E o que eu via nos abatedouros? Uma cena de horror: sangue espalhado por todos os lados e tristeza. É horrível porque ninguém é feliz fazendo esse trabalho. Os trabalhadores nos abatedouros são uma mão de obra descartável. São corpos que, se acontecer alguma coisa com eles, não serão lembrados.

Sem falar no impacto ambiental. Aquele sangue, aquela gordura toda que sai dos animais mortos vai se acumulando numa vala. E é um negócio verde, um lodo. Aquilo deveria ser tratado antes de ser jogado num rio, só que na maioria dos casos isso não acontece. Nos lugares próximos aos abatedouros onde a água dos rios foi testada, foi constatado que ela é imprópria pra consumo, pra banho. Então as conexões foram sendo feitas na minha cabeça.

Aí teve o caso do abatedouro no Marajó… Fomos fazer uma inspeção e fiquei impacta quando vi que os animais estavam doentes, que tinha tumores nas carnes. Falamos que aquela carne tinha que ser jogada fora, mas o veterinário responsável disse: “Não! A gente tira a parte doente e vende o resto”. Mandamos descer toda a carne que estava dentro de um caminhão, indo pro frigorífico. O abatedouro foi fechado, lacramos tudo. Mas políticos influentes foram mobilizados e poucos dias depois o lugar estava funcionando novamente.

Comecei a perceber o impacto social da pecuária também. Eu via pessoas na miséria, morando nas margens do rio, mas sem a possiblidade de pescar porque o rio está poluído. E ao mesmo tempo eu via um grupo privilegiado, os pecuaristas, os donos dos abatedouros, se aproveitando daquela situação, exibindo riqueza como eu nunca tinha visto em Belém. Em lugares como Xinguara, São Felix do Xingu e Marabá eu via pessoas extremamente brancas, louras, enormes, totalmente diferentes das pessoas daqui, com botas de couro e bolsas de luxo que eu só tinha visto, até então, na televisão. E quem mora nas comunidades dessa região passa a servir aquele grupo, ser garçon, cozinheira nas churrascarias, diarista… 

Como eu estava mais próxima da classe trabalhadora, fui fazendo amizades com as pessoas que prestavam serviço ali. E elas me chamaram pra visitar a roça delas. Essas pessoas criavam animais pequenos, mas elas se alimentavam principalmente do que plantavam. Descobri que no fim de semana o pessoal da comunidade vendia verduras no mercado e comecei a fazer minhas compras lá. Era muito fácil, e farto, se alimentar com comida vegetal ali.

À noite eu via as manifestações dos indígenas falando sobre o avanço do agro, explicando que eles estavam sendo expulsos das terras, que estavam em luta… Então a situação ficou evidente pra mim. Existe um grupo muito poderoso, os pecuaristas, que está se beneficiando da situação e, ao mesmo tempo, oprimindo, vulnerabilizando, excluindo e marginalizando a população nativa. Na época eu não tinha teorias, mas é impossível estar ali e não fazer essas conexões.

Fale um pouco sobre o veganismo popular no seu território

Quando voltei pra Belém, voltei com vontade de me organizar. Foi quando eu entrei em contato com o pessoal do coletivo VEM (Veganismo Em Movimento). O coletivo já existia, mas estava parado. As eleições de 2018 estavam se aproximando e organizamos algumas ações pra mobilizar as pessoas e mostrar quem era Bolsonaro e ajudar Haddad a se eleger. A gente entendia que as lutas estavam conectadas e na época falávamos de veganismo interseccional. Ainda não conhecíamos o termo “veganismo popular”, mas o pensamento era o mesmo. Começamos a ler o blog Veganagente. Foi então que eu vi o seu vídeo com Sabrina Fernandes e comecei a ler o seu blog também. A gente pegou uns textos do seu blog, juntou com textos do Veganagente e nos reunimos pra ler e discutir. Foi assim que retomamos as atividades do VEM, com um veganismo politizado aqui em Belém. 

As tarefas são muitas e somos poucas pessoas no coletivo, mas estamos muito felizes com o sucesso dos eventos que organizamos. O VEM passou a ser uma referência aqui e somos convidados pra participar de discussões e construir junto de outras lutas. Em 2020 organizamos um encontro com as candidaturas pra vereadores e teve muito interesse da parte dos candidatos em aprender mais sobre o que defendemos. Conversamos muito sobre merenda escolar, alimentos agroecológicos e as várias políticas públicas que Bolsonaro derrubou, na verdade que vêm sendo derrubadas desde Temer, e que impactam diretamente os ribeirinhos que produzem alimentos aqui. Se não tiver políticas públicas de escoamento como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), articuladas com o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), os agricultores não vão conseguir escoar a produção e a comida não vai chegar nas escolas. Quem ganha são os monopólios alimentares, que vão conseguir levar seus produtos pra merenda. Sem as políticas públicas, quem produz tem o que comer, mas não consegue vender uma parte e não tem como garantir o resto do que precisa.

Talvez em reação a isso percebi que o número de cooperativas e associações rurais está aumentando. Elas se reuniram pra buscar uma forma autônoma de levar toda essa produção pras feiras municipais e pra beira das rodovias. Aqui em Belém tem um movimento de feira totalmente autônomo. Conseguem organizar transporte pra chegar até aqui, ficam no meio da rua, sem nenhum tipo de estrutura e vendem seus alimentos. Outro dia perguntei pra um feirante se tudo aquilo na barraca vinha da propriedade dele. O senhor respondeu: “É, minha filha, tudo isso aqui é da minha propriedade. Tem muita coisa lá, a gente fica com uma parte e o que sobra a gente traz pra vender. Tem tanta coisa que até estraga. Aí eu fico pensando nas pessoas da cidade, que moram na rua, que não tem o que comer… Lá é tão farto!” 

Eu vejo que as coisas andam juntas. No campo, as pessoas estão trabalhando e lutando muito pra estar naquele território. Elas criam laços com a terra e relações com as outras pessoas. São exemplos de sociedades muito solidárias. E ali está a sua identidade. Quem vem pra cidade, porque perdeu a possiblidade de viver da terra, perde essa rede de apoio. Na cidade elas são marginalizadas, empurradas pra beira dos rios ou pras periferias, lugares que não são vistos, ou acabam na rua e começam a passar fome. É necessário uma sensibilidade pra gente perceber isso. Na cidade as pessoas estão cada vez mais individualistas e você acaba ficando mais endurecido, perdendo a sensibilidade pra olhar pro outro. 

O que é o veganismo pra você?

O veganismo tem uma dimensão política, é uma luta coletiva por libertação animal e humana. Mas como amazônida, ele também tem uma dimensão muito particular pra mim. Estando aqui na Amazônia e encontrando as pessoas nas comunidades, eu vejo que ele é um espaço que agrega e acolhe as pessoas que estão em luta. 

Porque você chega nas comunidades e tem luta. Elas estão lutando pra serem reconhecidas, pra não serem invisibilizadas, pras que políticas públicas cheguem até elas. Estão defendendo suas causas, seu território, sua identidade. Muita gente acha que ao falar de veganismo a gente se distancia das pessoas que consomem animais pra subsistência. A verdade é que estamos muito mais próximas delas, pois elas têm uma relação muito forte com a natureza. E eu encontro no veganismo um lugar onde eu posso me apoiar pra tratar desse aspecto, que é bem sensível: a conexão com a natureza.

Quando a gente nasce e cresce aqui aprende desde pequenininha que tem que pedir a permissão da natureza pra entrar no rio, pra entrar na floresta. “Com licença, mãe natureza!” Quando vamos plantar, a gente conversa com a natureza e pede a permissão. Na hora de colher, também. Tem a época em que o caranguejo sai pra namorar e ninguém, nem o pegador de carangueijo, pega carangueijo nessa época. Ele espera o tempo do carangueijo crescer. Aqui a gente respeita a lua, as estações, o inverno amazônico, o verão amazônico. Meus bisavós e avós cresceram na beira do rio, na beira do mangue. Entrou ali, não se pega nada sem permissão. Nem um animal, nem uma folha, nem uma casca. A gente aprende a ter esse respeito. Então quando eu conheci o veganismo eu me identifiquei, porque é esse respeito que eu quero. 

O veganismo pra mim tem essa dimensão política coletiva que casa muito bem com o veganismo amazônida. Nós, amazônidas, estamos com essa sensibilidade aflorada em defesa da Amazônia e nossas raízes estão clamando isso. Não tem como você mergulhar numa praia em Mosqueiro, numa praia no Marajó e não querer lutar por isso. Porque se a gente não lutar por isso, o preço que vamos pagar é alto demais: vamos perder nossa identidade.

Então aonde eu vou lutar? Vou lutar aonde tem respeito por todos os seres, que é junto do veganismo popular. E não sou só eu que falo isso: tem meus companheiros do VEM, os companheiros do MST, a UVA… É uma luta pelo nosso território, pela nossa identidade, pela nossa história. Pelos meus avós, bisavós, os que estavam aqui antes, resistindo pra não sucumbir e os que morreram lutando. A terra onde eles lutaram permanece e é a terra onde lutamos hoje. Pra mim o veganismo é isso.

Por que você é vegana?

Primeiro porque eu não consigo ver o corpo de um animal como alimento. Pra mim o alimento é vegetal. Eu me disponho a ser uma amiga e companheira de luta desses animais, de todos os animais. Segundo porque, sem precisar falar nada, quando escolho um prato totalmente vegetal as pessoas a minha volta percebem e fazem perguntas. Assim o meu existir já demonstra a minha prioridade de vida, que é lutar em defesa da Amazônia e dos animais. 

No veganismo eu consigo conectar o que acredito ser necessário individualmente e coletivamente pra construir a sociedade que a gente almeja. É uma luta que não está lá na frente. Ela vive aqui, no presente, e já existia lá atrás. A gente chega em qualquer comunidade na Amazônia e vê a luta pela defesa dos animais, pela defesa da natureza.

Veja o exemplo da pesca industrial. Colocam barcos industriais na cabeceira do rio e o peixe não entra nas comunidades, os ribeirinhos não podem fazer pesca artesanal. A pesca artesanal luta contra a pesca industrial e como é que a gente não vai lutar do lado dessas pessoas? Se a gente não faz uma luta contra os grandes monopólios da indústria não teremos condições de viver o veganismo, de alcançar libertação animal. As pessoas vão comer o quê? Um ultra processado? Vão sucumbir? Vão vir pras periferias ou viver uma vida deplorável no meio da rua? Primeiramente devemos lutar com os pescadores artesanais contra a grande indústria. Quando eles tiverem seu lugar garantido e condições de escolher o que fazer, só então terão a possibilidade de considerar os animais como seus companheiros de luta. E é à partir daí que a gente vai poder levar a discussão do antiespecismo até eles. 

Lembrei de uma história.  A pesca industrial estava afetando várias comunidades em Marapanim e apesar das pessoas que moravam ali denunciarem a situação, os órgãos ambientais e a Câmara repetiam que “não tem ninguém nessas comunidades”. Como sempre, a Amazônia é vista como um grande vazio demográfico. Então uma liderança comunitária ribeirinha organizou várias pessoas num caminhão, cada uma levando um cartaz com o nome da sua comunidade e foram na câmara pra dizer “a gente existe”. No final de uma luta de 12 anos conseguiram uma reserva extrativista marinha que protege essas comunidades de agricultures familiares, de pescadores artesanais e de marisqueiras (que é uma atividade feita por mulheres). A reserva se chama “Reserva Mestre Lucindo”. Mestre Lucindo foi um músico de carimbó e perguntei por que deram o nome dele pra reserva. Me explicaram que ele também era pescador artesanal e compunha suas músicas nas noites de luar, enquanto pescava. Ele morre, mas renasce como reserva extrativista. Ele renasce pra proteger os membros da comunidade. Aqui a existência das pessoas permanece, as lembranças, as memórias, os ensinamentos… Isso é muito forte pra nós.

Estamos na Amazônia, onde o projeto colonial avança sem pausa há séculos. Você acredita que o veganismo se articula com a luta decolonial?

O veganismo popular fala da defesa do território, da identidade, do que está aqui, dos antepassados que defenderam a terra e produziram uma cultura alimentar tão forte e diversa. Ele vem com o principio de fortalecer a cultura alimentar do seu local e pra mim isso é decolonial. Veja que isso não é algo novo dentro dos espaços de luta. Que as pessoas aqui descrevam sua luta como “decolonial” ou não, é escolha delas, mas essa luta sempre existiu. O veganismo vem se somar a isso tudo e eu percebo que ele vem organizar as pessoas e nomear as coisas. Você chega aqui na comunidade do Combu e consegue identificar o que é colonial. Então a gente se soma de uma forma organizada e já denominada, explicando com todas as palavras o que você observa aqui nas comunidades que já estão na luta. Se eles produzem, a gente vai consumir. Organizamos encontros com as candidaturas tanto em 2020 quanto agora, em 2022, pra falar sobre soberania alimentar e formas de fortalecer a cultura alimentar. Aqui no Ver o Peso tem essa força ainda. Mas a gente tem que ficar atento e vigilante, porque o colonialismo vem devagarzinho, pelas laterais.

(Contei pra Michelle o que vi na minha visita ao mercado Ver o Peso no dia anterior: farinha de tapioca e coco seco sendo vendidos banhados em leite condensado. A Nestlé conseguiu se enfiar até em produtos tão tradicionais, no mercado que é um dos maiores símbolos da cultura alimentar paraense.) 

Sim, a gente tem que ficar vigilante. 

É complicado ser vegana na Amazônia? 

Aqui é muito fácil se alimentar bem, de maneira farta e dentro da nossa cultura alimentar, sendo vegana. Meu pai carrega muito essa cultura alimentar raiz. Quando é época de pupunha, ele cozinha pupunha na casa dele, coloca um pouco num potinho e deixa na portaria do meu prédio. Aí eu já subo com minha pupunha cozida, faço um cafezinho e é meu lanche ou café da manhã. Quando a minha família fala: “Vamos fazer um café da tarde?”, eu levo um milho cozido, uma macaxeira cozida, uma pupunha cozida. E ninguém vai se espantar e dizer: “Ah, isso aqui que a Michelle trouxe é vegano!” Não, as pessoas vão dizer: “Eu adoro milho cozido, adoro macaxeira!” As pessoas comem o que eu levo e o pão, aquele pão de supermercado que alguém colocou na mesa, vai ficando de lado. Se tiver um bolinho de macaxeira, que a minha mãe faz, ou um bolinho de tapioca, as pessoas adoram porque esses pratos são carregados de memória afetiva. Talvez isso esteja se perdendo entre as pessoas mais jovens, mas a minha geração ainda tem essa lembrança de infância da vó fazendo mingau de carimã, mingau de milho, mingau de banana. Antigamente não tinha leite de vaca, era sempre com leite de coco, porque é o mais prático aqui. Também tem o leite de castanha (do Pará). 

Já escutei muitas pessoas afirmarem, no Brasil e na Europa, que veganismo não faz sentido porque “indígenas caçam”. Pior, que o veganismo é “anti-indígena” e “busca separar o humano da natureza”. O que você diria pra essas pessoas?

Antes de falar, é bom ouvir. Ninguém pode falar por ninguém, incluindo nós, no movimento vegano. A gente tem que ouvir as pessoas da Amazônia. Pra se somar a essa luta, precisamos estar no local, ouvir as pessoas e ter a sensibilidade de entender que elas são as protagonistas. Se um grupo indígena está falando, vamos ouvir. Eu tenho certeza que eles não estão falando que é pra matar não sei quantas cabeças de gado. Não tão falando isso, não. A gente tem que chegar, sentar e ouvir. Depois se perguntar: “Onde posso ajudar?” Estamos olhando pro mesmo destino, pro mesmo horizonte? Estamos, então vamos lá juntos. As pessoas falam: “Ah, o veganismo é isso, o veganismo é aquilo…” Quantas dessas pessoas vão estar lá pra lutar ao lado dos indígenas?

Essas pessoas têm uma ideia estereotipada dos grupos indígenas. E usam isso pra desconsiderar o veganismo e continuar vivendo sua vidinha no ar condicionado, comendo carne, numa bolha de conforto, sem conseguir enxergar quem está do seu lado? Ouçam o que eles estão falando ao invés de falar o que vocês acham deles.

Gostaria que as pessoas tivessem a oportunidade de sentar e tomar um cafezinho com uma comunidade indígena ou ribeirinha. Se você sentar e tomar um café com essas pessoas elas vão te oferecer uma macaxeira cozida. Provavelmente vão te oferecer um suco de cupuaçu, ou de bacuri, uma banana da terra frita… E quando você falar da defesa da natureza, da defesa dos animais, elas serão as primeiras a concordar. Elas utilizam os animais pra subsistência, mas a visão delas é muito próxima da nossa luta pela defesa da natureza, dos animais e da Amazônia. 

Ouvi dizer por aí que o veganismo pode até ter alguma relevância nas cidades, mas que não tem sentido chegar pras comunidades indígenas e falar pra elas comerem estrogonofe de soja. Desde então fiquei com essa dúvida. (contém ironia) Vocês realmente querem que  indígenas parem de pescar e comam estrogonofe de soja no lugar?

Mais uma vez, isso é a visão do veganismo de alguém que não conhece a luta. Se você quer ter uma opinião sobre algo que você não conhece, sem estar no local onde essa luta acontece, converse com alguém que está lá. É importante se informar antes de falar!

Nós, do movimento vegano, não estamos chegando em nenhuma comunidade indígena ou ribeirinha falando: “Vamos fazer um escondidinho de soja?” Não! Quando eu vou pra essas comunidades muita gente me pergunta o que eu vou comer. Eu levo minha comidinha, minha marmita? Levo, até porque gosto de compartilhar. Mas eu vou tranquila porque sei que essas pessoas não vão me julgar. Eu vou sentar na mesa com elas e vai ter um peixe, uma galinha caipira, mas também vai ter macaxeira, açaí, farinha, tapioca. Sempre tem feijão de corda, feijão verde. Se tiver pupunha, eu coloco no meu prato. Se só tiver açaí e farinha, eu já almocei!  Ninguém vai ficar te questionando por você não comer a galinha ou o peixe, muito pelo contrário! Eles vão experimentar o que eu tiver levado, eu vou comer os vegetais que eles tiverem preparado e vamos socializar ao redor da comida compartilhada.

Mas o que a gente pode discutir aqui é um pensamento muito colonial e neoliberal que vai chegando nos lugares e transformando a maneira como vemos a comida. Então as pessoas passam a não enxergar os frutos, as frutas, os alimentos vegetais em geral, como alimento. Isso faz parte da missão do veganismo: lutar pro vegetal ter um papel central na mesa.

