Horta de quintal

Cresci na cidade e ninguém plantava nada ao meu redor. Hoje tenho o maior orgulho de dizer que sou lavradora de quintal. Mas deixa eu contar como tudo começou.

No final de 2019 me mudei pra França. Pra uma pequena cidade na periferia norte de Paris, pra ser precisa. Uma cidade tão perto geograficamente de Paris que dá pra ir andando (fica a duas estações de metrô), mas tão longe socialmente que parece outro país. Fomos morar, Anne e eu, em um alojamento social, um CoHab com muitos prédios e uma população em sua maioria composta de migrantes. Nosso pequeno apartamento de 30m2 ficava no 17° andar e tinha vista pra pracinha que ficava bem no meio das torres, de onde eu via coisas que não imaginei ver na França. Como violência policial quase quotidiana e pessoas revirando o lixo procurando comida. Bem-vinda à periferia do Norte global, onde o centro vira margem. E por que estou contando tudo isso num texto sobre horta? Porque foi ali, naquele pequeno apartamento no 17° andar, que minha vontade de plantar nasceu. Eu nunca tinha vivido cercada de tanto cimento e concreto, tão longe da terra e aquilo estava mexendo comigo de uma maneira que eu não estava gostando nem um pouco.

Meu psicológico devia estar bem abalado, mesmo, porque minha primeira tentativa de horta foi essa aqui. Juro que plantei raízes das verduras numa pequena vasilha de plástico. Eu colhia as folhinhas à medida que elas apareciam, mas obviamente que eu estava ciente que aquilo era apenas uma tentativa simbólica de me aproximar da terra, não uma maneira de produzir alimento. Isso foi no início de 2020, o que aqui significa inverno. Assim que a temperatura aumentou comecei a plantar em vasos que eu colocava no parapeito da janela da sala. Meu apartamento era muito ensolarado e tinha uma janela imensa, então aproveitei pra plantar comida pela primeira vez na vida. Plantei batata num vaso de barro (meu desespero pra plantar me faz rir hoje), alguns pezinhos de tomate cereja, um de pimentão e manjericão. Era tudo que eu conseguia colocar ali. Infelizmente não consegui achar fotos da minha horta de janela, mas lembro muito bem da alegria quando colhi meus primeiros tomates e do sabor das minhas batatinhas, que eram miúdas (porque o pote de barro era pequeno), mas deliciosas.

Pula pra 2021. Saímos do apartamento no CoHab e fomos morar numa casa na mesma cidade. Na verdade alugávamos só uma parte da casa, a garagem. A dona da casa, que é mexicana, morava sozinha na casa de dois andares e nós ficávamos no subsolo (em comparação ao nível da rua), que tinha sido transformado em kitnet. Mas a vantagem de estar no subsolo era que tínhamos acesso direto ao quintal da casa. E aí, minha gente, as humilhadas foram exaltadas! Saímos de um mar de cimento e concreto pra um pequeno paraíso, com algumas arvores (magnólias e louro), uma vinha selvagem, flores e um gramado. Nos mudamos no finalzinho da primavera e estávamos muito envolvidas na luta pra salvar os Jardins Operários, as hortas comunitárias que existem, e alimentam famílias das classes populares aqui na periferia há quase cem anos. Então naquele ano plantamos, coletivamente, nos lotes ameaçados de destruição nos Jardins Operários. Infelizmente, no início do outono os lotes que estávamos defendendo foram destruídos, mas a luta continua até hoje.

Os meses de ocupação, e plantio, nos Jardins Operários foram um verdadeiro curso prático de roça. Tive a honra de plantar do lado de pessoas que cultivam há muitos anos e aprendi muita coisa ali. Então no ano seguinte, em 2022, me senti segura pra começar minha primeira roça de quintal.

A foto acima mostra uma parte do nosso jardim antes da gente começar a plantar. Quando chegamos ali já tinha 3 composteiras (a caixa de madeira na foto acima é uma delas) e isso foi indispensável pra começar a horta. A primeira etapa pra fazer uma horta é cuidar do solo, então um solo rico e fértil deve ser seu objetivo antes mesmo de começar a pensar no que plantar no quintal. Sim, em matéria de horta, a gente começa pelo fim (fim da vida dos legumes). Então essa é a primeira dica que tenho pra compartilhar: comece a compostar os resíduos orgânicos da sua casa. Você pode comprar composto pronto, principalmente se quiser começar a plantar imediatamente, mas pra mim, buscar autonomia faz mais sentido. Compostar no seu quintal também faz com que o ciclo se complete: você planta, colhe, come e as cascas do que plantou se tornam a terra onde você plantará novamente. Lindo!

Não vou escrever sobre os detalhes da compostagem aqui, porque o texto vai ficar longo demais, porém preciso explicar uma coisa importante, que imagino que algumas pessoas estão se perguntando agora. Por razões antiespecistas, nunca comprei nem comprarei minhocas pra fazer “compostagem com minhoca”. Mas repare que tendo quintal, basta cavar um buraco pra enterrar suas cascas que as minhocas, e outros bichinhos, virão decompor a matéria por livre e espontânea vontade. Veja que as “composteiras” aqui são simplesmente caixas de madeira sem fundo, mas com tampa, e que também abrem na frente (fica mais fácil tirar o adubo dali depois). Você coloca a matéria orgânica vegetal ali dentro, em contato direto com a terra do quintal, alternando com punhados de folhas secas (pra impedir que odores desagradáveis escapem e pra equilibrar a umidade – o ideal é que não fique nem molhado, nem seco) e só. Quando uma composteira enchia, deixávamos ela descansar e começávamos a encher a outra. Quando a segunda composteira chegava no limite, os bichinhos na primeira já tinham terminado o trabalho de decomposição e transformado aquela montanha de vegetais e sementes numa terra preta, ou seja, em adubo (foto acima, à esquerda).

A gente começou a usar duas dessas caixas-composteiras pra colocar os resíduos orgânicos vegetais e a terceira pra guardar as folhas secas que caíam no outono (além de utiliza-las nas composteiras, elas são importantes pra preparar a terra da horta). Mas mesmo produzindo uma quantidade grande de restos vegetais, o que acontece quando você é vegana e que 90% da sua comida tem casca, não embalagem, uma casa com 3 pessoas não conseguiria encher as duas composteiras em poucos meses. A dona da casa é vegetariana, mas cozinhava pouco, logo produzia pouca casca. Sem falar que depois de se decompor, a matéria orgânica reduz muito. Então de vez em quando Anne ia à feira do bairro, na hora em que feirantes estavam indo embora e levava pra casa restos de vegetais que tinham sido descartados. Principalmente antes de começar uma nova “lasanha”. Mais na frente explicarei sobre o que é lasanha nesse contexto.

Fizemos a horta em 2022, num espaço pequeno, e plantamos poucas coisas, porque a ideia era fazer um teste. Esse é meu segundo conselho pra você: se você nunca plantou na vida, sua primeira horta deve ser bem pequena. Deu tão certo que no ano seguinte resolvemos triplicar o tamanho da horta. As fotos que vocês vão ver à partir de agora são do segundo ano da nossa roça de quintal.

Então imaginem (porque esqueci de fazer fotos) que fizemos a horta em 2022, colhemos muito tomate no verão (julho-agosto), os pés morreram, no início do outono (final de setembro) arrancamos tudo, agradecemos a terra pelo alimento ofertado, cobrimos ela com folhas secas e deixamos descansar por um mês, mais ou menos. Entre o final de outubro e o início de novembro plantamos favas do lado de onde tínhamos plantado os tomates. Primeiro, porque queríamos comer favas no início da primavera. Segundo, e mais importante, porque leguminosas (fava, feijão, grão de bico, etc) fixam nitrogênio no solo, o que o deixa mais rico. É um fertilizante natural, que coloca de volta no solo os nutrientes que ajudaram a produzir a comida que cresceu ali. Como diria Nego Bispo, “a terra dá, a terra quer”.

Na foto acima, à esquerda, os pezinhos de fava ainda pequenos e a hortelã, que voltava sempre depois dos meses frios. E, claro, Satan, o gato que morava com a gente. À partir de abril começamos a colher favas, ao mesmo tempo em que preparávamos a terra (onde tínhamos plantado tomate no ano anterior) pra plantar novamente, cobrindo com uma nova camada de adubo – a terra preta do composto do nosso quintal (foto acima, à direita).

Entre abril e maio (primavera) também é o momento de começar a preparar as mudas. Mas antes disso, é importante fazer um plano da horta, determinando onde e o que você quer plantar (foto acima, à direita). Essa é minha terceira dica. É preciso saber onde tem mais sol, onde só tem sombra, que plantas gostam de crescer juntas e planejar de acordo. Também tem que incluir flores, porque elas atraem polinizadores (besouros, borboletas, abelhas) e hortas dependem desses animais pra dar certo.

Depois de escolher o que plantar, a gente seleciona as sementes pra fazer as mudas (foto acima, à esquerda – cada pacotinho desses tem dezenas de sementes). Temos sementes dos Jardins Operários, da nossa horta (que guardamos no ano anterior), da Palestina, da Irlanda, da Bósnia e da Síria. As sementes que vieram de longe foram ofertadas por amigas e eram uma maneira de nos manter conectadas à elas. Mas elas foram uma parte pequena do que plantamos porqu o ideal é usar sementes do seu território, que estão bem aclimatadas e são mais resistentes. Essa é minha quarta dica.

Vou falar mais sobre as mudas no próximo post, mas pra manter a ordem cronológica dessa aula informal, aqui estão algumas fotos do processo. Acima tem mudinhas de couve e diferentes tipos de alface. E enquanto as mudinhas vão crescendo, você vai preparando a terra pra recebe-las.

Então bora fazer um resumo do meu processo de roça de quintal. Primeiro, comecei a alimentar as composteiras. Depois fiz um plano do que queria plantar e de onde iria plantar, consegui sementes e fiz mudinhas. Depois fui preparar a terra onde eu iria plantar as mudinhas. E é agora que explico o que é uma “lasanha”.

Lembra que aprendi a plantar com pessoas que tem lotes nos Jardins Operários? Sim. Tenho vergonha de admitir que, apesar de ser filha de agricultor (hoje aposentado) nunca pedi pro meu pai, nem minha mãe, compartilharem esses conhecimentos comigo. E a pessoa com quem mais aprendi aqui, uma força da natureza chamada Dolorès, pratica permacultura e planta sempre em “lasanhas”, o que nada mais é do que uma técnica que vai alternando camadas de materiais diferentes pra deixar a terra o mais fértil possível.

Nas fotos acima dá pra ver uma composteira ainda com matéria orgânica não decomposta e também o adubo mais antigo, já totalmente decomposto. Os dois estados são necessários pra fazer uma lasanha. Nunca vou deixar de me maravilhar ao ver essa transformação. Como pode pedaços de cenoura, casca de batata e restos de limão (sim, pode colocar frutas cítricas na composteira de quintal, que fica em contato direto com a terra) se tornarem terra preta? Uma coisa mágica!

Como queríamos expandir a área da roça, tivemos que fazer duas lasanhas novas e nas fotos abaixo tem o passo-a-passo dessa técnica. E, se quiser tentar aí no seu quintal, essa é minha quarta dica.

1-A primeira camada é de papelão (sem fita adesiva e sem cor -texto ou imagens impressas). É bom começar uma horta assim, pois reduz a quantidade de ervas não desejadas crescendo entre seus legumes e reduz a perda de nutrientes que podem escoar com a água, mas não é indispensável.

2- Por cima do papelão vai uma camada mais espessa de madeira picada. Aqui usamos os galhos que caem das árvores durante o inverno, mais galhos maiores das podas das árvores que foram triturados. Uma vez por ano a dona da casa podava as árvores e pedia emprestado uma máquina pra triturar madeira de uma amiga. Em seguida a gente guardava esses flocos de madeira, bem protegido da chuva, pra usar na horta.

3- Por cima dos pedacinhos de madeira, espalhei o “composto verde”. Ou seja, as cascas e restos de verduras ainda não decompostas.

4- A quarta camada é de folhas secas, também recolhidas durante o inverno, no nosso quintal. Mas antes, colocamos pedaços de madeira pra delimitar a horta e impedir que o material orgânico se espalhasse pelo quintal cada vez que aguássemos.

5- Por último vem a terra preta, o adubo, que deve ser a camada mais espessa.

Importante: entre cada camada é preciso regar com bastante água, pra facilitar a decomposição da matéria ali. Depois de fazer sua lasanha, tem que esperar um pouco antes de plantar. Ela só vai estar pronta dali a algumas semanas (o tempo de decomposição varia de acordo com a temperatura no seu quintal).

Cada camada da lasanha traz nutrientes diferentes pra sua futura horta. O objetivo é tentar reproduzir o que aconteceria no solo de uma floresta, onde caem galhos, folhas, restos de frutas comidas pelos animais, adubo (nesse caso, cocô dos bichinhos morando ali na floresta)… Depois cai chuva, passa o tempo, faz calor e tudo se decompõe e se transforma numa terra preta e fértil.

Essa de camiseta laranja é Claire, a irmã caçula de Anne. Ela estava nos visitando no dia em que fizemos as lasanhas novas e nos ajudou durante todo o processo. Vejam que na cabeceira dessa lasanha tem algo que só posso descrever como sacos de plantar. Foi presente de uma amiga e apesar de terem sido criados pra quem quer fazer uma micro-horta em um lugar onde não tem terra (em cima de uma laje ou numa varanda de apartamento, por exemplo), resolvemos testar o sistema no nosso quintal e fizemos as mesmas camadas da lasanha ali dentro.

Eu disse que a gente queria triplicar o espaço da horta, não foi? Pois além de aumentar a primeira lasanha, criar uma lasanha menor, acompanhada dos “sacos de plantar”, também fizemos outra lasanha no pé de uma das magnólias (foto acima). Esse era o lugar mais sombreado do jardim, mas resolvemos testar plantar ali vegetais que não precisam de tanto sol.

No próximo post: colocar as mudinhas na terra, cuidar da horta, colher e comer e, mais uma vez, deixar a terra descansar.

Khubeza

No começo da primavera reparei que tinha uma planta crescendo no nosso lote. Uma planta que eu não tinha visto por ali antes e que ninguém tinha plantado. Se trata de uma planta “selvagem”, que cresce espontaneamente em vários lugares. Ela chamou minha atenção porque era uma planta que eu vi muito na Palestina. Se trata de um tipo de malva chamada, em Árabe, “khubeza” (leia “Rubeza”, e a sílaba tônica é “be”). Comi muita khubeza preparada pelas minhas amigas palestinas, pois essa planta faz parte da cultura alimentar dos países da região (Palestine, Jordânia, Líbano e Síria). A visão daquela planta ali, no nosso lote, na periferia de Paris, me emocionou. Lembrei das refeições compartilhadas com amigos e amigas palestinas e a saudade apertou meu peito.

Descobri a khubeza na nossa horta bem no momento em que as pessoas começaram a morrer de fome em Gaza. Israel, na sua campanha genocida contra o povo palestino, que já dura mais de um ano e meio, impedia qualquer ajuda humanitária de entrar em Gaza. Usando a fome como arma de guerra pra seguir com a limpeza étnica do povo palestino, a parte mais fragilizada da população- bebês, crianças e idosas- estava morrendo. A ONU tinha acabado de declarar que se Israel seguisse impedindo a comida de entrar em Gaza, 14 mil bebês morreriam de fome nas próximas 48 horas. E se você se pergunta por que essas pessoas precisam de ajuda humanitária pra comer, aqui vai a resposta: 95% das terras agrícolas em Gaza foram destruídas (bombardeadas) e/ou são inacessíveis (porque o exército israelense impede o povo palestino de pisar ali). Foi o que um relatório da FAO, a agência da ONU para alimentação e agricultura, feito em abril revelou.

Umas semanas depois do encontro com a khubeza da horta, comecei a ler histórias sobre pessoas palestinas escapando da morte por inanição graças à essa planta. Li um palestino, que só comia khubeza há tempos, dizer: “Pessoas sobreviveram aos momentos mais sombrios dessa guerra graças à Khubeza, pois é a única coisa que elas comem. Ela nos apoiou mais do que qualquer pessoa no mundo.” Só que até mesmo colher uma planta selvagem pra escapar da fome imposta por Israel é algo perigoso pro povo palestino. Muitas pessoas foram assassinadas por atiradores do exército israelense enquanto colhiam khubeza. Imagine ter que escolher entre ver suas crianças morrerem de fome ou tentar procurar comida e correr o risco de levar um tiro na cabeça.

Meu coração, com um machucado que não sara desde o início do genocídio cometido por Israel ao povo palestino, dói todo dia. E naquele dia, a dor foi amplificada. Às vezes eu choro muito e a dor, misturada com revolta e vergonha (vergonha por ser testemunha de um genocídio e não fazer nada pra que ele cesse), se espalha pelo corpo inteiro.

No final do dia fui pro lote nos jardins operários cuidar da nossa horta. Ainda não descobri tratamento melhor pra amenizar as dores do coração e os males da cabeça do que colocar a mão na terra. Aí vi o pezinho de khubeza crescendo ali, bem no meio do lote. Colhi algumas folhas e mandei uma mensagem pra minha grande amiga Draguitsa, que mora no campo de refugiados de Desheisha, em Belém (a palestina), perguntando como cozinhar a planta. Apesar de ter comido muita khubeza por lá, era sempre preparada por uma das minhas amigas palestinas e eu queria fazer igualzinho. Mandei a mesma mensagem pra Lila, uma amiga, e vizinha de lote, síria porque fiquei curiosa pra saber se no país dela o preparo era diferente. As duas me responderam com praticamente a mesma receita: lave a khubeza (folhas e talos tenros) e pique miúdo, dê uma fervura nela (Lila pula essa etapa), escorra, refogue cebola (Lila usa alho também) em bastante azeite, junte a khubeza picada, salgue e cozinhe até que fique bem macio. Sirva com molho de pimenta e coma com pão. Lila gosta de servir com limão e me disse que em Alepo, a cidade natal dela, também é comum preparar essa folha com quiabo.

Chegando em casa preparei a khubeza colhida no meu lote seguindo as instruções das minhas amigas. Cozinhei com muito carinho, mas acabei temperado tudo com lágrimas. E acho que quando isso acontece, a gente sente a tristeza quando coloca a comida na boca e acabei chorando de novo quando sentei pra jantar, depois de ter feito uma oração pedindo que não faltasse comida na mesa de ninguém em Gaza.

Mas no meio de toda essa tragédia (criada por Israel, nunca é demais repetir, já que a mídia se refere à fome em Gaza como “crise humanitária”, como se não fosse algo intencional. Não é crise humanitária! É genocídio, é limpeza étnica, são crimes contra a humanidade e Israel é um projeto colonial que já dura quase cem anos), no meio de toda essa tragédia, pensar que de uma terra devastada, que recebeu- e recebe ainda- toneladas de bombas, brota uma planta que é a diferença entre a vida e a morte pra um povo, me emocionou.

