Servir a minha comunidade, lutar pelo que é justo e transformar o mundo

No último post compartilhei a receita do caldo bem verde que fiz com a couve da minha horta de quintal. Mas o que não contei foi que a batata daquele caldo também veio da horta, assim como a salada, de tomate com folhas de dente-de-leão (que cresce por todos os lados do jardim), que completou o jantar. Foi a primeira vez na minha vida que fiz uma refeição preparada inteiramente com o que eu mesma plantei. Quase inteiramente, na verdade, já que nem o alho, nem a pimenta preta, nem as azeitonas do azeite foram plantadas por mim. Autonomia alimentar total é difícil. Mas até pouco tempo atrás eu nem sequer imaginava que uma dia eu teria uma horta de quintal, muito menos que eu faria refeições compostas quase que totalmente pelo que eu mesma plantei. 

Alguns anos atrás resolvi desenvolver uma prática de agradecimento (pode chamar de oração) sempre que me sento pra comer. Fui inspirada pela minha querida amiga Kiune, que mora num assentamento da reforma agrária no sul da Bahia. Eu estava passando um tempo por lá e um dia ela recebeu o prato de comida que eu tinha acabado de preparar e agradeceu a quem plantou e a quem preparou a comida, depois desejou que não faltasse comida na mesa de ninguém. Achei aquilo tão lindo e importante que resolvi adotar a prática, criando a minha própria prece. Antes da primeira garfada/colherada seguro o prato entre as mãos e digo mentalmente: “Obrigada a quem plantou, colheu e preparou essa comida. Que não falte comida na mesa de ninguém nesse mundo. E que esse alimento me dê forças pra servir a minha comunidade, lutar pelo que é justo e transformar o mundo.” Quando fiz a prece naquela noite me dei conta que pela primeira vez na vida a pessoa que plantou, colheu e preparou os alimentos no meu prato tinha sido eu mesma. 

Minha ambição não é plantar absolutamente tudo que como. Como já disse, isso é bem difícil e não acho que seja algo a ser buscado. É bem mais interessante que cada pessoa na comunidade plante coisas diferentes, pra aumentar a diversidade na nossa alimentação. E pretendo continuar comendo azeite das oliveiras do sul da França ou plantadas pelo povo palestino. Mas desde que me mudei pra periferia de Paris, no final de 2019, e comecei a militar nesse território, passei a acreditar que plantar uma parte, mesmo pequena, do que comemos é essencial. Pra nossa resiliência, pra melhorar a qualidade da nossa alimentação, pra diminuir nossa dependência do dinheiro pra comer, pra participar da luta pela preservação de sementes e contra a mudança climática, pra aumentar a biodiversidade e refrescar nossos bairros e cidades. E por tantos outros motivos! Como estreitar os laços com as pessoas da nossa comunidade. Desde que começamos a plantar no quintal passamos a conversar com a vizinha e o vizinho do lado, que também plantam. Trocamos mudas, conselhos e, toda noite, enquanto aguamos nossos vegetais, trocamos dois dedos de prosa por cima da cerca de madeira que separa nossos quintais. As vizinhas são do Bangladesh e, assim como eu, plantam a comida que cresce no seu território natal pra matar a saudade de casa e se reconectar com uma parte de sua identidade através dos vegetais que cultivam. 

Passei quatro meses trabalhando em uma mercearia fina no centro de Paris, em um bairro onde só mora gente que tem grana. Essa mercearia vendia também por aplicativo (Uber Eats) e entrei em choque quando descobri esse mundo. Talvez isso surpreenda vocês, mas nunca pedi comida por aplicativo e até começar a trabalhar lá, pensava que só restaurante usava esse serviço. A mercearia onde eu trabalhei vendia chocolate, queijos, salgadinhos, biscoitos, leites, sorvetes (tudo 100% vegetal)… Não tinha verduras nem frutas, só coisas industrializadas. E muita gente pedia (por aplicativo) coisas que em Paris basta descer do seu prédio e caminhar até a esquina pra encontrar. As pessoas pediam sorvetes, chocolates e biscoitos feitos com ingredientes cultivados nos quatro cantos do mundo, preparados em algum lugar longe dos nossos olhos, por pessoas que não conhecemos, embalados e entregues por outras pessoas invisíveis. A fetichização da mercadoria (e o alimento-mercadoria) no seu ponto máximo. Poucos minutos separam a vontade de comer chips de batata e o pacote que aparece como mágica na porta do apartamento daquelas pessoas, com apenas uma etapa no meio: o clique no aplicativo dentro do celular. A magia de esconder dos olhos da consumidora parisiense a exploração dos corpos racializados explorados no processo. 