Eu cheguei em um lugar uma vez, a trabalho, e tinha muito coco. Todo mundo estava bebendo água de coco. Estava naquele intervalo entre o café e o almoço, então eu comecei a comer a carninha do coco. Quando eu vi, todo mundo estava fazendo igual. Porque é gostoso! Mas até então ninguém tinha pensado em comer a carninha do coco. Eu gosto de comer o cupuaçu, quebrar e comer a polpa. O bacuri também. Como a fruta diretamente. Nesses lugares tem muita polpa, porque as comunidades comercializam, então você pode pegar a polpa e fazer um suco… Também tem sempre biju, que é diferente da tapioca. O biju é feito com a farinha d’água misturada com água e um pouquinho de açúcar. É um lanche da tarde pra mim. 

(Explico que pra mim uma das maiores contribuições do veganismo é passar a enxergar o vegetal, uma simples fruta, como um lanche satisfatório. A gente vê comida onde as pessoas especistas vêem ausência de comida. Sempre que me dizem: “Você não come carne, nem laticínios, nem ovos? Então não come nada!” eu percebo a que ponto as pessoas especistas vêem o vegetal como uma não-comida. Michelle falou de como a Amazônia é considerada, por quem quer explorá-la, como “um vazio demográfico” e agora estou me dando conta que comida vegetal também é vista como uma espécie de vazio alimentar.)

Exatamente. Também é comum ter castanha (do Pará) em todos os lugares. Você chega e as mulheres estão cortando a castanha, preparando pra vender. Aquilo ali com um cafezinho, pra mim já é um lanche! Outro dia eu estava com meus colegas de trabalho e tinha muito capim santo no lugar onde estávamos. Fizemos uma panela de chá, que meus colegas tomaram com biscoito de castanha. O biscoito levava leite, então eu tomei o meu chá com as castanhas, mesmo. Como você disse, muita gente não vê isso como lanche, como refeição.

Como falar da luta antiespecista dentro da esquerda?

Esse está sendo o nosso maior desafio. É onde a gente vê mais resistência. Quando a gente chega numa comunidade e leva sua comida vegetal, ou faz seu prato, é tranquilo. Mas quando a esquerda percebe que você é vegana, é muito comum fazerem uma crítica não embasada. Dizem que vamos ficar com deficiência de nutrientes, que comer animais é cultural…

A gente tenta trazer a esquerda pro veganismo explicando que existe um ponto comum nas nossas lutas: a exploração dos corpos, dos corpos de todos os animais, humanos e não-humanos. Mostramos que a exploração dos animais tem por finalidade a acumulação e o lucro e que com isso vem todas as questões socio-ambientais, como a exploração dos trabalhadores, a destruição da floresta, a poluição dos rios… A gente tenta conectar isso pra que as pessoas percebam que lutamos contra um inimigo em comum. Pra elas enxergarem a relevância em defender os animais, porque estamos todos conectados num grande sistema. 

Muita gente não consegue perceber o quão conectados estamos… Basta pensar que todo mundo precisa do ar. Se tirar o ar, a gente morre. Precisamos dos rios, das florestas, dos animas… Se a gente não se perceber como parte importante desse processo, assim como os outros animais, a gente quebra os pilares importantes pra reprodução da vida.

Acho que na esquerda tem muito a questão de rigidez, de não mudar o que fazem, o que falam. Mas aqui, por causa do que a pecuária está fazendo com a Amazônia, as pessoas na esquerda conseguem conectar isso, perceber a importância, mas sem necessariamente se tornarem veganas.

Existe uma resistência com a questão antiespecista. Minha leitura é que como as pessoas teriam que fazer um esforço, se quiserem se tornar veganas, e como não tem ninguém cobrando essa postura delas dentro da esquerda, é muito mais fácil deixar pra lá. Dizem: “Isso não é urgente, então vamos deixar pra depois”. 

A gente convida o pessoal na esquerda a lutar pelo antiespecismo de maneira paralela. Porque nós, veganas, militamos de maneira paralela. A gente luta contra a opressão, então construimos condições pra fazer as lutas acontecerem de maneira simultânea. Dá pra você viver sem consumir nada de origem animal e, juntamente com a defesa da luta antiespecista, você pode se aliar à luta LGBT, à luta antiracista… Dá pra fazer todas as tarefas da militância na esquerda sendo antiespecista e a gente mostra isso através do exemplo. 

Algumas pessoas de esquerda, quando entendem o que é o veganismo, conseguem conectar as pautas imediatamente. Outras precisam fazer um esforço maior pra superar a questão do paladar. Mas sabe uma coisa que eu vejo, principalmente aqui em Belém? O lado social. A gente tem a síndrome do vira-lata. A gente não quer parecer nortista, não quer parecer caboquinho. “Nossa, isso é coisa de caboquinho, não faz isso!” 

O que é ser caboquinho?

É a mistura do indígena com o negro, a miscigenação de etnias aqui. É o caboclo, aquele que mora no interior, que está perto da natureza, que tem uma outra forma de se alimentar e de se relacionar com a natureza. Aí a gente pensa: “Não quero parecer um caboquinho! Quero dizer que vou pro Sudeste, que viajo pelo menos uma vez por ano pra Europa com a minha família, que tenho uma empregada doméstica, que tenho um carro novo, mesmo que eu esteja cheia de dívidas…” A gente mora aqui, mas não quer parecer com as pessoas daqui. Antigamente as pessoas tinham vergonha de estar com a boca suja de açaí, porque quem tomava açaí eram os caboquinhos. A comida, a base alimentar do ribeirinho, do caboquinho, é o açaí, então eles sempre estão com a boca e os lábios roxos. Tucupi também é comida de caboquinho, mas quando chefs de fora começaram a falar do tucupi, todo mundo passou a dar valor. Agora você chega na Estação das Docas e tem tudo isso lá, só que em versões muito mais caras.

E pra não ser identificado como caboquinho, é preciso comer o que? 

Comer mais animais. Comer vegetais locais traz essa dificuldade social, mesmo pra quem é de esquerda. É um comportamento que vai te denunciar, que vai mostrar que você é caboquinho. Como vou chegar pro meu grupo de amigos de esquerda, que são cool, que são a galera que consome a cultura do Sudeste, que conhece certas teorias, e recusar a carne do churrasco? Vão te olhar e dizer: “Ah, tu não quer comer carne? Então não vou mais te chamar pros churrascos.” Nessas horas eu sempre falo: “Me chama que eu levo o meu churrasco de vegetais!” Mas quando as pessoas falam “Não dá mais pra sair contigo”, o que eles querem dizer, na verdade, é que você não faz mais parte daquele grupo. Todo mundo quer se sentir pertencente e pra fazer parte do grupo não pode comer pupunha, que é comida de caboquinho. Tem que comer o churrasco. A gente quer ser o de fora, o mais branco. Isso vem de uma dor muito grande que ainda não curamos: a dor da colonização.

Gostaria de agradecer a Michelle pelo tempo concedido pra gente fazer essa entrevista, pelo carinho, pelos passeios, por ter compartilhado tanta informação preciosa comigo, por tudo que ela me ensinou em poucos dias, por me inspirar na luta antiespecista e pela banana levada pro aeroporto (e que ela esqueceu de me dar). Obrigada por tudo, amiga samaumeira. Sigamos criando raízes e nos tornando floresta.

Tudo que pode conter numa pausa

A ausência de post semana passada (alimento esse blog semanalmente) não significa que estou fazendo uma pausa. Repare que quanto menos coisas aparecem aqui, mais coisas aparecem do outro lado da tela. E as últimas semanas foram cheias de uma infinidade de coisas, grandes e pequenas.

No lado profissional, teve o convite pra participar de um pequeno projeto que me deixou extremamente feliz e, ao mesmo tempo, ativou uma mini crise de síndrome da impostora (gostaria de dizer que não sofro disso, mas mentir é feio). A militância anda a todo vapor, com a criação de mais um coletivo (o terceiro do qual faço parte no meu território!), só que dessa vez se trata de um coletivo antiespecista. Porque queremos mostrar que veganismo não é coisa de parisiense branca e rica e que nossa quebrada não é um deserto antiespecista.

Nosso coletivo anarquista conseguiu um lote nos Jardins Operários, um fato histórico. Nós estamos na luta pra salvar a última zona agrícola, e uma das poucas áreas verdes, da nossa periferia e somos o primeiro coletivo a receber um lote. Ele faz parte dos lotes ameaçados por um projeto de centro comercial, totalmente inútil, que é o cavalo de Troia do momento pra passar o cimento por cima dessa terra que alimenta uma parte da classe trabalhadora, e imigrante, no nosso território. Como sempre, só a luta muda a vida.

Agora temos mais uma tarefa na nossa longa lista de tarefas da militância: plantar e compartilhar os frutos do nosso lote. Militar pode adquirir muitas formas e confesso que cultivar a terra é uma das maneiras mais prazerosas de militar. Além de nos transformar profundamente. Como canta Zé Pinto: “Amar a terra e nela botar semente / a gente cultiva ela e ela cultiva a gente”.

Passei a manhã e uma parte da tarde trabalhando no lote, junto com camaradas do coletivo, e voltamos pra casa com uma sacola cheia de comida dos jardins, presente das nossas vizinhas de lote. Percebi que cultivar a terra também deixa a gente mais generosa.

No lado pessoal, é tanta coisa que a atividade acontecendo da pele pra dentro é ainda mais intensa do que o que faço da pele pra fora. E ainda teve a visita de um dos meus sobrinhos e da namorada, que veio pedir a mão dela em casamento aqui (com a ajuda dessa tia, que escolheu o lugar e fez as fotos do pedido). Foi lindo e ela disse “sim”.

Paralelo a tudo isso estou trabalhando na transcrição da entrevista de duas companheiras de luta antiespecista que fiz em Belém (Pará), ano passado. Está preparada pra ouvir a palavra antiespecista amazônida? Mal vejo a hora de compartilhar com vocês!

Sem falar que transformamos nossa casa em berçário de plantas pra nossa horta (e pra horta do coletivo também). Começamos a semear em fevereiro e atualmente quase não tem espaço pras duas moradoras humanas, já que é muda pra todos os lados. Na foto acima tem apenas uma parte das nossas mudinhas, o que significa que todo dia passo pelo menos uma hora aguando tudo, colocando do lado de fora pra levar sol e depois trazendo tudo de volta pra dentro no final do dia. Fizemos bastante pra poder compartilhar com as amigas também. E muitas dessas sementes vieram dos Jardins Operários.

Esse foi o almoço de hoje e olhar pro meu prato sempre oferece uma janela pra ver a riqueza que é a minha vida. Aqui tem uma salada com dois tipos de alface selvagem, que ganhei hoje de manhã de Hugo, um dos operários-jardineiros, enquanto trabalhava no nosso lote. As laranjas (orgânicas, da Itália) eu consegui na ocupação onde mora minha namorada, que ganhou uma imensa caixa dessa fruta de uma vizinha que também é militante no nosso território. A couve veio do lote de Lucas, outro operário-jardineiro (que eu entrevistei no quinto episódio do podcast “Jardins da Comuna”, que criei junto com a Biblioteca Terra Livre). Lucas tem uma floresta de couve no lote dele e disse que eu podia pegar o tanto que eu quisesse, sempre que precisasse. O pão tradicional de semolina é feito por uma senhora argelina que trabalha na minha padaria preferida, perto da minha casa. E dentro do potinho tem hummus, feito por mim, com tahina libanesa que encontro na mercearia árabe também aqui perto (no pé do Cohab onde eu morei), de uma família marroquina que é uma simpatia só.

Além de alimentar o corpo e a alma, comida também pode nos inserir numa complexa rede de solidariedade e apoio mútuo. Uma refeição simples, mas que me conecta a várias pessoas bacanas e em luta e a espaços de resistência.

Coma arroz…

Tem dias em que sinto meu nível de energia no chão. Hoje é um desses dias.

Eles não aparecem do nada, esses dias sem energia. Ou, usando as palavras de Anne pra descrever o meu estado, esses dias em que “minha força vital parece ter sigo completamente drenada”. Eles são o resultado de vários dias (ou semanas, ou meses) de intenso esforço físico e, principalmente, emocional. As últimas semanas foram puxadas e eu gostaria dizer que vou tirar um tempo pra descansar e pra recarregar as baterias, mas a verdade é que coisas que precisam da minha atenção continuam acontecendo ao meu redor e pessoas que eu amo precisam de mim nesse momento.

Dividimos a casa com a proprietária, que mora no andar de cima (nós moramos no térreo e compartilhamos o jardim com ela). Ela é mexicana e viajou pro México, pro aniversário de 90 anos da mãe, algumas horas atrás. Anne saiu depois do café e foi montar uma exposição em um teatro aqui da periferia. As duas estariam fora de casa no horário de almoço, em trânsito ou sem a possibilidade de encontrar comida vegetal. Então acordei e cozinhei duas marmitas pra elas.

Eu queria dizer que cuidar das mulheres da minha vida me dá energia e que por isso fiz o almoço delas, sem que elas tenham me pedido. Mas não sei se é inteiramente verdade. Me dá prazer cuidar de pessoas que eu amo, principalmente mulheres. E ao mesmo tempo tenho consciência de que, por ser mulher, essa prática, quase um reflexo automático, de cuidar de outras pessoas é algo condicionado pelo sistema patriarcal. Algo imposto por causa do meu gênero, do lugar que ocupo na sociedade. Mas talvez eu encontre um prazer genuíno aqui. Sei disso porque quando faço esse trabalho de cuidado pra um homem (o que acontece raramente, glória à Deusa!) a reação do meu corpo e os sentimentos que me invadem são completamente diferentes.

Cozinhar pra mulheres não vai trazer de volta a minha energia no momento. Mas posso dizer com certeza que nutrir o corpo delas me dá prazer e alegria.

O prato que preparei hoje é a minha última invenção pra transformar restos em algo delicioso. Fiz uma ou duas vezes, com o que achei na geladeira, e o resultado foi tão espetacular que resolvi vir aqui compartilhar. Apesar de ter sido criado pra aproveitar as sobras de outras refeições, esse prato pode (e deve) ser preparado mesmo quando não tem nenhum resto na sua geladeira (foi o que aconteceu hoje).

Gostaria de oferecer um prato desse arroz pra cada mulher me lendo que também está esgotada, mas continua cuidado das pessoas ao redor dela, apesar do cansaço. Vou pensar em vocês quando for comer a minha parte de arroz, daqui a pouco. E parece que alguém soprou no meu ouvido: “Coma arroz, tenha fé nas mulheres.”

“Coma arroz tenha fé nas mulheres
O que eu não sei
Eu ainda posso aprender
Se estou sozinha agora
Estarei com elas mais tarde
Se estou fraca agora
Posso me tornar forte
Lentamente, lentamente
Se aprender, posso ensinar as outras
Se as outras aprenderem antes
Eu devo acreditar
Que elas voltarão e me ensinarão

Mulheres vindas de mulheres
Indo para mulheres
Tentando fazer tudo que pudermos
Com as palavras
Em seguida, tentar trabalhar com ferramentas
Ou com nossos corpos
Tentando ficar o tempo que for preciso
Lendo livros quando não há professores
Ou quando eles estão muito distantes
Ensinando a nós mesmas
Imaginando outras lutando
Devo acreditar que nós estaremos juntas
E construir confiança o suficiente
Para que quando eu precise lutar sozinha
Eu saiba que há irmãs que
Ajudariam se soubessem
Irmãs que viriam
Para me apoiar mais tarde

Canções que nos lembram de nós mesmas
E nos fazem querer continuar com o que importa para nós

Vamos sair de novo
Encontrando as mulheres que saem pela primeira vez
Sabendo que esse amor faz uma boa diferença em nós
Afirmando uma vida contínua com mulheres
Devemos ser amantes médicas soldadas
Artistas mecânicas agricultoras
Todas em nossas vidas
Ondas de mulheres
Tremendo de amor e raiva

Coma arroz tenha fé nas mulheres
O que eu não sei agora
Ainda posso aprender
Lentamente, lentamente
Seu eu aprender posso ensinar as outras
Se as outras aprendem antes
Eu devo acreditar
Que elas voltarão e me ensinarão”

(Partes do poema “Coma arroz, tenha fé nas mulheres”, de Fran Winant. Tradução por Marcella. O poema inteiro pode ser lido aqui.)

Arroz com legumes e molho de amendoim

Como expliquei no texto, essa é uma receita pra usar os restos da geladeira. A fórmula é bem simples: uma parte de arroz cozido pra uma parte de legumes cozidos, mais o molho de amendoim, que é o que faz toda a diferença aqui. Dá pra deixar a receita ainda mais rica acrescentando tofu ou tempeh. Ou, como fiz aqui, grãomelete em tirinhas. Mas isso é opcional. Se for cozinhar legumes especialmente pra essa receita, minha sugestão é: repolho (salteado), cenoura (em palitos fininhos, crua ou ligeiramente salteada) e couve (salteada). Acho que é a mistura mais perfeita com esse molho. Sou nordestina e acho que o coentro aqui é essencial, mas se quiser deixar de fora, quem manda na sua receita é você.

Arroz cozido (qualquer um. Usei arroz integral)

Legumes cozidos (Usei: ervilha -congelada, que cozinhei na água e sal- repolho verde, couve e cogumelo Paris)

Grãomelete em tirinhas (opcional. Você pode substituir por tofu ou tempeh. Ou nada)

Coentro

Molho de amendoim

Pasta de amendoim (pura, sem açúcar)

Limão

Molho shoyu (molho de soja)

Melado de cana (ou um tico de açúcar – melhor se for mascavo)

Cebola picada (opcional. Usei chalota, que é mais suave)

Alho picado

Pimenta calabresa (opcional. Usei pimenta d’Espelette, que é bem forte)

Água

Se estiver usando restos, misture tudo e aqueça em fogo brando (pra não queimar). Enquanto isso prepare o molho. Se estiver cozinhando os elementos especialmente pra fazer esse prato, cozinhe o arroz, os legumes e o grãomelete (ou tofu/tempeh), se tiver usando.

Misture todos os ingredientes do molho e junte água aos pouquinhos, uma colher de sopa por vez, até que ele se torne líquido mas ainda bem cremoso. Pra quem precisa de proporção, usei 2 colheres de sopa cheias de pasta de amendoim, um limão galego pequeno, umas 2-3 colheres de sopa de shoyu, 1 colher de sopa de melado, 1 chalota pequena, um dente de alho grande e um pouquinho de pimenta. Depois acrescentei água aos poucos. Se estiver usando restos que já estão salgados, cuidado pra não exagerar no shoyu do molho, mas como cozinhei tudo especialmente pra fazer essa receita, não salguei o arroz e coloquei pouquíssimo sal nos legumes, por isso fiz o molho um pouco mais salgado.

