Cuidado na militância

Se o tema do último post foi “tarefas militantes”, pra mostrar como elas são diversas e ao alcance de todas as habilidades físicas e intelectuais e disponibilidades, hoje a conversa é sobre cuidado na militância. 

A sexta começou como é de costume por aqui. Café da manhã, meditação, um pouco de exercício, trabalho on-line…. À tarde as tarefas do fim de semana começavam, mas…

A semana foi muito puxada. Quando passo o fim de semana fazendo tarefas da militância, reservo um dia da semana pra descansar. Mas semana passada não deu e, como era de se esperar, não foi possível evitar as consequências disso.

Teve a audiência do nosso camarada, preso em dezembro durante um protesto contra a islamofobia e o projeto de lei de segurança global. O veredicto sai daqui a alguns dias, mas a procuradora pediu 3 meses de prisão. Teve mais reuniões presenciais do que previsto. Teve reuniões à distância com lutadoras no Brasil. Convites aceitos. Projetos decolando. 

E o acúmulo de duas semanas de interações humanas diárias, às vezes 2 ou 3 no mesmo dia. Como militar quando se é uma pessoa extremamente introvertida? 

Existe muita confusão sobre o que é ser introvertida/extrovertida e a maioria das pessoas acha que introversão é sinônimo de timidez. Eu não sou tímida, não tenho dificuldade pra falar em público, gosto de ter contato com as pessoas e me comunico bem. Ser introvertida significa que ter interações com outros humanos (e enfatizo o “humanos” aqui porque o que vou dizer não é válido pra interações com animais não-humanos) é uma atividade que consome minha energia. Eu preciso de muito tempo sozinha pra recarregar as baterias. Prefiro o silêncio, não gosto de agitação, festa, carnaval, muvuca. Enquanto pessoas extrovertidas recarregam as baterias durante interações sociais. Sabe aquela pessoa que diz “Tô precisando ver gente!”? Nunca fui eu. Posso passar semanas sozinha, conversando com minhas plantas e lendo livros. 

Então repito a pergunta. Como militar quando se é uma pessoa extremamente introvertida? Obviamente escolhendo coisas que sejam compatíveis com sua personalidade. Pesquisa, vida acadêmica… Mas não escolhi essa via, então minha estratégia de sobrevivência é limitar as interações sociais e alternar as reuniões/ações com dias em que fico em casa no meu canto. Hoje me conheço tão bem que sei exatamente qual a equação equilibrada pra mim: pra cada dia de interações preciso de dois dias em casa, no meu canto. Mas nas duas últimas semanas isso não foi possível.

Era sexta à tarde, quando eu deveria sair de casa mais uma vez e fazer mais uma tarefa militante da lista, a voz dentro de mim falou “Mulher, te aquieta um pouco.” Sim, eu ouço uma voz, a minha própria 🙂 Sabe a Fada da Véspera, que é o seu eu de ontem fazendo comida pro seu eu de hoje? Pois o meu eu de amanhã também manda mensagens pro meu eu de hoje. Na verdade foi o meu eu de domingo que mandou um recado pro meu eu de sexta dizendo: “Sábado e domingo estão lotados de tarefas. Eu sou você domingo à noite e não quero ir pra cama destruída física e emocionalmente. Lembre que segunda-feira tem mais.” 

Sou uma militante responsável. Se me comprometo com alguma tarefa, eu cumpro. Mas almejo ter o mesmo grau de responsabilidade comigo mesma. Meu emocional tá pedindo arrego? Eu escuto, pois não posso servir minha comunidade se estiver doente (física ou emocionalmente). Não é sinal e fraqueza pedir arrego: é sinal de responsabilidade. Penso que se eu for pra muito além dos meus limites físico e emocionais, não só eu serei uma a menos de pé, lutando, como provavelmente esforços serão mobilizados pra me levantar. Veja, eu não estou dizendo que quem precisa de ajuda atrapalha a luta ou que quem adoece é um peso pro coletivo, de maneira nenhuma! Cuidar das nossas camaradas é uma das tarefas da militância e não é das menores! Estou dizendo que como sei que inevitavelmente vou precisar dessa ajuda, assim como todas as minhas camaradas de luta, busco fazer o possível pra que minhas escolhas não acelerem nem multipliquem esses momentos.

Voltando pra sexta depois do almoço. Eu estava fazerendo a harira que levaria (no dia seguinte) pras amigas que moram no abrigo e decidi que não participaria da atividade programadas. Eu sabia que se fosse (seria em Paris e eu teria que pegar metrô, o que me deixa ainda mais cansada) voltaria pra casa acabada. Não só isso. Eu iria acordar no dia seguinte me sentindo exausta do mesmo jeito, por não ter tido nem um único momento pra mim na semana. E o fim de semana, como falei, seria cheio de tarefas.

Escolhi ficar em casa. Era minha última chance de recarregar as baterias antes de mergulhar nas tarefas novamente. Às vezes a tarefa da militância é com você mesma.

Voltei pra cozinha pra terminar a harira e minha mente estava tão saturada que nem podcast eu quis ouvir. Sempre cozinho e limpo a casa ouvindo podcasts, mas cozinhar no silêncio me ajuda a desanuviar a cabeça. 

Depois fiz minha parte da faxina semanal (Anne tinha feito a dela no dia anterior). Eu estava sozinha em casa, pois Anne tinha ido pra atividade em Paris, e pude saborear cada minuto sozinha com as minhas plantas. Sei que limpar a casa não está na lista de “coisas pra relaxar” da maioria das pessoas, mas não consigo relaxar dentro de bagunça, logo pra mim é uma etapa obrigatória. Bagunça me afeta da mesma maneira que barulho.