Não acho que só somos capazes de apreciar o que vem com dificuldade, mas como não pensar que aqueles chips de batata serão devorados em segundos, sem nem um pensamento pro mundo de pessoas e lugares envolvidos na sua produção e logo depois serão esquecidos? 

As batatas que plantamos aqui, e que estavam no meu prato naquela noite, vieram da horta de uma amiga e camarada que tem um lote nos Jardins Operários a poucos minutos de caminhada da nossa casa. Minhas batatas me conectavam a ela e à luta pra salvar os Jardins, o último pedaço de terra cultivada na cidade, que alimenta a classe trabalhadora e imigrante daqui há mais de cem anos. Tinham o sabor da alegria de ter conseguido fazer nossa horta vingar. Nossa primeira horta. Comemos devagar, Anne e eu, apreciando cada colherada. De vez em quando nos olhávamos, com um sorriso gigante no rosto, e repetíamos o quanto aquilo era gostoso. Talvez nossas batatas não tivessem nada de excepcional, mas elas ficarão gravadas na minha memória e quando penso naquele jantar, ainda me alegro.

Foi uma refeição das mais simples, mas naquela noite alimentei a alma. E podem ter certeza que a refeição me encheu de forças pra mudar o mundo e seguir plantando a revolução.

A toada da trabalhadora explorada e esgotada

Agora que já posso contar as semanas que faltam pra terminar o trabalho na mercearia nos dedos de uma mão, sinto que posso começar a falar sobre essa experiência aqui. 

No início de abril iniciei um contrato de quatro meses como vendedora em uma mercearia fina e totalmente vegetal. Eu já era cliente ali há anos e sempre simpatizei com a dona da mercearia. Então quando minha situação financeira chegou num ponto crítico e eu comecei a procurar bicos pra complementar a renda (desde que criei a campanha de financiamento no Apoia-se, em 2020, essa tem sido a minha única fonte de renda), o anúncio dessa mercearia vegetal procurando vendedora me pareceu exatamente o que eu precisava no momento. Ter um salário fixo, mesmo por um período de apenas quatro meses, está me ajudando a desafogar um pouco e ter tranquilidade financeira, embora passageira. Mas, e isso não vai surpreender a galera que bate ponto todos os dias, isso vem com muitos custos. 

Apesar da carga de trabalho semanal na França ser de 35 horas, trabalho onze horas por dia, com uma pausa de uma hora no meio (aceito todas as horas extras, porque preciso do dinheiro). Gasto quase duas horas diárias com deslocamento. Trabalho nos fins de semana. Nos meus dias de folga estou tão cansada que mal consigo recuperar a força que me foi sugada durante a semana e não consigo fazer mais nada. Parei de participar das atividades do meu coletivo e os posts semanais aqui viraram quinzenais. Fora que a vida pessoal foi freada bruscamente. Ver as amigas, dar apoio às pessoas na minha comunidade e até ligar pra minha família ficou muito mais difícil, pois minha energia, mesmo nos dias em que não trabalho, parece que não consegue se restaurar. Agora as coisas mais simples, como responder o áudio que a amiga enviou há duas semanas, muitas vezes representam algo que vai além das minhas forças.

Tenho muito o que contar sobre as descobertas que fiz trabalhando na mercearia. O que pude observar do “mercado vegano” e das pessoas veganas em Paris, mas, principalmente, sobre as condições de trabalho e exploração da mão de obra imigrante aqui na Europa (Uber Eats, tô olhando pra você!). Pra minha grande surpresa, esse trabalho se tornou uma pesquisa de campo. Quem diria que fazer um bico de vendedora, impulsionada pela insegurança financeira na qual me encontro, forneceria material que daria pra se transformar em uma tese em sociologia e outra em psicologia! 