O que como em uma semana – periferia de Paris

Ano passado publiquei um post mostrando o que eu comia em uma semana e foi um grande sucesso por aqui. Naquele momento eu estava morando em Natal e as comidas que apareceram no meu prato refletiam meu modo de vida por lá e, principalmente, a oferta de alimentos locais, naquela estação. Por isso achei importante voltar com mais uma “semana de refeições” agora que estou num ponto do globo muito distante de cajueiros e plantações de macaxeira: o distrito 93, que fica na periferia norte de Paris, França.

Apesar do estilo das minhas refeições ser diferente quando estou na França (por exemplo, quase sempre faço pratos completos, tudo misturado, e não o esquema de pf no Brasil com feijão+arroz+verdura cozida+salada) sigo a mesma linha de alimentação aqui. Não tenho acompanhamento de nutricionista, não calculo macro nutrientes nem peso comida e ainda não aderi à obsessão mundial por proteína, que já entrou na cabeça de muitas veganas “fitness”. Embora eu prepare minhas refeições com intenção de nutrir o meu corpo e cuidar da saúde pra seguir na peleja da vida e da militância, eu como o que eu gosto e me dá prazer. Tenho a imensa sorte de amar verdura, de achar fruta a sobremesa mais perfeita, de não gostar de frituras nem sentir necessidade de comer doces. Que mais? Feijão é a minha comida preferida, junto com favas e as outras leguminosas, e não bebo suco (prefiro comer a fruta).

No momento estou incluindo mais alimentos à base de soja na minha alimentação porque entrei na peri-menopausa (pré-menopausa) e a soja tem muitos benefícios pra quem está atravessando essa fase…desafiadora. Detalhe importante: todos os alimentos à base de soja que você vai ver aqui foram feitos com soja orgânica, não transgênica, cultivada na França e ainda assim priorizo os fermentados (iogurte natural) e minimamente processados (tofu, leite).

Aproveito pra dizer que todos os vegetais frescos aqui foram cultivados na França ou, em alguns casos, na Itália ou Espanha. Idem pros cereais (aveia, trigo, arroz, cevada, quinoa) e sementes/castanhas (amêndoas, chia, girassol, jerimum). É algo importante pra mim e isso acaba reduzindo um pouco as opções. Nos supermercados da Europa tem quase tudo o ano inteiro, porque importam qualquer coisa de qualquer país (abacaxi do Kenya, kiwi da Nova Zelândia, manga da Índia, limão do Brasil, abacate do Peru, uva do Chile…), mas me recuso a participar dessa insanidade. Até porque, mesmo com as opções limitadas, ainda tem muita coisa pra comer por aqui e nos países vizinhos. Essa época do ano é um pouco difícil porque os vegetais de inverno acabaram, mas os vegetais de verão ainda não chegaram de vez. Mas depois de ver as fotos todas juntas vi muita diversidade e pensei que, realmente, não tenho do que reclamar.

Segunda-feira

Café da manhã: aveia dormida (com chia e leite de soja), iogurte natural de soja, compota de maçã (sem açúcar, feita por uma amiga), pasta de amêndoas, 1 castanha da Amazônia + café (sempre amargo). Almoço: salada completa com cuscuz de cevada (no estilo do cuscuz marroquino, que é de trigo), pepino, funcho, repolho roxo, tofu defumado e repolho fermentado (chucrute), temperada com limão e azeite. Jantar: sopa de lentilha coral, arroz e brócolis, salada de endívia, laranja e semente de jerimum tostada.

Eu falei que tento comprar comida que cresce por aqui, mas claro que o café e a castanha da Amazônia vêm de longe. Adoro chucrute, e todo tipo de legume fermentado, e acho importante incluir alimentos fermentados na minha alimentação cotidiana (a flora intestinal agradece). Um informação sobre as saladas que acompanham minhas refeições: prefiro sem tempero nenhum, nem molho nem azeite.

Terça-feira

Café da manhã: aveia dormida (com chia e leite de soja) com ameixa passa, pasta de amêndoas, 1 castanha da Amazônia e canela + café Lanche da manhã: pão de fermentação natural com nozes, queijo de tofu + cappuccino com leite de aveia. Almoço: mistura de leguminosas (feijão vermelho e branco, grão de bico e ervilha seca) com tomate e abobrinha, salada crua de pepino, repolho roxo e rabanete preto (só a casca é preta) e chucrute. Lanche da tarde: pão de fermentação natural com nozes, queijo de tofu e salsicha de tofu com mostarda de Dijon. Jantar: foul (pasta de fava marrom com tahina e cominho), mâche (um tipo de alface), pepino e funcho + iogurte natural de soja e laranja.

Eu amo ameixa passa e aqui elas são vendidas sem açúcar (não é ameixa em calda!). A receita do queijo de tofu já apareceu aqui no blog e recomendo demais. Essa salsicha também é feita de tofu (75% da salsicha é tofu) com óleo de girassol, alguns vegetais e temperos. É algo que não como com frequência, porque é mais caro do que feijão e arroz e porque é um alimento pra comer em ocasiões especiais, mesmo. Ainda não tem tomate fresco por aqui, então ainda estou usando tomate de lata (100% tomate e nada mais) ou extrato de tomate (também 100% tomate) pra temperar meus pratos.

Quarta-feira

Café da manhã: esqueci de fotografar, mas foi minha amada aveia dormida com maçã. Almoço: mexidão de arroz integral com proteína de soja temperada com tomate e ervilha torta (da nossa horta), salada com mâche (um tipo de alface), pepino, rabanete preto e chucrute. Jantar: macarrão integral com molho de tomate, abobrinha e queijo de tofu, salada de mâche, rabanete e laranja.

Momento histórico: em 15 anos de blog, essa foi a primeira vez que proteína texturizada de soja (PTS) apareceu aqui. Eu não gosto do sabor, por isso a ausência dela nas minhas receitas. Semana passada comprei um pacotinho de PTS orgânica e resolvi dar uma chance pra bichinha, mas sigo sem gostar do sabor. Agora não sei como vou fazer pra dar cabo do pacote que está no armário.

Quinta-feira

Café da manhã: aveia dormida (com chia e leite de soja), maçã, iogurte natural de soja, pasta de amêndoas e 1 castanha da Amazônia, pão de fermentação natural com nozes e queijo de tofu + café. Almoço: o resto do macarrão de ontem, cenoura e pepino, foul (pasta de fava). Jantar: rolinhos de verão com molho de amendoim

Esqueci de fazer uma foto do jantar, porque recebi amigas pra jantar com a gente aqui em casa e não uso o telefone quando tenho companhia, mas coloquei uma foto do post onde explico como fazer esses rolinhos maravilhosos (com muitas, muitas verduras cruas, tofu e um molho de amendoim e gengibre de cair da cadeira de tão gostoso) pra vocês saberem do que estou falando.

Sexta-feira

Café da manhã: grãomelete fermentado, baguette de fermentação natural + café Lanche da manhã: aveia dormida (com chia e leite de soja), mirtilo, iogurte natural de soja, pasta de amêndoas e 1 castanha da Amazônia. Almoço: os restos dos vegetais (rabanete, pepino, cenoura, alface e hortelã) e molho de amendoim dos rolinhos do jantar de ontem, mais macarrão de arroz (também do recheio dos rolinhos) esquentado na frigideira (quase uma panqueca) + iogurte natural de soja com mirtilos. Lanche da tarde: cenoura e funcho crus, foul (pasta de fava e tahina), pão assado (na frigideira) com azeite e laranja. Jantar: lentilha com uma mistura de vegetais do nosso lote nos Jardins Operários (urtiga branca, folha de malva, hera terrestre e cebolinha) + salada com acelga verde, folha de dente de leão, azedinha e uma alface selvagem (tudo do nosso lote), maçã e nozes, temperada com melado de romã (da Palestina) + morango com melissa e flores de borragem (também do nosso lote).

Passamos a tarde, Anne e eu, cuidando da horta nos Jardins Operários, então aproveitei pra colher os ingredientes do jantar. Adoro incluir plantas selvagens (plantas comestíveis tradicionais – antigamente conhecidas como PANCs) na minha alimentação. Tanto porque o sabor é interessante, quanto pra aumentar ainda mais a variedade da minha dieta.

O iogurte que compro aqui é realmente natural: sem açúcar e sem nada além de soja orgânica, água e bactérias pra fermentar o leite. Acho uma pena os iogurtes vegetais no Brasil serem todos adoçados e cheios de ingredientes estranhos.

Os morangos da nossa horta são miudinhos e perfumados e tive a ideia de misturar com folhas de melissa e achei a combinação maravilhosa (da próxima vez vou só diminuir a quantidade de folhas, pois tinha mais melissa que morango).

Sábado

Café da manhã: aveia dormida (com chia e leite de soja), maçã, pasta de amêndoas e 1 castanha da Amazônia + café. Almoço: mistura de leguminosas (feijão vermelho e branco, grão de bico e ervilha seca) com tomate e coentro, cuscuz de cevada, salada com acelga verde, alface, azedinha, folha de dente de leão, semente de jerimum tostada e chucrute. Lanche: 1/2 sanduíche com “atum” vegetal (à base de proteína de ervilha e algas), rúcula e cebola roxa e 1/2 fatia de quiche de legumes. Jantar: sopa de lentilha rosa (só lentilha, cebola, cominho, e limão) com coentro, rabanete e cubinhos de pão tostado no azeite.

Fui pra Paris com Anne e passamos do lado de uma padaria 100% vegetal que vende muita coisa gostosa. Esse sanduíche de “atum vegetal” é assustador de tão parecido e as quiches são deliciosas. Recomendo muito esse lugar pra quem estiver de passagem por Paris, se chama Land&Monkeys. Mas nesse dia Anne passou mal e à noite ela me pediu um prato que sempre cura as doenças dela (e as minhas): sopa de lentilha palestina, feita com lentilha rosa, cominho e muito limão. Depois do jantar ela já estava boazinha. (Fiz uma versão simplificada dessa receita, sem arroz e sem alho).

Falei que kiwi aqui vem da Nova Zelândia, mas esses que aparecem na minha mesa vieram da Itália. De todas as frutas, kiwi é uma das que eu menos gosto e foi a primeira vez na vida que comprei kiwi. Mas como a oferta de frutas que cresce por aqui é pequena no momento (vai melhorar quando o verão chegar com todas as suas frutas suculentas), eu acabei trazendo uns kiwis orgânicos pra casa pra variar um pouco (senão era só laranja e maçã todo dia).

Domingo

Café da manhã: tofu mexido com tahina e limão, pão de fermentação natural + café. Almoço: mutabbal (pasta de berinjela defumada) com baguette de fermentação natural e rabanetes. Jantar: soba (macarrão de trigo sarraceno) no leite de soja e tahina, tofu defumado e coentro, salada de favas verdes com laranja e semente de girassol. Ceia: pão de fermentação natural com queijo de tofu, kiwi e iogurte natural de soja.

Passei o dia nos Jardins Operários, cuidando do nosso lote junto com camaradas do coletivo. Queria ter preparado o almoço pra levar, mas preferi encher o bucho de tofu de manhã e tomar vários cafés enquanto conversava com Anne (domingo só presta se começar assim). Então só deu tempo de fazer um mutabbal, lavar uns rabanetes e pedir pra uma camarada levar pão. Claro que quando saí dos jardins, às 16h, já estava morrendo de fome. Então jantamos cedo, por volta das 17h, e antes de dormir fiz uma ceia leve. O prato do jantar pode parecer estranho, mas é a minha obsessão há meses! Me inspirei de um prato maravilhoso servido num restaurante japonês vegano de Paris e desde que descobri que conseguia fazer uma versão simplificada em casa, como isso pelo menos uma vez por semana.

Termino esse post com as duas colheitas que fiz durante a semana na nossa horta coletiva (espere até o verão chegar, com seus tomates e abobrinhas, e a colheita vai ser muito mais impressionante!). Tudo isso apareceu no cardápio que mostrei acima. E não fotografei, mas também consumi bastante keffir (de água) feito por mim mesma e vários pedaços de chocolate 100% cacau.

Bônus

Acima, duas refeições que fiz antes de começar a documentar todo que comi na última semana. Na esquerda tem um banquete feito pela minha amiga (e vizinha de lote nos Jardins operários) Lila, que é síria e cozinha maravilhosamente bem. Aqui tem salada de favas (maduras), fatush (salada de legumes crus com pão pita frita no azeite), mutabbal, taboulê (salada de legumes crus e triguilho), mais a pimenta e legumes fermentados que ela mesma prepara. Na foto da direita tem um almoço feito por mim: quinoa com brócolis, cogumelos ostra salteados, salada de repolho roxo, pepino e coentro com molho de tahina e missô + laranja.

Abaixo meu almoço de hoje: risoto com arroz integral, favas verdes (da horta) e maduras, salada de alface e cenoura crua com molho de tahina e semente de jerimum, mais iogurte natural de soja com laranja (deu pra perceber que amo essa combinação, né?). E à direita, meu chocolate preferido. Gosto de chocolate 100% (totalmente amargo) e esse aqui é um desbunde! Mas chocolate é comida de luxo e só como um quadradinho por vez. Felizmente o sabor é tão intenso que me satisfaz totalmente. Essa barra de 100g (dividida em 24 quadradinhos) dura um mês inteiro, se eu estiver comendo sozinha.

Sobre ter uma prática vegana na estrada

Muitas, muitas luas atrás, quando esse blog ainda era um bebê de pouco mais de um ano, e que eu ainda usava o masculino como neutro, escrevi um post chamado “Vegano na estrada“, com dicas pra não passar fome durante viagens. Além das dicas, que ainda considero úteis, aquele post tem fotos de uma versão muito mais jovem e otimista da autora dessas linhas.

Não vim revisitar o post mencionado nem fazer uma versão atualizada das dicas. Vim falar do que a Sandra jovem e otimista evitou abordar naquele texto, porque ela não queria afastar as pessoas do veganismo, queria passar uma imagem positiva e convidativa em qualquer circunstância. Quase uma década e meia depois, não só parei de me importar com esse tipo de coisa, como meu pensamento se desenvolveu muito e hoje vejo restrições como: 1-inevitáveis, 2- um convite a repensar prioridades e 3-o ponto de partida pra uma reflexão muito mais profunda, que vai além da comida. Vou usar alguns exemplos de situações e refeições que fiz na viagem que fiz na Amazônia no final do ano passado, quando fiquei quase dois meses na estrada.

Nas duas fotos acima vemos refeições feitas “na estrada”, em lugares muito simples e que seriam considerados “sem opção vegana”. Não porque não tinha nenhuma comida de origem vegetal, mas porque são comidas vistas como “acompanhamentos” e se alimentar dessa categoria de alimentos é considerado pela maioria como uma refeição que não é “completa”.

A primeira foto é de um café da manhã em uma pousada numa cidade bem pequena, na zona onde o Nordeste se torna Amazônia. No buffet tinha três frutas (melão, mamão e banana), cuscuz (sem nenhum tipo de leite, só na água e sal), café e tapiocas recheadas com queijo e/ou ovo. Chamei a cozinheira e perguntei se ela podia fazer tapioca sem nada pra gente (Anne e eu) e ela fez, sem problemas. Num canto do restaurante da pousada, usado no buffet do almoço, vi que tinha uma garrafa de azeite. Perguntei se poderia usar o azeite na minha tapioca e isso também me foi concedido com um sorriso.

A foto acima, à direita, é de um almoço em uma churrascaria na beira da estrada, no caminho pra São Luís. Naquele momento nós já estávamos viajando há mais de um mês e foi a primeira vez que, em um restaurante self-service/no quilo, todos os feijões tinham animais ou derivados de animais dentro. Acho revoltante quando um restaurante tem um montão de opções de carnes animais e mesmo assim enfia mais animais dentro de todos os feijões. Mas tudo bem, mesmo nessa situação consegui um prato de alimento: macarrão no alho e óleo, arroz, beterraba e jerimum cozidos, salada de tomate com pepino, abacaxi e melão (Anne também comeu macaxeira frita, porque ela ama!).

Ouço vozes indignadas gritando “Cadê a proteína???” Sim, nos dois casos as refeições teriam sido mais nutritivas (e teriam me saciado por mais tempo) se tivesse uma aveia com leite de soja, ou um hummus pra passar na tapioca na primeira, e duas boas conchas de feijão na segunda. Mas ninguém se desintegra automaticamente depois de fazer uma refeição com mais carboidrato do que proteína, meu povo! Bora relaxar um pouco a obsessão com proteína, bora? Até porque poderia ser muito pior: você poderia não encontrar nada pra comer e ficar com fome.

E falando em ficar pior, tem, realmente, momentos mais difíceis quando a gente é vegana e está viajando de ônibus, trem e barco no interiozão desse território conhecido como Brasil.

A foto acima, à esquerda, foi de um almoço improvisado em uma universidade federal. A lanchonete só vendia salgados e sanduíches com animais. Tinha uma pessoa vendendo quentinhas na universidade, mas já com carne de animais misturada dentro da comida. Quando o estômago roncou e eu ainda precisava ficar mais um pouco ali, vi que a lanchonete também vendia bolacha do tipo água e sal de uma marca que eu sei que não usa ingredientes de origem animal. Comprei um pacote, que acompanhamos de suco de laranja natural. Isso está muito longe de ser um almoço equilibrado, ou até razoavelmente satisfatório. Mas enganou a fome por mais uma hora, o tempo que precisávamos pra sair dali e procurar um almoço de verdade em outro lugar.

Aí tem momentos que você não encontra nada pra comer. Um noite, ao chegar em uma pousadinha de beira de estrada, já bem tarde, o único lugar que ainda estava aberto (entregando comida) não tinha absolutamente nenhuma opção vegetal, nem sequer “veganizável” com alguns ajustes. Felizmente, essa vegana aqui sempre anda com comida na bolsa e antes de subir no ônibus que me levou até aquela cidadezinha, 24 horas antes, eu tinha comprado uma penca de bananas na rodoviária. Sim, fruta é comida e nos interiores do Brasil ainda é fácil encontrar frutas pra vender, principalmente próximo (às vezes dentro) das rodoviárias. Então nós, que já estávamos nos alimentando praticamente só de bananas, comemos as últimas bananas da penca e fomos dormir.

Por maior a frustração que os momentos acima tenham me causado, entendo que eles são acontecimentos pontuais, dentro de uma vida de fartura, onde não só nunca fui dormir de barriga vazia, como a maior parte das minhas refeições são extremamente saborosas e variadas. Mais uma vez, ninguém morre se jantar duas bananas uma vez na vida .

Termino com mais dois exemplos de como se virar na estrada, quando se tem uma prática vegana. A refeição à esquerda foi feita no barco que nos levou de Manaus pra Belém. O almoço servido a bordo era composto por feijão, arroz, macarrão e uma carne animal. Eu pedia sem animal e completava a refeição com uma banana (levei várias pencas na bagagem, pois a viagem durou 5 dias) e com uma mistura de gergelim e semente de girassol torrados, cebola e alho desidratados e um pouco de sal que fiz especialmente pra esse trecho da viagem. Coloquei num potinho e salpicava os meus almoços com esse mistura (inspirada no gersal da culinária macrobiótica), pra que eles ficassem mais nutritivos e saborosos. É uma maneira bem prática de melhorar refeições na estrada. Basta ter alguns elementos-chaves na bolsa (sementes, castanhas, frutas secas e/ou frescas) pra melhorar o ordinário.

