Sabemos construir também. E plantar.

No último dia em que eu estive na ocupação dos Jardins Operários de Aubervillers teve uma reunião do coletivo de defesa dos jardins.  Eu saí da reunião frustrada pela maneira como a pauta principal da reunião tinha sido conduzida e, principalmente, pelas dificuldades constantes que enfrentamos quando construímos uma luta com um grupo de pessoas vindas de horizontes tão diferentes. Eu viajaria pro Brasil dali a dois dias e ao me despedir das camaradas pedia a todas que seguissem resistindo, pois eu queria ver a ocupação de pé quando voltasse. Foi a última vez que eu vi aquela terra coberta de árvores, legumes e frutas.

O dia em que peguei o avião pra voltar pra cá foi também o dia em que a polícia destruiu a ocupação. Enquanto eu transitava entre aeroportos, mais de 50 árvores frutíferas, com dezenas de anos no tronco, foram arrancadas. As hortas foram destruídas e as cabanas, que tínhamos construído durante toda a primavera e verão, foram demolidas. Quase um terço dos Jardins Operários ( 4 mil metros quadrados) desapareceu. Precisei de mais de duas semanas pra visitar o local, embora esteja a menos de 5 minutos a pé da minha casa. Eu precisava reunir forças pra olhar pra um lugar que transbordou vida, humana e outras que humanas, por mais de um século e que no espaço de poucas horas foi transformado em um deserto. 

Nada. Não tem mais nada em pé. A terra está nua, cercada e vigiada por vários agentes de segurança privada. Tive que subir em uma escada, colocada clandestinamente ali por uma das jardineiras, pra conseguir ver pra além do muro que hoje separa a zona destruída do resto dos lotes. Todas as lágrimas que eu vinha segurando desde que recebei a notícia da expulsão da ocupação foram liberadas. Sentei do lado do muro, no exato lugar onde ficava a área que construímos só pra mulheres, com direito a cabana (que batizamos de “Louise Michel”), camping, horta, cozinha ao ar livre e um salão de leitura embaixo da figueira. A figueira que nos acolhia quando o resto da ocupação ficava barulhento demais. Sujo demais. Com atitudes sexistas demais (sim, acontece mesmo na esquerda radical). Era embaixo da figueira que fazíamos nossos jantares semanais e onde estudamos alguns textos feministas. A figueira foi arrancada e destruída. Anne tem uma foto do momento exato quando a escavadeira a arrancou da terra. Toquei aquela terra nua e chorei ainda mais. Além das árvores, da nossa horta, da nossa cabana, senti que tinha perdido todos os momentos preciosos passados ali. Quando a gente se apega a um território não choramos apenas pelo desaparecimento da matéria orgânica que ali vivia. Entendi que um território não é habitado apenas pelas árvores, animais, flores, humanos… É habitado também pelas memórias do que aconteceu ali. Pelas relações e afetos nutridos entre as folhas e galhos. 

Mas a luta continua. O Comitê de Defesa dos Jardins, do qual faço parte, segue organizado e organizando ações de resistência. Entramos com recurso na justiça e conseguimos interromper a obra (que estava cheia de irregularidades). A construtora tem alguns meses pra regularizar a situação e enquanto isso pensamos em maneiras cada vez mais criativas de impedir que a terra seja coberta por concreto. Plantaremos novamente, podem ter certeza. Como disse Vivianne, uma das jardineiras que teve seu lote destruído: “As ruínas que eles deixaram serão o adubo de uma nova sociedade.” O que me fez pensar no anarquista espanhol Durruti, que disse: “A ruína não nos dá medo. Sabemos construir também. Não vamos herdar nada mais que ruínas. Porque a burguesia tratará de arruinar o mundo na última fase da sua história. Porém, nós não tememos as ruínas, porque levamos um mundo novo em nossos corações. Esse mundo está crescendo nesse momento”.

E enquanto secava as lágrimas, ainda sentada no chão ao lado de onde antes tinha estado nossa figueira, enxerguei algo enterrado pela metade. Um figo! Um minúsculo figo que provavelmente caiu do lado de cá do muro no momento em que as máquinas destruíam a figueira. Trouxe ele pra casa pra retirar as sementes e plantar. Alguns anos atrás entrevistei uma guardiã de sementes palestina, chamada Viviane Sansour, pro projeto de agricultura de resistência do qual faço parte (Baladi). Ela me disse: “Cada semente tem uma história. Cada semente trás uma memória coletiva.” E a memória daquela terra e da luta pra salvar as últimas terras agrárias desse território, que alimentam a região desde a idade média, está dentro desse figo.

*Pra conhecer toda a história por trás dessa luta, recomendo escutar “Jardins da Comuna”, a série que fiz junto com o podcast Antinomia, da Biblioteca Terra Livre. É um diário sonoro de resistência em 11 episódios.