Também ganhei novos amigos refugiados (os entregadores de aplicativos) e novas redes de solidariedade estão se tecendo entre nós, mas isso tudo fica pra outro dia. Só quando terminar meu contrato e eu tiver descansado por algumas semanas conseguirei voltar aqui e escrever sobre isso. 

Como eu disse, não estou me referindo a nada que saia do ordinário, infelizmente. Quem trabalha longas horas, fazendo um trabalho físico e pega transporte público todos os dias conhece muito bem essa toada. A toada da trabalhadora explorada e esgotada. 

Mas talvez você, me lendo agora, não tenha vivido experiências de trabalho similares. Talvez você nem faça parte da classe trabalhadora. Então deixa eu abrir uma pequena janela no meu cotidiano pra te dar uma ideia do que estou falando. Vou contar como foi o meu último dia trabalhado, que embora tenha sido particularmente difícil, não foi muito diferente de todos os outros.

O último dia da minha semana de trabalho (que inclui o fim de semana) é sempre o mais difícil porque traz acumulado o cansaço dos dias anteriores. Nesse ponto eu já levanto da cama cansada e me dou conta que as oito horas de sono já não são suficiente pra descansar o corpo: a sola dos pés doem quando eles encontram o chão do quarto. 

Todo dia eu faço tudo sempre igual, como canta Chico Buarque. Levanto, tomo banho, faço o café, como e caminho até o metrô. A repetição às vezes me desorienta e parece que estou num daqueles filmes em que a pessoa vive sempre o mesmo dia, presa num looping temporal. 

Felizmente não teve muitas entregas de mercadoria naquele dia. Na véspera tínhamos recebido oito entregas grandes e passei horas e horas carregando caixas. Passo boa parte do dia levantando peso, desembalando e embalando coisas, subindo e descendo escada (o depósito fica no subsolo, sem elevador de carga), colocando mercadorias nas prateleiras… Só sento quando vou ao banheiro ou quando paro pra comer. A mercearia também vende por aplicativo (Uber Eats), então muita gente que antes se deslocava pra fazer suas compras, agora pede pelo aplicativo. Isso aumentou muito o nosso trabalho de vendedora, pois além de cuidar das clientes que estão presentes na loja, também temos que preparar as comandas das clientes que pedem pelo aplicativo, correndo contra o tempo quando a loja está cheia e muitas comandas chegam de uma vez (temos apenas 20 minutos pra preparar uma comanda). Hoje uma parte considerável das nossas vendas se faz via Uber Eats e é por isso que acabei me aproximando dos entregadores (todos refugiados).

Depois de 10 horas em pé, de muito sobe e desce de escada, várias comandas preparadas e algumas interações delicadas com clientes obtusas (felizmente nesse dia não tive que lidar com comportamentos sexistas de clientes homens), fui pegar o metrô de volta pra casa, feliz por estar, enfim, de folga. Mas a alegria da trabalhadora não vem assim tão facilmente.

Preciso pegar dois metrôs pra chegar em casa, com uma baldeação em uma estação bem grande, e a linha que chega até a minha periferia é (surpresa!) uma das piores da grande Paris. Os trens são tão velhos e barulhentos que já desisti de escutar podcasts ou música no caminho do trabalho, pois ou coloco o volume dos fones no máximo e corro o risco de estourar os tímpanos ou não consigo escutar nadinha. Tem sempre problemas técnicos que fazem com que eles atrasem ou parem entre duas estações. Acho uma graça quando o condutor do metrô anuncia no alto falante: “Senhoras e senhores, ocorreu um problema técnico e o trem vai estacionar alguns minutos. Peço que esperem”, como se a gente tivesse a possibilidade de abrir a porta do metrô, entranhado nos subsolos da malha metroviária, e continuar a viagem andando! Algumas linhas de metrô em Paris tem ar-condicionado, mas claro que a minha linha não tem. E, pra completar, é uma linha que está sempre, sempre lotada, pois transporta a galera migrante periférica que trabalha em Paris (presente!). E é muita gente. 

