Biodiversidade e produtos vegetais ultraprocessados


Essa semana a ocupação que também serve de base pro nosso coletivo anarco recebeu caixas e mais caixas de hambúrguer vegetal que iriam pro descarte. Falei sobre comida de descarte, e como isso alimenta não só as camaradas do coletivo, mas também as pessoas ao nosso redor, nesse post. Além da comida que pegamos regularmente (frutas e verduras da feira, todo tipo de alimento transformado que pegamos do descarte de supermercados) duas vezes por semana, de vez em quando uma montanha de alguma coisa que acabaria no lixo chega até nós. Umas semanas atrás foram 2 toneladas (sim, literalmente) de cogumelo orgânico congelado. Semana passada foram centenas de quilos de hambúrgueres vegetais, também congelados. Eram hambúrgueres feitos de proteína de soja com beterraba, temperos e alguns aditivos. Provei pela primeira vez ontem e o sabor é tão ruim que agora não sei o que fazer com o enorme saco de hambúrguer no congelador. 


Enquanto eu tentava tragar o intragável (pra que o jantar não acabasse no lixo), me vi pensando, mais uma vez, na obsessão geral com hambúrgueres vegetais e no mantra do veganismo liberal (“Quanto mais produtos veganos industrializados, melhor pros animais.”). Já escrevi longamente sobre como essa visão liberal do veganismo vai contra os objetivos do movimento antiespecista nesse post e nesse post . Mas hoje eu queria chamar a sua atenção pra algo que é frequentemente ignorado nessa discussão: a questão da biodiversidade.

Moqueca de caju, arroz da terra, feijão verde, farofa de couve e bolinho de macaxeira
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Comida como ferramenta de ‘conversão’

Durante os primeiros anos de veganismo, acreditei que oferecer pratos veganos deliciosos pras pessoas ao meu redor seria a porta de entrada delas pra causa animal. Talvez eu tenha sentido essa responsabilidade ainda mais forte porque cozinho profissionalmente. Então não perdia nenhuma oportunidade (aniversários, reuniões de família) de passar horas (às vezes dias) preparando menus, comprando ingredientes e cozinhando pra impressionar as não-veganas. Nos jantares onde cada convidada leva um prato, eu levava 4 e era sempre a mais cansada, a que trabalhava mais, a que gastava mais com ingredientes… As pessoas comiam minha comida, sim, e adoravam. Porém minhas preparações vegetais dividiam espaço nos seus pratos com animais e seus derivados. Nunca ninguém deixou de comer o animal assado, ou a sobremesa entupida de leite condensado, porque tinha pratos veganos deliciosos na mesa.

Quiche de cogumelo e espinafre, usando esse método
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Sabemos construir também. E plantar.

No último dia em que eu estive na ocupação dos Jardins Operários de Aubervillers teve uma reunião do coletivo de defesa dos jardins.  Eu saí da reunião frustrada pela maneira como a pauta principal da reunião tinha sido conduzida e, principalmente, pelas dificuldades constantes que enfrentamos quando construímos uma luta com um grupo de pessoas vindas de horizontes tão diferentes. Eu viajaria pro Brasil dali a dois dias e ao me despedir das camaradas pedia a todas que seguissem resistindo, pois eu queria ver a ocupação de pé quando voltasse. Foi a última vez que eu vi aquela terra coberta de árvores, legumes e frutas.

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Creme de tapioca e coco com abacaxi caramelizado

É verdade que na cozinha as coisas mais simples podem ser as mais difíceis de fazer. Tapioca, por exemplo, é uma delas. Depois que você aprende, se torna a coisa mais natural do mundo, mas até chegar nesse ponto você vai precisar suar um pouco. Repare que se a receita for extremamente simples (no caso da tapioca, com apenas um ingrediente), cada detalhe faz diferença. Nessa categoria de receitas, é mais sobre técnica. E prática é tudo que você precisa pra dominar a técnica. Infelizmente essa parte (a prática) não pode ser terceirizada.