Quando o arroz/legumes/grãomelete (ou tofu/tempeh) estiverem bem quentes, desligue o fogo e despeje o molho por cima. Misture bem, junte o coentro e misture novamente. Prove e corrija o sal, se necessário. Esse prato tem que ficar suculento: nem seco demais, nem nadando em molho. Se fez pouco molho e seu arroz ficou meio seco, faça mais um pouco pra corrigir. Se colocou molho demais e a coisa virou sopa, danou-se! Mas vai ficar gostoso mesmo assim.

Sirva imediatamente, com mais coentro e pimenta calabresa polvilhada por cima.

Esperando por tomates

Ontem foi o equinócio de primavera aqui no hemisfério norte, o que marca oficialmente o primeiro dia da primavera. Mas hoje amanheceu chovendo, o clima esfriou bastante e na minha cozinha nada lembra as estações mais quentes: só tem batata, repolho, jerimum e alho-poró. Ainda tem cheiro de inverno por aqui e estou escrevendo essas linhas colada no aquecedor, embaixo de várias camadas de roupa.

Mas aos poucos a estação está mudando e a vida começou a brotar ao meu redor. A imensa árvore do jardim, pelada durante meses, já cobriu seus galhos de olhos verdinhos, de onde sairão as próximas folhas. Os passarinhos estão cantando mais alto. Os narcisos floriram e os botões de tulipas já estão visíveis, avisando que em breve estarão aqui.

Já comecei a semear as plantas que irão pra horta esse ano e, emocionada com o sucesso do ano passado, tem mudas de mais de 10 variedades de tomates na minha varanda. Posso explicar esse entusiasmo.

Eu cresci comendo tomates de supermercado, sempre comprados verdes e consumidos antes de atingirem a maturação. Aliás o costume de comer tomate verdoso é tão forte que um tomate maduro, na sua suculência e fragilidade, é visto como algo a ser evitado: muitas pessoas vão dizer que está “maduro demais”, que assim, “mole”, ele não é gostoso. Só depois de ter acesso a tomates de estação, orgânicos e colhidos/consumidos maduros, pude notar o abismo de diferença em matéria de sabor. E depois de ter começado a plantar meus próprios tomates, selecionando as variedades mais gostosas, colhendo apenas quando eles estão prestes a explodir de tão maduros e degustando imediatamente depois da colheita, minha relação com tomate mudou completamente.

Não compro tomates fora de estação, apesar de poder encontrar tomates (produzidos em estufas ou importados de países quentes) o ano inteiro nos supermercados franceses. E quando estou em Natal e só tenho acesso a tomates de supermercado, quase nunca como cru. Então espero o ano inteiro pelos dois, três meses quando terei acesso aos melhores tomates, aqueles que crescem no meu quintal. E são semanas de puro deleite!

Se você está me lendo no hemisfério sul talvez tenha tomates maduros na sua cozinha nesse exato momento. Nesse caso, eu tenho um presente pra você. 

Tem uma receita que guardo pra essa época do ano, minha receita preferida de macarrão. Eu a descobri anos atrás, em um blog que não existe mais. A versão original usava animais, mas foi fácil adaptar. O ingrediente principal aqui é o tomate, que entra cru na receita. Sim, um molho de tomate cru. Por isso espero o verão chegar com seus tomates suculentos e saborosos. Essa receita também pede abacates maduros no ponto. Pode parecer estranho colocar abacate em uma receita de macarrão, mas peço que confie que vai dar muito certo. É uma mistura mágica, tomate, abacate e manjericão, realçados pour um tico de tofu defumado (usado aqui como tempero). Tão deliciosa que vale a pena esperar o ano inteiro por ela.

Macarrão com tomate cru e abacate

O tomate é a estrela aqui, então só faça esse prato se tiver tomates verdadeiramente maduros (incrivelmente vermelhos, pesados, macios e recheados de suco) e, idealmente, orgânicos. O tofu defumado leva o sabor desse prato pras alturas, mas na falta dele, tofu comum quebra o galho. Nesse caso,  fumaça em pó (em lojas de temperos) acrescenta a profundidade de sabor característica de alimentos defumados.

Macarrão da sua preferência

Tomates maduros (os melhores e mais saborosos que encontrar)

Abacate (no ponto)

Tofu defumado (ou tofu comum + fumaça em pó, se encontrar)

Manjericão fresco

Azeite

Molho de soja (shoyu)

Sal e pimenta preta

Os tomates e abacate devem estar em temperatura ambiente, então se eles estavam na geladeira, retire algumas horas antes de começar a cozinhar.

O molho fica pronto em minutos, então pode começar colocando a água pra cozinhar o macarrão no fogo (não esqueça de salgar a água). 

Enquanto espera ela ferver corte o tofu defumado em cubos pequenos (não precisa usar muito, só o suficiente pra dar sabor) e, numa frigideira, frite em um pouco de azeite até  ficar levemente dourado. Tempere com shoyu (molho de soja) e reserve. Se estiver usando tofu comum, frite do mesmo jeito, mas tempere com uma mistura de shoyu e fumaça em pó (se a sua for salgada, cuidado pra não exagerar no shoyu e deixar o tofu salgado demais!). Reserve.

Coloque o macarrão na água fervente e, enquanto ele cozinha, corte os tomates em pedaços pequenos e transfira pra um recipiente grande (onde você for servir o macarrão). Use bastante tomate. Junte pedaços médios de abacate (a proporção deve ser um pouco menos de abacate do que de tomate), tempere tudo  com sal e pimenta preta (seja generosa com a pimenta) e regue generosamente com azeite. Por último junte os cubos de tofu e o manjericão (se usar folhas grandes, rasque com as mãos. Se as folhas forem pequenas, pode deixar inteiras).

Escorra o macarrão cozido e despeje por cima da mistura tomate/abacate/tofu/manjericão. Misture bem, prove, junte mais sal/pimenta, se necessário, e sirva imediatamente.

Eu prefiro esse prato quente, mas ele também pode ser servido frio/gelado, como uma salada de macarrão.

Bolo cremoso de jerimum

Desde o ano passado falo que vou compartilhar essa receita… Acontece que, como digo sempre, comida de panela é de Humanas, mas bolo é de Exatas. O que significa que a alquimia delicada entre os ingredientes e, principalmente, as proporções, exigem precisão. E eu ainda não estava 100% segura com a minha receita.

Durante os testes, às vezes dava muito certo, às vezes ficava muito gorduroso, outras vezes não ficava doce o suficiente. Os bolos-testes sempre eram comidos, e apreciados, mas eu queria chegar numa fórmula estável antes de compartilhar a receita com vocês. Foi uma das receitas que mais exigiu testes na minha cozinha: comecei em 2021 e só agora, em março de 2023, cheguei onde queria. Pois é, vocês não imaginam o investimento de tempo e ingredientes que entra no desenvolvimento de receitas. Sem falar na quantidade de louça suja que esse trabalho gera! Mas finalmente vou poder compartilhar a versão final, perfeitinha, com vocês.

“Mas que danado de bolo trabalhoso é esse, mulher?”, vocês devem estar perguntando. Talvez o que vou dizer agora surpreenda quem não é íntima da cozinha, mas geralmente são as receitas mais simples que dão mais trabalho. A boa notícia é que agora que a receita está no ponto, vai ser muito fácil pra vocês prepará-la em casa. É um bolo humilde, singelo, mas que representa muito pra mim em termos de sabor e de memória afetiva.

Quem é de Natal (minha cidade) conhece o famosíssimo “Bolo da Moça”. Em outros lugares do Nordeste (e acho que do Norte também) ele é conhecido por outros nomes, mas a receita é basicamente a mesma: uma quantidade grande de ovos e um arroubo de laticínios (leite condensado + leite de vaca + manteiga). Como ele leva pouca farinha, o resultado final é entre o bolo e o pudim, denso e quase cremoso. Se a gente quiser ser malvada com esse bolo podemos dizer que parece um bolo “solado” (um bolo que não cresceu). Eu gostava desse bolo, por ter essa textura tão peculiar, mas lembro que o cheiro forte de ovo sempre me incomodou. Sem falar que ele é exageradamente doce.

Pesquisei a origem desse bolo e parece que é uma adaptação do “Bolo de Leite” português, que leva muitos ovos e muito leite de vaca líquido. Só que na versão brasileira ele era feito com leite de coco. Claro que aquela multinacional que explora vacas em números estratosféricos e que colonizou quase todas as nossas sobremesas não ia deixar de colonizar mais essa receita! Assim o leite de coco foi substituído por leite condensado. Muitas pessoas acreditam que vem daí o nome do bolo (“da moça”, como a moça da lata).

Se levei você a pensar que vou propor aqui uma versão vegetal do Bolo da Moça, não é bem isso. Minha ideia inicial era fazer um bolo de jerimum (abóbora), mas como logo nos primeiros testes ele ficou com a textura densa e cremosa do Bolo da Moça, não pude não pensar nele. Não era minha intenção “veganizar” esse bolo tão popular na culinária do meu estado, mas acabei desenvolvendo um bolo que é maravilhoso por si só, mas que também pode ser lido como uma evolução duplamente descolonizada da receita especista. 

Já passei muita raiva com o “raio gourmetizador”, aquela tendência de transformar nossas receitas típicas em algo mais caro e mais pretensioso, mas não necessariamente mais gostoso. Basicamente adicionando Nutela e leite Ninho em tudo (mais uma vez, entupindo tudo de laticínios! Eu ouvi colonialismo alimentar novamente?). Minha alegria hoje é ver o quanto a culinária vegetal não só retira nossa alimentação do padrão especista, parando de ver animais e suas secreções como “ingredientes” e valorizando o que vem da terra (e, por tabela, quem está na terra plantando), mas também tem o poder de descolonizar a maneira como cozinhamos. 

Voltemos pro bolo. Essa receita é uma base que pode ser adaptada em várias direções. Os ingredientes são acessíveis pra quem está em qualquer lugar do território, basta fazer algumas alterações em função do que você encontra na sua cidade. E é um bolo perfeito pra quem não tem costume de fazer bolos: como ele não vai crescer nem ficar fofinho, não tem como você “solar” o seu bolo. Ele também é o primeiro bolo de liquidificador que publico aqui e que coisa maravilhosa é fazer bolo desse jeito! Tão simples, tão rápido, pouca louça suja depois… 

O sabor do jerimum vai ser mais ou menos presente dependendo do tipo de jerimum utilizado. Idem pra cor alaranjada do bolo. Em Natal eu uso jerimum de leite (meu preferido) ou jerimum caboclo, que são cultivados no RN. Aqui na França já fiz com abóboras do tipo butternut e moranga. Aconselho assar o jerimum pra que ele fique mais concentrado, quase caramelizado, mas se não puder, cozinhe no vapor que também dá certo. Só não cozinhe na água, pois ele vai ficar encharcado, atrapalhando a textura do bolo, e deixando o sabor um pouco aguado. 

Quem acompanha o meu trabalho sabe que não sou uma grande apreciadora de doces. Mas esse bolo acabou se tornando muito especial pra mim. Imagina a alegria dessa potiguar ao criar um bolo tão cremoso e delicioso quanto o outro lá, mas sem exploração animal e honrando o nosso vegetal mais amado? Se você ainda não sabe, quem nasce no Rio Grande do Norte é chamada de “papa-jerimum”.  Mas mesmo pra quem é de outros estados, não deixe de experimentar esse bolo. A cremosidade e a delicadeza dele vão te conquistar.

Bolo cremoso de jerimum (abóbora)

Aviso: esse bolo está mais perto de um pudim/flan do que dos bolos fofinhos e entupidos de recheios que costumamos ver em padarias. Mas o sabor quase caramelizado e a textura cremosa são um carinho pras papilas. Use o leite vegetal que mais gostar. Em Natal, uso leite de coco fresco e confesso que é o meu preferido (apesar de deixar o bolo um tico mais gorduroso). Aqui na França uso leite de soja e também fica muito bom (a soja, rica em proteína, carameliza até melhor). Um óleo vegetal neutro é ideal (girassol, por exemplo), mas já fiz com óleo de coco e ficou bom, embora o sabor de coco domine tudo (nem todo mundo na minha família aprovou). Pra perfumar o bolo você pode usar canela, uma mistura de especiarias, extrato de baunilha ou, pra ficar deliciosamente brasileiro, cumaru ralado na hora. Mas é opcional. Essa receita faz um bolo pequeno e isso é intencional: assim ele assa de maneira homogênea e atinge a textura ideal (cremosa, mas no ponto de corte). Ainda nutro a ideia de fazer uma versão sem trigo, usando fécula de mandioca ou amido de milho, mas essa versão vai ter que esperar mais um pouco. Dependendo do tipo de leite (se usar leite industrializado adoçado) e do jerimum, você vai precisar de mais ou menos açúcar. Uso 1/2 xícara quando faço esse bolo aqui em casa, porque gosto de bolos com pouco açúcar. Mas quando cozinho pra outras pessoas, uso 2/3 de xícara (o bolo fica doce, mas sem exagero).  

*A medida na receita é uma xícara, mas você não precisa ter uma xícara medidora em casa. Use um copo pequeno ou qualquer caneca pequena que tiver no armário como medida, basta respeitar as proporções (Ex: 2 copos de jerimum, 1 copo de farinha, 1/3 de copo de leite etc).*

2 xícaras de jerimum (abóbora), assado ou cozido no vapor

1 xícara de farinha de trigo

2/3 de xícara de leite vegetal (de coco fresco ou de soja)

1/3 de xícara de óleo vegetal (de sabor neutro)

2/3 de xícara de açúcar (leia explicações sobre o açúcar acima)

Opcional (escolha um):

Canela

Mistura de especiarias (canela + cravo + noz moscada)

Cumaru (ralado na hora)

Extrato (ou essência) de baunilha

Comece assando o seu jerimum. Corte-o pela metade, se for bem pequeno, ou em pedaços médios, se for grande e leve ao forno médio pra assar até ficar bem macio. O tempo de cozimento vai depender do tipo de jerimum e do tamanho dos pedaços, então espete com um garfo pra verificar. 

Quando estiver bem macio retire do forno e use uma colher pra retirar as sementes e separar a polpa da casca. Dependendo do jerimum (abóbora de pescoço ou moranga), eu como com casca, mas descarte essa parte se a sua for muito dura. Meça duas xícaras de jerimum assado (aperte bem na hora de medir) e bata no liquidificador com o leite vegetal, o óleo, o açúcar e a canela, se estiver usando (ou a baunilha, ou o cumaru), até ficar bem cremoso. Por último acrescente a farinha de trigo e bata mais alguns segundos, na velocidade baixa, só até ficar bem misturado. 

Despeje a massa em uma forma pequena (se tiver uma forma de pudim, aquelas com o furo no meio, melhor ainda), previamente untada (com óleo) e enfarinhada, e leve ao forno baixo-médio (180 graus). Não precisa pré-aquecer, já que esse bolo não vai crescer, mas se você assou o seu jerimum, seu forno ainda estará quentinho. O tempo de cozimento vai depender do seu forno, então você vai ter que abrir a porta e verificar algumas vezes (mais uma vez, esse bolo não cresce, então pode abrir a porta do forno sem medo de estragar tudo). O bolo está pronto quando ficar levemente inchado (um pouco como um suflê), as bordas começam a se soltar da forma e a parte de cima ficar bem corada (marrom), como na foto abaixo. No meu forno levou exatos 42 minutos (cronometrei).

Não faça o teste do palito aqui, pois esse bolo sai do forno ainda bem mole. Ele vai ficar firme depois de frio. Por isso tem que esperar ele esfriar completamente antes de degustá-lo.

Rende um bolo pequeno. Se conserva em temperatura ambiente (se colocar na geladeira, a textura muda e fica mais densa).

O Rubacão de Fran

Quem leu meu último post sabe que falei de pratos completos como uma maneira de sair da estrutra culinária especista (carne animal + vegetais como acompanhamentos). Apesar de ser a maneira que cozinho no dia-a-dia há muitos anos, porque é mais prático, rápido e suja menos louça, além de reciclar os restos da geladeira, percebi que tem poucas receitas de pratos completos aqui no blog. Vim engrossar a lista com mais uma e não é qualquer uma, não! Hoje vou compartilhar a receita do famoso rubacão de Fran. 

Conheci Fran através de uma amiga de Recife, Camila, que é uma das leitoras mais antigas do blog. E além de ser uma pessoa maravilhosa, Fran é cozinheira e vegana. Ela cresceu entre o Norte e o Nordeste, mas a família dela é da Paraíba. E na Paraíba tem o quê? Rubacão.

Se você nunca ouviu falar nesse prato emblemático da Paraíba, deixa eu começar dizendo que ele é bem controverso. Algumas pessoas pensam que “rubacão” é sinônimo de “baião de dois”, mas são pratos distintos, apesar de parecidos. Enquanto o baião de dois é composto por arroz, feijão verde, carnes e, opcionalmente, queijo, o rubacão tem tudo isso mais uma dose obscena de nata. Ou seja, dá pra resumir dizendo que é um baião de dois cremoso. Mas aí tem gente que coloca nata no seu baião de dois e a coisa fica confusa. 

Outra informação importante sobre o rubacão: ele é feito com arroz da terra (arroz vermelho), um arroz típico da Paraíba. Esse é o meu arroz preferido e além de ter um sabor maravilhoso, ele é muito rico em amido e adquire uma textura ultra cremosa depois de cozido. É por essa razão que, no RN, sempre preparamos arroz da terra no leite (de vaca ou de coco). 

E como se faz um prato tão especista, com tantos pedaços de animais e suas secreções, em versão vegetal (“vegana”)? Fran tem o segredo. 

A cremosidade, que seria dada pela nata, fica por conta de uma mistura de leite de coco e de amendoim (ambos frescos). Como ela defuma o coco antes de fazer o leite, o prato tem um gostinho defumado que, na cozinha especista, é trazido por algumas carnes de animais. E, falando em carne, na versão vegetal tem cogumelos que, pra mim, é a verdadeira carne da terra, tanto pela textura quanto pelo sabor intenso. O resto segue igual: feijão verde, arroz da terra, coentro, cebola, alho…

Fran usa feijão verde, o que é tradicional no rubacão, mas ouso sugerir (que a deusa tape as oiças de Fran pra ela não ouvir isso!) que com feijão macaça fica ainda melhor.  Pra quem não tem acesso a feijão macaça nem ao feijão verde (que é o feijão macaça colhido antes de amadurecer), o fradinho pode ser usado aqui também. 