Na hora de fazer a baldeação percebi que a plataforma estava ainda mais cheia do que o de costume e que o próximo trem estava atrasado. Falta de sorte minha, passei a ter dores de cabeças agudas há alguns dias e a mistura de cansaço e fome fizeram com que a minha cabeça, que estava doendo num nível suportável até então, passasse a latejar. Mas eu teria que coloca-la, latejando ou não, dentro do próximo metrô. Não sei como consegui entrar no vagão, mas juro que nunca peguei um transporte tão cheio. E parece que mesmo depois que o negócio lota total, mais gente ainda consegue se enfiar dentro. Transporte público ri na cara da lei da física que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. 

Então imagina aí. Lá estava eu, exausta da longa semana de trabalho, no final de mais um dia de batente, em pé durante todo o trajeto de volta pra casa, tão apertada que você pensa “se eu respirar fundo, eu arroto!” e que torna risível o instinto de se segurar nas barras de ferro (como vai cair se não tem espaço no chão, minha filha?) quando… uma briga entre dois homens explode do meu lado. Você não sabe quem começou, mas uma coisa é certa: vai sobrar porrada pro seu lado porque não dá pra fugir. Gritaria, empurra-empurra, Jesus-Maria-José! vou-voltar-pra-casa-com-um-olho-roxo-era-só-o-que-me-faltava! Até que um jovem bota moral nos cabras que estavam brigado (por espaço, obviamente!) e a nossa parte do vagão dá um suspiro de alívio. Tá todo mundo bem? Tá todo mundo bem. Obrigada, jovem que botou moral. Mas não é que menos de trinta segundos depois outra briga explode, na outra ponta do vagão?

Nesse ponto minha dor de cabeça tinha piorado muito, a fome roncava alto e me deu vontade de chorar porque parecia que eu não ia chegar nunca mais em casa. Mas nada que não pudesse ficar pior. Pane de eletricidade no metrô, circulação interrompida por alguns minutos, calor dos infernos (mas não baixa a máscara que a Covid tá voltando com tudo!) e, sendo a trabalhadora uma mulher, você achava que ela ia conseguir chegar em casa sem ser vítima ou presenciar uma situação de violência sexista? Quem achou que sim, é homem.  

Apesar do vagão estar menos lotado, pois já estávamos chegando no final da linha, um homem começou a invadir o espaço da mulher do meu lado, jogando o seu corpo sobre o dela. Ela reage e pede pra ele se afastar, diz que agora tem espaço ao redor dele, o vagão inteiro finge não ouvir, o homem se recusa a sair de cima da mulher, eu vou pro lado da mulher e tento protege-la, outro homem se aproxima… pra defender o cara assediando ela! Não satisfeito ele começa a insultar a mulher que estava sofrendo a agressão (minha nossa senhora do perpétuo socorro, tira nós desse vagão!). Finalmente chegamos no terminal, o trem ainda cheio, e eu acompanhei a moça até a saída pra garantir que ela estava bem.

Fiz os 10 minutos de caminhada que separam o terminal do metrô da minha casa quase me arrastando e cheguei em casa “só o durex”, como dizia um colega gaúcho. Fisicamente exausta, emocionalmente chacoalhada, faminta e com a cabeça a ponto de explodir. Mas foi só um dia comum na vida da trabalhadora mulher, migrante e que mora na periferia. 

De amor e revolta

Outro dia eu encontrei esse texto, que escrevi há uns dois anos pra postar no meu perfil no Instagram, hoje defunto. Está mais atual do que nunca e veja que eu estava tentando fazer a minha raiva caber nos poucos caracteres permitidos nas legendas do Instagram…

Nosso sistema político e econômico é estruturalmente injusto: ele foi criado pra ser assim. Não é um erro de cálculo que pode ser consertado com uma versão “consciente” ou “verde”. Exploração (humana, não-humana e da terra) está no DNA do capitalismo. Desigualdade social é a condição pra que ele exista, beneficiando o 1% enquanto os outros 99% são esmagados. Na sua lógica irracional de expansão infinita e lucro acima de tudo/todos o capitalismo destrói as condições pra que a vida, como conhecemos hoje, continue existindo. Sair do capitalismo é uma questão de sobrevivência.