Na última foto: abacaxi e manga, degustados no voo que marcou o fim da viagem e nos levou de volta pra Natal. Vou repetir: fruta também é comida. E pode ser um lanche completo, sem mais nada. Enquanto as passageiras ao meu redor comiam os biscoitos/bolachas distribuídas pela companhia aérea, junto com sucos de caixinha, eu me fartava com as delícias que a natureza nos oferta.

Sempre penso nas pessoas que dizem ter deixado de ser veganas porque viajam muito e “não tem opção vegana nas viagens”. Obviamente que essas pessoas, apesar de se alimentarem de vegetais, não o faziam por razões éticas. Eu não sei você, mas quando penso em todo o sofrimento que o complexo industrial especista – a indústria da exploração animal- causa nos animais, que são torturados e mortos aos milhões a cada dia, só no Brasil (sim, MILHÕES a cada dia!), fazer uma refeição aqui outra acolá que não seja ideal, e até jantar só uma banana, me parece um “sacrifício” bem pequeno pra não quebrar a minha solidariedade e passar do lado de dos que participam dessa injustiça tão cruel. Irrisório, até. Veja que não estou falando aqui de passar fome, simplesmente de aceitar que em certos contextos (viagens) a gente não vai encontrar uma opção vegana perfeita (gostosa, nutritiva, acessível) e que se contentar com algo mais simples faz parte da vida de uma vegana dentro de uma sociedade especista e capitalista. E esse é o cerne da questão.

Pra além de discutir a suposta dificuldade de ter uma prática vegana na estrada, estou cada vez mais convencida da importância de chamar a atenção das pessoas pra algo que não tem nada a ver com veganismo. A mentalidade capitalista nos condicionou a esperar ter tudo, o tempo todo, do jeito que a gente prefere, na hora que a gente quer. Por isso fazer uma refeição, ou algumas, que não sejam “ideias”, mesmo num contexto específico e de duração limitada (viagem), pode parecer como um sacrifício impensável. E talvez o veganismo, além de ser uma prática de solidariedade com outros animais, seja também uma oportunidade de ter atitudes mais maduras (leia: menos mimadas) com relação à comida. E, indo ainda mais longe, entender que é preciso aceitar ter menos, de vez em quando, pra que tenha suficiente pra todo mundo.

PS Se as bananas me salvaram da fome no Maranhão, foram as mangas (foto de abertura desse post) que me salvaram no Acre. Depois de quase um dia inteiro sem comida, cruzar com uma mangueira carregada foi uma fonte de alegria, além de calorias, pra todo um grupo de pessoas, das quais apenas duas eram veganas.

Domingo – 2

Um segunda rodada de recomendações dominicais, mais de dois meses depois da primeira.

A jornalista Eliane Brum criou, em 2022, o site Sumaúma: jornalismo do centro do mundo. Se você ainda não conhece essa plataforma de notícias da Amazônia, não perca mais tempo. Os artigos e reportagens são excelentes, mas gostaria de recomendar hoje a série em HQ “Guariba: Uma visão não-humana da história da Amazônia” onde acompanhamos um macaco guariba enquanto ele “explora sua casa-floresta e tenta entender os humanos que o ameaçam.” Em seu manifesto, o site Sumaúma se coloca como antiespecista e além dessa série tem uma coluna chamada “Mais-que-humanes” com notícias e histórias dos povos da Amazônia que quase nunca ganham manchetes, os outros animais.

Não é de hoje que o debate sobre ultraprocessados de origem vegetal (os famosos “plant based”) alimenta divergências dentro do movimento vegano. Tem quem ache que é um atalho pra que mais pessoas consumam produtos veganos e tem quem ache que essa estratégia é um tiro no pé (como nós, que construímos o veganismo popular). Recentemente começou a pipocar reportagens sobre “ultraprocessados menos piores”, “mais saudáveis” e “do bem”. O Joio e o Trigo respondeu de maneira muito didática à essa questão.

Mas deixa eu chamar sua atenção pra um ponto muito importante. O complexo industrial especista anda se aproveitando da discussão em torno de ultraprocessados pra descer o cacete nos produtos ultraprocessados “plant based”, com manchetes como: “Ultraprocessados à base de plantas podem aumentar risco cardiovascular”. Repare que a linha traçada aqui é desonesta e tem um único intuito: fazer as pessoas acreditarem que uma dieta vegetal é perigosa e descreditar o veganismo. O ruim nos produtos descritos na reportagem que citei é o fato de serem ultraprocessados, não o fato de serem à base de plantas. Percebe a desonestidade? E, mais uma vez, percebe o tiro no pé que é apostar em ultraprocessados vegetais como estratégia dentro do movimento vegano?

A primavera chegou no hemisfério norte e nossa horta nos jardins operários está toda florida. Estou ansiosa pra comer nossas favas (foto de abertura desse post), mas ainda vai demorar alguns meses. Enquanto isso, sigo germinando sementes e preparando as mudas dos legumes de verão que serão plantados mês que vem (tomate, abobrinha, berinjela…). Minha cozinha foi transformada em berçário de plantas e, no meio de todas as dificuldades que estou atravessando no momento, cuidar desses bebês é uma das coisas que está segurando meu juízo dentro da caixola. Plantar é um dos melhores antidepressivos que existe.

Desde ontem estou desejando meu creme voluptuoso de chocolate e laranja. Até hoje é a minha sobremesa mais popular aqui no blog.

E porque nos domingos a saudade da minha mãe aumenta, fui reler a última conversa que nós tivemos, antes dela parar de falar de vez, e me emocionei de novo: Um punhado de farinha e um pedaço de rapadura .

Desejo que a semana que vem sorria pra nós.

Um cheiro

S

Na minha periferia, sionistas e fascistas não se criam!

Comidas amazônidas – Belém

Volto com mais um post da série sobre as comidas que degustei e descobri durante a viagem pela Amazônia. Depois do Acre, de Manaus e de uma viagem de barco pelo rio Amazonas, chegamos em Belém, um dos pontos fortes da gastronomia amazônida.

Vou começar com ele, o amado, o idolatrado açaí. Na foto abaixo: açaí branco e roxo (o mais comum), na feira do açaí. Foi a minha segunda vez em Belém e eu já sabia da maravilha que é o açaí por lá. Fiquei feliz em apresentar o açaí autêntico pra Anne, que, como todo mundo que não nasceu na Amazônia, primeiro achou “diferente”, mas antes do final da primeira cumbuca já tinha se apaixonado perdidamente. Comemos com farinha de tapioca (abaixo, à esquerda) e com farinha d’água (abaixo, à direita). Quem nunca comeu açaí puro (sem xaropes, sem açúcar e sem – que as deusas da floresta nos perdoem – leite condensado) vai se surpreender com a profundidade do sabor. Eu fico encantada com a textura também, que tem um aveludado que me lembra abacate.

Mas o fato de amar açaí em temperatura ambiente, sem açúcar e com farinha não significa que não gosto da versão “sobremesa” dele. Só que se for pra comer ele doce, aí prefiro na forma de sorvete, mesmo. E ninguém em Belém faz um sorvete de açaí melhor do que a sorveteria Cairu. É uma sorveteria tradicional, uma instituição na cidade. E apesar de não estar totalmente livre da influência do colonialismo alimentar, com sabores como “ovomaltine” e “kynder ovo”, as frutas regionais são as verdadeiras estrelas dessa sorveteria. O sorvete de açaí (100% vegetal) é um espetáculo e um dos mais premiados da casa. O outro sabor vegano se chama “paraense” e é açaí com farinha de tapioca. Como explicar que acrescentando um ingrediente de sabor quase neutro, como a farinha de tapioca, o sorvete se transforma em algo assim, tão poético? Quem acompanha esse blog há um certo tempo deve ter percebido que tenho opiniões e preferências gastronômicas fortes, e que sou dada a arroubos de entusiasmos com certas comidas. Então toma mais uma arroubo de entusiasmo: são os melhores sorvetes que já tomei! E olha que levo sorvete muito a sério, pois é uma das poucas sobremesas que gosto.

Depois dessa declaração de amor ao açaí, deixa eu falar sobre meu prato paraense preferido (meu e de toda a população local): maniçoba. Repare que o danado tem tudo pra espantar as desavisadas. Parece (com todo respeito) lama do mangue. E quando explicam pra gente o que é, dá um certo medo de provar.

Se você não sabe, maniçoba é feita com as folhas da maniva (mandioca brava), que precisam ser cozidas por vários dias (geralmente de 4 a 7 dias) para eliminar o ácido cianídrico, que é altamente tóxico. Depois elas são misturadas com pedaços de animais e fica parecendo uma feijoada, mas sem feijão.

Vá contra os seus instintos de preservação (“Nazinha, faça com que essa maniva tenha sido cozida por tempo suficiente e não me mate”) e prove, pois esse prato é um desbunde! Obviamente só provei a versão vegetal, mas me disseram que até quem não é vegana aprecia a versão vegetal, considerada mais leve e digesta. Em Belém eu gostei muito da maniçoba do restaurante (vegetariano) Govinda (foto abaixo, à esquerda) e do Purão (foto abaixo, à direita), que é 100% vegano. Aliás o Purão é meu restaurante preferido em Belém. Tem um buffet repleto de delícias, além da maniçoba, as sobremesas são muito boas.

Terminando o “top 3” das melhores comidas de Belém, eu vos apresento pupunha. Não o palmito, mas o fruto (ambos vem da palmeira Bactris gasipaes). Foi a primeira vez que comi pupunha e fiquei encantada. Os frutos são cozidos na panela de pressão (tem que cozinhar bem, senão dá uma coceira louca na boca. É, comida paraense não é para as fracas!) e tradicionalmente degustados com café. Foram minhas amigas Larissa e Maria, da Casa 316, que nos apresentaram pupunha num café da manhã que ficou na memória.

O sabor? Imagine que a batata doce teve uma filha com o milho e ela nasceu como uma versão junta e melhorada dos dois. Essa é a pupunha pra mim. O Armazém do Campo de Belém serve pupunha cozida com café (com leite vegetal!) e um bolo de macaxeira (também vegetal) divino (foto abaixo, à esquerda)! Também fui levada pela minha amiga e camarada Michelle pra provar uma posta de pupunha em um restaurante tradicional da cidade (que não é vegano, mas que tem algumas opções vegetais no cardápio). Abriu-se um mundo de possibilidades à partir da pupunha na minha cabeça. Mais um item na minha lista de coisas urgentes a fazer: me mudar pra Belém e passar um ano inteiro cozinhando, e comendo, pupunha.

Abaixo uma pequena mostra das delícias que comi em Belém, seja na casa de amigas e camaradas (como essa feijoada), em restaurantes (veganos ou não), no centro de Belém e nas ilhas do Combu e Cotijuba. Destaque pro feijão manteiguinha, que descobri lá e pelo qual me encantei (fui encantada várias vezes pelo que as minhas papilas descobriram nessa viagem). No Pará ele é servido como uma salada (em temperatura ambiente e misturado com tomate, cebola, chicória – que eu chamo de “coentrão”) e foi assim que preparei (foto à esquerda, na linha do meio). Mas quando estive em Cotijuba comi esse feijão numa versão afarofada, com castanha-da-Amazônia, e também ficou ótimo (acompanhando a moqueca de banana da terra, na foto à esquerda, na linha de baixo). Mais um destaque: o sorvete de cupuaçu com castanha-do-Amazônas caramelizada (ultima foto da galeria abaixo).

Falei da pupunha servida no café do Armazém do Campo, então vou aproveitar pra falar que é lá que você vai encontrar a pupunha crua (pra preparar em casa), além de muitos outros produtos locais, vindos da reforma agrária. Melhor lugar pra comprar comida na cidade. Tem uns chocolates maravilhosos, com cacau da Amazônia.

Esqueci de fazer uma foto do brunch delicioso que comi na padaria Verderosa, que é vegana e muito aconchegante. E por que estou falando desse brunch? Porque foi ali que provei uma fruta regional chamada “bacuri”. Comi um creme de bacuri na padaria que fez meus olhos brilharem! Que fruta é essa, minha deusa? Que sabor é esse? Infelizmente não consegui encontrar a fruta fresca, mas será minha missão (mais uma) quando voltar pra Amazônia, no final do ano.

Não posso terminar esse post sem falar que minha passagem por Belém não teria sido, nem de longe, a maravilha que foi sem as minhas amigas e camaradas do VEM. Elas me deram casa, comida, carinho, apoio e experiencias incríveis. E presentes comestíveis!

Agora, vamos pra receita de Belém, que na verdade é meio de Belém, meio de Manaus. Explico. Quando estive no MUSA tomei um suco no café de lá e reparei que o cardápio tinha um prato com sabor local e, olha que coincidência, vegano. Mas não estava disponível naquele dia. Perguntei pra cozinheira do café, que era simpática, como ela fazia aquele prato e ela, muito generosa, me explicou direitinho. Me prometi que prepararia aquela comida em Belém, pois lá eu encontraria os ingredientes necessários.

Quando contei dos meus planos pra amiga nos hospedando (cheiro, Vanessa!), ela disse que ali em Belém chamavam aquilo de “arroz paraense”. As únicas diferenças eram que a versão que a cozinheira do MUSA tinha me dado incluía banana da terra frita (porque o povo de Manaus é completamente obcecado por banana da terra e certo estão eles) e castanha-da-Amazônia.

Fiz o prato e ele era tão gostoso quanto eu tinha imaginado. E Vanessa, que é paraense, também adorou, o que me deixou muito orgulhosa. Apesar dos ingredientes serem difíceis (impossíveis?) de encontrar fora da Amazônia, queria deixar a receita registrada aqui no blog, porque tenho certeza que farei novamente assim que meus pés voltarem a tocar a cidade das mangas.

Arroz com tucupi, jambu e banana da terra (um arroz paraense com influência manauara)

Esse arroz lembra risoto, na textura cremosa, mas o sabor é totalmente amazônido. No lugar do caldo de legumes (ou de animais), o arroz é cozinhado no tucupi, que é o caldo fermentado da mandioca. Que idéia brilhante! Agora quero cozinhar tudo no tucupi! Além disso, ele é recheado com jambu, aquela folha que faz a boca tremer. A banana da terra frita acrescenta um toque doce que realça ainda mais o sabor “umami” do tucupi e a castanha-da-Amazônia traz ainda mais sabor e contraste de textura, algo importante num prato como esse, onde todos os elementos são macios. A castanha usada nessa receita é fresca, que é leitosa como polpa de coco seco (aquele que usamos pra fazer leite).

Arroz branco (evite o parbolizado)

Tucupi

Banana da terra (de fritar)

Cebola

Alho

Chicória (também conhecida como “coentrão” ou “coentro do Maranhão”)

Castanha-da-Amazônia FRESCA

Óleo

Sal e pimenta preta

Refogue a cebola picada em um pouco de óleo. Junte o alho picado/amassado e o arroz e refogue por mais alguns segundos. Cubra o arroz com uma mistura de tucupi e água, em quantidade suficiente pra cozinhar o arroz. Pode usar metade água, metade tucupi ou adaptar ao seu gosto. A cozinheira do MUSA me falou pra usar só tucupi, e foi o que fiz, mas o sabor fica bem forte e se você não tiver costume de consumir esse ingrediente, aconselho diluir o tucupi com água pra deixar mais suave. Deixe cozinhar em fogo baixo, coberto, mexendo de vez em quando. O objetivo é conseguir um arroz bem macio e levemente cremoso, como um risoto, então acrescente mais água/tucupi até atingir a consistência desejada e não tenha medo de mexer com a colher de pau (é pra ficar grudado, mesmo).

Enquanto o arroz cozinha descasque e corte as bananas da terra em fatias (no sentido do comprimento). Aqueça um pouco de óleo em uma frigideira e frite a banana até ficar bem dourada dos dois lados.

Quando o arroz estiver cozido e cremoso, junte chicória picada e pimenta preta a gosto. Prove e decida se precisa de sal (eu achei o tucupi salgado suficiente pra temperar o arroz, mas talvez isso varie de tucupi pra tucupi).

Sirva acompanhado da banana da terra frita e salpicado de castanha-da-Amazônia picada.

Manaus-Belém de barco

A série de posts sobre comidas amazônidas (parte 1, no Acre e parte 2, em Manaus) está seguindo o caminho que realmente fizemos no final do ano passado, por isso agora preciso falar sobre a viagem de barco de 5 dias que fizemos no Amazonas, entre Manaus e Belém.

Desde que começamos a sonhar com esse projeto, apareceu a vontade de fazer uma viagem de barco. Pensamos: “Quando teremos outra oportunidade de navegar pelo rio Amazonas?” Eu estava viajando pra conhecer as histórias das pessoas e dos bichos, mas também das árvores e dos rios.

A viagem é bem menos bucólica do que uma pessoa não-amazônida pode imaginar. E não tive a experiência do redário, que é mais típico. Alugamos uma cabine porque estávamos viajando com material de fotografia e muita bagagem, mas também porque, no meio de quase dois meses de trabalho, precisávamos descansar um pouco antes da etapa seguinte. É muito caro viajar assim e a cabine deixou muito, muito a desejar. Não estava esperando luxo, nem sequer um grande conforto. Mas um mínimo de limpeza, eu esperava. Foi uma daquelas experiências que você fica super feliz de ter feito, mas que não faria novamente por nada.

A outra razão pra reservar uma cabine no barco foi poder ter acesso a um frigobar. Eram 5 dias de viagem e, apesar de ter refeições à bordo, só o almoço podia ser adaptado pra ficar 100% vegetal. O jantar sempre era sopa com animais e o café da manhã era sempre pão com queijo e presunto. Ou seja, tivemos que levar quase toda a nossa comida e improvisar refeições sem ter fogão à disposição.

“Ah, deixei de ser vegana porque viajo muito!” Gente, se fosse verdade que é impossível ser vegana e viajar, eu já teria deixado de ser há tempos. Já me tornei um disco arranhado de tanto repetir isso, mas lá vai: se planejar direito, dá certo. Lembre-se que viagem é, por definição, uma situação fora da sua rotina e de caráter temporário. O que estou querendo dizer com isso? Que não vai ser perfeito, que em casa você comeria melhor, que alguns dias você não vai se alimentar de maneira tão nutritiva, mas que tudo bem porque ninguém vai morrer de carência nutricional se passar uns dias se alimentando mal.

Minha estratégia no barco foi focar em preparar um café da manhã bem nutritivo, com algo que a gente acha gostoso e que nos alimenta por horas, almoçar no barco e levar alguns ingredientes prontos pra serem degustados no lanche e no jantar. O jantar era bem leve, mas comíamos melhor no resto do dia.

O café da manhã de todo dia era aveia dormida com chia e leite de castanha (de caixa), banana, pasta de amendoim em pó (comprei especialmente pra essa viagem), castanha-da-Amazônia, nibs de cacau e granola de cacau (comprada pronta).