Rubacão é um dos meus pratos preferidos e uma riqueza da culinária nordestina. É uma receita elaborada, o que contradiz a declaração que fiz no início desse post (“pratos completas são mais simples e sujam menos louça”). Mas entenda que se trata de um prato pra comemorar ocasiões especiais. Como cada passo dado em direção ao fim do especismo e da supremacia humana.

O rubacão de Fran

Use uma proporção de 2/3 de feijão verde pra 1/3 de arroz cru. Ou, se tiver usando feijão macaça, que é seco, use 1 parte de feijão cru pra 1 parte de arroz cru. A diferença é que feijão verde não aumenta quase nada depois de cozido, contrariamente ao feijão macaça (que dobra de volume). No final queremos aproximadamente a mesma quantidade de feijão e de arroz cozidos. O resto vai sem medidas exatas, basta usar um pouco de bom senso culinário e se deixar guiar pelos seus gostos.

Feijão verde (ou macaça ou fradinho)

Arroz da terra (vermelho)

Amendoim cru

Coco seco

Cogumelo shimeji fresco

Cogumelo shitake seco

Cebola

Tomate

Coentro

Alho

Óleo

Sal e pimenta preta

Na véspera: 

– Coloque o amendoim (descascado, mas com a película) de molho em bastante água fria. Ele deve ficar de molho por pelo menos 12 horas. 

-Coloque o feijão macaça, ou fradinho, de molho (Não precisa fazer isso se estiver usando feijão verde).

-Coloque o arroz da terra de molho (Fran não faz isso, mas eu acho importante pro arroz cozinhar mais rápido e de maneira mais homogênea).

No dia seguinte:

Escorra a água da demolha e bata o amendoim com água limpa. Use aproximadamente 1 medida de amendoim (escorrido) pra 2 medidas de água. Deixe o liquidificador funcionando até a mistura ficar bem macia. Coe o leite de amendoim (idealmente usando um voal, mas pode usar uma peneira de metal fina, se não tiver) e leve ao fogo até ferver (essencial, pois esse amendoim aí tá cru!). Você vai perceber que o leite vai engrossar, o que é normal (e desejável). Reserve.

Faça o leite de coco como ensinei aqui. Se quiser fazer como Fran, coloque o coco seco (depois de ter feito um furo pra retirar a água – procure o olho do coco) diretamente na chama do fogão até ele ficar levemente chamuscado. Isso vai perfumar o coco e seu leite vai ficar com um gostinho de defumado. Depois é só seguir as instruções da receita de leite de coco.

Escorra o feijão macaça (ou fradinho) e cozinhe na pressão com um pouco de sal. Se estiver usando feijão verde, cozinhe em bastante água salgada, mas em uma panela comum (feijão verde  é fresco cozinha muito mais rápido que feijão seco). 

Em outra panela, cozinhe o arroz da terra (pode ser na água do molho) com um pouco de sal até ficar macio. 

Ferva um pouco de água e jogue por cima do cogumelo shitake seco (o suficiente pra cobrir tudo). Deixe hidratar, coberto, por pelo menos 20 minutos. Não precisa usar muito shitake, um punhado já é suficiente pra perfumar uma panela de rubacão.

Enquanto o feijão cozinha e o shitake hidrata, prepare os outros ingredientes. Pique a cebola, o tomate (em quantidades iguais) e o alho e reserve em recipientes separados. Corte (ou rasque) o shimeji em pedaços grandes. Escorra o shitake que estava de molho (reserve o caldo) e corte em pedaços miúdos.

Agora você tem todos os elementos do rubacão (feijão cozido, arroz cozido, leite de amendoim, leite de coco, shitake hidratado e verduras picadas) e só falta juntar tudo e finalizar.

Em uma panela grande e, idealmente, com o fundo grosso, refogue o cogumelo shimeji em um pouco de óleo até ficar bem dourado. Retire da panela e reserve. 

Na mesma panela (não precisa lavar), junte um pouco mais de óleo e refogue a cebola. Quando estiver começando a dourar, junte o alho e refogue por mais alguns segundos. Acrescente o tomate e deixe cozinhar no fogo alto, mexendo de vez em quando, até se tornar um molho espesso. 

Despeje o arroz cozido, o feijão cozido, o shimeji salteado, o shitake hidratado e o caldo do shitake nessa panela, sobre o molho de ceboa/tomate e misture bem. Junte partes iguais de leite de amendoim e de coco, tempere com sal e pimenta preta a gosto e cozinhe em fogo baixo, até tudo ficar borbulhante e bem espesso. Se preciso, vá acrescentando mais leite de coco e de amendoim aos poucos. O rubacão deve ficar bem cremoso, como um risoto. Prove e corrija o sal/pimenta, se necessário. 

Por último junte bastante coentro picado, mexa uma última vez, apague o fogo e deixe descansar, coberto, por uns 15 minutos antes de servir. O sabor fica ainda mais apurado depois do descanso.

O paradigma da mistura – parte 2

No final de novembro eu estive em Porto Alegre e tive o prazer de fazer uma atividade junto com Bruna Crioula e a cozinha solidária do MTST. O evento fez parte da Jornada do Veganismo Popular, que durou todo o mês e aconteceu em várias cidades do país. Naquele encontro descobri que a cozinha solidária do MTST de Porto Alegre serve unicamente refeições 100% vegetais. O responsável pela cozinha explicou que não era uma decisão política: simplesmente não tinha orçamento pra colocar carne no cardápio. Como antiespecista e militante pelo veganismo popular, vou te dizer que isso é político, sim, como tudo que diz respeito ao acesso à comida (ou à falta dela) e quem consideramos como comida. Mas a conversa de hoje não é sobre isso, é sobre outra coisa que descobri naquele dia, relacionada à primeira. Como, por questões econômicas, não dava pra colocar carne no cardápio, o pessoal da cozinha solidária explicou que serve “carne de soja” (proteína texturizada de soja -PTS) todos os dias pra preencher o vazio deixado pela carne animal. 

Mas será que precisamos de carne de soja se quisermos parar de comer, e servir, animais?

Na segunda parte do post sobre o paradigma da mistura gostaria de tratar do aspecto prático: como preparar refeições 100% vegetais e sem algo que “ocupe o lugar da carne” no prato. E concluir com uma reflexão que vai muito além da cozinha e tem um imenso potencial transformador.

Feijão macaça (branco), arroz, jerimum com coco, rúcula e tomate.

Construir uma estrutura alimentar antiespecista: valorizar o vegetal

É comum pensar que se você quer parar de consumir animais, precisa descobrir o que colocar no lugar da carne. Na verdade o que você realmente precisa fazer é repensar a estrutura da nossa refeição principal, o almoço. Ao invés de partir do animal (o protagonista da refeição) e escolher os acompanhamentos (vegetais) em função disso, você vai ter que imaginar um novo padrão de almoço sem essa hierarquia. Diga adeus a estrutura elemento principal + acompanhamentos e passe a ver cada componente do prato como igualmente importante. 

Pode parecer que isso é mais trabalhoso do que comprar um “hambúrguer vegano”, ou um “falso frango”, ou até a ultra popular proteína (carne) de soja, e deixar todo o resto como antes. Mas garanto que embora necessite um pequeno tempo de adaptação no início, logo essa maneira de cozinhar e compor seus cardápios vai se tornar a coisa mais natural do mundo e não vai mais exigir nem um pingo de trabalho mental, nem físico, extra da sua parte. Vai ser tão simples como quando você cozinhava da antiga maneira, a maneira especista. Garanto.

E como colocar isso em prática? Não tem nada de complicado, nem de caro, você vai ganhar em autonomia (adeus dependência do agroalimentar!), não vai gastar dinheiro com ultraprocessados e suas refeições se tornarão muito mais saborosas e nutritivas.

Pra facilitar a compreensão, vou começar fazendo um resumo das duas sugestões principais e depois entro nos detalhes. Minha intenção, como sempre, é promover autonomia alimentar, melhorar a saúde do povo e enfraquecer o sistema especista e capitalista. Prontas? Bora lá.

Tenho duas sugestões de modelo pra te ajudar a criar uma refeição vegetal completa que não precisa de algo pra representar a “mistura”.

1- Feijão + Arroz + Verdura cozida + Verdura crua

(Variações: Farofa/Farinha de mandioca no lugar do arroz. Ou macarrão. Ou cuscuz de milho.)

Nada novo por aqui, já que essa “fórmula” reflete a maneira como a maior parte das pessoas (no Brasil) se alimenta no dia-a-dia, mas continue lendo pra entender o detalhe que faz toda a diferença. Lembrando que, do ponto de vista nutricional, juntar esses 4 elementos (leguminosa + cereal + vegetal cozido + vegetal cru) é o ideal. Mas eu diria que essa combinação também é perfeita pra criar diversidade de sabor e textura e tornar o prato interessante do ponto de vista gustativo.

2- Prato completo (leguminosa + cereal + verdura) + salada

Apesar de combinar os mesmos elementos da primeira fórmula, pratos completos, onde os ingredientes são misturados e acompanhados de um molho saboroso, são um “modelo” visualmente alternativo, onde é mais difícil ter a impressão de que tem um lugar vazio ali, que precisa ser preenchido com uma “mistura” vegetal. Também é uma maneira mais rápida de cozinhar e que suja menos louça.

Agora vamos entrar nos detalhes pra entender o que precisa acontecer pra que esses “modelos” funcionem.

Feijão + Arroz + Verdura cozida + Verdura crua

O segredo aqui é saber preparar cada elemento da melhor maneira possível, pra que cada um deles tenha sabor sozinho e, misturados no prato, os sabores se intensifiquem e se complementem, oferecendo satisfação pras papilas. Como fazer isso? Vou começar aprofundando cada elemento separadamente, depois colocarei tudo junto no final. Ou seja, eu escrevo como cozinho.

Aprenda a preparar feijão (gostoso)

O ponto de partida é saber fazer um feijão gostoso. Cereais e verduras/frutas são igualmente importantes pra nutrir nosso corpo, mas geralmente comemos esses outros grupos de alimentos nas outras refeições, enquanto o feijão só aparece no prato, quando aparece, na hora do almoço. Por isso ele é essencial aqui. Tudo bem se você não comer feijão um dia ou outro, mas procure ter mais almoços com feijão do que sem ele. 

Aqui entra o primeiro detalhe que vai fazer toda a diferença. Pra se livrar do paradigma da mistura e, por tabela, da maneira especista de estruturar a alimentação, seu feijão tem que ser gostoso ao ponto de você sentir prazer ao comê-lo puro. Infelizmente muita gente não sabe fazer feijão, muito menos um feijão gostoso. Por isso o artifício de usar pedaços de animais (charque, bacon), ou temperos artificiais, pra “dar gosto” ao feijão.

Ele é o alimento mais importante da alimentação do nosso povo, a proteína do proletariado e o que sobra no prato quando a carestia leva todo o resto. Devemos muita coisa ao feijão. Então vamos tratá-lo com o respeito e a gratidão que ele merece e aprender a fazer o melhor feijão do bairro. Quiçá da cidade! Experimente as receitas sugeridas abaixo, adapte ao seu paladar até descobrir como fazer um feijão perfeito pra você. E, se puder, compre o melhor feijão que encontrar (sem veneno, da reforma agrária) e varie os tipos. Tem tantas variedades de feijão cultivadas no Brasil que seria um crime não aproveitar! E não esqueça das favas! 

Tutoriais: Como preparar o feijão da minha mãe. E feijão acebolado. E fava com tomate.

Arroz (e farofa)

Assim como no caso do feijão, saber fazer um arroz gostoso, ou farofa (ou os dois) faz parte dos conhecimentos culinários de base. A dupla “feijão com arroz/farinha” faz parte da nossa cultura alimentar e, embora não seja obrigatória pra se livrar do paradigma da mistura, é essencial pra muita gente. Eu como feijão com verduras na maior parte do tempo (como cereais nas outras refeições), mas entendo que a maior parte das pessoas só se sente satisfeita quando almoça feijão com arroz. 

Não tem tutorial pra fazer arroz aqui no blog, porque faço parte do pequeno grupo de pessoas que não faz questão nenhuma de comer arroz no almoço. Mas de farofa, meu bem, eu entendo.

Tutoriais: Ensinei a fazer uma farofa incrível aqui. E postei também a receita da farofa rica (vulgo: “limpa restos da geladeira”), da farofa de beterraba, farofa d’água e farofa de cuscuz.

Dica pro1: farofa é a categoria de prato perfeita pra reaproveitar todos os restos de refeições anteriores podendo se tornar um elemento que agrega muito sabor à refeição com esforço mínimo, ao mesmo tempo que você evita desperdício e cozinha de maneira econômica.

Dica pro2: colocar verduras pra cozinhar junto com o arroz é uma maneira de simplificar suas refeições, além de incrementar o sabor. Aliás, essa dica também vale pro feijão. 

*Um feijão gostoso junto com um arroz com verduras (cenoura ralada, beterraba ralada, talos de couve, brócolis, vagem…ou tudo junto) já é uma refeição completa, que exige pouco trabalho e poucos ingredientes. Junte uma fruta de sobremesa, se puder, e é só alegria!*

Feijão preto, purê de batata (no leite de coco), arroz, abobrinha refogada com tomate, folhas com abacaxi.

Verdura cozida

É aqui que muita gente, sem intimidade com a culinária vegetal, comete os maiores erros. Eu olho pra um chuchu ou pra um repolho branco, dois dos legumes mais acessíveis e, infelizmente, desprezados, e vejo mil possibilidades. Um refogado/ensopado de legume é, pra mim, o elemento de sabor mais intenso na refeição. Feijão e arroz/farinha alimentam e satisfazem, mas um refogado de legume é o veículo perfeito pros temperos e molhos que antes iam parar nas carnes animais. E apesar de comer o mesmo feijão com arroz todos os dias (que você pode preparar uma vez por semana e congelar), variando as verduras refogadas/ensopadas você vai ter a impressão de comer um prato diferente a cada dia com esforço adicional mínimo.

Alguns exemplos de receitas dessa categoria: jerimum com coco, carne de caju, refogado de chuchu com tomate, quiabo salteado, maxixada, quiabo no coco, creme de milho e cebola, repolho refogado

Verdura crua

Prefiro falar de “verdura crua”, ao invés de “salada”, porque muita gente tem uma ideia limitada, e fixa, do que é salada. Geralmente essa palavra é associada a alface + tomate (podendo ter também pepino, cebola e/ou cenoura). O perigo aqui é pensar que se não tiver todos esses ingredientes associados à ideia de “salada”, então não podemos acrescentar um elemento cru à refeição.  E comer verduras cruas não é só uma questão de saúde, é riqueza pro paladar! 

Pode ser só um punhado de rúcula, uma mistura de folhas verdes (rúcula + alface), folhas com frutas, ou apenas cenoura ou beterraba crua ralada. Como eu falei mais acima, além de ser importante, nutricionalmente falando, esse elemento cru realça muito o sabor da refeição e traz contraste de textura (importante pra alegrar o paladar).

Dica pro1: incluir uma fruta crua é o pulo do gato pra fazer as melhores saladas do mundo. Acredite. Deve ser a mistura da acidez (realça sabores) com o contraste doce-salgado que deixa tudo tão gostoso. Abacaxi e manga são minhas frutas preferidas pra comer com o almoço. Mamão e banana vêm em segundo lugar. Muitas vezes a “verdura crua” do meu almoço é simplesmente uma banana e nem tenho palavras pra dizer o quanto amo feijão com farofa e banana!

Dica pro2: um bom molho pra salada pode transformar até um simples punhado de pepino em algo delicioso. Recomendo o molho tradicional pra saladas cruas francês (receita da minha cunhada;) Também expliquei a fórmula pra criar molhos pra salada sempre deliciosos nesse post.

“Certo, mas você tem paladar de vegana (comedora de planta)! Eu não consigo achar um prato de feijão com arroz e repolho refogado gostoso. Falta sabor aí e eu vou, sim, sentir falta da mistura.” Nesse caso a minha resposta é que talvez pra você a segunda sugestão de “fórmula” seja mais interessante:

Prato completo (leguminosa + cereal + legume cozido) + salada

Algumas pessoas não conseguem (ainda) olhar pra um prato de feijão com arroz/farofa e verdura e ver uma refeição completa. Acredito que é porque seu paladar foi moldado dentro do especismo (que vê um pedaço de animal, e suas secreções, como exemplo máximo de sabor), e de uma alimentação limitada, mas também porque, visualmente, elas estão tão acostumadas com o esquema feijão/arroz/pedaço de animal, por isso esperam ver algo similar num prato 100% vegetal.  

Então essa dica não só te faz sair dessa expectativa visual, como é uma maneira mais prática de cozinhar. E falei que cozinhar assim suja menos panelas? Pois é. E sobre a parte “salada”, as dicas no parágrafo “verdura crua” acima se aplicam igualmente aqui.

Alguns exemplos de pratos nessa categoria: arroz com lentilha e legumes, salada de quinoa e feijão preto com molho de laranja, mudjadara (arroz com lentilha e cebola caramelizada)…

Se a sustância vem do feijão, à partir dele basta saber preparar um bom arroz (ou farofa) e tratar os legumes com a atenção e o cuidado que, na culinária especista, são reservados aos pedaços de animais. Cada elemento do prato é gostoso individualmente e, combinados, formam uma refeição rica e que satisfaz o paladar.

Resumindo: você pode substituir a carne por aprender a cozinhar vegetais.

Quando não tem verduras nem frutas na cozinha

Claro que falar de diversidade alimentar pressupõe que você tem acesso a todos esses alimentos, mas saiba que mesmo em tempos de carestia e insegurança alimentar generalizada, essas dicas podem ser aplicadas dentro das suas possibilidades. 

Só tem feijão com farinha pra comer? A importância de saber dar gosto ao feijão, sem recorrer a pedaços de animais (que, de todo jeito, está fora do orçamento de quem se encontra em situação de insegurança alimentar) é ainda maior. Em termos de verdura, só deu pra trazer um pedaço de repolho da feira? Saber prepará-lo da maneira mais saborosa possível é crucial. Só tem restos de alimentos dos dias anteriores na geladeira? Poder transformá-los em uma farofa deliciosa ou em prato completo vai fazer toda a diferença. E se você ganhou umas mangas da vizinha, não é legal saber que elas podem ser combinadas com o feijão preto do almoço e melhorar o sabor da refeição? 

E já que estamos falando de insegurança alimentar, é importante saber que ao invés de gastar o pouco de dinheiro na carteira comprando salsicha (ou outro ultraprocessado animal que acaba aparecendo na mesa da população que não tem dinheiro pra comprar carne animal), é muito mais saboroso e nutritivo comprar feijão, um punhado de verduras e transformá-los em várias coisas diferentes, melhorando a qualidade da alimentação da sua família sem gastar mais.