Já a receita de hoje faz parte de uma categoria diferente. Sim, leva tapioca. Não a comida de café da manhã à base de goma fresca (ou polvilho hidratado) e feita na frigideira, mas sim os pequenos grãos irregulares de polvilho que também chamamos de “tapioca” (veja a foto mais abaixo). E também tem uma lista de ingredientes enxuta, com apenas três elementos (no máximo 4). Mas a parte complicada dessa receita foi encontrar as proporções exatas e o modo de preparo pra atingir a textura que eu procurava. E a boa notícia é que quem fez a parte difícil desse trabalho foi essa que te escreve, logo você não terá que fazer esforço nenhum.

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Escritos pra lembrar que estamos no mês da visibilidade lésbica

Agosto é o mês da visibilidade lésbica no Brasil e todo ano eu escrevia um post sobre o tema no Instagram. Mas o Instagram desativou a minha conta por lá (entenda o ocorrido aqui), então o post desse ano será aqui. E olha que feliz: escrever no blog significa que quem decide o número de caracteres sou eu e poderei publicar um texto do tamanho que o coração mandar. Como eu já escrevi bastante sobre vivência lésbica, lesbofobia e a alegria de ser lésbica por lá, e que esse material foi deletado junto com a minha conta, resolvi trazer uma parte pra cá. Seria uma pena perder as conversas que tivemos por lá e que tocou e fez refletir muita gente. Então você vai encontrar aqui reflexões e relatos pessoais que postei nos stories, textos curtos que estavam no feed mais alguns parágrafos inéditos.

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Almoços

É uma história que aconteceu há muitos anos, mas nunca esqueci. Eu estava no Sertão, visitando uma tia. Eu tinha me tornado vegana há pouco tempo e comer na casa de familiares ainda causava uma certa tensão. Não do meu lado, mas do lado da família, que não sabia mais o que cozinhar pra mim. Eu repetia que bastava fazer o de sempre: feijão, arroz, macaxeira, tapioca, cuscuz, batata doce… Sempre repito que o Nordeste é o melhor lugar do mundo pra ser vegana, pois a base da nossa cultura alimentar é vegetal. Mas lá estava eu, na cozinha da tia, na hora do almoço, depois dela ter me dito, mais uma vez, que não sabia o que cozinhar pra mim. Ela tinha preparado feijão verde, arroz, batata doce e macaxeira cozidas, salada crua e maxixe. Também tinha preparado uma galinha. Quando terminei de encher o meu prato, que estava abarrotado de comida e lindamente colorido, minha tia olhou pra ele com cara de tristeza, suspirou e disse: “Achou alguma coisa pra colocar no prato, minha filha?” 

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Feijão de mãe

Esse texto é sobre duas coisas diferentes, mas que se encontram no final. 

Uns dias atrás eu estava reunida com boa parte da minha família, numa casa de praia aqui do lado de Natal. Eu estava preparando o almoço com a minha cunhada e discutíamos sobre o que nós consideramos como essencial em termos de conhecimento culinário. Concordamos que qualquer pessoa no nosso território (o Nordeste) deveria saber preparar o essencial da nossa cultura alimentar: 1- feijão, 2- arroz, 3- cuscuz e 4- tapioca. Assim a pessoa garante sua autonomia alimentar no café, almoço e jantar. O resto (legumes refogados, salada, uma pasta pra passar na tapioca) também é importante, tanto pra ter uma alimentação diversificada quanto pra garantir refeições saborosas, mas deve ser construído em cima dessa base. Isso deve ser adaptado em função da sua cultura alimentar, obviamente. Tapioca não faz sentido pra todo mundo e talvez aí onde você mora o seu “essencial” seja diferente. 

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Tudo vai mudar (anúncio importante)

A vida tem dessas ironias. 

No último post contei que há alguns meses as tarefas da militância tinham se multiplicado de tal modo que eu já não conseguia produzir conteúdo no Instagram nem aparecer aqui no blog com a frequência que eu gostaria. Eu estava aguentando o tranco porque sabia que era uma situação temporária, pois no início de julho eu viria pro Brasil e, deixando as tarefas lá em Paris, eu teria mais tempo pra compartilhar receitas e histórias nos dois canais que uso pra fazer isso (IG e blog). 