Como antes do barco estávamos num apartamento em Manaus, pude preparar um mix pro café da manhã. Num potinho misturei a aveia com a chia, numa quantidade que desse pra viagem inteira. À noite eu misturava com leite de castanha e colocava no frigobar da nossa cabine. Na manhã seguinte eu acrescentava os outros ingredientes. A foto à direita foi de um dia em que tomamos um segundo café da manhã, com pão, queijo de castanha meia-cura (do Salgados Veganos Manaus) e café do barco. Aliás, ser vegana num barco na Amazônia é fichinha! Nosso maior desafio foi o café.

Anne e eu tomamos café sem açúcar e quando a gente viaja pelo interior do Brasil, principalmente em lugares pouco- ou nada- turísticos, encontrar café não-adoçado é um desafio. Eu acho café adoçado algo intragável, então por mais viciada que eu seja, prefiro ficar sem café. E olha que isso me rende uma bela dor de cabeça (o vício é uma coisa horrorosa). Felizmente, no segundo dia conversei com a cozinheira e ela aceitou fazer um pouco de café sem açúcar só pra gente, com a condição de chegar no começo do serviço. Glória!

As fotos acima foram feitas na nossa cabine. Repare que minha “bancada de cozinha” era o frigobar e tive que me virar pra preparar as coisas ali. Me programei pra passar no restaurante vegano maravilho do qual falei no post anterior um dia antes de embarcar. Então comprei um molho à bolonhesa de tofu, congelado (o macarrão, eu cozinhei no apartamento onde estava e coloquei na marmita pra ser o primeiro almoço da viagem, já que no primeiro dia, a cozinha do barco não funciona ), mais o queijo de castanha meia-cura, tofu defumado em fatias (maravilhoso!)e pão de macaxeira. Também comprei umas bolachas salgadas de linhaça (crackers), chocolate e algumas frutas. E levei também um tucumã preparado por mim (sobras do meu X-Caboquinho).

As fotos abaixo foram dos nossos jantares: macarrão com bolonhesa de tofu, abacate com cebolinha e limão, tucumã refogado e triturado e pão de macaxeira e uma mistura dos dois. Sim, era um pouco repetitivo, mas foram só 5 dias. E, sinceramente, não dá pra reclamar dessa comida maravilhosa.

Abaixo, além do abacate, tucumã e pão de macaxeira, tem o tofu defumado e fatiado que falei. E mangas!
Comprei bastante banana e manga e foram as frutas que comemos durante toda a viagem (além do abacate, claro). Queria ter feito alguma foto dos lanches (crackers de linhaça com queijo de castanha, chocolate ou manga), mas esqueci.

Abaixo uma foto do almoço servido no barco. Se pedir sem carne (sem animal), ficava 100% vegetal: feijão, arroz, macarrão e farofa (com óleo e alho). O acréscimo da banana ficava por minha conta, porque adoro feijão com banana. Comi isso 4 dias seguidos (o primeiro almoço, como eu disse, levei pronto) e no final da viagem a gente estava sonhando com uma salada crua colorida, com um suco fresco e com um tempero melhor, mas, vou repetir, é uma situação provisória, logo totalmente suportável. Eu não vou reclamar de ter feijão e arroz no prato, né?

Antes que alguém diga, eu sei que fiquei numa cabine, com acesso a um frigobar, e que isso facilitou a minha vida. Daria pra ter tido uma alimentação 100% vegetal se a gente tivesse comprado uma passagem no redário? Daria. Seria menos saboroso, mas ainda assim daria pra não morrer de fome nem passar mal com alguma carência (ninguém desenvolve uma carência em apenas 5 dias). Eu teria misturado a aveia com água (afinal, foi exatamente pensando nisso que comprei a pasta de amendoim em pó, que se transforma num leite cremoso com o acréscimo de água). Teria almoçado no barco do mesmo jeito, os lanches seriam os mesmos e teria jantado pão com frutas.

Esse post era pra falar sobre o que comemos no barco e sobre como dá pra ser organizar e fazer uma viagem desse tipo sendo vegana, então não vou falar do que vi e vivi pra além da comida hoje. Um dia, talvez, eu fale dessa experiência. Ou talvez mantenha ela guardada no peito.

Domingo – 1

Descobri que isso tem até nome em Português: “síndrome do domingo à noite”. Eu acho o nome em Inglês mais evocativo: “Sunday scaries”. (Ou “Sunday Night blues”, o que soa como nome de uma banda, pra mim.) Quase todo mundo já sentiu isso. Aquela tristeza que começa a bater no final da tarde do domingo e se intensifica com a chegada da noite. Porque o fim-de-semana (entenda: o descanso) acabou e amanhã é segunda. E quem gosta de segundas? Tem despertador, tem escola, tem trabalho…

Pensei em passar aqui pra deixar algumas sugestões de coisas que li, vi, ouvi e escutei recentemente e que gostaria de compartilhar. Não ousaria dizer que vai curar sua síndrome do domingo à noite. Só uma revolução social, que mexesse nas estruturas da escola e do trabalho assalariado, poderia curar essa síndrome. Mas se postar mini listas com recomendações bacanas não vai salvar sua noite de domingo, piorar também não vai. E talvez, talvez, você leia, escute ou veja alguma coisa que te faça começar a semana carregando uma fagulha de algo bom. E isso já é uma vitória.

Uns dias atrás publicamos, Anne e eu, um artigo sobre a trilha Chico Mendes, uma iniciativa de turismo de base comunitária dentro da Reserva Extrativista Chico Mendes (Acre), em uma revista online francesa. Esse é um dos vários artigos que escrevi pro nosso projeto sobre a Amazônia em luta (eu escrevo os textos, Anne faz as fotos). É em Francês, mas tem um botão em algum lugar que traduz pro Português (foi o que o meu sobrinho me disse) e vale a pena conferir pra ver as fotos impactantes que Anne fez.

Chico Mendes, o líder seringueiro que defendia a Amazônia e os direitos dos povos tradicionais da floresta, teria completado 80 anos em dezembro (de 2024). O documentário “Empate” (quem conhece a história de resistência dos seringueiros vai entender de cara o nome), dirigido por Sérgio Carvalho, honra sua vida e luta. O filme estreou nos cinemas brasileiros mês passado, mas como não entrou em cartaz em Natal, não pude assistir antes de ir embora. Mas ainda estou procurando uma maneira de vê-lo (talvez passe nos cinemas parisienses também?).

Desde domingo passado acompanho, hora por hora, os acontecimentos relacionados ao cessar-fogo em Gaza. Meus dias são preenchidos com tristeza, revolta, alguns momentos de alívio e uma grande preocupação também com minhas amigas da Cisjordânia (porque enquanto todos os olhos estão voltados pra Gaza, o poder colonial – Israel- está esmagando a outra parte da Palestina na mesma impunidade de sempre). Mas diante da constante desumanização e diabolização de um povo oprimido, eu queria mesmo era celebrar a força criativa e o talento das palestinas e dos palestinos.

Saint Levant, nome artístico do cantor palestino Marwan Abdelhamid, é um desses exemplos. Ele nasceu em Jerusalém, cresceu em Gaza e foi ainda criança pra Jordânia, fugindo dos bombardeios israelenses com a família. Ele canta em Árabe, Inglês e Francês, sua música é uma mistura deliciosa de moderno com tradicional e ele cultiva um bigodão saído diretamente dos anos 70. O rapaz, um jovem de apenas 24 anos, é de um talento imenso e, coisa rara no “showbizz”, tem uma coragem proporcional. Ele sempre falou publicamente da causa Palestina e desde o inicio do genocídio cometido por Israel, usou todas as oportunidades possíveis pra falar sobre Gaza e dar plataforma pra artistas palestinos. Ano passado ele tocou pela primeira vez no Coachella, o maior festival de música do mundo, e usou a oportunidade pra trazer a Palestina, e Gaza, pro palco e ainda fez um dueto, via zoom, com a banda SOL, de Gaza. Eles gravaram juntos e o resultado foi forte, muito forte. A música se chama “On this land” (“Nessa terra”) e vou fazer uma tradução aproximativa do comecinho: “Permaneceremos aqui / então a dor desaparecerá / viveremos aqui / e a melodia vai ser suavizada / minha terra / minha terra / terra de orgulho / minha terra / terra que sou eu”

Ele também lançou a música Deira, com Mc Abdul, o garoto de Gaza que viralizou ao gravar uma música de rap (em Inglês!) em 2021, quando tinha apenas 12 anos, denunciando as condições de vida do povo palestino sob as bombas israelenses. Uma música belíssima, com acordes e vocais tradicionais, junto com o rap de arrepiar de Mc Abdul, ainda mais linda nessa versão ao vivo.

Mais recentemente, Saint Levant lançou Daloona, uma música com 47Soul, um grupo palestino que eu adoro, e dois outros cantores palestinos: Shadi Borini e Qaseem Alnajjar. O começo dessa música é uma canção palestina de resistência e eu descobri o clipe, por acaso, no aeroporto, enquanto esperava o voo que me traria de volta pra França. Foi uma emoção tão grande que chorei do início ao fim. Acho que além de ser uma musica de resistência (“Me perguntaram ‘amigo, de onde você é?’ / Eu disse: ‘Sou palestino’ / Eu sou de um povo indestrutível / E eu mantenho minha cabeça erguida “), num momento tão difícil da história palestina, e mundial, afinal um genocídio é algo que marca o tempo de mundo com um “antes” e um “depois”, o que realmente me fez chorar é que o clip foi filmado como se fosse um vídeo caseiro de uma comemoração palestina (um casamento, por exemplo). E ver a alegria daquele povo (o clip foi filmado num campo de refugiados – refugiados palestinos- na Jordânia), no meio de tanta desgraça, teve o efeito de um eletrochoque na alma. Quando terminou a música e vi que o clipe tinha sido dirigido pelos irmãos Tarzan, dois cineastas de Gaza atualmente no exílio, a emoção foi ainda maior.

Uma última recomendação de Saint Levant: a música “From Gaza, with love” (“De Gaza: com amor”). Tem humor, tem pitadas de política, o som é maravilhoso e o clip…. Ele tem esse estilo incrível que consegue fazer o brega ficar engraçado e depois se tornar “cool”. Adoro! Acredito muito no poder do humor inteligente pra sensibilizar e dar uma sacudida nas mentes e um basta no processo de desumanização que o povo palestino sofre há tantas décadas.

Termino com uma recomendação tirada dos arquivos do blog: o molho de pimenta do meu pai. A receita é ótima, mas a história é melhor ainda. Bora terminar o domingo rindo.

Força, guerreiras, pra enfrentar a segunda e espero que passem a semana escutando “From Gaza: with love” e sacudindo os ombros.

Um cheiro.

S

O último de 2024

Tinha uma pequena tradição nesse blog: escrever o último post do dezembro sobre as melhores receitas do ano (de acordo comigo mesma) ou contar sobre a ceia de natal com a família (geralmente, a família francesa). Publiquei receitas maravilhosas nesse ano, que entraram pro meu repertório afetivo, e o fim de ano na casa do meu sogro, no interior da França, de onde estou escrevendo essas palavras, rendeu pratos deliciosos que merecem ser compartilhados aqui. Mas no penúltimo dia de 2024, meu coração sangra pela Palestina, principalmente pelo povo de Gaza. Nem acredito que faz mais de um ano que o mundo assiste ao genocídio do povo palestino. Em silêncio. Buscando desculpas pra justificar o injustificável. Apoiando com palavras, com imunidade política, com dólares e euros, com armas.

Não imaginei que seria testemunha do genocídio de um povo durante a minha vida e tudo que consigo escrever aqui hoje, depois de ter visto as últimas imagens dos crimes contra a humanidade que Israel segue cometendo contra o povo palestino há décadas, é que não sei o que fazer com a vergonha que sinto quando penso no que vou responder no momento em que o futuro olhar pra trás, pro nosso presente, e me perguntar como eu pude deixar isso acontecer.

Enquanto a Palestina não for livre, ninguém será. Que 2025 traga justiça e reparação.

Depois da Amazônia

Depois de quase dois meses na Amazônia, voltei pro litoral do Nordeste uns dias atrás. A parte material que me compõe voltou, mas a verdade é que ainda não saí completamente de lá. Tanto porque ainda estou muito impactada com o que vi e vivi, quanto pelo fato de estar trabalhando num projeto antiespecista relacionado aos territórios que visitei. Ou seja, agora é que começa a parte onde, depois de ter mergulhado meu corpo e sentidos naquelas matas, mergulho com a mente pra escrever as histórias que colhi pelo caminho.

E espero compartilhar muitas dessas histórias aqui no blog, além de publicá-las em veículos de mídia independente na Europa, mas vai demorar um pouco. É muita coisa pra tratar: entrevistas, fotos, vídeos, emoções. E enquanto faço o melhor que posso pra honrar essas histórias contando-as da maneira mais verdadeira possível, deixo vocês com alguns registros da viagem, que foi do Acre ao Maranhão, passando pelo Amazonas e Pará.

Volto em breve com uma receita que aprendi na Baixada Maranhense, com uma das maiores guerreiras que já conheci. Vou terminar o dia sonhando com esse bolo e com todas as comidas deliciosas que provei durante a viagem (e que merecem um post especial só pra falar delas). Como o açaí de Belém…

Alguns escritos recentes

Estou escrevendo essas linhas diretamente de Rio Branco, no Acre. Cheguei ontem à noite e essa é a primeira etapa de uma longa viagem que vai durar 50 dias e nos levar, Anne e eu, do Acre ao Rio Grande do Norte, passando pelo Amazonas, Pará e Maranhão. Contarei mais sobre esse projeto no final da jornada, mas antes de começar esse trabalho apareci aqui pra compartilhar alguns escritos recentes que nós, da União Vegana de Ativismo (UVA) escrevemos. O incômodo que pessoas antiespecistas sentiram nos últimos meses é gigante. Enquanto os movimentos sociais e pessoal de esquerda, num sentido mais abrangente, não para de repetir – com razão- que o agro é fogo, praticamente ninguém (além da galera vegana) fala sobre a relação entre o consumo de animais e os incêndios que estão destruindo com nossos biomas. Por isso levantamos essas questões sempre que pudemos, porque nossa consciência política e ambiental não deveria parar de funcionar quando sentamos pra comer.

Vou reproduzir os textos aqui, mas vai ter o link pro lugar onde foi publicado originalmente no final de cada um.

O agro é fogo – e já não tem mais como esconder isso. As queimadas são intencionais, e a pecuária é a principal responsável pelos incêndios florestais, de maneira direta e indireta.

A questão agora é: Como apagar o incêndio? 

Comece apagando o churrasco!

Sabemos que 97% do desmatamento nos últimos 5 anos, no Brasil, foi causado pela agropecuária. Sabemos que a maior utilização da terra no país é PASTO – já temos o equivalente ao estado do Amazonas em pasto! O Brasil se tornou o maior produtor de carne bovina no mundo e o número de vacas já ultrapassou o número de humanos. E quem come tanta carne?

75% da carne bovina produzida no Brasil em 2021 foi consumida no nosso prato (ABIEC). O consumo de carne de vaca no país, em 2023, foi de 39kg/pessoa, enquanto o consumo de carne de frango foi de 46 kg/pessoa. Lembrando que a soja é a principal proteína nas rações das aves. Em termos de desastre ambiental e social, comer carne de vaca ou de frango é mais do mesmo. 

Citando Luiz Marques, autor do livro O decênio decisivo:

“Somos os principais responsáveis pela destruição do patrimônio natural, do clima e da biodiversidade de nosso país. Podemos manter a floresta e tudo o que ela proporciona ou podemos manter a dieta carnívora. Mas não podemos manter os dois. É simples assim.” (post original no perfil da UVA)

Estamos presenciando agora uma enxurrada de manchetes como “O Agro é fogo” ou “O Agro é destruição”. A maioria dessas notícias não personaliza a discussão, tratando o agronegócio como uma entidade sem rosto, algo que todos reconhecem, mas poucos compreendem a fundo. Por esse motivo, achamos importante trazer algumas informações sobre o assunto.

Ao falar de agronegócio, é essencial “dar nome aos bois”. Para discutir o agro, precisamos falar sobre a agropecuária. Neste momento, enquanto você é sufocado pela fumaça das queimadas, não dá para ignorar as mazelas de um sistema agrícola predatório, que transforma a criação em larga escala de animais no bife que chega ao prato. Não há como combater o agronegócio sem refletir, com urgência, as bases de um sistema alimentar falido, tanto no Brasil quanto globalmente.

Sabemos que 97% do desmatamento nos últimos 5 anos, no Brasil, foi causado pela agropecuária. Sabemos que a maior utilização da terra no país é PASTO – já temos o equivalente ao estado do Amazonas em pasto! O Brasil se tornou o maior produtor de carne bovina no mundo e o número de vacas já ultrapassou o número de humanos. A monocultura da soja que devasta nosso cerrado e outras regiões do país, é quase em sua totalidade utilizado para consumo de animais que serão mortos e não para consumo direto das pessoas.

Diante dessa realidade, não podemos deixar de considerar que “ quando a carne é a protagonista do prato, o agro é o protagonista do campo”. Mas quando a alimentação tem como protagonistas vegetais frescos, a agricultura familiar é colocada no centro. Alimentação vegetal é resistência contra um sistema que causa fome, miséria, concentração fundiária, genocídio indígena e ameaça a saúde do planeta. 

Você pode não se importar com as relações de opressão dos animais humanos para com os animais não humanos, mas se você tem preocupações ambientais e preza pelo senso de comunidade, pode enxergar uma realidade bem indigesta pela frente: é insustentável consumir animais nessa quantidade atual. Não estamos trazendo uma imposição ou obrigação em ser vegana, mas pense em considerar o veganismo como um ato político de transformação social, como um movimento social de lutas anti-opressão, que pode também contribuir para uma sociedade sustentável.

Citando Luiz Marques, autor do livro O decênio decisivo:

“Somos os principais responsáveis pela destruição do patrimônio natural, do clima e da biodiversidade de nosso país. Podemos manter a floresta e tudo o que ela proporciona ou podemos manter a dieta carnívora. Mas não podemos manter os dois. É simples assim.”

(texto publicado originalmente no site da Mídia Ninja)

Quem come como o colonizador, pensa como o colonizador?

Perdi a conta de quantas vezes contei essa história. Foi há muitos anos e eu estava visitando minha família, no Sertão do Rio Grande do Norte. Era a primeira vez que eu ia lá depois de ter me tornado vegana. A tia que me hospedou estava preocupada, repetindo que agora não sabia mais o que fazer pra eu comer. “Tia, a senhora não precisa se aperrear, não. Eu como tapioca, cuscuz, inhame, feijão, arroz, farinha, batata doce, macaxeira, todas as verduras e frutas. Tudo que eu sempre comi com a senhora, só que sem carne nem queijo” – respondi.