Voltando ao causo que abriu esse texto, expliquei pro companheiro do MTST que não só ele não precisava incluir obrigatoriamente a carne de soja no cardápio da cozinha solidária, como dava pra usar as verduras doadas ao projeto pelo MST pra aumentar o sabor das refeições sem gastar um tostão a mais. Veja que ao valorizar cada elemento vegetal do seu prato estaremos, num mesmo movimento, valorizando quem plantou esses vegetais. Promover vegetais ao papel de protagonistas da alimentação é o primeiro passo pra dar todo o reconhecimento e valorização que agricultoras e agricultores merecem. 

Achar que é preciso uma “mistura” vegetal pra substituir a carne é seguir reproduzindo a estrutura especista que hierarquiza o alimento vegetal em posição inferior aos corpos (e secreções) animais consumidos pela espécie humana. É seguir vendo um prato de feijão, arroz e verduras como incompleto. E, como eu não me canso de repetir, quem ganha quando vemos a ausência de carne animal no prato como uma lacuna que deve ser preenchida com outra coisa? Os produtores de soja e as grandes empresas do agroalimentar, que enxergam ali uma imensa oportunidade de lucro (hamburguers e linguiças “veganas”). Acompanhada, obviamente, de toda a exploração e destruição impostas por esse tipo de “oportunidade”. Sem falar nas pseudo-soluções tecnológicas, como carne de laboratório.

Pode parecer insignificante, mas sair do paradigma da mistura, animal mas também vegetal (quando essa mistura vegetal representa hambúrgueres e outros ultraprocessados feitos por empresas que lucram com a exploração especista, humana e ambiental), é a chave pra começar a repensar a atual organização social baseada em dominação (capitalismo especista) e construir uma alternativa a isso que seja realmente justa pra todos os seres. 

O paradigma da mistura – parte 1

Em 2020 escrevi um post aqui chamado “O conceito de mistura”. Mais de dois anos depois, continuo concordando com as palavras desse texto e acabei indo ainda mais longe na reflexão. Por isso voltei hoje com um post em duas partes pra aprofundar a questão e também mostrar, com exemplos concretos, o que seria uma maneira de cozinhar e compor pratos livres do paradigma da mistura.

Estive recentemente no Brasil e fotografei vários dos meus almoços em casa, então vou compartilhar essas imagens pra servir de inspiração. Muitas dessas receitas já foram publicadas aqui, como a fava com tomate, o pirão de maxixe, a quiabada (quiabo no coco), a farofa de banana e couve, a minha feijoada, a farofa de cuscuz, a berinjela de dona Laura, a farofa de beterraba, o jerimum com coco

Feijão macaça, farofa de cuscuz, quiabada, couve refogada e salada de folhas e manga

Vou começar copiando aqui o texto de 2020, porque é preciso ler essa parte pra poder entender o que vai seguir.

Uma das perguntas que escuto com mais frequência é: “Como substituir a carne?” Geralmente feita por pessoas que estão pensando em diminuir ou parar de comer animais, ela diz respeito ao aspecto nutricional da refeição. O que a pessoa está perguntando, na verdade, é: “O que preciso comer no lugar da carne pra ter acesso aos nutrientes que antes eu conseguia através dela?”

Mas pra além da questão nutricional, isso também está relacionado a um conceito que herdamos da culinária que vê animais como comida, o conceito de mistura. E é sobre isso que gostaria de escrever hoje.

O conceito de mistura (carne de um animal, visto como o componente principal do prato) tem três camadas: nutricional, de status e gastronômica. Vou tratar da nutrição primeiro e das outras em seguida.

Do ponto de vista nutricional carne não é essencial. Vários povos do mundo vivem sem comer animais, além de nós, veganas, e se isso não é evidência suficiente pra você, a ciência já provou que não precisamos comer animais nem o que seus corpos produzem (ovos, leite) pra viver, nem pra ter saúde.  Logo, você pode substituir a carne por…nada. Ela não precisa ser substituída. 

O tradicional pf segue completo sem a carne (feijão + arroz + salada). Feijão é a melhor fonte de proteína que conhecemos, sem os inconvenientes da carne animal, e é uma excelente fonte de ferro. Se você não tem o costume de comer leguminosa todos os dias, essa é a única adaptação que você precisa fazer pra excluir a carne de animais do cardápio (imaginando que o resto da sua alimentação já é variada, com cereais, frutas, verduras e sementes). Lembrando que leguminosas são o grupo do feijão, lentilha, grão de bico, ervilha e fava. Não sabe como prepará-las? Tem várias receitas aqui, só clicar na página “Receitas”. 

Mas se não precisa substituir a carne por nada (mais uma vez, imaginando que você tem uma alimentação variada, que é a recomendação pra todas as pessoas, veganas ou não), por que pessoas não-veganas, e até veganas, olham pra um prato de feijão+arroz+verduras e acham que está faltando algo? Aqui entra a questão de status.

Na escala de valor da sociedade em que vivemos, comida vegetal ocupa uma posição inferior quando comparada à comida animal. Fomos treinadas a ver pedaços de animais e seus derivados como “mais nutritivos”, mas também com “mais status”. É a comida da elite e isso acaba se tornando o modelo que desejamos seguir. 

Mas tem uma pergunta muito importante por trás disso. Quem ganha com o protagonismo de produtos animais na alimentação? E quem ganha quando a estrela do nosso prato passa a ser o vegetal (fresco)? Respostas: a agropecuária e a agricultura familiar, respectivamente. Aqui começamos a entender os interesses financeiros por trás do mito de que carne é essencial e da fabricação dos nossos desejos alimentares carnistas.

E esse mito/manipulação tem uma versão vegana. Entram em cena salsicha, hambúrguer e agora até frango… vegetal, feitos pelas gigantes do agroalimentar. Isso não é apontamento de dedo pra quem gosta desses ultraprocessados, é um convite pra uma reflexão mais profunda.

Ninguém precisa de “carne vegetal” pra retirar animais e seus derivados do prato. A existência desses produtos, longe de ser uma vitória pro movimento vegano, busca nos manter dependentes da indústria. É isso que está em jogo quando a maior produtora de carne de vaca do mundo lança um hambúrguer “vegano”. E tem mais. Isso perpetua outro mito, o de que é caro e difícil ser vegana. Mas tem mais uma consequência que se relaciona com o assunto de hoje. Produtos que imitam animais reforçam o mito de que feijão com arroz e verdura não formam um prato completo. 

E pra entender a última camada desse folhado, precisamos também entender o conceito de mistura do ponto de vista do sabor.

A culinária que vê animais como comida estrutura o prato ao redor do animal morto. É ele que vai receber o melhor tipo de cozimento, o molho caprichado, os temperos especiais. Junta-se a isso o fato que animais são ricos em proteína e possuem o sabor “umami”. Essa palavra japonesa, que pode ser traduzida como “delicioso”, faz referência ao quinto sabor básico (junto com doce, salgado, ácido e amargo). Carne de animais também tem gordura, um componente chave pra realçar o sabor. Muitas moléculas de sabor são lipossolúveis, ou seja, se dissolvem, e se tornam perceptíveis pras nossas papilas, apenas em contato com gordura. 

Nesse tipo de culinária, o animal é o prato principal, o vegetal é acompanhamento. Por isso vegetais não trazem a mesma carga de sabor, pois estão sempre em segundo plano. E ainda assim pedaços de animais e seus derivados são usados pra realçá-los. Basta pensar na função da manteiga, creme, queijo e bacon em muitas receitas de vegetais. Assim somos induzidas a achar o sabor de vegetais inferior. Retirar o animal do cardápio, mas manter esse padrão de culinária, faz com que o prato vegetal não ofereça a mesma satisfação, pois o elemento que carregava todo o sabor sumiu. 

Essa maneira de cozinhar precisa ser superada. Ela cria necessidades falsas (como os ultraprocessados “veganos” que imitam vaca, frango… pra ocupar o lugar da mistura) e nos impede de apreciar o sabor dos vegetais pelo que eles realmente são. Se libertar do conceito de “mistura” (seja um animal ou algo que imite um produto animal) é o primeiro passo numa importante mudança de paradigma. É passar a valorizar o vegetal e quem planta o vegetal. E é ver valor no vegetal pelo que ele é, não pelo que ele tenta imitar. Como diz meu compa de panela e luta Ruan Felix, “nessa revolução lentilhas serão lentilhas”.

Feijão macaça (branco), pirão de maxixe, jerimum cozido e salada de alface e abacaxi

Culinária vegetal não precisa e, na minha opinião, não deve, ser uma culinária de imitação. São tantos sabores, texturas e possibilidades no reino vegetal que seria uma pena se contentar em simplesmente reproduzir pratos com animais em versão vegetal. Vegetais só parecem coadjuvantes pra quem nunca os convidou pra ser a vedete da alimentação. Preparando certo eles viram a estrela do prato e enquanto você se delicia com a comida vegetal bem preparada, o conceito de “mistura” vai parar de fazer sentido: está tudo saboroso ali e você não sente mais falta de nada. 

(Continua no próximo post.)

Jerimum no coco

Olha isso… Prometi um bolo de jerimum (receita na qual estou trabalhando há quase um ano!), e apareço aqui mais uma vez com outra coisa.

Ontem, enquanto me deliciava com minha receita preferida com jerimum, me dei conta que nunca tinha postado a danada aqui. Até vasculhei os arquivos do blog pra ter certeza, pois me parecia malvadeza demais não ter falado desse jerimum antes. Como deixei isso acontecer?

Essa receita é extremamente simples mas não deixe isso te enganar: o resultado final é delicioso. Outro dia uma pessoa, que já foi cozinheiro profissional, me disse: “Comida vegana é muito complicada.” Baseado em que ele disse isso? No preconceito com a culinária vegetal, naturalmente. Pratos como esse estão aqui pra mostrar que a comida da terra não precisa de muito enfeite pra ficar boa, nem de horas de trabalho árduo na cozinha, nem de ingredientes caros e difíceis de encontrar.

Sirvo esse prato como acompanhamento, no almoço (fica perfeito com feijão macaça/fradinho, como na foto acima) mas também adoro comê-lo como recheio de tapioca (com couve refogada por cima fica supimpa!), e junto com cuscuz (deixa eu dizer que cuscuz com feijão macaça e esse jerimum é uma combinação tão linda quanto nutritiva e saborosa).

Jerimum (abóbora) com coco

Como toda receita com poucos ingredientes, a qualidade deles faz toda a diferença no produto final. Usei jerimum de leite orgânico (meu preferido), que é denso (não é aguado), cremoso e tem um sabor bem doce sem ser enjoativo. A casca dele, depois de cozinha, é macia, então muitas vezes nem descasco. Leite de coco é sempre melhor caseiro. E se coentro não é a sua praia, deixe de fora, ou use salsinha.

Jerimum (abóbora), da sua preferência, em cubos médios (com ou sem casca, como quiser)

Leite de coco caseiro (receita aqui)

Coentro, picado

Cebola, picada

Alho, picado ou amassado

Pimenta de cheiro, picada (opcional)

Óleo ou azeite

Sal e pimenta preta

O ideal é usar uma panela mais larga que funda, de um material pesado (uso uma panela de ferro que está há anos na família) e que tenha tampa.

Aqueça o óleo/azeite e doure a cebola. Junte o alho e refogue por mais 30 segundos. Acrescente os cubos de jerimum, a pimenta de cheiro (se estiver usando), salgue generosamente e mexa com uma colher de pau. Baixe o fogo e tampe. Deixe cozinhar, sem acrescentar água (o jerimum vai soltar água durante o cozimento, que se transformará em vapor), mexendo de vez em quando. Se começar a queimar é porque seu fogo ainda está alto e/ou sua panela tem o fundo muito fino. Se não puder baixar mais, junte um tiquinho de água, só o suficiente pra não grudar.

Quando o jerimum estiver ligeiramente dourado e quase totalmente cozido (isso leva poucos minutos, já que é um legume que cozinha rápido) acrescente leite de coco suficiente pra cobrir tudo e passar só um pouquinho do nível do jerimum. Tampe e deixe cozinhar, sempre em fogo baixo, até o jerimum amolecer totalmente. Uma parte vai virar purê, principalmente se você descascou o jerimum, e tá tudo bem. Prove e corrija o sal, se necessário.

Desligue o fogo e acrescente o coentro picado. Gosto de colocar bastante coentro, mas no dia que fiz a foto, só tinha uns galhinhos na geladeira. Também espremo um pouco de limão no meu jerimum, pra realçar a doçura dele, mas nem todo mundo gosta.

PS Se quiser fazer o melhor purê de jerimum da vida, é só amassar tudo depois de pronto.

Meu território em versão cremosa

Todo mundo (ou quase) conhece e adora hummus, a pasta de grão de bico (“hummus” é grão de bico em Árabe) com tahina (pasta de gergelim). Esse prato árabe, que provavelmente nasceu no Egito e logo se espalhou pela Palestina, Síria, Jordânia e Líbano, é realmente uma das receitas mais maravilhosas que já inventaram, tanto do ponto de vista gastronômico quanto nutricional, e faz parte da alimentação de base dos povos daquela região.

Mas tem lugares por aqui, nessa vasta Pindorama, onde grão de bico é difícil de encontrar e tahina é algo que ninguém nunca viu. E mesmo quando tem tahina no mercado, como é o caso de Natal, minha cidade, ela custa um rim. Por isso há tempos venho pensando em criar receitas de pastas que usem ingredientes locais e baratos, encontrados por todos os lugares, inspirado na combinação mágica leguminosa + oleaginosa.

Como meu país é o Nordeste, faz sentido usar o feijão mais cultivado, e mais consumido, aqui: o feijão macaça (de corda ou fradinho, dependendo da região). Pra nós aqui no RN tem diferença entre o feijão macaça (mais arroxeado) e o fradinho (mais claro, que algumas pessoas aqui chamam de “feijão branco”), mas vi que são variedades diferentes da mesma família e o sabor é praticamente idêntico. E pra acompanhar esse feijão tão popular, que também acontece de ser o mais barato por essas bandas, escolhi o amendoim. Além de ser nativo do território conhecido como Brasil, amendoim é muito mais barato, comparado com oleaginosas. Na verdade amendoim é uma leguminosa, ou seja, é um tipo de feijão. Mas como é muito mais rico em gorduras do que qualquer outra leguminosa, e dá uma pasta cremosa, ele entrou aqui cumprindo o função da tahina no hummus. Sem contar que amendoim é uma ótima fonte de proteína (pergunte ao povo da maromba), deixando a pasta ficou ainda mais nutritiva.

“Ah, mas fica com gosto de amendoim?”. Óbvio, e isso não é um problema! Se você detesta amendoim, sugiro que procure outra receita. Clique na página “receitas” e escolha uma das muitas pastas e patês que já postei aqui. Porém posso sugerir que você teste uma dessas receitas e tente aprender a gostar do bichinho? Você tem tudo a ganhar.

Usar ingredientes locais e baratos, que respeitem nossa cultura alimentar, é importante pra mim. Mas tem que ser muito gostoso também. Então tenho a satisfação de anunciar que servi essas pastas pra minha família e elas foram aprovadas por todas.

A primeira que criei leva só feijão macaça (fradinho), pasta de amendoim, coentro, alho, limão e sal. Ouso declarar que a combinação feijão macaça + amendoim é tão perfeita quanto o clássico árabe grão de bico + gergelim. A segunda pasta fez ainda mais sucesso aqui em casa, graças ao acréscimo de jerimum (abóbora) cozido. Sabia que as nativas do RN somos chamadas de “papa-jerimum”? Essa pasta, que ainda leva um pouco de leite de coco, é o meu território em versão cremosa. Desde que fiz essas pastas ando comendo com tudo: dentro da tapioca, acompanhando macaxeira cozida, cuscuz…

Pelas caridades, não vá imaginar que estou dizendo pra cancelar o hummus! Minha intenção com esse blog sempre foi mostrar a imensa diversidade da comida vegetal e mostrar como a culinária da terra transborda possibilidades. As duas receitas abaixo ilustram isso perfeitamente e são uma opção mais acessível no nosso território. Já falei que elas são deliciosas também?

PS Lembra do hummus cubano que minha irmã me ensinou? Se ainda não fez, saiba que amendoim e grão de bico também dão muito certo juntos. E se amendoim for a sua praia, esse creme fermentado de amendoim é a versão vegetal, descolonizada e muito melhor do requeijão.

Pasta de feijão macaça e amendoim

A ordem dos ingredientes é do usado em maior quantidade pra menor quantidade, assim você tem uma noção das proporções mas as quantidades ficam ao gosto da freguesa. Vá colocando um pouco disso, outro tanto daquilo e provando pra saber se está do seu agrado. Confie no seu paladar.

Feijão macaça/fradinho cozido (reserve um pouco do líquido de cozimento)

Pasta de amendoim (pura, sem açúcar)

Coentro

Alho

Óleo (usei de babaçu, mas qualquer um serve)

Suco de limão

Sal e pimenta preta

Frite o alho picado/amassado em um pouco de óleo (fique de olho pra não queimar). Bata todos os ingredientes no liquidificador, acrescentando colheradas do caldo do feijão, até conseguir uma textura cremosa e densa. Se passou do ponto e ficou líquido demais, junte mais feijão e pasta de amendoim. Prove e corrija os temperos (mais limão? mais sal?), se necessário.

Creme de feijão macaça com jerimum e amendoim

Nessa receita usei uma sobra de jerimum (abóbora) cozinhada com leite de coco (caseiro) e ficou um espetáculo. Pra conseguir um resultado parecido, você pode simplesmente usar um pouco de leite de coco (caseiro) na receita. Mas na falta de leite de coco, basta bater os ingredientes com o caldo do feijão, como na receita acima. Usei a mesma quantidade de feijão e jerimum aqui e a pasta ficou bem suave e cremosa.

Feijão macaça/fradinho cozido (reserve um pouco do líquido de cozimento)

Jerimum/Abóbora, cozida no vapor (com ou sem casca)

Pasta de amendoim (pura, sem açúcar)

Leite de coco – OPCIONAL (receita aqui)

Alho

Suco de limão

Sal e pimenta preta

Frite o alho picado/amassado em um pouco de óleo (fique de olho pra não queimar). Bata o feijão, o jerimum, a pasta de amendoim, o alho frito, o suco de limão, o sal e a pimenta preta no liquidificador, acrescentando colheradas de leite de coco (caseiro) ou do caldo do feijão até tudo se transformar em um creme homogêneo. Prove e corrija o tempero, se necessário. Servi polvilhado com páprica doce defumada, pra ficar bonito ,e ficou ainda mais gostoso.