12 comentários em “Sabemos construir também. E plantar.

  1. Oi Sandra, sempre te acompanhava pelo instagram mas nunca tive coragem de te mandar uma mensagem por lá. Gostava especialmente quando havia lesbianidade no meio rs. Esse texto respondeu uma inquietação que eu estava há semanas e infelizmente hoje nem um creme de tapioca com coco poderia melhorar os ânimos.

    Como geógrafa em formação fiquei um bom tempo presa do parágrafo sobre território, e uma coisa é certa: as ruínas do espaço não significam o fim ou a destruição de um território pois este também é uma identidade.

    Abraços diretamente do cerrado goiano.

  2. 1) É verdade que quando a gente se apega a um território, nos apegamos as memórias que a gente tem com ele. Eu por exemplo gosto muito do bairro que eu moro; se eu morasse fora de São Paulo e voltasse para São Paulo, com certeza queria visitar o bairro que moro.

    2) Quanto ao machismo presente na esquerda radical. Entre 2012 e 2018 fiz graduação em geografia na USP (que é marxista) e vi um grande desprezo pelo veganismo durante a graduação:

    a) Existia um professor vegano que era distraído, que por causa disso, tinha gente que falava que ele era um zen-noção por causa do veganismo.
    b) Muita gente não queria pelo menos parar de comer frango e carne vermelha (ser peixetariano ou vegetariano).
    c) Tinha gente que ridicularizava veganos.
    d) Muitos odiavam quando descobriam pessoas veganas; e tinham uma relação um pouco melhor com quem falasse que era peixetariano ou vegetariano por motivos ambientais.
    e) Nessa época, tinha insegurança de falar que não como frango e carne vermelha; por medo de que se falasse isso, ninguém queria fazer trabalho em grupo comigo. Fiz 2 amigos que tiveram dificuldade de achar grupo para trabalho em grupo por causa de panelinha (que existiam muitas).

  3. Ah Sandra! É impossível conter a emoção com esse post. À medida que lia, me lembrei dos depoimentos dos jardineiros que você contou no podcast… que tristeza, quanta dor. Mas é isso, enquanto houver sementes e enquanto o corpo, esse primeiro território, estiver de pé, haverá também a resistência. Esse jardim voltará a florir e alimentar a natureza, o corpo e a alma, e também a revolução. Um beijo grande, minha querida. É sempre um bálsamo ler tuas palavras.

  4. desalojos y desarranjos são sempre muuuuito dolorosos. é algo até um pouco indescritível, quando se trata de okupa é sobre perder algo que começou do zero, também, né? nessa situação de vcs, nossa, algo que começou há decadas, tem uma puta historia, enfim poxa sinto muito. quando digo isso sinto mesmo. tem esse lance do ai,a luta continua, vida que segue, mas como alguém q já passou por desalojos algumas vezes, sinto q é importante também dar-se um momento pra processar esse luto. é uma perda como qualquer outra. as outras construções virão, certamente! mas nenhuma é igual a outra, y a gente sabe o que faz a gente tecer tanto afeto por cada uma. viva a ocupação dos jardins operários!

  5. Querida Sandra, como você está? Espero que você esteja bem!
    Perguntei por ti a uma amiga nossa, e perguntei a Anne também, e me falaram que você tem atualizado o blog com frequência. Vim aqui agora e nossa, como é bom te ler de novo! Acompanhei um pouco do que foi feito dos jardins, e sinto demais, demais mesmo. Espero que isso não destrua todas as formas que essa comunidade tem de se manter resistindo, e de manter seu amor e esperança no coletivo, no senso de comunidade. Um jardim é a melhor coisa que eu consigo pensar nesse sentido, realmente. Mas, espero que minha imaginação esteja só limitada pelo sentimento dessa perda tão significativa. Ah! consegui pensar em outra coisa: a comida! Claro que a falta dos jardins compromete a segurança alimentar, sim. Mas, isso talvez possa ser mais um motivo para que nos unamos para compartilhar o que temos, e demonstrar amor cozinhando. Clubes de leitura feminista, e cozinhar nas ocupações, são das atividades quem me têm feito mais feliz, e espero voltar a cozinhar lá, agora que se pode voltar a reunir.

    Um abraço em você, e em toda a comunidade dos jardins aí de Aubervilliers. Vou deixar meu email aqui contigo, pra a gente poder manter contato: janne.aline@gmail.com

  6. Impossível não chorar ao ler esse texto. Colocar o sentimento em palavras e fazer com que quem lê também sinta é um dom. Acompanhei pelo instagram um pouco da rotina da ocupação e sinto muito! Desejo força a vocês.

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