Jardins da Comuna – Ep 5

Uma visita aos jardins com Lucas

No último episódio eu dei a palavra à algumas das jardineiras e jardineiros que cultivam a terra nos Jardins Operários de Aubervilliers. Aquelas falas precisaram passar por mim, que fiz a tradução e hoje eu queria que vocês ouvissem diretamente um dos jardineiros que fala Português.

Começamos a conversa no lote dele e seguimos papeando enquanto passeávamos pelos jardins. Foi difícil fazer esse episódio, pois naquele dia as máquinas entraram nos jardins, as maquinas que vieram executar o plano de destruição de 4mil m2 das hortas, que serão substituídas por um centro aquático, ligado à uma piscina de treinamento pras Olimpíadas de Paris de 2024. 

Nossa conversa foi interrompida várias vezes pelo barulho das máquinas e pela nossa tristeza e indignação. Também teve o canto dos passarinhos, junto com o barulho dos carros, passando na avenida do lado de fora dos jardins, e as saudações dos outros jardineiros e jardineiras que cruzaram o nosso caminho. 

Você vai escutar agora uma colcha de retalhos de sons, costurada pela minha narração. É uma janela que se abre pra dentro das hortas, e vocês escutarão passar tristeza, indignação, a máquina de destruir vidas mas também a resistência popular e da natureza.

Uma das jardineiras colou um cartaz na entrada do seu lote onde ela escreveu: Nós somos os jardins se defendendo. Então peço que ao escutarem esse episódio não se deixem abater pelo barulho das máquinas cortando as árvores, arrancando flores e compactando a terra: ouçam os passarinhos, que seguem cantando, e ouçam as pessoas, que seguem plantando. 

Sandra: O senhor me dá 5 minutos?

Lucas: Só 5 minutos? É rápido, então.

Vocês acabaram de ouvir Lucas. Ele é português, tem 62 anos e trabalha como encanador e técnico de refrigeração e aquecedor. Ele veio pra França no final dos anos 80, acompanhando a esposa, cuja família tinha imigrado pra cá nos anos 70. 

Lucas: Diga lá, senhora Sandra, o que você quer em português.

Risos

Sandra: Então, senhor Lucas…

Lucas: Diga lá.

Sandra: Eu gostaria de saber quando o senhor chegou aqui nos jardins. Quando conseguiu seu lote?

Lucas: Isto foi assim. Eu vim de Portugal em 1989. Conheci a minha mulher lá embaixo, éramos da mesma aldeia. Então como eles já moravam aqui, eram imigrantes…Eu sabia que a minha mulher tinha vivido no…como é que chamam esses bairros? Em Português chamamos de “bairros da lata”. Aqui tinha um nome…viviam nas barracas de Saint-Denis.

Sandra: Ah, sim. São tipos de favela.

Lucas: Sim! Eles moraram lá, depois vieram pra um bom apartamento aqui em Aubervilliers e quando eu cheguei aqui, cheguei aqui com eles. E meu sogro então tinha um jardim lá em cima. E quando meu sogro pensou em ir pra Portugal deu-me aquele jardim lá em cima. Vai fazer 30 anos que eu tenho aqui esse jardim. Este não, este são 10, 11 anos.

Sandra: Nesse lote.

Lucas: Antes eu estava lá em cima, ao pé do Ugo. 

Sandra: O senhor mora aqui perto?

Lucas: Eu moro aqui embaixo, atrás daquelas torres. E foi assim que eu vim aqui pra os jardins. Conheci aqui os meus amigos portugueses. E é trabalho, jardim e casa. 

A partir daqui o som das máquinas entram na nossa conversa e vão fazer uma figuração não desejada até o final desse episódio.

Sandra: O senhor já plantava lá em Portugal?

Lucas: Não.

Sandra: Aprendeu aqui?

Lucas: A minha profissão lá em Portugal, quando eu comecei a trabalhar, foi nas confecções. Fazia casacos, calças…

Sandra: Então o senhor costura também?