Jornada do Veganismo Popular – parte 1

No início do ano tivemos a Xepa Ativismo convidou a UVA e os irmãos por trás do projeto Vegano Periférico pra fazer um grande evento em São Paulo celebrando o Veganismo Popular. Uma espécie de festival artístico-político-gastronômico. Meses depois a ideia inicial tinha sido modificada muitas vezes e nasceu a I Jornada do Veganismo Popular, que tinha como tema “Veganismo Popular contra o fim do mundo: construir a libertação animal e combater a fome”. Começou com uma live dia 1/11, pra comemorar o dia internacional do veganismo, e durou todo o mês de novembro. Foi um evento descentralizado e os coletivos que compões a UVA e quiseram participar organizaram eventos em suas cidades de maneira independente.

Além de ter participado da live no dia 1/11, que contou com convidadas muito especiais pra mim (assistam!), tentei acompanhar o trabalho dos coletivos e participar do maior número de eventos que pude. O resultado foi um mês inteiro na estrada, oito cidades diferentes, encontros que me marcaram profundamente, conversas que renderam muita reflexão e me fizeram avançar nas teorias que desenvolvo há anos, muitas descobertas gastronômicas e ter visto uma parte do Brasil que ainda era desconhecida pra mim. E também peguei Covid!

Ainda estou em Natal, me recuperando do cansaço pós viagem e pós Covid (Jesus me abane! não tenho energia pra nada!) e cumprindo minha tarefa principal esse mês: cuidar da minha mãe. Tenho muito o que contar sobre a viagem e, principalmente, sobre os encontros, mas por ora queria compartilhar algumas fotos dos eventos com os coletivos locais. Pela ordem cronológica, aqui estão: Fortaleza, São Paulo, Belém, São Luís, Salvador, Porto Alegre e Recife (Natal fica pra outro dia 😉

Em quase todas as cidades por onde passei tive a honra de dividir o microfone com militantes, praticamente todas mulheres, muito importantes pra construção dessa luta. Minha voz se somou a outras vozes e juntas, nos fortalecemos. Gostaria que todas essas pessoas aparecessem aqui mas infelizmente não tenho foto com todo mundo, só com Ana Felicien e Gisiane Ferreira, em Belém, com Ellen Monielle, em Recife, e com Bruna Crioula, em Porto Alegre.

Essa é a primeira parte de uma série de posts sobre a Jornada do Veganismo Popular, então fiquem no aguardo que vem muita coisa interessante pela frente. Aproveito pra agradecer mais uma vez as pessoas que apoiam o meu trabalho (através do Apoia-se), e que fizeram com que esse tour político fosse possível (do ponto de vista financeiro). Muita gente acredita que, por não ter mais Instagram, parei de militar. A verdade é que continuo militando no terreno, como sempre fiz. Na verdade desde que saí das redes sociais, nunca militei tanto!

Agora com licença que vou tentar fazer um bolo de jerimum (próximo post 😉 antes que minha mãe acorda do cochilo da tarde.

Pastel de caju

Hoje é o dia internacional do veganismo. E esse ano estamos comemorando esse dia logo depois das eleições mais importantes da História recente do Brasil. Sim, o presidente derrotado deixa pra trás um país profundamente destruído e nosso trabalho não terminou com a vitória de Lula. Ele está só começando. Mas sabemos construir também

Com a possibilidade de sonhar novamente, de sorrir de novo, apesar de toda a luta que temos pela frente, hoje eu escolho ficar mais um pouco com a alegria que encheu meu peito domingo.

E como eu nunca tive tanto orgulho de ser nordestina, nós que compomos a única região onde o ódio, o fascismo e o bolsonarismo não venceram e que garantimos a vitória de domingo, quero comemorar com pastel de caju. Porque o caju é nosso e nada grita “Nordeste” tão alto quanto essa fruta maravilhosa. A massa é feita com jerimum, pois sou potiguar e nós somos conhecidas como “papa-jerimum”. Então esses pasteis são uma homenagem ao meu povo nordestino, com uma piscada de olho pra quem é do nordeste do Nordeste, o RN. 

A receita é minha, mas a inspiração veio daquele nordestino lá de Pernambuco, que quer que o povo brasileiro tenha direito à comida boa e de qualidade, três vezes por dia, e que a gente possa escolher o que colocar no prato. Não é sobre fazer churrasco ou comer picanha, é sobre ter acesso pleno à uma alimentação adequada, saudável, suficiente e que respeite nossa cultura alimentar. E somente quando pudermos garantir esse direito ao povo, teremos as bases materiais pra que a exploração animal seja superada. É a condição básica pra conseguir libertação animal. 

Pastel de caju (de forno e com massa de jerimum)

Fazer essa massa vai exigir um pouco de tempo da sua parte, mas o resultado é delicioso e vale a pena. Porem, ninguém vai te julgar se você usar uma massa de pastel pronta (comprada em supermercado) e depois fritar seus pasteis. E também pode usar o recheio de carne de caju pra rechear o que quiser (torta, coxinha, empada, sanduíche), ou degustar como “mistura”.

MASSA DE JERIMUM

1 xícara de jerimum cozido (no vapor) e amassado 

2 1/2 xícaras de farinha de trigo 

3 col. sopa de fubá (usei flocão)

3 col. sopa de óleo (ou azeite)

Sal

RECHEIO DE CARNE DE CAJU

5 cajus 

1/2 cebola, picada miúdo

1/2 pimentão, picado miúdo

2 tomates maduros, picados

3 dentes de alho, ralado ou pilado

4 col. sopa de molho de soja (shoyu)

1 punhado de coentro

1 col. de sopa de óleo

Pimenta de cheiro (usei 3 pimentas biquinho – opcional)

Sal e pimenta preta

Comece preparando a carne de caju. Retire as castanhas e corte os cajus em tiras, no sentido do comprimento (cortei cada caju em 12 tiras). Coloque uma peneira em cima de uma vasilha (pra recolher o sumo do caju) e esprema as tiras de caju entre as mãos. Não precisa retirar todo o sumo, um pouco de líquido é necessário pra deixar a carne suculenta e pra tempera-la. Basta espremer um pouco entre as mãos, pra que a carne não fique muito doce. O sumo pode ser guardado em uma garrafa com tampa, na geladeira, pra ser consumido depois. Ou você pode beber tudo na hora.

Junte todos os outros ingredientes do recheio, menos o tomate e o coentro, misture bem e deixe marinando na geladeira por algumas horas. Idealmente de um dia pro outro (ou faça de manhã pra consumir à noite). O tempo marinando é muito importante: o gosto típico do caju vai ficar bem mais suave e o tempero vai ficar muito mais apurado e saboroso.

Depois do tempo marinando, cozinhe a carne de caju. Aqueça um pouco de óleo em um frigideira grande, despeje a carne (junto com todos os temperos e líquido que tiver se formado) e cozinhe em fogo médio-alto, mexendo de vez em quando, até o caju ficar ligeiramente dourado. Nesse momento junte o tomate picado, tampe e deixe cozinhar, dessa vez em fogo baixo, até o tomate se desintegrar. Prove e corrija o sal, se necessário. Desligue o fogo, junte o coentro e deixe esfriar enquanto prepara a massa.

Prepare a massa. Misture o jerimum cozido e amassado com os outros ingredientes e amasse bem com as mãos. Junte colheradas de água até formar uma massa elástica e que não cole nas mãos. Cubra com um pano de prato e deixe descansar 15 minutos. Aqueça o forno.

Na hora de fazer os pasteis, faça uma bola com a massa e corte em 4, depois divida cada parte em 4 (formando 16 porções de massa). Use as mãos pra formar bolas com cada porção (como se estivesse enrolando brigadeiro). Use um rolo pra abrir cada bolinha de massa, transformando em um círculo (não precisa ser perfeito). A massa tem que ser fina, mas não tão fina quanto massa de pastel que será frito. 

Coloque um pouco do recheio na parte inferior do círculo de massa e dobre a parte superior por cima. Aperte as bordas entre os dedos pra fechar bem. Repita a operação até acabar a massa. Transfira tudo pra uma placa ou forma grande polvilhada com um pouco de farinha (idealmente de metal, pros pasteis ficarem mais crocantes). 

Asse os pastéis (o forno já deve estar bem quente) até ficarem levemente dourados. Eles são melhores quando ainda estão quentinhos, então chame as amigas, a família ou as vizinhas pra comer com você. 

Em defesa da carimã (macaxeira pubada)

Outro dia eu trouxe macaxeira da feira (compro na feira da economia solidária- CECAFES, aqui em Natal, e ela já vem cortada em pedaços e descascada) e, ao invés de já congelar tudo, como fazemos por aqui, deixei um saquinho na geladeira pra fazer bolo de macaxeira no final do dia. Acabei não tendo tempo de fazer o bolo e dois dias depois resolvi cozinhar o saquinho com a macaxeira descascada, que ainda estava na geladeira. Mas quando peguei os pedaços, vi que já estava pubando. Pra quem não conhece esse termo, deixa eu explicar.

Macaxeira pubada, ou carimã, é simplesmente macaxeira fermentada na água. Uma fermentação natural, não precisa acrescentar nenhuma cultura de bactéria ou fungo. Você deixa a macaxeira descascada e cortada dentro de um pote com água, em temperatura ambiente, coberto com um pano (eu coloco a tampa do pote por cima, mas sem fechar) e em alguns dias, dependendo da temperatura da sua cozinha, ela vai fermentar e se transformar em carimã (ou macaxeira pubada, o nome varia dependendo da região). Como saber quando está pronta? A macaxeira deve ficar com uma textura tão mole que pode ser esmagada facilmente entre os dedos. Depois é só descartar a água onde a fermentação aconteceu, que tem um cheiro bem forte, lavar ligeiramente a macaxeira pubada e deixar escorrendo um pouco dentro de um pano (se for usar a puba pra fazer panqueca, que é a receita que vou compartilhar mais na frente, nem precisa fazer isso).

A massa pubada pode ser usada em um número enorme de receitas. Como o meu bolo de carimã com goiabada, mas também pra fazer mingau de carimã. Se quiser um passo-a-passo de como pubar macaxeira, Neide Rigo, que é uma grande professora pra mim, explicou tintin por tintin nesse artigo.

É um processo extremamente simples e quem mora nessa quentura do Nordeste (e, imagino, do Norte), não vai ter dificuldade nenhuma em pubar macaxeira em poucos dias. A prova: depois de ter passado o dia dentro d’água, na feira, e de ter feito a viagem entre a feira e a minha casa, na hora mais quente do dia, a macaxeira começou a pubar sozinha. Prossegui a pubagem na minha cozinha e em cinco dias ela estava pronta pra ser consumida. (Como toda fermentação, o tempo varia de acordo com a temperatura da sua cozinha.)

Carimã faz parte da cultura alimentar do Nordeste e Norte, mas infelizmente está desaparecendo nessa parte do território nordestino de onde venho (RN). Eu mesma só comecei a cozinhar com carimã no ano passado! Escutava as mais velhas falarem de um tal de mingau de carimã e de uma tia-avó era famosa por seu bolo de carimã, mas cresci sem provar essas delícias. Fazia tempos que eu queria incluir esse alimento no meu repertório culinário, mas achava que era difícil fazer em casa. Mas pubar macaxeira não poderia ser mais simples e eu incentivo todo mundo a usar essa técnica que nos foi transmitida pelos povos indígenas. Originalmente, a macaxeira era amarrada em redes e deixada dentro do rio por vários dias, até pubar. E além de honrar a nossa cultura alimentar, macaxeira pubada/carimã tem um sabor delicioso e pode ser usada em receitas doces ou salgadas.

Eu anda fazendo panquecas de carimã quase todos os dias, pra comer no café da manhã e no lanche. Mas tenho planos de explorar o potencial gustativo da carimã em muitas outras receitas. Como tem aquele azedinho típico de alimentos fermentados, desconfio que ela tem o potencial de temperar e dar liga em receitas onde tradicionalmente se usa queijo animal. Estou pensando em usá-la na minha receita de pão de macaxeira (a versão vegetal do pão de queijo), pois acho que vai enriquecer muito o sabor, e também quero tentar uma versão de dadinho de tapioca com carimã. Aguardem.

Mas vamos começar com uma receita simples, rápida e que você pode incrementar de muitas maneiras.

Panqueca de carimã (macaxeira pubada)

As explicações de como pubar a macaxeira estão no texto acima ou, de maneira mais completa e detalhada, nesse artigo de Neide Rigo. Depois de pubar minha macaxeira, deixo em um pote fechado, coberto com água limpa, dentro da geladeira e vou usando durante a semana. Se conserva vários dias na geladeira (durou uma semana inteira aqui em casa, mas talvez se conserve até mais).

Carimã (não precisa ser escorrida no pano, basta tirar da água e apertar um pouco entre as mão pra retirar o excesso de água)

Sal a gosto

Azeite/óleo pra cozinhar

Peque uma quantidade suficiente de carimã, dependendo de quantas panquecas quiser fazer, e retire o pavio dos pedaços. Se tiver comprado massa de carimã pronta, não precisa fazer isso. Amasse a carimã escorrida com um garfo (ela deve estar bem macia e se desmanchar sem esforço) e tempere com sal a gosto. Nesse ponto você pode acrescentar ervas, temperos, verduras picadas…

Espalhe um pouco de óleo/azeite em um frigideira antiaderente, de preferência com o fundo grosso. Coloque um pouco de carimã na frigideira (fria) e espalhe com as costas de uma espátula até formar um círculo de espessura média (pode ser mais fina, pra ficar mais crocante, ou mais espessa, pra ficar mais macia). Leve ao fogo baixo, coberto com um tampa, e deixe cozinhar até as bordas começarem a ficar douradas e a panqueca puder ser virada facilmente. Cheque levantando a borda da panqueca com a espátula. Isso leva de 5 a 10 minutos, dependendo do tamanho e espessura da sua panqueca. A parte superior vai ficar seca, então regue com mais um fio de óleo/azeite e vire pra dourar do outro lado (mais 2-3 minutos).

Você pode degustar sua panqueca pura ou recheada com o que quiser. Na foto acima servi com queijo de castanha fermentado (tem a receita aqui, mas fiz uma versão mais simples, usando um pouco de água de kefir pra fermentar e temperando só com sal) e um resto de vinagrete do almoço.

Pra expandir seu repertório de cuscuz

Ele é a base do café da manhã e jantar do povo nordestino. E pode virar almoço, quando a precisão é grade. Já expliquei, passo a passo, como fazer cuscuz (simples e com leite de coco) nesse post. Cuscuz bom, fofinho e macio, não a versão esturricada que algumas pessoas (mesmo no Nordeste) insistem em preparar. Saber fazer um cuscuz gostoso e honrar nossa cultura alimentar é importante. E hoje vim expandir seu repertório de cuscuz.

Com a insegurança alimentar no Brasil aumentando a cada dia que passa (enquanto escrevo essas linhas, 60% da população se encontra em algum grau de insegurança alimentar), o cuscuz passou a representar uma parte ainda maior da alimentação das pessoas nordestinas. Por isso pensei em compartilhar três receitas simples e baratas à base de cuscuz. Na verdade, à base de flocão, que é a farinha de milho flocada e pré-cozida, a mais usada pra fazer cuscuz aqui. Além de variar a alimentação de quem está comendo cuscuz todo dia, elas mostram as inúmeras possibilidades desse ingrediente tão barato e acessível.

Torço pra que em breve esse projeto político de morte e fome no Brasil, também conhecido como “necropolítica”, chegue ao fim. Nos últimos quatro anos a destruição foi gigante, mas nós, o povo, sabemos construir também. E pra nos dar força, bora comer cuscuz!

Cuscuz com quiabo

Essa é uma versão com quiabo do “cuscuz com coco e verduras” que faço o tempo todo na casa da minha família. Além do sabor, o quiabo enriquece o prato com uma boa dose de cálcio. Comam mais quiabo, meu povo! (Mais receitas de quiabo aqui e aqui )

Flocão de milho (ou fubá)

Leite de coco fresco (receita aqui)

Quiabo

Cebola

Pimentão verde (ou outra cor)

Tomate

Alho

Coentro

Sal e pimenta preta a gosto

Óleo (ou azeite)

Prepare um cuscuz com leite de coco, como ensinado nesse post.

Enquanto isso corte o chapéu de alguns quiabos e parta no meio, no sentido do comprimento. Escolha quiabos pequenos e verdes, pois esses são os melhores. Os grandes já estão maduros e cheios de fibras duras. Aqueça um pouco de óleo em uma frigideira e grelhe os quiabos dos dois lados, até ficar com vários pontos dourados/marrom. Tempere com sal. Depois de grelhado, corte o quiabo em pedaços pequenos.

Pique a cebola e o pimentão e refogue por alguns minutos no óleo quente. Junte o alho picado (ou amassado), refogue mais alguns segundos e acrescente o tomate picado. Quando o tomate começar a amolecer, desligue o fogo. Tempere com sal e pimenta preta.

Misture o cuscuz pronto (já abafado com o leite de coco) com as verduras refogadas, mais o quiabo grelhado e picado e o coentro picadinho. Prove e corrija o sal, se necessário.

Farofa de cuscuz com feijão macaça e amendoim

Fazer farofa com restos de cuscuz é um grande clássico da culinária de carestia. Falam muito em “desperdício zero” (ou “zero waste”, na versão gourmetizada), mas a verdade é que a população empobrecida sempre cozinhou (e viveu) assim, por necessidade, muito antes de virar um “lifestyle”. Feijão + milho + amendoim = nossa cultura alimentar juntas num prato. Além de ser uma combinação nutricionalmente completa (leguminosas -feijão, amendoim- com cereal – milho).

Restos de cuscuz (pode ser o simples, com coco ou com quiabo)

Restos de feijão macaça (ou algum feijão que dá caldo ralo, como o fradinho)

Amendoim torrado e picado (usei xerém de amendoim, que é bem quebradinho)

Uso duas medidas de cuscuz pra uma medida de feijão, mais um punhado de amendoim. Mas você pode adaptar as quantidades pro seu gosto. Em seguida é só misturar tudo numa frigideira, esquentar um pouco e chamar de farofa. Como é uma “farofa” bem úmida e nutritiva, também como como prato principal, no jantar.

Se quiser uma farofa mais crocante, use menos feijão, deixe o cuscuz secar um pouco na frigideira (acrescente um pouco de óleo/azeite pra dar uma douradinha) e capriche no amendoim picado.

Panqueca de flocão de milho

Postei uma versão mais elaborada dessa panqueca no começo do ano (panquecas de milho e grão de bico). Essa é a versão simples e mais acessível, que pode ser degustada com recheios salgados ou doces.