Diante dessa urgência sentir raiva é uma reação natural. Desconfio de quem demoniza a raiva e prega o “vamos amar a todos em qualquer circunstância / você é a única responsável pelo que sente, então escolha sentimentos bons”. Esse discurso serve dois propósitos. 1- Controlar a narrativa e taxar de radical, enraivado e irracional quem milita por uma mudança sistêmica e não se contenta com migalhas na forma de reformas superficiais. Só eles, que fecham com o capital e vendem seus princípios, tem uma postura “sensata”. Nós somos, na melhor das hipóteses, ingênuas, na pior, impedimos o suposto avanço que eles estão negociando por nós. 2- Suprimir nossa revolta e nos manter dóceis e obedientes, sendo exploradas e massacradas enquanto internamente cultivamos o amor e a compaixão pelos nossos opressores. Assim o sistema injusto se mantém protegido.

Só quem se beneficia da desigualdade social não tem motivos pra estar com raiva. Não, eu não mando coraçãozinho pra quem explora trabalhadores até que eles caiam de exaustão, enquanto sua fortuna se multiplica. Não faço parceria com quem abre fogo contra camponeses e grila território indígena pra expandir seu latifúndio. Não dialogo com quem mata milhões de animais por ano. Pra essas pessoas só tenho um recado: estamos em guerra.

E a minha raiva não vem de uma suposta falta de evolução espiritual ou de estratégia. Ela vem do amor. Amor pelo povo, tão sofrido. Pelos animais, assassinados aos bilhões todo ano. Amor pela natureza, que grita socorro. Amor pela justiça. 

Com amor, revolta e ira, sigo na luta.  

(Tradução pro cartaz na foto acima: “Fichado, com raiva, sem grana, mas fascista, não! Estamos aqui.” Veja que em francês essas palavras são bem próximas.)

Como cozinhar pra semana inteira

A minha linguagem do amor primária é “palavras de afirmação” (eu convido todo mundo na minha vida a fazer o teste e te incentivo a fazê-lo também). Mas a segunda é “atos de serviço” e é aqui que entra a minha maneira preferida de mostrar amor por alguém: cozinhando. Eu cozinho quando quero levar reconforto pra alguém sofrendo de males do corpo ou da alma, pra aliviar a dor de um pé na bunda, pra alegrar alguém no final de um dia longo e exaustivo, pra conquistar o coração da mulher que decidiu habitar os meus pensamentos… E ontem passei a tarde cozinhando pra uma camarada de coletivo que torceu o tornozelo e está acamada há dias. 

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Beba a minha terra

Quando a busca por pertencimento passa por ervas selvagens ou a história de refugiadas palestinas conectando-se às suas terras ancestrais por meio de um xícara de chá de ervas.

Para refugiados e refugiadas palestinas, o chá de ervas representa mais, muito mais, do que uma mistura de plantas e água quente. Elas bebem o “Balad”, a terra ancestral da qual foram expulsas. Elas bebem as lembranças da infância, as canções e as histórias das gerações que vieram antes delas. Elas bebem as colinas e vales proibidos que aparecem nos olhos úmidos de suas avós. E no caso de Sidra* e sua família, também bebem o suor, a ansiedade e o sorriso cauteloso de um camponês que atravessa muros, fronteiras e o poder colonial que entrincheira o povo palestino para trazer-lhes um pedaço daquela terra proibida, presente em um punhado de ervas.

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Onde o meu coração se sente em casa

Ontem foi o aniversário de 74 anos da Nakba (catástrofe” em Árabe), a triste data que lembra o momento em que 2/3 da população palestina foi expulsa de suas terras e se tornou refugiada. Quando a maior parte da Palestina histórica foi ocupada e colonizada. Mas eu não queria falar sobre isso hoje. Gostaria de trazer um post dos arquivos Papacapim que é muito pessoal e fala sobre Jerusalém, a minha cidade preferida no mundo. A que me fez me apaixonar pela Palestina, sua comida, seu povo e sua cultura. O lugar onde, quando meus pés tocam a terra, minhas narinas sentem o cheiro do pão com gergelim assado dentro dos muros da cidade antiga, e meus olhos encontram as pedras douradas das construções históricas, meu coração se sente em casa.