Quando ela me chamou pra comer, encontrei uma mesa farta. Tinha feijão verde, de uma roça ali pertinho, arroz, batata doce, macaxeira, verduras cozidas e salada crua. Enchi o prato e antes de sentar pra comer, minha tia se aproximou, olhou aquele monte de comida colorida na minha mão, suspirou e disse: “Minha fia não achou nada pra comer, não foi?” 

Aquela observação me deixou chocada. Onde eu via fartura, minha tia via vazio. 

Repare que ela estava segurando um prato quase idêntico ao meu, com uma única diferença: no dela tinha um pedaço de frango. Um frango que ela tinha comprado congelado, no supermercado mais próximo. Aos olhos da minha tia, aquilo, sim, era comida.

Essa história é uma perfeita ilustração de como valorizamos muito mais carne (seja ela de vaca, galinha ou qualquer outro animal) do que vegetais. O conceito de “fartura” está, quase sempre, associado a uma mesa, ou geladeira, cheia de carnes e laticínios. Mas qual o impacto dessa crença na sociedade e nas nossas vidas?

Vamos começar fazendo algumas perguntas simples sobre a origem da comida que comemos. Quem produz a quase totalidade da carne no país? Resposta: o agro, seja  diretamente, através da pecuária, seja indiretamente, através da soja e do milho que são transformados em ração pros animais de abate. Agora vamos aprofundar um pouco mais a nossa pesquisa.

Quem trouxe as vacas, galinhas, ovelhas, cabras e porcos pra esse território conhecido como Brasil? Pouca gente reflete sobre isso, mas esses animais não são nativos: eles foram trazidos pra cá pelos invasores europeus. Por um lado, porque era a comida que os colonizadores tinham costume de comer e, por outro lado, pra servir de ferramenta de expansão territorial. Foi “passando a boiada” que as terras foram, e ainda são, colonizadas, até que nos tornamos o segundo maior produtor de carne de gado e de frango do mundo! E se engana quem acha que a maior parte da carne e frango produzidos no Brasil é exportada. De acordo com a ABIEC, atualmente 75% da carne de gado produzida no Brasil é consumida dentro do país e quase 70% do frango brasileiro vai parar no nosso prato. A carne desses animais, que não fazia parte da dieta dos povos originários antes da invasão, ocupa hoje um espaço central no nosso prato: enquanto o consumo anual de carne, frango, porco e cabra é de quase 100kg por pessoa, comemos menos de 50kg de verduras por pessoa, anualmente (FAO). 

O que eu vou dizer agora provavelmente vai gerar antipatia pro meu lado, mas aceito correr esse risco. Quando a gente escolhe comer como o colonizador, a gente acaba apoiando o projeto de colonização, que na sua encarnação mais recente atende pelo nome de agronegócio. Valorizar carne e frango acima de qualquer outro alimento reforça o poder do agro. É por isso que uma das palavras de ordem da UVA (União Vegana de Ativismo) é: “Quando a carne é a protagonista no prato, o agro é protagonista no campo.”

Na outra ponta dessa mesa está a agricultura familiar, responsável por dois terços da produção de frutas, verduras e legumes no país. Acho que agora já temos mais elementos pra responder a pergunta que fiz alguns parágrafos acima. 

Quem sai fortalecido quando acreditamos que “fartura” é obrigatoriamente uma grande quantidade de carne, queijo e ultraprocessados (os pacotinhos e potinhos fabricados pela indústria)? Quem perde quando acreditamos que vegetais, e alimentos frescos em geral, são inferiores – tanto em sabor, quanto em status social?

E tem mais! 57 mil pessoas morrem anualmente no Brasil por causa do consumo de ultraprocessados. O consumo de carnes, principalmente as vermelhas e os embutidos (como mortadela e salsicha) está adoecendo a população, principalmente as classes populares. Aumentar nosso consumo de vegetais é essencial pra evitar o nutricídio da população mais vulnerável, mas estamos caminhando na direção oposta. A última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE mostrou que 90% das pessoas no país não comem frutas e verduras em quantidade suficiente, alimentos essenciais pra manutenção da saúde… 

Quando não valorizamos a comida que vem da terra, desvalorizamos também quem plantou aquela comida. O mais triste é ouvir isso da boca de quem vive da terra. Quem nunca ouviu um agricultor falar: “Planto, mas não como” ? Precisamos mudar essa mentalidade.

Enquanto lutamos pra construir o mundo no qual queremos viver, com abundância pra todas e todos, já podemos começar a sentir o gostinho dele na mesa, ao decidir que “fartura” de verdade é comida que nasce na terra, de origem agroecológica. 

Se quisermos derrubar o agro, precisaremos boicotar seus produtos. Não dá pra continuar repetindo que queremos o agro fora do campo enquanto enchemos o prato com a carne que eles produzem. Pra descolonizar a alimentação, precisamos nos recusar a comer como o colonizador.

(texto publicado originalmente no site da Teia dos Povos)

O que como em uma semana

Tem uma categoria de vídeos muito popular na internet chamada “o que como em um dia”. Me fascina ver o que outras pessoas veganas comem, pois a variedade de alimentos vegetais é quase infinita e me inspira ver pratos de outros lugares. Só que quando você começa a ver muitos vídeos “o que como em um dia” acaba descobrindo que os pratos estão cada vez mais parecidos e, o que mais me dá desgosto, que a galera anda obcecada com o consumo de proteínas. E se antes eu via isso entre pessoas que comem animais, agora eu vejo cada vez mais veganas caindo na armadilha da proteinomania.

Não vou falar por que acho isso uma armadilha hoje, mas fiquei com vontade de compartilhar o que aparece no meu prato no dia-a-dia, pois nem todo mundo está “medindo seus macronutrientes”, consumindo proteína concentrada em pó (de origem animal ou vegetal) todos os dias nem comendo os mesmos pré e pós treinos da moda. E como acho que um dia só não é representativo da maneira como nos alimentamos, resolvi compartilhar uma semana inteira de refeições. Acho que pra saber realmente como a gente se alimenta, teria que ser um mês inteiro, pois pelo menos pra mim pode ter bastante variação de uma semana pra outra, dependendo da quantidade de trabalho que tenho, se estou viajando ou em casa, se estou em Natal ou em Paris… Mas no final das contas, a semana que documentei aqui foi bem próxima do que seria uma semana típica na minha vida, atualmente, nesse época do ano (procure sempre comprar vegetais da estação).

Quarta-feira

Café da manhã: tapioca com hummus, tomate e manjericão fresco, banana da terra cozida, hummus + café. Almoço: feijão macaça, arroz da terra no leite de coco, couve refogada e jerimum com coco + pepino, beterraba crua ralada e melão. Lanche: batata doce cozida, hummus com jerimum e grude com melado + café. Jantar: cuscuz no leite de coco e carne de caju guisada. Ceia: aveia dormida com chia e leite de coco, banana (congelada), maracujá e 1 castanha do Pará.

Eu como maracujá assim, mastigando e engolindo as sementes (às vezes diretamente da casca) e adoro colocar rodelas de banana congelada na minha aveia (ela não fica totalmente dura). Eu janto cedo (por volta das 19h), e às vezes sinto fome antes de dormir e como algo leve. Não sou adepta de jejum nem de deitar com a barriga roncando. Aliás, seguindo o toque de uma amiga nutricionista e vegana, observei que quando deito com fome tenho pesadelos com mais frequência.

Quinta-feira

Café da manhã 1: tapioca com hummus com jerimum e couve refogada + café. Café da manhã 2: batata doce cozida, hummus, meio mamão papaia com 1 castanha do Pará + café. Almoço: feijão macaça, arroz da terra no leite de coco, farofa de carne de caju, chuchu refogado e banana da terra grelhada + salada de folhas (alface lisa, alface americana, alface roxa e rúcula), pepino e abacaxi. Lanche da tarde: arepa de carimã (mandioca puba) misturada com hummus (na massa), tomate e manjericão fresco, café com leite de coco (sempre caseiro) e goiaba. Jantar: cará cozido, tofu mexido e caju. Ceia: meio mamão papaya com aveia dormida com chia e leite de coco.

Nas quintas vou à feira, então tomo café cedo, vou pra feira, carrego peso embaixo do sol e quando volto pra casa já estou faminta novamente. Por isso nas quintas tomo dois cafés da manhã. Eu nunca adoço meu café (nem com açúcar, nem com adoçante – gosto amargo). Leite de coco aqui em casa é sempre fresco, ou seja, caseiro, feito com o coco seco que compro na feira. Também compro carimã na feira. Carimã é a macaxeira (mandioca) fermentada na água por 15 dias, um ingrediente típico da cultura alimentar indígena, que já foi mais popular aqui no Nordeste, mas que hoje pouca gente conhece. Sou apaixonada por carimã e desde que descobri que podia comprar na feira, diretamente do produtor, nunca mais faltou na minha geladeira. Cará, pra quem não sabe, é bem parecido com inhame. Compro sempre cará porque é bem mais barato que inhame e tem praticamente o mesmo sabor.

Sexta-feira

Café da manhã: tapioca com hummus com jerimum, meio mamão papaya com 1 castanha do Pará + café. Lanches da manhã: meio copo de lama de coco (polpa de coco verde) e 1 grude com mel de engenho (melado). Almoço: fava com tomate, resto da farofa de carne de caju, farinha e beterraba cozida no vapor + salada de folhas, pepino e abacaxi. Lanche 1: batata doce cozida, hummus com jerimum e café. Lanche 2 (compartilhado com a família): pipoca (de panela). Lanche 3: vitamina de banana com leite de soja, pasta de amendoim e cacau. Jantar: macaxeira cozida, tofu mexido e antepasto de berinjela. Ceia: lama de coco e goiaba.

Tapioca, pra mim, é essencial pra começar o dia feliz. Grude é uma iguaria do meu território, feita com goma (a que usamos pra fazer tapioca), coco seco ralado e sal. Não sei fazer, então quando alguém traz grude pra casa (vende em alguns lugares específicos da cidade – e esse é bem pequenininho) eu faço a festa. Gosto muito de comer com um fio de mel de engenho, contrastando com o sal do grude. Fica uma delícia! No almoço procuro comer uma salada crua com alguma fruta e gosto das minhas saladas sem tempero nenhum (nem molho nem azeite). Os leites que consumo no dia-a-dia são de coco ou castanha, feitos por mim. Não gosto de leite de soja, mas nesse dia era o que tinha pronto na geladeira (de caixa, sem açúcar) e foi o que usei.

Sábado

Café da manhã: tapioca com hummus com jerimum e tofu mexido, meio mamão papaya com aveia dormida (aveia, chia e leite vegetal) e 1 castanha do Pará + café. Almoço: fava, macarrão com molho de tomate (caseiro) e grão de bico, batata doce e beterraba cozidas + banana e mexerica. Lanche: banana. Jantar: cará cozido, grude, queijo de castanha fermentado, café + salada de frutas (banana, mamão, abacaxi e laranja).

Aos sábados dou aula o dia inteiro, em um cursinho popular em um bairro bem afastado de onde moro. Dou aula das 9h às 16h, mas como preciso pegar dois ônibus pra ir e dois pra voltar, saio de casa por volta das 7h e chego em casa depois das 18h. Por isso o café da manhã tem que ser reforçado e levo a minha marmita pro almoço, que é compartilhado com as outras professoras e alunas. Eu não gosto de macarrão, mas sempre faço uma porção grande pra compartilhar com as alunas, que adoram. Também compartilhei a fava, que eu tinha feito no dia anterior. Quando chego em casa, depois de um dia cansativo e 2 horas dentro de um ônibus, geralmente sinto mais enjoo do que fome, por isso o jantar foi leve. Esses pratos são bem pequenos, do tamanho “sobremesa” e as cumbucas que uso também são pequenas.

Domingo

Café da manhã: duas tapiocas com queijo de castanha fermentado e tomate, mamão + café. Almoço: feijão macaça misturado com farinha, arroz com cenoura e espinafre com creme de castanha e grão de bico + salada de folhas, pepino e abacaxi. Jantar: pizza com massa de fermentação lenta, tomate seco e rúcula. Ceia: mamão com abacate, linhaça moída e 1 castanha do Pará.

Minha sobrinha, que também é vegana, estava desejando uma pizza, então fiz algo que não faço quase nunca: pedi uma e comi um pouco com ela. Eu não gosto muito de pizza, mas como essa massa era de fermentação lenta, achei saborosa. Porém o queijo vegetal era industrializado e não gostei nem um pouco do sabor. Eu tento comer uma castanha do Pará por dia pra garantir a dose diária de selênio. Adoro o sabor, então se fosse mais barata aqui em Natal, eu comeria uma quantidade maior.

Segunda

Café da manhã: uma tapioca com queijo de castanha fermentado e outra com abacate amassado com limão e coentro + café. Lanche da manhã: mamão com 1 castanha do Pará. Almoço: feijão carioca com quiabo grelhado, farofa de cenoura + salada de folhas, pepino, beterraba crua ralada e abacaxi. Lanche: arepa de carimã (mandioca puba) com queijo de castanha fermentado (na massa), com guacamole (abacate amassado com limão e coentro), café e um docinho de tâmara com castanha de caju, pasta de amendoim e cacau (feito pela minha irmã). Jantar: sopa de feijão carioca, beterraba, berinjela e coentro + batata doce cozida. Ceia: mexerica e caju.

O que chamo de “arepa” são panquecas salgadas com carimã e algum outro ingrediente pra dar liga (às vezes hummus, às vezes queijo de castanha, mas vezes batata doce cozida e amassada, às vezes feijão amassado). Não sou muito fã de doces e raramente como açúcar. Por questão de gosto, mesmo. Quando como algo doce, geralmente é adoçado com frutas frescas ou secas, e mesmo assim como só um pedacinho. Esse doce que minha irmã faz é uma delícia e gosto de comer antes de me exercitar, pra me dar mais energia. Atualmente faço natação uma ou duas vezes por semana (nem sempre dá pra ir duas vezes) e faço sessões curtas de calistenia no meu quintal nos outros dias.

Terça

Café da manhã: tapioca com queijo de castanha fermentado e tofu mexido, mamão com 1 castanha do Pará + café. Almoço: feijão macaça branco, farofa de cebola e purê de jerimum + salada de alface, pepino e beterraba crua ralada. Lanche 1: pão de fermentação natural com queijo de castanha fermentado, vitamina de abacate e banana (congelada) com leite de coco (caseiro). Lanche 2: pão de fermentação natural com queijo de castanha fermentado, café e um docinho de tâmara, castanha de caju, pasta de amendoim e cacau. Jantar: cuscuz no leite de coco, tofu mexido e uma goiaba.

Terça é dia de natação das 18h as 19h, então faço um lanche mais reforçado (ou dois lanches menores) e janto mais tarde, quando volto da natação. Eu só gosto de pão de fermentação natural, então como raramente, só quando minha irmã faz ou compra (como foi o caso ontem). E, sinceramente, prefiro tapioca, batata doce ou macaxeira.

Então aqui está tudo o que comi em uma semana (do 21 ao 27 de agosto). E como contexto importa, preciso dizer que sou nordestina, vegana, moro atualmente em Natal (RN), compro todas as verduras, frutas, tubérculos, goma (pra tapioca), feijão e alguns cereais (arroz da terra, milho pra canjica e pipoca) na feira livre do meu bairro e cozinho todos os dias, em todas as refeições. E, como disse, tenho um paladar que não gosta de doces, mas também não gosto muito de massas (pão, macarrão, pizza), nem de frituras.

Talvez seja importante concluir esse post dizendo que nunca me consultei com uma nutricionista, e não faço nenhum tipo de regime, nem pra perder peso, nem pra ganhar massa. Como essas coisas porque gosto, mesmo, e porque me sinto muito bem e feliz com a maneira como me alimento.

Vegetal, ancestral e autêntico

Veja como são as coisas. Oito anos atrás eu postei um creme de castanha (pra passar na tapioca ou no pão), que chamei de “requeiju”. A receita levava missô, vinagre, levedura de cerveja e até polvilho. Desde então meu estilo culinário evoluiu e minhas receitas foram ficando mais simples e, na falta de uma palavra melhor, verdadeiras. Não que tivesse algo de falso nas receitas antigas, mas quanto mais meu tempo de vegana aumenta, mais me convenço de que o futuro não é apenas vegetal. Ele é vegetal, ancestral e autêntico. O que significa, pra mim, que a comida capaz de alimentar nosso futuro vem da terra (vegetal), é, na sua maior parte, nativa do território que os nossos pés pisam (ancestral) e respeita a integridade do alimento (nem é ultraprocessada nem ultracomplicada). Então deixa eu voltar pra evolução das minhas receitas.

Depois da versão elaborada que citei acima, comecei a fazer uma versão de queijo de castanha fermentado com kefir. Apenas 3 ingredientes: castanhas, água de kefir e sal. Postei essa receita aqui no blog no início do ano. É uma delícia e muito simples de fazer, mas vinha com uma complicação: pouca gente tem grãos de kefir de água em casa. Isso deixava minha receita inacessível pra maior parte das pessoas.

Até que umas semanas atrás minha irmã me contou que estava fermentando o queijo de castanha no café dela (o Libre) usando… nada. Isso se chama “fermentação selvagem”, que é quando você deixa um alimento ser fermentado naturalmente pelas bactérias que vivem no ar. Dá certo, pode confiar. E desde então é assim que faço queijo de castanha cremoso. Já atualizei a receita, incluindo a fermentação selvagem, e você pode ter acesso clicando aqui.

Fermentação selvagem é um aprendizado filosófico. Você tem que confiar em seres invisíveis, acreditando que eles estão ali na sua cozinha e que vão querer entrar no seu creme de castanha e transforma-lo em queijo. E tem que confiar que apenas os seres benignos vão entrar ali, e pra isso você vai ter que superar algo bem recente na história da humanidade, que é a desconfiança e até medo de toda comida que não sai de um pacote com uma data de validade impressa. Quando eu trabalhava numa queijaria vegetal em Berlim e postava (no meu finado perfil do Instagram) fotos do processo de fermentação, chovia perguntas sobre como saber a diferença entre “fermentado” e “estragado”. No processo de fermentação você vai precisar aprender a confiar no seu nariz e vai, tenho certeza, resgatar (ou conquistar) sua intuição culinária. Aquilo que pessoas que cozinham com frequência tem e parece um super-poder pra quem vive longe da cozinha: saber (olhando, cheirando e provando), entre outras coisas, quando uma comida está estragada.

Então uma receita tão simples quanto esse queijo de castanha fermentado tem o potencial de te convencer que o futuro é vegetal (pois não precisamos de exploração animal pra ter prazer na mesa) e te ensinar a confiar no alimento, nos seres invisíveis com quem dividimos esse planeta e em você mesma.

Termino com o meu lanche de hoje, que incarna lindamente minha filosofia na cozinha, coerente com minha ética antiespecista (e a luta decolonial e anticapitalista) e que mostra, mais uma vez, como minhas receitas seguem evoluindo.