Flocão de milho (ou farinha de milho fina)

Água

Sal a gosto

Misture o flocão com água suficiente pra molhar bem a massa (mais água do que você usaria par hidratar a massa do cuscuz), mais sal a gosto. Pra fazer uma panqueca pequena usei 3 colheres de sopa bem cheias de flocão e aproximadamente 6 colheres de sopa de água. Deixe repousar por pelo menos 5 minutos. Isso é importante pra hidratar a massa. Depois do tempo de descanso o flocão deve estar inchado, mais macio e não deve ter água sobrando no fundo.

Espalhe essa massa sobre uma frigideira anti-aderente fria, dando uma forma circular (ou a forma que quiser). Coloque a frigideira no fogo e cubra com uma tampa. Deixe cozinhar em fogo bem baixo até sentir um cheiro de cuscuz cozido e a panqueca se soltar facilmente do fundo. Leva menos de 10 minutos, então fique por perto. Use uma espátula pra virar a panqueca e cozinhar do outro lado por mais 2-3 minutos. Se quiser, espalhe um fio de óleo ou azeite sobre a panqueca antes de virar pra ficar dourada e mais saborosa.

OBS Se sua frigideira não for realmente antiaderente, você vai precisar untá-la com óleo antes de formar a panqueca.

Sirva com o recheio que preferir. Aqui usei abacate (temperado com sal e limão), tomate, rúcula e coentro. Na versão doce fica uma delícia com banana em rodelas, pasta de amendoim e um fio de melado (mel de engenho).

Nordeste na mesa

Estou mais uma vez em terras potiguares e mesmo tendo nascido e crescido aqui, ainda me encanto com a abundância de comida vegetal boa que encontramos no meu país, o Nordeste. Aqui tem tanta receita tradicional que é naturalmente vegetal, uma imensidão de frutas e verduras maravilhosas, além do coco, da castanha, do gergelim, que pra mim é o melhor lugar do mundo pra ser vegana. E se você juntar a isso o fato que quase 50% das unidades de agricultura familiar se encontram nessa região e que o veganismo popular é muito forte aqui, a conclusão é a seguinte: temos todas as condições reunidas pra organizar a revolução antiespecista à partir do Nordeste. Mas voltemos à comida.

Antes de começar a postar receitas do meu território, como faço sempre que estou nessa parte do Brasil, pensei em fazer uma lista das que já publiquei aqui e que, não por acaso, são alguns dos meus pratos preferidos. Bora lá.

Café da manhã no Nordeste pra mim é tudo! E como é mais comum comer à noite o que comemos de manhã (comida “de jantar” e “de café da manhã” sempre foi a mesma coisa pra mim ), o que acho bem prático, saber fazer a base dessas refeições é extremamente importante. Sem falar que esses pratos também podem ser degustados no lanche. Tapioca e cuscuz estão para a nordestina como o oxigênio está pras não-nordestinas. Mas tudo começa com leite de coco. Utilizado nas receitas do café/jantar/lanche, nas sobremesas e também pra tomar com café ou fazer vitaminas de frutas.

Como fazer leite de coco

Como fazer cuscuz (e com coco)

Como fazer tapioca

Tapioca com coco

Tapioca com coco recheada com pasta de amendoim e banana.

Os pratos nordestinos de almoço que já publiquei aqui são tradicionais e naturalmente 100% vegetais, embora um pouco esquecidos, como o macaco de feijão macaça, a maxixada e a quiabada. Aliás feijão macaça, quiabo e maxixe são alguns dos símbolos culinários mais fortes no meu território. Outros pratos são tradicionais, mas ligeiramente adaptados, como a farofa d’água (que geralmente é feita com manteiga da terra). Na verdade quase todos os pratos tradicionais são feitos hoje com manteiga e nata de leite de vaca, mas quando puxamos pela memória dos mais antigos, descobrimos que nem sempre foi assim, já que esses ingredientes eram raros e ainda são muito caros.

Tem um dos meus pratos preferidos da vida, o pirão de maxixe, que até entrou no cardápio do restaurante vegano “Papoula Culinária Saudável”, em João pessoa. Eu inventei esse prato num dia que estava com muita vontade de comer pirão, que é tradicionalmente feito com carne ou peixe, mas descobri depois que existem versões de pirão com maxixe, porém sempre misturado com carne de animais. Tem a famosa moqueca de caju, que é, na minha opinião, a melhor moqueca vegetal de todas. Sou suspeita pra falar, pois amo caju, mas teste aí e me diga se ela não é um desbunde. E não podia deixar a fava de fora, ela que é a rainha dos feijões. Essa receita também é minha (ou seja, nunca comi em outro lugar preparada desse jeito), mas o ingrediente principal é tão emblemático do Nordeste, e o sabor é tão maravilhoso, que tenho certeza que um dia ela vai fazer parte do repertório de receitas tradicionais nordestinas.

Macaco de feijão macaça

Maxixada

Quiabo no coco (quiabada)

Farofa d’água

Pirão de maxixe

Moqueca de caju

Fava com tomate

E os doces? Eu, que não sou uma grande apreciadora de doces, adoro as sobremesas tradicionais do Nordeste. Não as versões colonizadas pela empresa do capeta, aquela que começa com Nes e termina com Tlé, e que convenceu a população brasileira que tem que colocar leite condensado em absolutamente tudo. Escrevi longamente sobre isso e se você ainda não leu meu post sobre o assunto (Sobre leite condensado, queijo e o que o veganismo tem a ver com isso) recomendo muito. Mas saiba que antes dessa colonização das nossas mesas (e paladares), o meu amado leite de coco abundava nas nossas sobremesas. Meu bolo preferido de todos os tempos é o de macaxeira, que também leva coco. Também adoro a versão com carimã, que é como chamamos a macaxeira pubada (fermentada), e goiabada. E, pros dias quentes, que aqui no Nordeste significa “todo dia”, o creme de tapioca com frutas é a coisa mais perfeita do mundo: leve, delicado e cheio de sabor.

Bolo de macaxeira com coco

Bolo de carimã e goiabada

Creme de tapioca com coco e abacaxi caramelizado ou manga

À partir da semana que vem vou publicar mais receitas do Nordeste, pra aumentar essa lista. E se você gostaria de aprender a preparar algum prato típico do meu território, ou gostaria de saber mais sobre um ingrediente típico daqui, é só falar.

Nenhuma trégua pro especismo!

Lembra da série de entrevistas com pessoas veganas que comecei muitas luas atrás? Hoje voltei com mais uma.

Conheci Féli em 2019, durante uma ação de Extinction Rebellion em Paris: uma ocupação em pleno centro da cidae, que durou uma semana inteira. Eu precisava entrevistar alguma jovem que participava da organização, pra uma matéria que Anne estava fazendo sobre jovens e a luta contra mudanças climáticas. Quando o vi pensei: “Essa pessoa parece ser bacana” e fui lá entrevista-lo. Eu não estava enganada e nos tornamos amigas naquele dia. Féli (pronuncie “Fê-li”, com acento tônico no “i”, ou seja, é uma palavra oxítona) é uma das pessoas mais interessantes e generosas que conheço. Mas o que mais me impressiona é a sabedoria dele, apesar de ser tão jovem.

Ele é francês (metade português), vive numa ocupação em Marselha, uma grande cidade no sul da França, mas estava de passagem pela região parisiense semana passada. Sempre que ele está no meu território, damos um jeito de nos encontrar, colocar as novidades em dia e fazer consultas mútuas (ele me ensina coisas da realidade dele, eu ensino coisas da minha). Dessa vez aproveitei pra entrevista-lo pela segunda vez, só que agora, pro blog. Além de vegano, Féli é anarquista, não-binário e completamente doido por tofu.

O que é veganismo pra você?

É a prática concreta do pensamento revolucionário antiespecista.

Por que você é vegano?

Porque existir num mundo onde humanos torturam e matam tantos, tantos, tantos coabitantes do planeta dói demais. Tinha esse fogo que queimava forte e ocupava um espaço grande em mim. Aí um dia eu aprendi que isso tinha nome, que se chamava “antiespecismo” e que o veganismo era a sua prática. Então chegou um momento em que eu disse: “Essa convicção, que está crescendo dentro de mim, na minha cabeça e no meu coração, precisa existir aqui fora”. Foi então que eu decidi fazer algo a respeito e me tornar vegano.

Você se tornou vegano da noite pro dia ou foi um processo longo? Passou por uma fase vegetariana?

Eu tive uma fase vegetariana antes de me tornar vegano, mas por razões econômicas, não ideológicas. A questão da exploração animal era algo que me revoltava há bastante tempo, no entanto eu não transformava isso numa prática concreta. Nessa época eu ainda estava mergulhado na dissonância cognitiva. Mas cinco anos atrás eu estava morava com um amigo e a gente teve acesso a materiais sobre antiespecismo e veganismo. Então de repente a ficha caiu. Eu entendi o que está por trás de produtos de origem animal, as consequências dessa produção no mundo. E à partir daquele momento tudo que o nosso super cérebro é capaz de criar pra manter a gente na dissonância cognitiva parou de funcionar. Em seguida veio uma vontade forte de agir e a mudança aconteceu facilmente.

Como destruir o especismo?

Ensinando aos humanos e humanas que estão chegando nesse planeta, e as que já estão aqui, novas formas de se relacionar com os seres vivos. Aprender a ter estima pelos seres ao nosso redor é, pra mim, a chave de muitas coisas. Em seguida conhecer o funcionamento do sistema econômico sob o qual vivemos, das estruturas especistas, colonialistas, de todas as relações de dominação em vigor, pra que possamos entender como elas se manifestam no nosso consumo. E com isso poderemos abrir espaços onde humanos e humanas possam criar conexões com os camaradas não-humanos ao nosso redor. 

Esse conhecimento já está disponível pra maioria das pessoas, mas elas escolhem ignorá-lo. É muito difícil mudar a relação que temos com o resto do mundo e, sinceramente, acho que pra algumas pessoas isso não mudará nunca. Só nos resta esperar que elas não estejam mais aqui. Mas pras pessoas que estão chegando no planeta agora, isso deve ser uma prioridade. A mudança virá daí.

Você acha que vai ver o fim do especismo durante a sua vida?

Uma parte de mim diz “não”, mas eu acho que vou ver a evolução em direção a um mundo sem especismo. E é isso que conta.

Como falar da luta antiespecista com militantes de esquerda? Cansei de ouvir de camaradas que “é preciso desconstruir todas as formas de dominação!”, mas quando começo a falar da dominação humana sobre animais outros que humanos, essas mesmas pessoas se transforma nas guardiãs do especismo.

Que a pessoa seja de esquerda ou não, é normal se aproveitar do especismo. É fácil achar que podemos continuar a dominar todos os outros seres vivos. É fácil, pra quem é humana, continuar a existir num mundo especista.  Mas quando penso especificamente em camaradas da esquerda, acho que é importante continuar produzindo material informativo e construindo espaços onde podemos conectar a luta antiespecista com outras lutas. E, mais uma vez, é importante trabalhar pra desenvolver estima pelo mundo ao nosso redor e todos os seres que o habitam.

Imagine que é o fim da sua vida. Uma longa vida de alegria, luta e festa. Qual seria a sua última refeição?

Posso escolher vários pratos? Pães e pastas pra compartilhar com as pessoas. Tofu com alho selvagem. Um mexidão com arroz, feijão vermelho, tomate e muita cebola. Rolinhos primavera e samossas, ambos recheados com legumes. E mais tofu. De sobremesa eu pediria um bolo com várias camadas. Algo cremoso, gorduroso, crocante, um pouco de tudo. A gente fez todas as revoluções do mundo? (Respondo que sim, já que estamos sonhando. E que, de todo jeito, quando ele estiver velhinho o aquecimento global vai estar tão intenso que provavelmente já estaremos plantando cacau na França.) Então esse bolo seria de chocolate.

Que conselhos você daria às pessoas que querem se tornar veganas? Os três conselhos que, na sua opinião, são os mais importantes.  

1- Se aproximar de outras pessoas que sejam veganas por razões antisepecistas e, se possível, se organizar em um grupo ou coletivo com elas. Isso é muito importante.

2- Aprender a se alimentar bem. Isso também é muito importante. Reserve um tempo pra aprender as bases da nutrição, do que o seu corpo precisa e descobrir a imensidão de possibilidades no mundo vegetal. Em seguida se divirta cozinhando e provando novos sabores. Não coma só abobrinha cozida na água! Você não vai conseguir ter sustento desse jeito. E não esqueça de tomar a sua B12! Se informe e veja como é gostoso se alimentar bem. 

3- Entenda que, pra algumas pessoas, existem obstáculos pra aderir à pratica vegana que vão além do especismo. O especismo é o obstáculo principal e esmagador, mas no dia-a-dia de muita gente pode ter outras razões que as impedem de ir pro lado vegano da força. É importante não desprezar essas pessoas, não olha-las com superioridade e tentar entender essas razões. Isso é essencial pra poder avançar. Não esqueça que o verdadeiro inimigo é o especismo. A luta é contra ele e aí, nesse caso, não daremos trégua!

A terra das laranjas tristes

Eu estava voltando pra casa no final da manhã quando me deparei com um poster de Ghassan Kanafani na entrada de um dos maiores CoHabs aqui da minha cidade. Há tempos penso em compartilhar um texto dele no blog e vi esse encontro inesperado como um sinal de que eu tinha que fazer isso hoje.

Ghassan Kanafani foi um escritor e militante palestino, expulso de sua terra natal pelas tropas sionistas quando ainda era criança (durante a Nakba, entre 1947-1948), que lutou durante toda a sua vida pela liberdade e autodeterminação do povo palestino, contra o colonialismo e o imperialismo. Kanafani foi assassinado em 1972 pelo Mossad, o serviço secreto israelense, quando tinha apenas 36 anos. Se algum dia você tiver a sorte de encontrar um dos romances dele no seu caminho, não perca essa oportunidade de mergulhar na literatura palestina. Mas o texto que traduzi (do Francês) pra vocês é o começo de um conto, inspirado na sua história pessoal, chamado “A terra das laranjas tristes”. Nesse conto acompanhamos uma criança que é forçada a deixar sua cidade, Jafa, no litoral palestino, e se torna refugiada no Líbano.

Esse conto me fez chorar todas as vezes que o li. Entrevistei várias pessoas que sobreviveram a Nakba, a “catástrofe”, quando as tropas sionistas fizeram uma limpeza étnica da Palestina, pra criar o futuro Estado de Israel, e dois terços da população do país se tornou refugiada. Ouvi-las sempre enchia meu coração de tristeza e revolta, mas, como expliquei acima, esse conto mostra o processo de perder seu lar, sua terra, seu país, tudo que te é caro e se tornar refugiada através dos olhos de uma criança e a tragédia é contada com uma imensa delicadeza. Só lendo pra entender.

A terra das laranjas tristes

Quando partimos de Jafa para Acre, não havia sensação de tragédia. Parecia uma viagem anual para passar o feriado em outra cidade. Nossa estada em Acre não me surpreendeu: talvez, por ser jovem, estivesse até feliz com isso, pois a viagem me fez faltar à escola…

No entanto, na noite do grande ataque à Acre a situação ficou mais clara.

Aquela noite foi difícil para você e para mim.

Foi, penso eu, uma noite cruel, passada entre o silêncio rígido dos homens e as invocações das mulheres. Minha espécie, você e eu, éramos jovens demais para entender o significado de toda essa história. Naquela noite, no entanto, alguns fios da história se acenderam.

De manhã, enquanto os judeus recuavam ameaçando e fumegando, um grande caminhão estacionou em frente à nossa porta.

Coisas leves, principalmente roupas de cama, foram jogadas no caminhão, rápida e histericamente. Eu estava encostado na velha parede da casa e vi sua mãe entrar no caminhão, depois sua tia, depois os pequenos e então seu pai começou a colocar você e seus irmãos no carro, por cima da bagagem.

Então ele me agarrou no canto onde eu estava e, levantando-me acima de sua cabeça, me depositou no compartimento de metal em forma de gaiola acima da cabine do motorista, onde encontrei meu irmão Riad sentado em silêncio.

O veículo deu partida antes que eu pudesse encontrar uma posição confortável. Acre desapareceu aos poucos nas curvas da estrada que subia em direção a Rass El-Naqoura.

O tempo estava um pouco nublado e uma sensação de frio invadiu meu corpo.

Riad, com as costas apoiadas na bagagem e as pernas na beirada do compartimento de metal, estava sentado muito quieto, olhando ao longe.

Eu ia sentado em silêncio, o queixo entre os joelhos e os braços entrelaçados.

Um após o outro, os pomares de laranjeiras desapareceram e o veículo subiu ofegante sobre o chão úmido…

Ao longe, o som de tiros de canhão soava como uma despedida.

Rass El-Naqoura surgiu no horizonte, envolta em uma névoa azulada e o veículo parou de repente.

As mulheres saíram de trás das bagagens, desceram e atravessaram na direção de um vendedor de laranjas, sentado na beira da estrada.

Ao voltarem com as laranjas, o som de seus soluços nos alcançou.

Só então as laranjas ficaram claras para mim: cada uma dessas frutas grandes e saudáveis ​​era algo a ser apreciado.

Seu pai saiu do lado do motorista, pegou uma laranja, olhou para ela em silêncio e começou a chorar como uma criança indefesa.

Em Rass El-Naqoura, nosso veículo se juntou a muitos outros semelhantes.

Os homens começaram a entregar suas armas aos policiais que estavam ali para isso.

Então chegou a nossa vez. Vi pistolas e metralhadoras jogadas sobre uma grande mesa, vi a longa fila de grandes veículos entrando no Líbano, deixando para trás as estradas sinuosas da terra das laranjas e então também chorei amargamente.

Sua mãe ainda olhava silenciosamente para as laranjas e todas as laranjeiras que seu pai havia deixado para os judeus brilhavam nos olhos dele. Como se todas aquelas belas árvores que ele havia comprado uma a uma estivessem refletidas em seu rosto… E em seus olhos, as lágrimas, que ele não conseguiu esconder do policial, brilharam.

Quando, à tarde, chegamos a Saida, tínhamos nos tornamos refugiados.

(Texto traduzido por mim, do Francês. Esse é apenas o início do conto “A terra das laranjas tristes”, de Ghassan Kanafani, publicado em 1963.)

PS Na foto acima vemos, ao lado da imagem de Ghassan Kanafani, cartazes pedindo a liberação de Salah Hamouri, um prisioneiro político franco-palestino. Hamouri é advogado e trabalha na organização de defesa de prisioneiros políticos palestinos Adameer. Vítima da repressão israelense há anos, ele se encontra mais uma vez em “detenção administrativa”. “Detenção administrativa” é algo utilizado frequentemente por Israel contra o povo palestino e significa ser preso ou presa sem acusação formal e sem julgamento, por tempo indeterminado.