Fiz um jantar que me deixa feliz: salada de couve (crespa) com tempeh, maçã e semente de girassol. Deixei pronto pra comer com Anne quando ela voltasse da atividade. E preparei um banho. Água é uma das melhores maneiras de recarregar minhas baterias.

Plantei um pezinho de couve que trouxe dos Jardins Operários. Ele tava cabisbaixo aqui porque tinha feito a viagem de lá pra cá no calor, mas passa bem.

Pausa pra falar da luta dos Jardins Operários. Eu falei sobre isso no último post e gostaria de te convidar a ouvir o diário de resistência sonora que estou fazendo em parceria com a Biblioteca Terra Livre. A série se chama Jardins da Comuna e os episódios vão ao ar toda semana no podcast Antinomia. Recomendo muito.

Voltemos pro final de tarde de sexta. Passei um tempo cuidando das plantas. No dia anterior notei que meu fícus tinha acordado (no inverno as plantas ficam em dormência e quase não crescem) e tinha botado uma folha nova. Essas coisas me emocionam.

Acho difícil falar de autocuidado sem cair num papo liberal, ou seja, sem fazer disso um discurso individualista (“cuidar de si é um ato revolucionário” ou “basta se amar e passar hidratante pra que tudo fique bem”), que pode ser facilmente usado pra vender produtos. Difícil não transformar isso em mercadoria, algo a ser consumido. Difícil falar disso sem culpabilizar quem não tem a possibilidade de ter momentos de autocuidado. E mesmo se tivesse, colocar os pés de molho e passar creme na cara toda noite não mudará o fato de estar numa situação precária/vulnerável, onde não tem as condições pra que você fique bem. 

Por isso não costumo falar de autocuidado aqui. Mas estou falando hoje no contexto que faz sentido pra mim: na militância. Outro dia escutei um militante anarquista e antiespecista falar que depois de anos militando sem nunca descansar, empurrando os limites físicos até cair de exaustão, ele aprendeu a fazer pausas. Ele disse algo que traduz bem como vejo autocuidado: “É sobre afiar nossas ferramentas.” 

Interessante que ninguém confiaria numa cirurgiã que chegasse pra operar com os instrumentos enferrujados. Nem num eletricista que usa uma caixa de ferramentas quebradas. Se quiser manter a metáfora das nossas capacidades físicas e intelectuais como ferramentas, ninguém confiaria na cirurgiã que viesse operar com os olhos vermelhos, porque não dorme o suficiente, e caindo de cansaço. Nem no eletricista que aparecesse pra trocar a instalação elétrica da sua casa nas mesmas condições. Mas é normalizado ver militantes exaustas, adoecidas pelo volume de tarefas. Muitas vezes é até visto como sinal de uma militante realmente dedicada. Eu olho pra isso e vejo uma militante que está com as ferramentas de luta enferrujadas e que não tem condições de fazer bem o seu trabalho. Só isso. 

A luta, pra mim, é um compromisso pra vida inteira. E justamente por ser pra vida inteira é que sei que não darei conta da tarefa se passar dos meus limites físicos e emocionais for a regra. Toda semana agendo tempo pro descanso. Não vai acontecer por acaso, é preciso fazer disso uma tarefa da militância e cumpri-la com a mesma dedicação que cumpro as outras tarefas. Só assim poderei afiar minhas ferramentas e ter a certeza que estarei à altura do trabalho.

4 comentários em “Cuidado na militância

  1. Saúde mental também é saúde!
    Acho muito legal, falar de saúde mental na militância!
    Homens e pessoas negras são as pessoas que em geral menos se preocupam com saúde mental. Porque quanto aos homens, existe a masculinidade tóxica que influencia o homem a não chorar, porque esse comportamento é visto como coisa de mulher/comportamento errado. Quanto às pessoas negras, existe a ideologia de que elas são mais fortes que as pessoas brancas, as mulheres negras são percebidas como as mulheres mais fortes; e o homem negro é visto como mais forte que o homem branco e sofre uma masculinidade tóxica pior que a do homem branco.

    Vou colocar o link do vídeo que se chama Saúde Mental na Militância (do canal Insurgência PSOL):

  2. No 8 de março aqui em Toulouse, a minha tarefa era animação. Ficar no megafone e no microfone chamando os slogans de luta. É uma tarefa que exige mto preparo fisico. Tivemos atividades da militância a semana toda antes do 8, que caiu numa segunda-feira. Dia 5 teve nossa tradicional manifestação da noite que foi violentamente reprimida, algumas companheiras foram presas, mas logo liberadas dps de um controle de identidade. Sábado e domingo organizamos a Vila feminista, com vários stands e atividades. No sábado a noite ficamos em reunião até umas 22hs. Estava exausta! Como eu sabia que iria animar a manifestação na segunda, decidi não trabalhar na Vila no domingo, não me comprometi com nenhuma atividade nesse dia. No começo, rolou uma culpa, tava deixando minhas camaradas sem apoio, eu achava. Mas eu sabia o que seria o trampo na segunda e fiquei feliz por essa decisão.
    Segunda-feira, 8 de março, eu tava com pique total e foi maravilhosa nossa manif. Segurei no megafone e fui, tranquila porque estava descansada!
    Obrigada por esse texto. Seguimos, camarada.

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