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Bilhete pras pessoas que apoiam o meu trabalho

Ano passado tomei coragem e lancei uma campanha de financiamento contínuo no Apoia-se Era algo que eu pensava em fazer há tempos, pois seguir produzindo conteúdo (receitas, artigos, reflexões, entrevistas) aqui e no Instagram exige bastante tempo e eu sempre tinha que escolher entre seguir fazendo isso (trabalho não remunerado) ou usar meu tempo fazendo outras atividades que me permitissem pagar os boletos e colocar o tofu na mesa. A campanha de financiamento contínuo foi a maneira que encontrei, por enquanto, de seguir servindo minha comunidade e ao mesmo tempo ser remunerada pelo trabalho feito.

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Saudade de casa

Felizmente daqui a exatamente um mês estarei no Brasil novamente. Fazendo comida nessa cozinha, deixando recados pra galera da preguiça nos azulejos, cuidando da minha mãe, passeando toda tarde com ela, minha tia e sobrinha e voltando pra casa com as mãos cheias de frutas colhidas pelo caminho. Quer dizer, em julho não tem caju nem manga, né?

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Jardins da Comuna – Ep 5

Uma visita aos jardins com Lucas

No último episódio eu dei a palavra à algumas das jardineiras e jardineiros que cultivam a terra nos Jardins Operários de Aubervilliers. Aquelas falas precisaram passar por mim, que fiz a tradução e hoje eu queria que vocês ouvissem diretamente um dos jardineiros que fala Português.

Começamos a conversa no lote dele e seguimos papeando enquanto passeávamos pelos jardins. Foi difícil fazer esse episódio, pois naquele dia as máquinas entraram nos jardins, as maquinas que vieram executar o plano de destruição de 4mil m2 das hortas, que serão substituídas por um centro aquático, ligado à uma piscina de treinamento pras Olimpíadas de Paris de 2024. 

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Molho de amendoim e gengibre

Eu tinha planejado publicar essa receita semana passada, mas a situação de violência colonial israelense na Palestina ocupada explodiu novamente e desde então falar de qualquer outra coisa se tornou absurdo. Quem me acompanha no Instagram viu que compartilho informações e artigos por lá diariamente, na maior parte do tempo traduzidos de outras línguas. É um trabalho intenso, mas a Palestina não deixou de estar no centro da minha militância quando eu saí de lá.

Então vamos fazer assim. Por hora, passem no meu Instagram pra acompanhar os acontecimentos na Palestina. E sigam as outras pessoas/coletivos/mídias de confiança que recomendo por lá. E aqui, focaremos na comida, pelo menos por enquanto.

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Jardins da Comuna – Ep 3 e 4

Ep 3—“Devastação 2024”

(áudio passarinhos cantando)

No último episódio falei sobre a orquestra de passarinhos que anima os Jardins Operários e eu não podia deixar de trazer essa melodia pra vocês. Mas estamos na periferia norte de Paris, então o canto dos pássaros, incluindo do galo que mora nos jardins, vem acompanhado do barulho de  carros, buzinas e das construções ali por perto. 

Eu comecei a frequentar os Jardins Operários no meio do ano passado, quando o Coletivo de Defesa dos Jardins foi criado. Não é difícil entender a importância dessas hortas na segurança alimentar das famílias que cultivam ali, mas só quando passei a conversar com as jardineiras e jardineiros, pude ter noção do que os jardins realmente significam pra elas. E isso vai muito além da possibilidade de ter verduras frescas na mesa. 

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Jardins da Comuna (Ep 1 e 2)

Dentre as várias lutas que participo aqui no território onde moro (periferia norte de Paris), a luta pela preservação dos Jardins Operários é uma das mais importantes. Por isso nasceu a ideia de um projeto colaborativo com a Biblioteca Terra Livre: um diário sonoro de resistência, que vai ao ar no podcast Antinomia.

Essa é a história de um pequeno grupo de operárias aposentadas e trabalhadoras, a maioria vinda da imigração, lutando pra defender o último pedaço de terra agrária de seu território contra o racismo ambiental, a gentrificação e a especulação imobiliária na periferia de Paris.