Fiz um panqueca misturando carimã (macaxeira fermentada, também conhecida como “puba” ou “mandioca puba”) e cuscuz no leite de coco (um resto do jantar de ontem). Assei na frigideira, até ficar cozida e levemente dourada dos dois lados. Servi com creme fermentado de amendoim, que também foi atualizado hoje (está mais simples e mais rápido, sempre delicioso) e coentro. Macaxeira, milho e amendoim reunidos no mesmo prato. Três ingredientes dos nossos territórios, representantes fortes da nossa cultura alimentar. Um alimento fermentado tradicional, a carimã, junto com um alimento fermentado recente (mas pensado por um cozinheiro da Amazônia), que honra a comida da nossa terra e ajuda a descolonizar nossas práticas alimentares (xô, requeijão!). Se ficou gostoso? Ficou delicioso!

Um breve curso sobre fazer feira, comer bem e evitar desperdícios na cozinha – parte 2

Se você leu o último post, já descobriu meu método pra comprar comida fresca na feira (frutas, verduras, temperos) e alimentar uma casa com muitas bocas. Agora vou falar sobre o que acontece quando volto da feira e como organizo as refeições da semana.

1- Higienizar os vegetais e guardar

Assim que chego da feira começo o processo de limpar e guardar os vegetais. Coloco as folhas (alface, rúcula, couve) e as ervas/temperos (cebolinha, coentro, manjericão) em uma bacia com água e algumas gotas de hipoclorito. Deixo de molho por meia hora, enquanto guardo o resto dos vegetais.

Como aqui em Natal faz muito calor, principalmente nessa época do ano, guardo muita coisa na geladeira. Dedico a maior gaveta da geladeira pras verduras (abobrinha, jerimum, quiabo, berinjela, tomate, batata…) e as frutas maduras vão pra uma gaveta menor. As frutas que não estão maduras vão pra fruteira, assim como os tubérculos (batata-doce e cará), a cebola e o alho.

A macaxeira, apesar de também ser um tubérculo, vai direto pro congelador, pois compro ela já descascada e cortada em pedaços, em sacos de 1kg. Quando queremos comer macaxeira, não precisa descongelar. Colocamos ela congelada na água e levamos ao fogo. Metade da goma fresca também vai pro congelador. A outra metade vai pra água (a maneira certa de guardar goma fresca) e começará a ser consumida no dia seguinte. Também aproveito pra colocar feijão de molho pro dia seguinte.

Depois que as folhas ficaram meia hora na água, a gente enxágua, escorre e armazena num recipiente plástico grande e com tampa, enroladas em panos de prato limpos. Assim elas ficam frescas por vários dias e quando queremos fazer salada, é só abrir e pegar. É prático e economiza o tempo de preparação das refeições durante a semana. Guardar as categorias de vegetais no mesmo lugar também ajuda a reduzir o desperdício: não corremos o risco de achar uma ou outra verdura apodrecendo no fundo da geladeira, escondida atrás de outras coisas.

Resumindo:

Geladeira: folhas e ervas frescas (lavadas) dentro de uma vasilha de plástico fechada, enrolada em um pano de prato limpo + Verduras (gaveta) + Frutas maduras (gaveta)

Fruteira: tubérculos, frutas verdes, limão, cebola e alho

Congelador: macaxeira (descascada), goma e frutas maduras demais (porções pequenas, pra fazer vitamina ou suco)

2- Fazer um cardápio

Como sei o que tem na geladeira, o que precisa ser preparado logo, o que aguenta ainda alguns dias, vou cozinhando seguindo essa ordem. Mas recentemente resolvi fazer um cardápio (começando na quinta, que é o dia da feira do meu bairro) pois, durante a semana, a maior parte do almoço é feita pela cuidadora da minha mãe, e isso dá mais autonomia pra ela. E o pessoal da casa estava com o hábito de me perguntar, no início da noite, “O que tem pro jantar?”. Às vezes eu estava fazendo algo e tinha que parar e pensar: “O que vou fazer pro jantar? O que comemos ontem, pra não repetir hoje?” Eu estava ficando chateada com isso. Agora todo mundo sabe o que é o jantar todo dia, não precisa mais me incomodar com perguntas, e quem não gostar do cardápio pode já começar a fazer outra coisa assim que a noite cai.

Também faço isso na minha casa, mesmo sabendo o que quero preparar todos os dias, pra facilitar o repasse. Nos dias em que Anne cozinha, ela sabe o que cozinhar (sempre seguindo a lógica do que está maduro/precisa ser consumido primeiro) sem precisar me perguntar. Mesmo se você mora sozinha, escrever um cardápio simples ajuda em vários sentidos. Além de reduzir o desperdício, tem dias que a gente está cansada demais pra criar um prato com o que tem na geladeira e precisa ser cozinhado naquela noite, aí acabamos comendo algo pronto e/ou deixando alguns vegetais estragarem.

O cardápio que fiz aqui é muito simples e segue o padrão alimentar da nossa casa (falei sobre isso no último post). Na verdade é mais um lembrete da ordem em que devemos comer os vegetais do que um cardápio com receitas. Mas eu acho que ter uma estrutura simples, que corresponda ao seu padrão alimentar, acaba reduzindo o tempo que você passa cozinhando.

Se o objetivo for diversificar a sua alimentação, ou deixá-la mais vegetal, dê uma olhada na página Receitas aqui do blog pra ter ideias de receitas pra incorporar no seu dia-a-dia. Mas antes de escolher uma lista de receitas diferentes pra testar a cada semana, uma dica importante: simplifique, não complique. Talvez incorporar uma salada crua com vários ingredientes ao seu almoço atual e comer uma fruta no lanche sejam os primeiros passos a serem tomados. Com certeza são os mais simples e que exigem menos esforços.

3- Preparações de base pra semana

Tem coisas que a gente pode preparar com antecedência e comer durante a semana inteira. Como sempre, vai depender do seu padrão alimentar, mas acho que quase todo mundo come feijão todo dia (se não come, deveria comer!). É possível fazer feijão, e arroz, pra semana e congelar porções que correspondam ao consumo diário da sua casa. E se você gosta de jantar sopa com frequência, pode fazer a mesma coisa.

Incluo aqui coisas que levam algumas etapas pra serem preparadas. Como colocar feijão e/ou grão de bico de molho, colocar castanha de caju de molho (pra fazer leite como expliquei aqui), misturar farinha de grão de bico com água e deixar fermentar pra fazer grãomelete (receita aqui). São coisas que você faz uma vez e pode consumir durante toda a semana.

4- Preparar pastas/patês

Dando continuidade ao ponto 3, considero que pastas (pra passar na tapioca, no pão ou acompanhar cuscuz e tubérculos cozidos) é uma preparação de base pra semana. Principalmente numa casa onde tem pessoas veganas, ou seja, que não acompanham seus cafés da manhã e lanches do trio manteiga/requeijão/queijo.

Escolho uma ou duas pastas, preparo em quantidade e durante o resto da semana tem acompanhamento pronto pros cafés da manhã, lanches e jantares da família. Precisa de um pouco de organização e tempo, mas é bem menos complicado do que imaginam. E muito mais saudável, barato e saboroso do que comprar uma pastinha pronta (ultraprocessada ou artesanal, animal ou vegetal).

Hummus pra semana, mais duas porções de grão de bico cozido que foram congeladas e entrarão em outros pratos na semana seguinte.

Tem muitas receitas de pastas no blog, só clicar aqui pra ver. Mas já deixo algumas sugestões. Pra quem está no Nordeste, esse queijo cremoso de castanha é melhor que requeijão. Outra opção no mesmo estilo é o creme fermentado de amendoim. Pra quem tem uma loja de produtos árabes por perto, hummus é o clássico que não dá pra enjoar nunca. Pra quem não tem acesso a tahina (pasta de gergelim) de qualidade, mas gosta da ideia de hummus, esse hummus cubano é perfeito. E ainda mais acessível pra nós, no Brasil, é a minha pasta de feijão macaça (ou fradinho) com amendoim. Baratinha, nutritiva e deliciosa.

Termino com a opção mais simples de todas, que nem precisa preparar com antecedência, pois fica pronta em segundos: abacate (maduro) amassado, temperado com sal e limão. Se puder acrescentar um fio de azeite e alguma erva (fresca ou seca), fica melhor ainda.

5- Dividir tarefas

Alimentação é responsabilidade de todo mundo. Se você mora sozinha a história é diferente, mas se divide a casa com uma ou várias pessoas, as tarefas relacionadas a alimentação devem ser divididas. Apesar de ser a pessoa responsável por fazer a feira na casa da minha mãe, tem a participação de outras pessoas nas diferentes etapas que envolvem comprar e preparar a comida, além das tarefas de limpeza na cozinha.

Uma das minhas irmãs me levava pra feira e ajudava a carregar tudo. Agora que o horário de trabalho dela mudou, é um irmão (que não mora com a gente) que está fazendo isso. Minha irmã caçula se responsabiliza por comprar uma parte da comida de mercearia da casa. Nossa irmã mais velha compra a outra parte. A cuidadora da minha mãe divide a tarefa de higienizar e guardar os vegetais comigo, além de preparar a base do almoço (feijão e arroz) durante a semana. Eu cozinho as verduras do almoço, além de fazer sopa ou cozinhar tubérculos pro jantar. Antes de almoçar, separo a marmita da minha prima, que é técnica em enfermagem e trabalha numa UBS, pra ela levar no dia seguinte. Quando essa mesma prima faz cuscuz pro jantar, ela faz em quantidade pra sobrar pro nosso próximo café da manhã (e o dela). Se ela fizer uma feijoada (vegetal) no sábado pra levar nas marmitas dela da semana, ela faz bastante pra gente almoçar feijoada no domingo. Minha irmã mais velha geralmente cozinha pra gente nos fins de semana. Durante a semana, a irmã do meio geralmente lava a louça do jantar e, às vezes, a do almoço também. Já a prima lava a louça nos fins de semana. E por aí vai. Semana passada até meu irmão caçula e meu pai, que não moram na casa com a gente, participaram. Meu irmão descascou uma ruma de coco seco que ele trouxe pra gente (nem lembro de onde) e no dia seguinte meu pai rapou tudo. Depois congelei o coco em porções pequenas pra fazer leite durante as próximas semanas.

Não é uma divisão perfeitamente igualitária e algumas pessoas têm muito mais responsabilidades do que outras na nossa casa. Mas achei importante contar como fazemos na minha família justamente por isso. Não poder ter uma divisão de tarefas perfeita não é desculpa pra não contribuir com o que está ao alcance de cada uma hoje. Qualquer responsabilidade que você tomar pra si, mesmo que pareça pequena (digamos, lavar apenas a louça do jantar aos sábados, ou preparar o almoço do domingo), alivia um pouco a carga da pessoa que, no momento, faz tudo sozinha na sua casa. Todo mundo tem que comer, não é? Então deixa eu repetir mais uma vez: ALIMENTAÇÃO É RESPONSABILIDADE DE TODO MUNDO.

Espero que essas dicas tenham sido úteis. Fazia tempo que eu não escrevia um post nesse estilo, mas agora deu vontade de escrever outros. Talvez até propor cursos sobre organização e divisão de tarefas alimentares dentro de uma casa, quem sabe…

Um breve curso sobre fazer feira, comer bem e evitar desperdícios na cozinha – parte 1

Vim passar uma temporada de um ano no Brasil, por razões familiares, e estou morando na casa da minha mãe. Aqui somos seis mulheres: minha mãe, minhas três irmãs, uma prima e eu. Mas durante a semana tem uma sétima mulher, a cuidadora da minha mãe, que toma café e almoça com a gente. E à noite frequentemente tem uma sobrinha, que dorme com a minha mãe quatro noites por semana e toma café com a gente no dia seguinte. Dividimos as contas da casa entre nós seis e a parte que me toca é a “comida de feira”: verduras, frutas, coco seco, goma fresca e farinha. Minha irmã mais velha se encarrega de comprar a “comida de mercearia”: feijão, arroz, fubá, óleo, café… Outra irmã se encarrega de comprar castanhas (de caju e do Pará) e sementes (chia, linhaça).

Adoro ir à feira, então é uma missão semanal que, apesar de cansativa, me deixa feliz. Geralmente vou acompanhada de outra irmã, que tem carro e me ajuda a carregar tudo, e frequentamos a feira do meu bairro, que acontece todas as quintas. Nessa feira tem uma mistura de comida trazida da CEASA de Natal com produção de pequenas agricultoras, que cultivam e vendem seus próprios alimentos ali (principalmente ervas e folhas) e comida vinda de sítios das redondezas (principalmente frutas). A farinha de mandioca e a goma fresca vêm de Brejinho, um município que fica a menos de 60 km de Natal e que tem fama de produzir a melhor farinha do estado, vinda da agricultura familiar.

Tem semanas em que vamos à CECAFES (Central de Comercialização da Agricultura Familiar e Economia Solidária), que fica um pouco mais distante da nossa casa, mas que tem a vantagem de ter produtos de ótima qualidade, sem veneno, por um preço muito justo, vindos de pequenos sítios e assentamentos da reforma agrária. Por essas razões, se eu pudesse escolher, compraria sempre na CECAFES. Porém a diferença nos preços, apesar de não ser enorme, acaba pesando no meu bolso no final do mês. (Os vegetais da foto acima vieram da feira do bairro, os da foto abaixo vieram da CECAFES).

Das seis mulheres que moram aqui, mais a sétima que come conosco durante a semana, apenas duas são veganas: minha irmã caçula e eu. Felizmente na nossa casa todo mundo dá muito valor aos vegetais e faz questão de comer frutas todos os dias. Nossos almoços, pelo menos durante a semana, são 100% vegetais. Também não entra leite de vaca aqui em casa e queijo é algo bem raro. Os únicos produtos de origem animal que sempre tem na geladeira são ovo e manteiga. E os únicos ultraprocessados que aparecem na cozinha aqui são leite de soja de caixinha (duas irmãs adoram), molho de tomate pronto e proteína texturizada de soja. Eu não gosto de nenhum dos três, mas fico feliz em ver que 95% da alimentação na casa é integral (no sentido “alimentos inteiros e naturais”).

Depois de meses comprando, armazenando e preparando comida numa casa com muitas pessoas, pensei em vir aqui explicar como me organizo pra dar conta da tarefa. Talvez você precise de dicas pra organizar melhor as compras da semana. Talvez queira incluir mais vegetais na alimentação da sua família e não saiba por onde começar. Talvez você esteja curiosa pra ver, na prática, como é a alimentação 100% vegetal de uma família nordestina, que mora numa capital. Uma família que, apesar de não ter muitos recursos materiais, tem condições de escolher o que come e valoriza a cultura alimentar do seu território.

Planejar a feira

Não faço lista de compras por duas razões. Primeiro, porque já estou bem acostumada com as coisas que preciso comprar toda semana, além das quantidades necessárias pra fazer comida até o próximo dia de feira. E a segunda razão é que a oferta, a qualidade e o preço dos vegetais podem variar de uma semana pra outra. Então se essa semana a couve tá feia, não compro. O tomate subiu muito de preço? Não levo pra casa dessa vez. Encontrei fruta-pão (algo raríssimo)? Então ele vai substituir o cará essa semana. Não ter uma lista me torna mais flexível e adaptável.

Uma dica muito importante na hora de planejar as compras de vegetais da semana é conhecer bem os hábitos e as necessidades da sua família. Você e/ou as pessoas que moram com você almoçam em casa? Gostam de jantar a mesma comida do almoço? Preferem jantar algo mais leve, como uma sopa? Precisam de vários lanches na semana que possam ser facilmente transportados? Também é importante conhecer os gostos das habitantes da casa. Se só uma pessoa gosta de, digamos, caju, não faz sentido comprar vários quilos de uma vez.

Aqui na casa da minha mãe todo mundo toma café da manhã (umas comem em casa, outras levam de casa pra comer no trabalho). Tapioca e mamão não podem faltar na primeira refeição do dia. A estrutura básica do nosso almoço é: feijão + arroz/farinha + verdura cozida, então compro 3 ou 4 verduras “de cozinhar” toda semana. Todo mundo gosta de salada crua, então capricho nas folhas. Não temos o hábito de almoçar com suco, mas adoramos comer frutas junto com o almoço. Também gostamos de lanchar frutas, logo trago da feira toda a fruta que meu orçamento me permite. O jantar, pra gente, é um tubérculo cozido (macaxeira, cará, inhame ou batata doce) ou cuscuz. Uma vez por semana faço sopa. Então ao invés de comprar primeiro e pensar no que vou fazer depois, faço o caminho inverso: trago da feira o que é necessário pra mantermos nosso padrão alimentar, que é alinhado com a cultura alimentar do nosso território.

Quando você tiver entendido quais vegetais precisa pra atender as necessidades e o estilo de vida das pessoas que moram com você (ou as suas, se morar sozinha), vai ficar muito mais fácil saber o que comprar na feira, sem lista. E se o objetivo for aumentar a quantidade de vegetais que você(s) come(m), vai ficar mais fácil visualizar as áreas que podem ser melhoradas. Talvez vocês estejam comendo pouca fruta. Talvez precise incrementar a salada crua do almoço. Talvez fazer uma sopa de legumes pro jantar seja o caminho. Veja o que faz sentido na sua rotina, respeitando seus gostos (a ideia da sopa só vai funcionar se você gostar de sopa, obviamente).

Tudo fica muito mais simples (e automático) quando fazer feira e cozinhar se tornam rotina pra você. Mas deixa eu te ajudar contando como faço aqui em casa, pois é sempre mais fácil entender um sistema quando ele é exemplificado com a prática.

Eu sei que preciso comprar, toda semana:

-Temperos frescos (cebola, alho, tomate, cebolinha, coentro, limão, pimenta de cheiro)

-Verduras pra salada (alface, rúcula, pepino, tomate)

-Verduras pra cozinhar (escolho 3 ou 4: couve, repolho, chuchu, batata, banana da terra, beterraba, cenoura, quiabo, maxixe, jiló, jerimum…)

Tubérculos pro jantar (macaxeira, cará ou inhame, batata doce)

-Frutas pro café da manhã, almoço e lanches (banana, mamão, abacaxi + as que estiverem na safra)

Tenho essas cinco categorias em mente, que são as que correspondem às necessidades da minha família, e vou comprando por blocos, assim não esqueço nada, mesmo sem lista, e posso adaptar as compras da semana de acordo com os preços e as ofertas do dia.

Sobre quantidades. A experiência me fez ter noção de quanto era necessário toda semana. Se faltava banana antes da próxima feira, eu recalibrava a quantidade de palmas compradas semanalmente. Se a alface estava estragando antes de ser comida, era porque eu tinha comprado demais e na semana seguinte, comprava menos.

Dica importante: antes de sair pra feira, olho o que ainda tem na geladeira, congelador e fruteira. Às vezes ainda tem goma ou macaxeira congelada e não vai precisar comprar essa semana. Às vezes ainda tem alho, mas não é suficiente pra semana toda e vou ter que completar. E por aí vai.