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Só pela subversão

Continuando a série “requentando posts antigos porque esse blog tem mais de 12 anos e a maior parte das pessoas me lendo agora não tem ideia das coisas bacanas que já postei aqui”, vou seguir no tema “Palestina” porque, como expliquei no último post, em breve será mais um triste aniversário da ocupação israelense naquelas terras. Gostaria que a Palestina não aparecesse na timeline de vocês apenas quando a violência da colonização israelense chega em picos tão elevados que volta a ser manchete. E sobre os posts que escrevi na Palestina, o de hoje é, até hoje, o que mais deu o que falar na história do blog.

Mas de dez anos depois, ainda tem gente comentando esse post. Já encontrei até gente que estudou ele na faculdade!! Não sei que professora levou meu texto pras suas estudantes (em que curso?), mas agradeço de coração. A história de hoje foi só uma das aventuras lindas que vivi, ou testemunhei, por lá, mas segue sendo um dos meus posts preferidos do Papacapim, no top 5. Foi a primeira vez que escrevi sobre a Palestina no blog e como o retorno das leitoras foi extremamente positivo, à partir daí passei a falar regularmente da luta do povo palestino aqui. Esse post foi um marco e um divisor de águas pro blog.

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Sobre resistência

Porque hoje é um dia difícil aqui na França e o risco do domingo terminar com a eleição de uma neofascista como a próxima presidente do país é grande…

Porque comecei um trabalho novo no início do mês e desde então tenho jornadas de trabalho de 10h30 e já não consigo mais manter o antigo ritmo de posts aqui…

Porque estamos atravessando mais uma onda de crimes do colonialismo israelense na Palestina (apesar da violência colonial nunca dar trégua pro povo palestino, só quando ela atinge picos altos a mídia se interessa e isso vira notícia)…

Porque o pessoal que chegou no blog nos últimos tempos não costuma ler os posts antigos e tem muito material interessante, emocionante e inspirador nos arquivos do Papacapim e acho uma pena que ele não chegue a mais pessoas…

Gostaria de repostar a história de três amigas palestinas, que postei separadamente anos atrás, numa série que chamei de “Histórias Palestinas”. Peguem um café, um chá, se instalem confortavelmente no sofá, respirem fundo e se preparem pra revolta, a emoção e, espero, a inspiração que vocês sentirão ao longo dos próximos parágrafos. Estamos atravessando tempos difíceis, mas não podemos abandonar a luta. Sempre que o desespero quer tomar conta de mim lembro das pessoas palestinas, que seguem resistindo apesar de tudo. Se elas ainda estão de pé, lutando, quem sou eu pra baixar os braços e me deixar invadir pela desesperança?

Khoulud, de véu rosa, com a mãe, a avó e duas filhas. Foto Anne Paq.
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Os últimos dias

Volto pra França daqui a alguns dias e tenho muita coisa pra contar sobre a passagem pelo Brasil. As duas últimas semanas foram cheias de encontros e projetos com potencial de fazer grandes transformações mas será necessário algum tempo antes de conseguir compartilhar tudo. Os dias aqui em Natal seguem cheios de tarefas, a principal sendo cuidar da minha mãe, e por isso me sinto exausta em permanência. Tô aqui economizando forças pra segurar as pontas até o momento do embarque e como a longa travessia entre Natal e minha casa, em Paris, levará quase 24 horas, com certeza vou precisar de uns dias de descanso quando chegar do outro lado. Então hoje deixo vocês com alguns momentos de alegria que vivi entre Natal, São Paulo e Recife, antes de voltar à nossa programação normal de receitas e reflexões.

E também tem maracujá

Estou mais uma vez em terras potiguares. É o meu terceiro dia aqui e meu corpo ainda não se acostumou com a temperatura do nosso verão. O choque térmico foi grande e lembrarei de evitar, no futuro, passar do inverno francês pro verão brasileiro. Mas o motivo das minhas vindas ao Brasil terem se tornado mais frequentes é porque preciso cuidar da minha mãe, então passei a planejar essas viagens de acordo com as necessidades daqui e as possibilidades de lá, não com o período do ano em que a temperatura é mais agradável.