Lucas: Agora, não. Agora já não faço nada disso, acabou. Depois fui barman…em Lisboa. E depois vim pra aqui, não sabia falar Francês, nada.

Lucas aprendeu a falar Francês e a plantar quando chegou em Aubervilliers. Hoje ele cultiva uma variedade impressionante de vegetais no pequeno lote que ocupa: ervilha, tomate, salsinha, cenoura, fava, hortelã, girassol, alecrim, alho, tomilho, cebolinha, alface…Além das árvores frutíferas: oliveira, figueira, macieira, pe de ameixa, pé de pêssego…e parreiras, várias parreiras, de tipos diferentes de uvas. 

Sandra: O que esse jardim significa pro senhor?

Lucas: O jardim pra mim é tudo. O jardim pra mim é tudo, sabe por que? Eu conheço muita gente que quando querem se encontrar com os amigos é nos cafés. Mas eu não quero cafés. Prefiro encontrar com meus amigos aqui nos jardins. Fazemos aqui a nossa comida, aos sábados viemos almoçar e estamos tranquilos.

Sandra: O senhor cozinha aqui no sábado?

Lucas: Sim! Olha aqui. A cozinha é esta…

Sandra: Nossa! Tem uma cozinha aqui!

Eu nunca tinha entrado na cabana de Lucas. Em cada lote tem uma cabana, barracos de madeira, construídos pelas pessoas que cultivam a terra ali, mas até então eu só tinha visto equipamentos de jardinagem e sementes dentro deles. Foi uma surpresa descobrir que Lucas equipou seu barraco com um fogão, uma mesa, vários armários e até um sanitário, tudo feito por ele mesmo. Ele me explicou que nos fins de semana, quando o dia está bonito, ele e os amigos almoçam embaixo da figueira.

Nesse momento passa a senhora que cultiva o lote da frente, empurrando uma carrinho de mão. Lucas me perguntou quantos anos eu achava que ela tinha: 

Sandra: Não sei…

Lucas: 92 anos.

Sandra: 92!!!!!

92 anos e segue cultivando a terra… Todas as pessoas com quem conversei ali me falaram a mesma coisa: cultivar uma horta é o segredo da saúde delas. Como a maioria mora em apartamentos pequenos e não tem condições de frequentar clubes de esporte, a horta é o exercício delas. Exercício pro corpo e repouso pra mente.

Lucas: É bom pros amigos, pra se exercitar um pouco, fazer qualquer coisa de bom… Não é só pra chegar aqui e estar sentado! Tens que fazer qualquer coisa. Por exemplo, o senhor português que está ao lado tem 87 anos. É bom viver, conviver com o pessoal daqui. Depois há muitas nacionalidades. Há francês, italiano, espanhol, árabe, tunisiano, marroquino, argelino… É isso que é bonito.

Perguntei se ele achava que íamos vencer a luta pra impedir a destruição dos jardins. Lucas respondeu que tinha esperanças, apesar da associação que gere os jardins operários não ter feito nada pra defendê-los. Esse é um grande obstáculo pra nós, do coletivo de defesa dos jardins. É uma luta complexa, pois o presidente da associação está do lado dos que querem passar o cimento por cima das hortas e faz o possível pra sabotar nossos esforços de mobilização. Sim, nós também nos perguntamos como uma pessoa dessa se tornou presidente de uma associação de jardins operários e a resposta é um enigma pra gente.

Sandra: Por que faz um nó assim?

Lucas: Ainda é muito cedo pra fazer isso ao alho. 

Sandra: É alho?

Lucas: Quando fazem o nó ao alho lá em cima, é pro alho engrossar embaixo, pra cabeça do alho engrossar. Mas ainda tá muito cedo.

Sandra: Então o senhor dá um nó na folha de alho em cima pra cabeça engrossar embaixo?

Lucas: Porque não desenvolve lá em cima e a cabeça de alho, embaixo, engrossa.