Evitando desperdícios com frutas e verduras

Talvez seja óbvio pra quem tem o hábito de cozinhar todo dia e fazer feira toda semana, mas se não for o seu caso, lá vai. Escolha frutas em diferentes níveis de maturação. Eu compro 4-5 palmas (pencas) de banana por semana, dependendo do tipo da banana (prata é menor, pacovan é maior). Pra não correr o risco de ter 40 bananas maduras ao mesmo tempo num dia, 30 bananas apodrecendo dois dias depois e zero banana no final da semana, eu compro uma penca madura, outra “de vez” (aquele ponto entre madura e verde) e duas verdes. Assim vão amadurecendo durante a semana e sempre tem banana no ponto. Faço o mesmo com o mamão e o abacaxi, frutas que compro toda semana. Também compro uma mistura de frutas verdes e maduras (por exemplo, uma melancia bem madura pra comer no dia, um melão que vai estar maduro daqui a dois dias, dois abacates que só vão amadurecer no final da semana…) e vamos comendo acompanhando a maturação delas.

Às vezes compro uma quantidade grande de uma fruta madura de propósito, pra congelar e fazer vitamina durante a semana. É o caso da banana, porque na nossa casa adoramos vitamina de banana e ela fica ainda mais saborosa feita com banana super madura congelada. Tem sempre promoção de bananas super maduras na feira. Compro algumas palmas, a cada três semanas, mais ou menos, e assim que chego em casa descasco, corto em rodelas e congelo em porções individuais. Também faço isso com frutas grandes, como jaca. E se percebi que o mamão ou o abacate amadureceu todo de uma vez essa semana, congelo uma parte pra não correr o risco de ter desperdício e uso em vitaminas. Isso funciona bem com frutas boas pra vitamina e suco. Congelo manga, acerola, umbu, graviola… Sei que muita gente compra polpa de fruta congelada pra fazer suco, mas as embalagens de plástico (cada porção de polpa vem num saquinho) me incomodam. Não vai ser tão prático quanto as polpas congeladas, mas garanto que vai ser muito mais barato comprar fruta madura na feira e congelar suas próprias polpas em casa.

Quanto às verduras, minha dica principal pra evitar desperdícios é: faça sopa. Os legumes que estão murchando na gaveta da geladeira e os restos de legumes cozidos de outros almoços são ótimos candidatos pra virar sopa. Se tiver um restinho de feijão, então, sua sopa ficará ainda mais gostosa e nutritiva.

No próximo post vou compartilhar 1-como preparo o cardápio da semana quando chego da feira; 2-explicar como incluir o ato de cozinhar no seu dia-a-dia, sem precisar passar horas no fogão todos os dias e 3-dar ideias pra resolver o que parece ser o maior problema das pessoas que querem ser veganas, ou acabaram de se tornar veganas: o que preparar pra passar no pão (no meu caso, na tapioca)?

Construtores e Defensores do Território

No final de janeiro fui convidada pela Teia dos Povos pra participar da Formação de Construtores e Defensores do Território, como formadora. Foi uma honra e uma alegria imensas aceitar fazer parte de algo tão inspirador e importante e hoje vim compartilhar um pouquinho do que vivi na semana em que estive no Assentamento Terra Vista, no sul da Bahia, onde aconteceu a formação.

Dei uma aula sobre a Palestina (pra explicar o contexto colonial – a colonização israelense da Palestina e a luta do povo palestino pela vida, por liberdade e por autodeterminação- e o que isso tem a ver com nós, aqui no Brasil), outra sobre “Descolonizar as práticas alimentares” e contribuí com o curso “Gastronomia do bioma – Mata Atlântica/Cabruca”. Também pude assistir a algumas formações políticas enquanto estive lá e depois de tantas conversas que alimentaram minha esperança e enriqueceram minha luta, voltei pra casa com a certeza que aprendi tanto, ou mais, do que ensinei.

As fotos acima foram da aula sobre a Palestina, que acompanhei de uma exposição com 45 fotos do fotógrafo palestino de Gaza Mohammad Zanoun. Conheci ele através de Anne, pois ambas fazem parte do mesmo coletivo (Activestills). Não foi fácil falar da Palestina enquanto Israel comete um genocídio contra a população de Gaza mas é muito importante fazer esse trabalho. As fotos são tão fortes que deixei muitas viradas pra parede. Só desvirei depois de dar a oportunidade pras pessoas que não estavam se sentindo bem emocionalmente de deixarem a sala de aula antes. Mas pra não falar somente dos horrores da ocupação israelense na Palestina e seu projeto de limpeza étnica, li vários poemas de resistência escritos por poetas palestinas e palestinos. Eu nunca tinha lido poesia (li até slam!) publicamente e emprestar minha voz à resistência palestina foi uma experiencia que me marcou muito. E quem estava naquela aula também saiu impactada.

(As fotos acima foram feitas por Alass Derivas e você pode acompanhar o trabalho dele aqui.)

Visitei o Assentamento Terra Vista (ATV) pela primeira vez há uns 6 anos e ele continuava tão lindo quando nas minhas lembranças. Contar a história desse lugar merece um post inteiro, então hoje vou só recomendar o documentário feito pelo Brasil de Fato (trailer aqui), que estou ansiosa pra ver, além de recomendar seguir o ATV aqui. Mas você também pode ler sobre a história do ATV na página da Teia dos Povos. Falar sobre a Teia dos Povos, essa aliança Preta, Indígena e popular, também exige tempo e carinho, então vou recomendar que vocês sigam a Teia dos Povos naquela rede social que me expulsou.

Não fiz fotos da aula sobre “Descolonizar as práticas alimentares”. Mas lembrei de fazer algumas fotos da aula prática dentro do curso de “Gastronomia do bioma”. Fomos guiadas por seu Loro, um agricultor assentado, durante uma manhã inteira dentro da mata. O objetivo era identificar os matos de comer (PANCs) e os de curar e seu Loro nos mostrou a riqueza da natureza naquele canto do mundo. Ele também abriu cacau e cupuaçu pra gente chupar e até mostrou como tirar o palmito da juçara.

Nunca tinha dado uma aula dentro da mata e, sinceramente, agora estou ainda mais convencida de que esse é um lugar incrível pra aprender.

Não vai dar pra contar tudo que aconteceu naquela semana num post. Vou precisar de mais algum tempo pra terminar de absolver tanto conhecimento e depois traduzir com minhas palavras, acrescentado de minha vivência e sentimentos. Mas não posso deixar de falar das pessoas que conhecei durante a formação. Não tenho foto de todo mundo, porque estava quase sempre imersa em conversas tão ricas que tirar o celular da bolsa e fazer fotos quase nunca cruzava a minha mente. Queria ter voltado com o retrato de todas as pessoas que conheci e que deixaram uma marca no meu pensamento e coração mas só tenho algumas poucas.

Um cheiro grande pra Airam, que me levou pra tomar banho de rio, Tulase, que preparou falafel e me deu conselhos preciosos, Suélen, que foi uma ajuda valiosa pra montar a exposição fotográfica e fazer os vídeos pra Teia (duas vezes!), seu Loro, nosso guia e professor, e Daniel, que me acolheu na noite que cheguei, me deu uma aula sobre a luta da população de rua em Belo Horizonte, da qual ele faz parte, e trouxe ideias pra enriquecer os vídeos que fizemos. Tem muito mais gente do assentamento, da Teia ou de passagem que conheci naquela semana e que estão no meu coração mas, como expliquei, voltei sem fotos desse povo lindo.

Felizmente lembrei de pedir uma foto com Kiune (obrigada por ser nossa fotógrafa, Airam!), minha grande amiga e companheira de luta há vários anos. Ela é de João Pessoa mas mora no assentamento e faz parte da Teia dos Povos. Kiune é uma das militantes antiespecistas mais inspiradoras que conheço. (Se quiserem conhece-la melhor, vejam as aventuras dela aqui).

Espero que não se passem outros 6 anos pra eu voltar ao ATV, nem pra rever seu Loro, Joelson, Solange, Deysi e todas as pessoas maravilhosas que povoam aquela terra encantada.

Gostaria de terminar esse post agradecendo as pessoas que apoiam o meu trabalho e que possibilitam não só a existência desse blog mas também minha participação em tarefas da militância, como essa formação. (Quem quiser apoiar também, é por aqui.)

*Foto da esquerda: eu organizando a aula prática de reconhecimento de matos de comer com seu Loro, na frente da casa dela, junto da vizinhança. A participação do gatinho na conversa foi decisiva. Foto da direita: a casa, no assentamento, onde fiquei hospedada.

Tour político-vegano em Natal

Meu recesso de início de ano acabou essa semana, e junto com a retomada das atividades militantes (tenho muita coisa pra contar, aguardem!) coincidiu de um amigo alagoano da minha sobrinha Luna chegar pra visitar Natal. E, olha como são as coisas, Giovanni acontece de ser um leitor de longa data do blog e apoiador do meu trabalho desde o início da campanha no Apoia-se. A gente tinha se encontrado uma primeira vez em 2019, durante o primeiro ENUVA (Encontro Nacional da União Vegana de Ativismo), em Recife, mas não deu tempo de conversar daquela vez.

Luna, que é vegana, historiadora e apaixonada por Natal, tinha me prometido um “rolezinho natalense” desde o ano passado. Segundo ela, é o passeio que “o jovem natalense descolado faz”. Como faz tempo que deixei de ser jovem e nunca fui descolada, fiquei curiosa pra ver a minha cidade pelos olhos dela. Então combinamos de fazer isso quando Giovanni (que também é vegano e historiador!) estivesse aqui, porque já juntava a minha vontade de redescobrir minha cidade com a nossa vontade de mostrar a cidade pra ele. Deu certinho.

Passeamos pelo centro e fiquei muito triste ao constatar que a vida nessa parte da cidade está desaparecendo. Quando eu era adolescente, antes de ir morar no exterior, essa parte de Natal fervilhava de atividades e pessoas. Quase tudo era resolvido ali. Compras de qualquer tipo? Tinha. O único restaurante macrobiótico (e quase todo vegetariano) da cidade? Era lá. O último cinema de rua? Lá também. (Inclusive o último filme que vi naquele cinema foi “Billy Elliot”) Precisava de uma garrafada ou lambedor pra tosse? Tinha as barracas das erveiras e erveiros. Pilha pro relógio? Era só ir na rua das relojoarias. Tinha os bares boêmios do Beco da Lama. Esses últimos ainda fazem resistência, mas o resto ou já desapareceu ou está caminhando pra isso.

Mesmo com a tristeza de ver os espaços públicos abandonados, porque quase tudo migrou pra dentro de shopping centers, o dia foi ótimo. Além do centro histórico de Natal, onde tomamos mate, visitamos sebos e batemos perna nos becos, fomos almoçar no Libre, um café vegano (melhor comida vegetal da cidade!), e passeamos pela Mata Atlântica, dentro do Bosque dos Namorados (onde comemos ubaia doce, apanhada do chão).

O “rolezinho natalense” proposto pela minha sobrinha me inspirou e me deixou com muita vontade de propor tours no estilo do que eu fazia em Paris. Como vou chamar Natal de casa até o final do ano, é uma possibilidade pra 2024. Depois de ter guiado pessoas na Palestina e na França, ia ser gostoso guiar pessoas na minha cidade. Se a ideia for pra frente, volto pra contar. Mas se antes disso você aparecer por Natal, me avisa 😉

Depois de nos despedirmos de Giovanni, Luna e eu terminamos o rolezinho natalense em casa, tomando café com soda preta junto com Roberta (a cuidadora da minha mãe). Pra quem não conhece, “soda” (ou “sorda”) é um alimento delicioso, degustado no lanche, com uma textura entre o bolo e o biscoito, feito somente com farinha de trigo, mel de engenho (melado), especiarias e, às vezes, bicarbonato de sódio. Uma das comidas típicas do meu território que são tradicionalmente vegetais, mas que está caindo no esquecimento e desaparecendo, como é o caso de quase todo alimento tradicional. A resistência do centro histórico, apesar de pequena, existe, mas me pergunto quantas pessoas participam da resistência ao desaparecimento da nossa cultura alimentar.

Enquanto degustava minha soda pensei em como gostaria de compartilhar minha cultura alimentar com outras pessoas. Aí lembrei que foi exatamente esse sentimento, de querer compartilhar as belezas e os sabores ameaçados de um lugar, que me fez criar os tours na Palestina… A vida dá muitas voltas, mesmo.

PS Obrigada à Luna pelo rolezinho e pelas fotos que aparecem aqui. Obrigada a Giovanni pelas conversas, pela troca de conhecimentos e pelo apoio ao meu trabalho (e pela foto da ubaia doce).

O fim de um ciclo

Primeiro, deixa eu contar que semana que vem estarei no Brasil. Viajo daqui a alguns dias e tenho planos de ficar um ano inteiro em terras potiguares. Estou indo por razões familiares, mas vou aproveitar o tempo que estiver lá pra participar da luta antiespecista na minha cidade, Natal, e pra estar mais presente nas atividades da UVA.

Então estou fechando um ciclo aqui na França e não está sendo fácil. O contexto social no país está cada vez mais difícil pra quem é militante de esquerda. A conjuntura política atual está sendo instrumentalizada pra intensificar o racismo de Estado e acelerar a virada em direção ao fascismo que vemos mundo afora e que nós, que estamos aqui, vemos de perto e sentimos nos nossos corpos. E acompanhar o genocídio cometido por Israel contra a população palestina, que já entrou na sexta semana, enquanto a comunidade internacional se recusa a tomar toda e qualquer medida que possa impedir esses crimes de acontecerem, e a França segue apoiando politicamente e militarmente Israel é desesperador. Mas não me surpreende. Colonialistas são solidários entre si.

Por todas essas razões, estou feliz de sair daqui e de encontrar minha família brasileira. Minha experiência diz que se eu estiver comendo tapioca e macaxeira o sofrimento se torna um pouco mais suportável. E estar do lado de minhas irmãs e sobrinhas, também ajuda. Mas, por outro lado, não estou indo pro Brasil pra tirar férias prolongadas. Não será um ano sabático, longe disso. Outra batalha me espera do lado de lá do oceano Atlântico: acompanhar minha mãe num estado avançado de Alzheimer. E talvez essa seja a batalha mais difícil que eu já enfrentei. Eu sei o que me espera na minha terra, mas ainda não sei como meu coração, já tão angustiado, e meu corpo, que anda cansado e machucado, reagirão.

Na próxima vez que abrir esse blog pra escrever um post, estarei na casa da minha família. Com um pouco de sorte (minha) o choque emocional não será tão grande e eu poderei compartilhar coisas que trazem esperança. Porque, por mais que atravessemos tempos sombrios, me recuso a abandonar a esperança. Como disse Angela Davis, quando ela falou recentemente sobre a Palestina: “Não podemos abandonar a esperança, porque a esperança é a condição de todas as lutas.”

(A foto acima foi feita em um santuário antiespecista e anarquista no interior da França. Visitei esse lugar no final de setembro e o que vi por lá, e os encontros que fiz, me encheram de esperança.)

Sobre a Palestina e o seu povo

Se você descobriu esse blog recentemente talvez não saiba que a Palestina ocupa uma parte importante da minha vida. Visitei a região pela primeira vez em 2007 e morei lá de 2008 a 2013. Em seguida foram mais cinco anos, de 2014 a 2018, morando lá uma parte do ano, quando eu organizava tours políticos de solidariedade (veganos!) pra pessoas brasileiras que queriam conhecer a Palestina e a luta por autodeterminação do seu povo.

Por razões pessoais, não me encontro em condições de fazer análises políticas atuais sobre a colonização israelense na Palestina e seu projeto de Apartheid, limpeza étnica e genocídio. Mas quem conhece o meu trabalho sabe que sou uma militante muito comprometida com a causa palestina e que minha militância acontece na vida real, no terreno, não (apenas) na internet. Infelizmente, em tempos de ativismo de redes sociais, parece que se você não postar sobre X, então você não se importa com X e recebi várias críticas, mais ou menos explícitas, nas últimas semanas.

Estou cansada e abatida demais pra colocar pra fora, de maneira elegante e coesa, a minha frustração com esse tipo de comportamento. Quem quiser pensar que eu deixei de militar simplesmente porque não uso mais redes sociais, ou que parei de me importar com o povo palestino e sua luta por libertação porque não fiz um pronunciamento recente aqui, paciência. E quem mandou mensagens pedindo, de maneira educada e carinhosa, pra eu voltar a fazer conteúdo informativo sobre a Palestina porque “minha voz faz falta”, peço compreensão. Estou passando por um momento pessoal muito difícil, tanto por questões familiares quanto relacionadas à Palestina, e atravessar cada dia tem sido uma batalha. Mas tem muita gente fazendo isso no Brasil e no mundo (pra quem fala inglês) e tenho certeza que o mais acertado é ouvir vozes palestinas. Vou deixar algumas recomendações aqui.

Tem o trabalho da palestina, nascida no Brasil e que mora atualmente no Canadá, Hyatt Omar Tem também o grupo Juventude Sanaud e o Monitor do Oriente, uma “instituição independente de pesquisa de mídia fundada para promover uma cobertura justa e precisa das questões do Oriente Médio”. Em Inglês (mas nada que a ferramenta de tradução do Google não possa resolver pra quem não domina essa língua) recomendo o site independente de notícias The Electronic Intifada, que é palestino e, além de notícias, traz análises excelentes. E minha última recomendação é +972 Mag. Se trata de um site de notícias, também independente, mas israelense, de esquerda e anti-sionista.

Pra além das recomendações, eu vim aqui hoje pra fazer uma tentativa modesta. A desumanização do povo palestino continua sendo uma arma utilizada por Israel, e repetida pela grande mídia e governos mundo afora, pra impedir que a gente se solidarize com essas pessoas, justificando assim a sua dominação, opressão e abrindo caminho pro genocídio (anunciado e televisionado). Isso não foi algo inventado por Israel, basta estudar minimamente a História pra perceber que todo povo oprimido é desumanizado pelos seus opressores. Então eu vim lembrar vocês das muitas entrevistas e depoimentos de pessoas palestinas que publiquei aqui, além do relato de brasileiras que foram à Palestina comigo. E se você acaba de descobrir o Papacapim, aqui está um convite pra descobrir esse extenso material que há anos mora aqui, mas que não perdeu a relevância.

Começo com a série, em três episódios, “Histórias palestinas”, onde entrevistei dois amigos e uma amiga palestina. Essas pessoas, todas refugiadas, contam suas histórias de vida e como a ocupação israelense impacta absolutamente todos os aspectos do seu dia-a-dia e determinou o lugar onde nasceram e estão criando suas crianças.