Sobre sotaques e preconceito linguístico

Recentemente escutei o episódio “Nordeste: fome, falta e manipulação” do podcast Prato Cheio. Na introdução do episódio podemos ler: “Ser nordestina é carregar consigo, na origem, nos sotaques, uma série de estigmas advindos de um país extremamente classista.” Recomendo muitíssimo esse episódio, que ajuda a entender a construção da xenofobia anti-nordestinas. 

Quando eu tinha perfil no Instagram rolava uma conversa recorrente com o pessoal que me seguia por lá sobre sotaques. Foram tantos comentários sobre o meu sotaque, sobre a maneira que eu chamava certos alimentos, que um dia eu escrevi provavelmente a série de stories mais longa que aquela plataforma já viu pra falar desse assunto. E a repercussão foi imensa. Desde que escutei o interessantíssimo episódio sobre o Nordeste fiquei com vontade de trazer aquela conversa pra cá. Felizmente eu achei o rascunho da série de stories sobre sotaques, rescrevi algumas partes e completei outras e o resultado é o que você vai ler a seguir.

Se você não sabe ainda, sou de Natal, RN. Na esquina do Nordeste. Mas acredito que não dá pra acompanhar meu trabalho por mais de alguns minutos sem perceber isso. Seja pela quantidade de coentro nas minhas receitas, ou, se você viu algum vídeo ou escutou uma participação minha em algum podcast (está tudo listado na página Mídia), pelo meu sotaque. E é disso que eu vim conversar com vocês hoje: sotaques. Na verdade, sobre preconceito linguístico e como a cultura nordestina é invisibilizada ou objetificada. Não vai ter coentro, então, galera que odeia essa erva, continue por aqui.

Muitas luas atrás postei a receita da minha releitura de um prato típico nordestino, que a minha mãe fazia pra mim quando eu era criança: caldo da caridade. O ingrediente principal desse prato é caldo de feijão macaça e logo no início do texto eu coloquei entre parênteses “fradinho” pra que as pessoas de outros lugares entendessem de que feijão eu estava falando. 

Mesmo assim uma pessoa me perguntou (lá no Instagram) se “macaça” era o nome daquele feijão em Francês.

Fiquei muito surpresa. Francês? Achei que, já que eu estava falando de uma receita nordestina, seria óbvio que a palavra fazia parte do vocabulário nordestino. Eu nunca fui na região Norte (meu sonho) e conheço pouco as tradições culinárias de lá. Mas se estivesse lendo uma receita de lá e topasse numa palavra desconhecida pra mim, deduziria que é algo típico. Se a pessoa escrevendo a receita tivesse dado um sinônimo conhecido pra mim, eu diria “ah, então é assim que chamam X no Norte.”

Pra mim é importante usar o meu vocabulário, principalmente numa receita tão carregada de memória afetiva. Mas tenho plena consciência que não é em todo lugar do Brasil que esse feijão é conhecido como “macaça”, por isso fiz questão de incluir também “fradinho”, que é mais conhecido.

Algumas leitoras nordestinas (ainda no Instagram) até puxaram minha orelha depois, com razão, quando eu respondi “isso não é Francês, não, no Nordeste falamos assim”, pois no estado delas não usam essa palavra. O Nordeste é vasto e longe de ser homogêneo e eu deveria ter dito “na minha parte do Nordeste falamos assim”. Pra minha defesa eu quis dizer que era no Nordeste que essa palavra era usada, mas obviamente não é todo o Nordeste que a usa. 

Não culpo as pessoas de outras regiões por não terem familiaridade com os dialetos nordestinos (falarei sobre o que é um dialeto mais na frente). Se nós, do Nordeste, geralmente sabemos que  no Sudeste tem algumas diferenças de vocabulário é porque consumimos a mídia vinda de lá e crescemos vendo novelas e noticiários com pessoas que falam um dialeto diferente do nosso. Mas o que achei interessante nesse ocorrido foi uma pessoa de fora do Nordeste ler uma história explicitamente nordestina e ainda assim achar mais plausível que a palavra desconhecida faça parte de uma língua estrangeira do que do vocabulário nordestino. 

Sempre escrevi minhas receitas usando as palavras do meu vocabulário: jerimum, macaxeira. E já me perguntaram “O que é jerimum?” algumas vezes. (É “abóbora”, caso você não saiba). No RN falamos jerimum e quem é natural do estado é “papa-jerimum” (o que me agrada mais do que ser chamada de “potiguar”, pois essa palavra significa “comedor de camarão”). Eu nunca teria a ideia de escrever receitas usando palavras que não uso na minha fala. Além de soar falso, não vejo razão pra renegar o meu dialeto e adotar o dominante. Mesmo assim, absolutamente todas as vezes que saí do Nordeste e dei palestras ou cursos em outros lugares do Brasil as pessoas fizeram comentários sobre eu “ter sotaque nordestino”. 

Interessante notar a evolução dos comentários. Eu tinha 12 anos quando saí do Nordeste pela primeira vez. Fui visitar parentes no Goiás com a família. Foi quando descobri que eu “tinha sotaque”. Bastava eu abrir a boca pras pessoas goianas (crianças e adultas) rirem e dizer: “Você fala com sotaque do Norte.” Eu não entendia como aquelas pessoas podiam ser tão ruins em geografia e sempre corrigia: “Nordeste. Eu venho do Nordeste. O Norte fica à esquerda.” Mas não tinha jeito, pra elas eu era nortista, tinha sotaque nortista e ponto final. 

Já hoje as pessoas de outras regiões não riem mais quando me escutam falar. Elas elogiam! Dizem: “Nossa, que sotaque lindo” ou “Que fofo, esse sotaque”. Então meu sotaque passou de algo risível pra algo objetificado. Eu entendo que as pessoas são sinceras e óbvio que prefiro que achem bonito do que caiam na risada, como faziam quando eu era criança (embora na última vez que estive em Florianópolis o dono de uma lanchonete onde eu estava comendo tirou onda com o meu sotaque, prova que ainda não pararam de rir do sotaque nordestino). Mas sabe o que seria melhor ainda? Nada. Adoraria falar com as pessoas e não ouvir nenhum tipo de comentário sobre a maneira como falo, assim como tenho a educação de nunca fazer comentários sobre o sotaque delas (mesmo achando alguns mais melodiosos que outros, guardo essas opiniões pra mim mesma).

Talvez você não entenda por que estou dizendo que isso é objetificação, então deixa eu explicar. Já aconteceu várias vezes de me falaram (geralmente homens) “Que sotaque gostoso! Fala mais pra eu escutar.” Isso me faz ferver por dentro. Eu não vou entreter ninguém só porque a pessoa decidiu que meu sotaque é “gostoso”. Minha vontade é dizer: “Quer que eu toque rabeca e dance um xaxado também, senhor?” O meu dialeto, longe de ser visto apenas como o sistema linguístico da região onde nasci e parte da minha identidade, se torna um objeto pra entreter ouvidos alheios, quando tudo que eu quero é terminar o meu sanduíche em paz. Ou trocar ideias com as pessoas sem me sentir como algo exótico. 

O mais curioso é quando me dizem: “Olha, ela tem sotaque!” Como se o resto do Brasil não tivesse sotaque! O Sudeste, mais precisamente SP e Rio, dominam culturalmente o resto do país, então paulistas e cariocas juram que não tem sotaque. Consideram a maneira como falam “padrão” e tudo que desvia disso é “diferente” (ou, “sotaque”). Já vimos esse processo antes, não é mesmo? 

E, cúmulo do absurdo, já teve quem me disse: “Nossa, ela ainda fala Português com sotaque nordestino, mesmo depois de ter morado a metade da vida no estrangeiro.” Oxe! E haveria deu esquecer o meu dialeto? Note que o comentário não é “ela ainda fala Português sem sotaque”, mas “ela ainda fala Português com sotaque nordestino”. A pessoa sai de Natal, vai morar na Europa e era de se esperar que ela voltasse falando Português com sotaque paulista? 

A cultura nordestina sempre foi invisibilizada ou caricaturada. E a língua é um instrumento de dominação. E de discriminação. Já ouviu falar em preconceito linguístico? Então senta que lá vem (mais) história.

Eu sou formada em linguística. Vou começar explicando o que é linguística, pois muita gente confunde e acha que sou formada em Letras ou pergunta: “Linguística? Que língua você estudou?”. 

Linguística é uma ciência cognitiva, por isso essa disciplina também é conhecida como Ciências da Linguagem (esse era o nome do meu departamento na universidade, inclusive). Não estudei nenhuma língua específica porque a linguística estuda a linguagem. 

Linguagem é a faculdade de comunicar. Língua é a forma que essa comunicação adquire dentro de um determinado grupo humano, em determinado espaço geográfico, em um momento temporal preciso e esse sistema tem características específicas. Animais não-humanos comunicam, mas nenhum tem um sistema tão sofisticado como nossas línguas (mas não é motivo pra discrimina-los, viu?). Tem mais coisas aqui, estou simplificando ao máximo. A linguagem é uma habilidade cognitiva, a língua é a manifestação tangível dessa habilidade.

Fiz minha graduação em Aquisição da Linguagem e comecei um mestrado (que nunca terminei) em Linguística Teórica e Descritiva, no campo da sintaxe. Existe uma diferença fundamental entre adquirir uma língua e aprender uma língua. Nós adquirimos nossa língua materna e aprendemos línguas estrangeiras. Crianças que crescem em ambiente bilíngue adquirem duas línguas ao mesmo tempo. Temos uma espécie de aparelho de aquisição de línguas. Aqui entra Noam Chomsky, um dos maiores linguistas de todos os tempos e o autor que mais estudei, pois meu campo de estudo era o mesmo do dele. Vou poupar vocês da aula sobre generativismo e gramática universal, pois quando começo a falar dessas coisas me empolgo e quando dou por mim estou desenhando árvores sintáticas, enquanto as pessoas me olham com cara de paisagem, sem entender por que acho isso tudo tão interessante. 

Aprender uma língua estrangeira é passá-la pelo prisma da nossa língua materna e, como era de se imaginar, é um processo muito mais lento e trabalhoso. Pra se ter uma ideia, no pico da aquisição linguística, ou seja, quando estamos adquirindo nossa língua materna, crianças aprendem em média uma palavra nova por hora. O que significa que basta que elas sejam expostas uma única vez à palavra nova pra aprendê-la. Imagina o sonho que seria se a gente aprendesse línguas estrangeiras com essa facilidade!

Também tem pessoas que acham que Linguística tem a ver com gramática e como falei que minha área de pesquisa era sintaxe, a confusão fica ainda maior. Não é exatamente da mesma sintaxe que estou falando aqui, nem da mesma gramática (quando falo da “gramática universal de Chomsky, por exemplo).  E, diferença fundamental entre as duas disciplinas, a gramática é prescritiva, enquanto a linguística é descritiva. A gramática é artificial e dita regras, enquanto a linguística observa e descreve, sem dar julgamento de valor. A linguística descreve como falamos, enquanto a gramática diz qual é a maneira “correta” de falar. 

Agora vou deixar a coisa mais complexa, mas é uma aula interessante.

Lembra que expliquei, no início do texto, que falaria de dialetos? Sabe qual a diferença entre uma língua e um dialeto? Na faculdade aprendi que “uma língua é um dialeto com um exército e uma marinha.” Ou seja, à partir do momento em que um dialeto é elevado à posição de dialeto oficial de um Estado-nação, ele adquire o status de língua. A língua é um objeto político. 

É senso comum achar que “dialeto” é uma língua menos sofisticada, menos desenvolvida. Nesse sentido, dialetos sempre foram usados pra denominar a língua dos subalternos. Não só os dialetos indígenas no Brasil, mas os dialetos dos povos colonizados pelos europeus, inclusive dentro da Europa (são colonizações diferentes e não cabe aqui os detalhes). Até hoje, na França, tem vários dialetos não reconhecidos como “oficiais”, como o Bretão e o Occitano, por exemplo, e por isso são “dialetos” e não “línguas” pro Estado francês (claro que as pessoas que o falam sabem que são línguas da mesma maneira que o Francês é uma língua). Uma excessão é o Basco (falado numa região entre a França e a Espanha), que apesar de não ser a língua oficial de um Estado, tem status de língua. Então o sistema linguístico de um grupo pode ser considerado “dialeto” se ele pertencer ao grupo dominado, enquanto o sistema linguístico do grupo dominante vai ser o dialeto oficial do Estado, logo será chamado de “língua”.

Então você já entendeu que língua e dialeto são nomes diferentes pra mesma realidade linguística: um sistema complexo de sons (ou visual, no caso de Libras) utilizado pra transmitir informações de um cérebro pra outro. Dependendo do contexto, vamos chamar isso de “língua” ou de “dialeto”, porém do ponto de vista da linguística, só existem dialetos. Se língua é um objeto político, o dialeto é um objeto linguístico.

Por isso quando linguistas fazem pesquisas tem que ser sobre um dialeto determinado, pois a maneira como o meu Português se organiza é diferente de outras pessoas que falam Português em outros lugares. 

Vou dar um exemplo de sintaxe. No meu dialeto (Natal/RN), substantivos próprios (nomes de pessoas, pra ser específica) não são precedidos de um artigo definido. Já no dialeto de São Paulo, sim. Eu digo: “Roberta veio hoje?” Uma paulista vai dizer: “A Roberta veio hoje?” A estrutura sintática é diferente. Então se eu estiver fazendo uma pesquisa no campo da sintaxe, como o que eu fazia no mestrado, não posso fazer declarações como: “No Português, substantivos próprios relativos a nomes de pessoas são precedidos de um artigo definido: A fulana, O fulano”, pois isso só é verdade em alguns tipos de Português. Ou seja, só é verdade em alguns dialetos.

“Ah, mas a gramática do Português diz que não é correto colocar artigo definido antes de substantivo próprio, a menos que seja pra especificar, como na frase: ‘A Roberta que eu conheci na infância era diferente da Roberta de hoje’, logo a paulista fala errado e a natalense fala certo.” 

Vou relembrar que a gramática diz como devemos falar, ela é normativa, mas que a linguística descreve como falamos, logo, é descritiva. Não estudamos a gramática que você encontra nos livros, mas sim a fala das pessoas, que tem sua gramática própria e que nem sempre coincide com a norma da gramática do livro.

Chegou a hora de mencionar outra coisa importante. Eu disse que o objeto de estudo da linguística é o dialeto, certo? Pois deixa eu dizer também que só estudamos o dialeto falado, nunca o escrito. O que nos interessa é o falar das pessoas, não a maneira como elas escrevem.

Então falamos, por exemplo, de “dialeto do interior do RN”, ou “dialeto da cidade de SP” e mesmo aí ainda poderíamos ter grupos menores de dialetos de acordo com os bairros, classe econômica, idade… Então à partir de agora vou escrever “dialeto” sempre que me referir ao que, fora da linguística, chamam de “sotaque”, tá? É preciso guardar essa informação pra entender o resto da argumentação.

Algo sempre me fascinou. Conheço pessoas nordestinas que foram morar em outra região e adotaram o dialeto na nova morada. Acontece até de voltaram pro Nordeste, depois de algum tempo fora, e manterem o novo dialeto. Quem viu Lisbela e o Prisioneiro vai lembrar de Douglas, o rapaz que saiu do interior do Nordeste pra passar umas férias no Rio e voltou falando “carioquês”, o que virou motivo de piada na cidade. É disso que estou falando. E reparem que a situação inversa quase nunca acontece. Eu conheço pessoas que nasceram no Rio, mas moram em Natal desde que eram crianças e hoje, adultas, continuam falando “carioquês”. E é exatamente aqui que entra o preconceito linguístico e a desvalorização da cultura nordestina. 

O Nordeste ainda é visto pelo resto do país como um lugar de atraso, de gente ignorante, de seca e de fome. Eu lembro que ainda era criança quando ouvi Lulu Santos dizer, em um programa na tv, que “O Brasil só não vai pra frente por causa do Nordeste.” E o que falar do ódio que os bolsonaristas tem do Nordeste, último bastião antifascista do país? Quem ainda lembra da estudante paulista que, depois da reeleição de Dilma, tweetou: “Nordestino não é gente, faça um favor a SP, mate um nordestino afogado”? Eu lembro.

Por isso não é surpreendente que a pessoa que sai de João Pessoa pra morar, digamos, em São Paulo, adote o dialeto dominante, provavelmente na tentativa de sofrer menos discriminação por ser nordestina ou por já ter internalizada o preconceito contra sua própria região e dialeto. Já a paulista que vai morar em João Pessoa vem da cultura dominante, fala o dialeto dominante e geralmente não sofre discriminação por ser paulista. Então a relação que temos com nosso dialeto está diretamente ligada à maneira como nossa cultura é vista pelo grupo dominante. E muita gente do Nordeste acaba integrando, inconscientemente ou não, a noção de que nossa região,  cultura e dialeto são inferiores.

Por isso é tão importante pra mim usar as palavras do meu vocabulário e não “suavizar” o meu dialeto quando estou palestrando ou dando cursos no Sudeste ou Sul. É cansativo ter que ouvir as mesmas coisas, de novo e de novo? É um saco! Porém qual é a alternativa? Mudar a maneira como eu falo pra soar menos “diferente” fora do Nordeste? Jamais! Ninguém deveria precisar fazer isso pra ser levada a sério (sim, porque quando alguém diz que falo de uma maneira lindinha, fofa, etc eu me sinto infantilizada). 

Sim, eu tenho sotaque e você também tem. Todas temos. Falamos dialetos diferentes e o meu não é inferior ao seu. Por isso seguirei dizendo “macaxeira”, “jerimum” e “feijão macaça”. Até que as pessoas escutem alguém como eu falar fora do Nordeste e reajam com naturalidade, sem rir nem objetificar o meu dialeto. Se meu dialeto soa exótico aos seus ouvidos isso me informa que você não conhece muitas pessoas nordestinas. Então fica a dica: se abra mais pra nossa cultura. Escute música de nordestinas, veja filmes feitos por e com nordestinas… Talvez, depois de um tempo, nossos dialetos (são vários no Nordeste, não falamos todas da mesma maneira) parem de soar exóticos, fofos, engraçados, gostosos e você consiga lidar com a pessoa na sua frente sem sentir a necessidade de fazer comentários sobre a maneira como ela fala. Nem achar que uma palavra do vocabulário do RN é algo em Francês. 

Claro que seguimos livres pra achar mais ou menos bonito diferentes dialetos do Brasil. Eu mesma tenho os meus preferidos e outros nem tanto. Mas, como falei, podemos guardar isso pra nós ou até mesmo fazer um elogio, mas sem o tom que faz com que o elogio se torne algo infantilizante (“ai, que fofo!”) nem objetificante (“ai, que delícia, fala mais!”).