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Cuidado na militância

Se o tema do último post foi “tarefas militantes”, pra mostrar como elas são diversas e ao alcance de todas as habilidades físicas e intelectuais e disponibilidades, hoje a conversa é sobre cuidado na militância. 

A sexta começou como é de costume por aqui. Café da manhã, meditação, um pouco de exercício, trabalho on-line…. À tarde as tarefas do fim de semana começavam, mas…

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Sobre as tarefas da militância

Existe uma certa confusão sobre o que é militar, ser militante ou o que seria uma “militância revolucionária” e isso acaba afastando muitas pessoas da militância. Porque se por um lado tem quem ache que não possui as habilidades certas pra contribuir com a luta, por outro lado essa visão puramente estética da militância (o cara forte, que sabe de cor os escritos dos barbudos e bigodudos, que coloca fascista pra correr e peita a polícia nos protestos), que é bem pouco representativa da realidade, acaba convencendo muitas pessoas que militância não é pra elas.

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O que podemos aprender com menus franceses antigos

Uns dias atrás eu estava no interior da França, visitando o meu sogro, e pedi pra ele me mostrar os cardápios antigos que ele herdou da mãe. O pai dele era chef e tinha um restaurante com uma estrela Michelin. A avó materna dele também era chef, também tinha um restaurante e também tinha uma estrela. Uns anos atrás ele me mostrou um cardápio de 1920 e fiquei impressionada com a quantidade de comida, mas, principalmente, com o número de animais servidos numa mesma refeição. A mãe dele gostava de guardar tanto os menus que a mãe e o esposo preparavam em seus restaurantes respectivos, quanto menus de lugares onde ela comia. Ela deixou esse mundo há alguns anos e meu sogro guarda preciosamente a caixa cheia com as dezenas de menus que ela colecionou durante a vida.

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Falar da luta antiespecista com camaradas de esquerda. E um bolo.

De cara, já aviso que não tenho a resposta. Vim aqui compartilhar minhas experiências militando dentro de um coletivo anticapitalista de tendência anarquista, na esperança de que elas possam inspirar quem está numa situação parecida.

Esse mês faz um ano que o nosso coletivo, as Brigadas de Solidariedade Popular (BSP), foi criado. Era o início da pandemia de Covid 19 e estávamos atravessando o primeiro lockdown na França. A primeira BSP apareceu em Milão, uma iniciativa de militantes antifascistas. Com o objetivo de organizar a solidariedade popular diante da crise sanitária e alimentar, as BSP logo se espalharam por uma parte da Europa. A BSP de onde eu moro, na periferia norte de Paris, foi a primeira da França e também veio da militância antifascista. Outras surgiram logo em seguida, fazendo com que a França fosse o país com o maior número de Brigadas. Um ano depois, poucas continuam ativas. A nossa nunca deixou de organizar atividades de solidariedade e seguimos mais ocupadas do que nunca. Isso se explica, de uma parte, pelo fato do território onde estamos ser o cantão mais pobre da França inteira. A crise alimentar e econômica, que já existia pré-Covid, nunca parou de aumentar por aqui. A longevidade do nosso coletivo também tem outra razão: o compromisso das militantes que o compõe, que ja vinham da luta antifascista, antiracista, feminista….mas não antiespecista. 

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Como fazer tapioca

Como boa nordestina, tapioca ocupa um lugar de destaque no meu coração. Se eu tivesse que escolher entre pão e tapioca, escolheria a segunda sem pestanejar.

Tapioca é uma iguaria preparada com goma de mandioca (a fécula da mandioca) e degustada no café da manhã, lanche e jantar. Pode ser doce, mas é mais comum salgada. Pode ser servida no leite de coco ou recheada com tudo que sua imaginação mandar. É uma comida tradicional no território onde nasci e foi uma das primeiras coisas que aprendi a fazer. Apesar de ser degustada em todo o Nordeste, parece que tem lugares onde ela é chamada de “beiju”. No RN beiju é outra coisa (também feito de goma, mas diferente).

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