Aqui já tínhamos deixado o lote de Lucas e estávamos passeando pelos jardins. Ele me ensinou várias coisas relacionadas ao que a gente ia vendo pelo caminho. Depois da dica de como engrossar a cabeça de alho, ele compartilhou sua receita de caldo verde, enquanto passávamos na frente de um lote cheio de couve; me mostrou uma planta cuja seiva cura verrugas, e explicou que sálvia, uma erva cultivada em muitas das hortas ali, é um ótimo remédio pra mulheres. Tudo isso num espaço de poucos metros. 

Pensei no trajeto que faço do meu apartamento, num conjunto de habitações sociais, até os jardins. São 20 minutos de caminhada onde só vejo concreto e asfalto, enquanto aqueles jardins com suas hortas são um território rico em vida e em aprendizados. O que um território onde cada milímetro de terra desaparece embaixo do cimento pode nos ensinar? Que conversa eu teria com Lucas se ao invés de passear entre hortas estivéssemos passeando entre prédios e calçadas? Que futuro tem uma cidade que quer destruir a vida pra substitui-la por concreto?

E falando em planos de destruição… Aqui escutamos um pequeno trator passar por nós. Dei um “bonjour” pro trabalhador operando a máquina, que falou “bonjour” de volta.

Sandra: Isso é horrível pra terra, pois compacta a terra e depois não nasce mais nada.

Aqui Lucas respondeu: “Eu sou contra isso! Por mim essas máquinas nunca teriam entrado aqui.” Nesse momento tínhamos chegado na parte superior dos jardins, perto dos lotes ameaçados de destruição e o vai e vem das máquinas, pequenas escavadeiras, não nos deu mais sossego.

Lucas: Isso é couve.

Sandra: Eu plantei uma couve pequenininha na minha casa, num pote, mas ela não tá feliz.

Lucas: Não tá feliz porque é agora que se planta.

Sandra: Mas eu plantei semana passada…

Lucas: Ainda está muito cedo. Mas pra couve não há problema porque a couve não gela…

O barulho das máquinas ficou mais alto do que a voz de Lucas.

Sandra: Que tristeza! Tá vendo? A terra vai ficar compactada e não vai nascer mais nem grama. E cortaram as árvores aqui?

Lucas: Aqui já andaram máquinas também, não sabem fazer a limpeza…

Sandra: Mas tinha muito mais árvores aqui.

Lucas: Sim, eles cortam tudo. Eles destroem a natureza. É uma tristeza!

Seguimos o caminho e ele me levou pra ver um dos lotes ameaçados de destruição, onde um amigo dele cultiva a terra. 

Sandra: Cuidado com a lama.

Lucas: Bonjour, Philippe.

Sandra: Mais couve aqui. E alho poró.

Lucas: É de um português. Ali é uma macieira. Ali tem uma cerejeira e aqui tem uma cerejeira. É o terceiro ano que ela dá. É mal empregada, gora quando forem fazer os trabalhos ela vai ao lixo. 

Sandra: Ela?

Lucas: Sim. 

Sandra: Essa cerejeira vai ser destruída.

Lucas: Se não a arrancam, vai ser destruída. 

Sandra: E aquela também, né?

Lucas: Aquela também vai ser cortada. 

Caminhamos pro fundo do lote.

Lucas: Aqui há galinhas.

Sandra: Ah, aqui estão as galinhas! Eu sempre procurei as galinhas, sabia que tinha…

As galinhas nos recebem com entusiasmo e o galo canta.

Sandra: Oi! Bom dia! Bom dia, senhoras. E tem um pato também?

Lucas: Tem patos, galinhas, pombos…São bonitas. 

A terra, as couves, os alhos poró, as duas cerejeiras, o galinheiro… tudo vai ser destruído pra que a construtora possa colocar um centro aquático, com direito a spa, ali em cima. 

Mais na frente vimos alguns canteiros de flores destruídos. Lucas explicou que os trabalhadores da construtora destruíram os canteiros pra que as máquinas pudessem passar com mais facilidade.

18:43-19:10

Lucas: Olha lá, dá pra fazer uma bela sopa de urtiga.

Sandra: Dá pra fazer uma sopa boa. É muito rico em ferro, urtiga. Muito bom pra saúde.