Mustafa e Mohamad Alafandi

Meu nome é Mohamad Alafandi, tenho 76 anos e moro no campo de refugiados de Deheisha, na região de Belém. Nasci em Dayr Aban, a 21 km de Jerusalém, no que então ainda era a Palestina. Minha cidade resistiu enquanto pôde à invasão sionista, o que custou a vida de quarenta habitantes. A gente só tinha dois fuzis e os homens se revezavam pra defender nossas casas. Mas o exército sionista era muito mais bem equipado. No dia 18 de outubro de 1948 os soldados do recém-criado estado de Israel invadiram minha cidade e obrigaram a população a partir sem poder carregar absolutamente nada, abandonando nossas terras, casas, animais e pertences, deixando toda a nossa vida para trás. Eu tinha 14 anos quando isso aconteceu. Meu pai não suportou tão duro golpe e sofreu um derrame que o deixou paralisado. Fui obrigado a carregar meu pai nas costas durante todo o tempo em que caminhamos. Minha família errou durante um ano e meio, andando de cidade em cidade procurando um lugar para viver. Meu pai morreu um ano depois de ter sido expulso de sua cidade natal e eu, como filho mais velho, tive que tomar conta da minha mãe e dos meus irmãos. Acabamos chegando em Deheisha, um dos inúmeros campos criados pela ONU. Leia a continuação do depoimento aqui

Mustafa (à direita) com o pai, Mohamad, e o filho caçula, Aissa. Três gerações de refugiados.

Khoulud Ayyad

A vida no campo de refugiados nunca foi fácil, mas lembro de um período, quando eu era criança, que as coisas eram ainda piores. Durante a primeira intifada (entre 1987 e 1993) os soldados israelenses entravam no campo o tempo todo e muitas pessoas foram assassinadas. Todo mundo tinha medo de sair de casa e levar um tiro. Lembro que um dia, eu devia ter uns 8 anos, vi dois jovens correndo no campo. Pensei que os soldados estavam os perseguindo então abri a porta de casa e comecei a agitar os braços, chamando eles pra se esconderem ali. Quando meu avô viu a cena me colocou pra dentro e fechou a porta imediatamente. Depois explicou que aqueles jovens não eram palestinos fugindo de soldados israelenses e sim soldados israelenses a paisana correndo atrás de palestinos.Leia a continuação aqui

Tareq Jawabrah

Meus pais nasceram em Iraq Al-Manshya, um cidadezinha no litoral da Palestina histórica, entre Jafa e Gaza.  Meu pai era agricultor e junto com a família cultivava laranjas e outras frutas cítricas. Em 1948, quando as tropas sionistas invadiram nosso vilarejo, meu pai tinha 20 anos. Fazia já algum tempo que as notícias de expulsões e massacres de palestinos por soldados sionistas chegavam por lá e algumas pessoas tinham abandonado suas casas com medo do que iria acontecer quando a vez de Iraq Al-Manshya chegasse. Toda a população recebeu ordem de ir embora, mas muitas pessoas se recusaram a abandonar suas terras. Os que tentaram ficar foram executados e meu pai perdeu muitos amigos e um irmão. A família do meu pai foi pra Hebron (no sul da Cisjordânia). Quando eles chegaram lá, os habitantes da cidade se compadeceram com o triste destino dos refugiados e os acolheram em suas casas. Alguns meses depois eles escutaram que a ONU estava reagrupando o pessoal em campos de refugiados, na espera do retorno. Foi assim que a família da minha mãe, que também é de Iraq Al-Manshya, e a do meu pai vieram parar em Al Arroub. Um dia, em uma viagem organizada pela escola, fomos à Jafa ver o mar (a antiga cidade de Jafa foi anexada à Tel Aviv). No caminho eu vi uma placa indicando Qiryat Gat, a cidade israelense construída sobre as ruinas da nossa cidade, e pedi ao motorista pra passar por lá. Quando vi aquelas pessoas, que moram hoje nas terras que um dia pertenceram ao meu pai, olhando pra mim como se eu fosse um estrangeiro que não tinha direito nenhum de estar ali meu sangue ferveu e a revolta tomou conta de mim.Continua aqui

yemen e tareq

Muitas das pessoas que participaram dos tours políticos que organizei na Palestina (antes que perguntem, não faço mais esses tours) compartilharam esse vivência aqui no blog e eu também escrevi bastante sobre essas viagens de solidariedade. Além dos relatos, vocês podem ver muitas fotos da Palestina, que tem paisagens lindas, e da comida maravilhosa que degustamos por lá. Seguem alguns desses relatos (mas pra ver tudo, clique na página Receitas e dentro dela, na seção Outros)

“Se eu tivesse optado por um turismo convencional, mesmo tendo uma visão crítica a respeito da ocupação israelense de terras palestinas, muito provavelmente teria voltado com percepções bem diferentes do que esse tour político me proporcionou. Cheguei um dia antes do combinado para me encontrar com o grupo e fiquei hospedada em Jerusalém. Algumas voltas no entorno, vendo israelenses e alguns palestinos na mesma cidade, me deram a falsa impressão de normalidade, de que ambos ocupavam o mesmo espaço sob condições iguais.

Andando apenas em transportes usados por turistas, eu provavelmente não teria percebido que alguns ônibus são reservados apenas para palestinos e outros para israelenses, o sinal mais óbvio de apartheid. Andando pelas ruas e observando as construções, eu certamente acharia que era opção estética ter ou não caixas d’água no teto, ao invés de saber que palestinos não têm água disponível 24h, ao contrário dos israelenses, mesmo essa água tendo sido captada em terras palestinas. Se estivesse em uma excursão tradicional, em ônibus de viagem, teria passado por vários “check points” sem perceber, pois esses ônibus não seriam parados. Mais ainda, eu teria percorrido vários quilômetros de estrada cortando terras palestinas e não saberia que na maioria daquelas estradas só é permitido o tráfego de israelenses. Teria visto as imensas colônias israelenses em terras palestinas e concluído ser apenas mais uma cidade. Teria visitado o Mar Morto sem ver um só palestino e achado que eles não frequentavam outros resorts por opção.” Continue lendo o post “Estou disposto a fazer a minha parte”

“Pude dividir um pouco da Palestina que me emociona e me inspira com um grupo de pessoas maravilhosas, passei 14 dias incríveis e fiz um dos trabalhos mais significativos da minha vida. E além dos cinco brasileiros que decidiram embarcar nessa aventura o acaso trouxe uma islandesa pro nosso grupo, porque loucura pouca pra mim é bobagem. Nosso grupo era um óvni. Imaginem eu explicando a empreitada pros palestinos: “Opa! Tudo certinho? Eu tenho um blog de culinária vegetal em Português e estou guiando uns brasileiros, não, essa daí é islandesa (não, nem irlandesa nem finlandesa, islandesa da Islândia), num tour político-gastronômico pela Palestina e nós gostaríamos de bater um papinho sobre o papel das mulheres no movimento de resistência popular contra a ocupação. Pode ser?”. Juntos vivemos coisas intensas, emocionantes, revoltantes e inspiradoras. Nas fotos vocês podem ver alguns dos lugares que visitamos e algumas das pessoas, principalmente palestinas, mas também israelenses,  que encontramos durante essas duas semanas.” Essa sou eu falando e o relato do primeiro tour que organizei, em 2014, está aqui

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No tour do ano seguinte, participamos da colheita de azeitonas.

“Outubro é a época da colheita de azeitonas aqui na Palestina e é, na minha opinião, o melhor mês pra estar aqui. Eu não sabia nada sobre o cultivo de azeitonas nem sobre a produção de azeite até ter me mudado pra cá, em 2008. Fiquei encantada quando descobri a parte fundamental que a oliveira tem na cultura e na vida dos palestinos. Talvez o mais impressionante pra mim foi descobrir que não existem ‘cultivadores de azeitonas’. Como oliveiras precisam de pouquíssimo cuidado e só recebem água da chuva, os ‘donos’ das oliveiras têm todos uma profissão, que eles exercem durante as outras cinquenta semanas do ano. Durante duas semanas, no início ou no final do mês (de acordo com o amadurecimento das azeitonas), professores, médicos, pedreiros, advogados, estudantes, psicólogos, sociólogos, eletricistas, cozinheiros… todos largam temporariamente suas ocupações e vão pro campo. A família inteira, muitas vezes três gerações juntas, participa da colheita. Uma parte das azeitonas será marinada durante várias semanas e elas serão degustadas acompanhando o café da manhã típico daqui. Mas a maior parte delas vai ser prensada e virará azeite, que aparece na mesa familiar durante o ano inteiro.” O post completo está aqui

E falando em colheita, tem dois posts, de 2012, muito especiais pra mim. O primeiro mostra um pouco do que é esse momento tão importante pra cultura e economia palestina. E outro, no mesmo ano, onde compartilho um momento mágico: meu amigo Tawfic me levou pra uma prensa e pude ver como as azeitonas são transformadas em azeite.

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“O centro da produção de azeite palestino fica em Nablus, no norte, e lá tem mais prensas do que aqui. Porém, o azeite de Belém e das duas cidades vizinhas (Beit Jala e Beit Sahour) tem fama de ser o melhor de toda a Palestina. Meu amigo Tawfic explicou que essa região tem um micro clima perfeito pra produção de azeitonas e por isso o sabor do azeite daqui é superior. Eu posso confirmar: o azeite de Tawfic é o melhor que já provei na vida! Ele tem uma nota verde intensa, com um gosto de mato depois da chuva (nunca comi mato depois da chuva, mas tenho certeza que o gosto é idêntico ao cheiro), mas ao mesmo tempo é aveludado e tão cremoso que chega a ser (pasmem!) amanteigado. É difícil descrever um sabor tão complexo, só mesmo provando pra entender.” O post completo, com fotos do passa-a-passo, está aqui

Pra ver muitas fotos de lugares lindos e pratos típicos deliciosos, é só clicar aqui.

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Na seção Viagens (dentro da página Receitas) tem vários posts mostrando as belezas da Palestina e seu povo acolhedor. Vou só citar alguns, pra esse post não ficar ainda mais longo do que já está.

Tem um post sobre o Vale do Jordão, quando fiquei alguns dias plantando oliveiras em uma comunidade beduína.

E outro sobre o natal em Belém, que era onde eu morava. Imaginem comemorar o nascimento de Jesus…na cidade onde ele nasceu!

Espero que vocês reservem um tempinho pra ler esses relatos, admirar as fotos, salivar diante das comidas e se informar, através das fontes que recomendei. Termino esse post com mais imagens da Palestina, imagens que vocês não verão nesse momento, mas que não deviam sair da nossa mente. A Palestina é um território riquíssimo em história, cultura, culinária e tudo isso, além dos milhões de vidas humanas, está ameaçado.

As histórias que a comida conta

Começou dois anos atrás, no verão. De repente olhei pro meu jantar e me dei conta de que os alimentos naquele prato tinham chegado até a mim por diferentes caminhos, através das mãos de amigas e camaradas. Não lembro exatamente do conteúdo daquela refeição, mas sei que naquele momento vislumbrei pela primeira vez os fios que partiam do meu prato e me conectavam a várias pessoas conhecidas. Foi quando eu escutei a história que aquela comida contava e percebi que tinha uma teia de solidariedade local ao meu redor. Lembro da alegria e gratidão que senti e da certeza de ser uma pessoa extremamente afortunada. 

Desde então esse é um exercício que repito com frequência quando estou comendo e eu sempre me dizia que um dia iria fotografar minhas refeições e escrever as suas histórias, pra compartilhar e não esquecer. Só que eu tenho muitas, muitas ideias ótimas que nunca saem da minha cabeça. Até que uns dias atrás eu estava jantando e ao contar pra Anne de onde vinha cada um daqueles ingredientes vi que eram tantas pessoas envolvidas que não resisti: interrompi o jantar, fui buscar o celular (na nossa casa celular é proibido na mesa – e na cama) e fiz uma foto. Fotografei também o almoço e o jantar do dia seguinte e vim aqui contar as histórias dessas três refeições.

Salada: os tomates vieram da nossa horta de quintal e da horta de uma amiga, a azedinha (escondida embaixo da alface) veio do lote que cultivamos coletivamente (junto com nosso coletivo) nos Jardins Operários, o pepino foi comprado numa loja de orgânicos e a alface veio do lixo dessa mesma loja de orgânicos.

Pausa pra explicar que toda semana buscamos comida no lixo da loja de orgânicos, comida perfeitamente comestível, apenas um pouco murcha ou machucada, mas que é jogada fora. Também pegamos vegetais de descarte nas feiras livres da nossa cidade, mas nesse caso os feirantes deixam a gente pegar antes de jogar no lixo. (O que não é o caso na loja de orgânicos).

O prato principal foi macarrão, comprado na loja de orgânicos de onde pegamos comida do lixo, com cogumelos e espinafre, ambos vindos do lixo da loja de orgânicos, tofu do mercado chinês do nosso bairro (feito aqui, com soja não-transgênica) e creme de castanha de caju, que veio de uma ocupação aqui no nosso território. Essa okupa recebe doações de comida que passou da data de validade, mas que ainda pode ser consumida, e distribui pra toda uma rede de pessoas precarizadas, incluindo nós, do coletivo. Desde o ano passado comemos pasta de castanha de caju, orgânica (!!!!), pois a doação foi gigante!

De sobremesa teve dois tipos de ameixas: as alongadas foram apanhadas no chão dos Jardins Operários (é época de ameixas e nos Jardins tem muitas ameixeiras, então o solo em vários lugares está coberto com essas frutas) e as redondas, menores, vieram da nossa vizinha de lote. As uvas foram presentes da minha vizinha e vizinho, um casal do Sri Lanka que compartilha o nosso entusiasmo por plantar (só que a horta delas é muito maior do que a nossa!). A gente conversa muito por cima da cerca que separa nossos quintais e Vigi, a vizinha, já me deu vegetais, sementes, mudas e conselhos. Na manhã daquele dia eu estava tomando café curtindo um solzinho quando a vizinha e o vizinho me chamaram por cima da cerca pra me oferecer um pouco das uvas que estavam colhendo.

Depois do jantar gosto de ir pra cama com uma caneca de chá de ervas (infusão), que degusto enquanto leio. É um ritual que adoro e aqui fiz chá com a verbena-limão que tinha colhido naquele dia no lote de Chabha, nos Jardins Operários. Chabha, uma senhora argelina, precisou viajar e perguntou se alguém poderia cuidar da horta dela durante a sua ausência. Como já faz um certo tempo que comecei a ajudá-la a regar a horta (é pesado pras costas dela ir buscar água e regar tudo sozinha), estou cuidando do pedacinho de terra dela durante o mês de agosto. E como ela tem um pé de verbena-limão, uma das minhas infusões preferidas, sempre que passo por lá colho uns raminhos pra tomar à noite.

No dia seguinte, depois do café da manhã, Anne foi regar as plantas do apartamento de uma camarada do coletivo, que saiu de férias, e na volta passou por uma das feiras livres da cidade. A feira já tinha acabado e os feirantes estavam descartando os restos. Já disse que temos o costume de pegar comida de descarte na feira e foi exatamente isso que ela fez. A gente só anda de bicicleta por aqui e temos bagageiros sólidos pra poder trazer pra casa a comida que cruza o nosso caminho. Aqui ela pegou uma das caixas de madeira que estavam sendo jogadas fora e fez uma ótima colheita: um melão, um pouco de uva verde, pêssegos e várias bananas. Evitamos comprar frutas e verduras que vêm de longe, então as únicas vezes em que como banana ou abacate, por exemplo, é quando encontramos no lixo da loja de orgânicos ou pegamos do descarte da feira. Como as bananas de descarte sempre são bem maduras, eu descasco, corto e congelo assim que chego em casa. Depois uso pra fazer vitamina, sorvete ou coloco na papa de aveia. Dessa vez tinha bananas verdes (perfeitas!) e elas estão amadurecendo na cozinha nesse exato momento.

No almoço comemos o resto do macarrão com tofu/espinafre/cogumelo/creme de castanha da noite anterior, mais uma salada com a alface do lixo da loja de orgânicos, grão de bico (francês) comprado na loja de orgânicos, folhas de capuchinha do quintal, algas francesas que ganhei de uma amiga, cebolinha do nosso lote, salsinha da nossa horta de quintal e tomates do lote de outra amiga. Essa outra amiga, Dolorès, também está viajando e estamos regando, junto com outras camaradas e jardineiras, o lote dela no momento. E vocês já entenderam que quem cuida do lote ganha o direito de colher o que estiver maduro no dia, né? Nossas amigas agricultoras insistem sempre pra gente colher o que quiser, como modo de nos agradecer o favor e porque quem cultiva a terra sabe que o que não for colhido, se perde. Ou seja, plantar te ensina a compartilhar, incentiva a generosidade.

De sobremesa comemos o resto das uvas da vizinha e alguns dos pêssegos de descarte (que Anne trouxe de manhã).

À tarde fui buscar duas cestas de orgânicos, no esquema CSA (Comunidade que Sustenta a Agricultura), de uma amiga e um amigo, ambas camaradas do coletivo de defesa dos Jardins Operários. As duas saíram de férias com a família (julho e agosto são as férias de verão aqui) e as cestas iam se perder. Você se compromete a pagar um valor fixo por mês e tem direito a uma cesta semanal com vegetais da estação. Como a ideia é apoiar as agricultoras locais, não é possível cancelar nas semanas em que viajamos. Sorte nossa, pois nossas amigas, que também moram pertinho de nós, deixaram as cestas da semana passada e dessa semana pra gente. Uma das amigas, Vivianne, tem uma filha pequena e às vezes, quando ela tem um imprevisto no trabalho, ela me pede pra ir buscar a menina na escola. Nossa comunidade é bem unida e se ajuda mutualmente o tempo todo.

Minha bicicleta voltou carregada com as duas cestas de orgânicos e pude até congelar algumas coisas pra comer nas semanas seguintes.

Fiz lasanha pro jantar e essa refeição é um exemplo perfeito da teia de solidariedade que falei no início do texto. A massa foi comprada, na loja de orgânicos, mas além disso, do azeite e do alho (mais o sal e a pimenta preta), todo o resto dessa refeição foi conseguido de forma gratuita. Comida não deveria ser mercadoria e saber que uma parte, às vezes importante, do que comemos chega na nossa mesa sem passar por lógicas mercadológicas, me deixa muito feliz.

A lasanha tem berinjela e pimentão da cesta de orgânicos da amiga, tomates da cesta da amiga e do lote de Dolorès (vou escolhendo os mais maduros, por isso sempre rola mistura de origem), abobrinha do nosso lote, manjericão da nossa horta de quintal, cebola do lote de Chabha e creme feito com a pasta de castanha de caju da ocupação. A salada tem: alface da cesta de orgânicos do amigo e do lixo da loja de orgânicos, melão de descarte (da feira) e folhas de dente-de-leão do quintal. De sobremesa teve pêssegos de descarte (da feira).

Uma nota sobre PANCs. Uns meses atrás comecei a incluir sistematicamente um alimento selvagem, ou uma PANC (planta alimentícia não convencional), nas minhas refeições principais. Geralmente elas vem do meu quintal ou dos Jardins Operários (dente-de-leão, capuchinha -as flores e as folhas, urtiga, folha de jerimum, azedinha) e minha intenção é diversificar minha alimentação e expandir meu paladar pra sabores menos convencionais, mas também enriquecer minha microbiota intestinal. Não é um sacrifício, é um prazer imenso descobrir novos sabores.

Toda comida te conecta a alguém ou alguma coisa. A quem a sua comida te conecta? A quem a produziu, claro. A agricultora que selecionou a semente, plantou, regou, cuidou e colheu. Mas quem mais entrou no caminho entre a terra e o seu prato? Que histórias sua comida conta?