Nos aproximamos do local por onde as máquinas entraram nos jardins.

Lucas: Olha lá! A miséria é aqui.

Sandra: A miséria é aqui.

Lucas: Já estão instalados pra começar os trabalhos. 

Paramos na frente da grade que separa as hortas do estacionamento que faz fronteira com esse lado dos jardins. As dezenas de árvores do estacionamento foram cortadas há algumas semanas e é ali que a piscina olímpica será construída. A construtora abriu uma passagem na grade e foi por ali que as máquinas entraram.

Lucas: Buenos dias, señor, como vai?

Jardineiro: Bonjour, monsieur le président!

Lucas, rindo: “Président…” É espanhol.

Passando em frente a outro lote…

Lucas: Marroquino.

Sandra: Plantando as favas…

Nesse momento a senhora de 92 anos cruzou o nosso caminho.

Lucas: E vem de mãos vazias?

Jardineira: Sim, estou de mãos vazias, porque terminei. 

Essa senhora ainda vem todos os dias pros jardim e segue cultivando a sua horta. Me ofereci pra ajuda-la com o carrinho de mão que ela empurrava, e que estava cheio de ferramentas, mas ela disse que não precisava.

Eu estou gravando esse episódio na sexta, dia 16 de abril. amanhã tem a primeira manifestação em defesa dos jardins operários, aqui em Aubervilliers,  e vou dormir hoje sem saber quantas pessoas aparecerão pra caminhar do nosso lado e pra juntar suas vozes as nossas. No próximo episódio contarei como foi o evento. Mas até lá, deixo vocês com Lucas, lavrador nos jardins operários há 30 anos e parte da resistência. 

Sandra: Algum recado pras pessoas que estão escutando a gente no Brasil?

Lucas: Um abraço a essa gente toda que nos escuta, aos brasileiros. São nossos irmãos, os brasileiros são nossos irmãos. E um grande abraço pra eles todos. 

2 comentários em “Jardins da Comuna – Ep 5

  1. Eu assisti vídeos e ouvi podcast que você e/ou a Sabrina Fernandes apareceu/apareceram que são sobre a Palestina.

    Eu agradeço muito a você e a Sabrina Fernandes por mostrarem coisas da Palestina que não são mostradas!

    Então vou comentar o que aprendi sobre a Palestina com você e com a Sabrina Fernandes:

    1) Israel não quer aplicar a Lei do Retorno (para palestinos e descendentes deles conseguirem retornar para a Palestina), para palestinos e descendentes deles não voltarem para a Palestina.

    2) A relação entre Israel e Palestina não é guerra, porque existe apenas um exército que é o exército israelense. Por mais que o Hamas possua um braço armado, isso não é um exército.

    3) A relação entre Israel e Palestina não é conflito, porque não existem duas partes conflitando entre si; então, ele faz colonização, porque ele controla militarmente os territórios dela (ele controla a entrada e saída nos territórios dela, as fronteiras dela com outros países e o mar territorial da Faixa de Gaza).

    4) A Faixa de Gaza se tornou laboratório de armas de Israel (aonde ele testa as suas armas) e a maior prisão a céu aberto do mundo. Isso é um exemplo de Israel assassinar os palestinos e querer ocupar toda a Palestina.

    5) O projeto colonial israelense divide os palestinos em 4 grupos: palestinos cidadãos de Israel (são sujeitos a um conjunto de leis, de controles e de discriminação específicas para os cidadãos palestinos do Estado de Israel), palestinos de Jerusalém (não têm cidadania israelense; e por mais que possam morar em Jerusalém, podem perder a residência inesperadamente por colonos israelenses), palestinos da Cisjordânia (estão sujeitos a um conjunto de leis, de controles e de discriminação específicas para palestinos da Cisjordânia) e palestinos da Faixa de Gaza (estão sujeitos a um grupo de leis, de controles e de discriminação específicas para palestinos da Faixa de Gaza).

    Também quero comentar que estou ouvindo todos os podcasts do Jardim da Comuna.

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