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Feijão acebolado

Feijão é bom. Feijão é a base da alimentação da vegana. Feijão é a proteína do proletariado. Feijão (leguminosas em geral) é a solução pra que comer animais se torne obsoleto. E tem mais.

-Ele fixa nitrogênio no solo. Plantado em rotação melhora o rendimento das outras culturas e diminui a necessidade de fertilizantes.

-Pra produzir 1kg de lentilhas são necessários 1250 L de água. Pra produzir 1kg de carne de frango: 4325 L. 1kg de carne de vaca: 13 mil L (fonte: FAO)

-Ele absorve carbono, reduzindo o efeito estufa.

-É rico em proteínas de qualidade, de fácil digestão, pobre em gordura e cheio de fibras.

-Essas fibras controlam o nível de açúcar no sangue, apesar dele ser rico em carboidratos, dando sensação de saciedade por mais tempo (ótimo parceiro pra diabéticas).

-É a proteína mais acessível economicamente. Em períodos de crise, quando a população não consegue mais comprar animais, o feijão continua no prato. Junto com o fiel arroz, é uma proteína completa, com todos os aminoácidos essenciais.

-É o alimento que pode tratar ao mesmo tempo a subnutrição e os problemas de saúde ligados a dietas pobres. É um guerreiro na luta contra a fome e a fome oculta.

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Depois que ela se foi

Ontem eu estava limpando meu computador, que não para de me enviar mensagens dizendo que não tem mais espaço pra nada por aqui, quando achei essa foto feita há exatamente um ano.

Eu sempre tive medo de cachorros. Um velho trauma de infância, nada grave, mas suficiente pra ter me feito temer aproximação com cães durante quase toda a minha vida. Até que Nina entrou pra família. A história de como ela chegou até nós é bonita, então vou contar.

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3 de janeiro

Eu não sei como foi o ano pra vocês, mas 2021 me deixou sentindo como se eu tivesse caído de um caminhão em movimento. Detalhe: a queda foi no meio de um cruzamento movimentado, então nem deu tempo de parar e conferir se estava tudo bem. Já tive que levantar, bater a poeira da bunda e correr pra não ser atropelada. Porque apesar dos meus pedidos encarecidos, 2022 não quis esperar e já está aqui. Eu não estou pronta, mas bora lá.

Em 2021 a situação de saúde da minha mãe, que tem Alzheimer, piorou e estive no Brasil duas vezes. Foram muitas horas com uma máscara FFP2 na cara, atravessando o oceano de cá pra lá e de lá pra cá. Quarentenas em cada ponto de chegada. E impossibilidade de visitar as amizades e familiares que moram em outras cidades. Daqui a um mês estarei no Brasil novamente, mas fico, mais uma vez, só em Natal. Dependendo da situação, quem sabe chego até Recife? 

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A fórmula do arroz de forno

Eu acredito cada vez menos em receitas e mais em “fórmulas”. Já compartilhei a fórmula da sopa e da salada-refeição aqui, mas como a gente não ganha amigues com salada (quem viu os Simpsons vai entender), hoje vim falar de uma fórmula quase mágica que vai limpar sua geladeira, produzir uma refeição nutritiva em pouco tempo e impressionar as gatinhas (e amigues). 

Não é segredo nessa internet que eu não sou a fã mais entusiasmada de arroz. Já me recomendaram inclusive procurar ajuda psicológica por causa disso (ah, as coisas estranhas que me escreviam no IG…). A verdade é que acho o bichinho sem graça. Não por acaso eu adoro risotto e arroz de forno, pois são versões “com graça” desse cereal. Quando misturo arroz com legumes e um molho, a cuíca muda o tom.

Como falei, não se trata exatamente de uma receita, mas de uma fórmula. Não se deixe intimidar pelo número de frases nas instruções. O processo é extremamente simples e juro que você só vai precisar ler tudo uma única vez. Ao entender o princípio, nunca mais será necessário voltar aqui pra seguir as instruções. E esse é um dos objetivos principais do meu trabalho no blog: ensinar a cozinhar de uma maneira emancipatória e incentivar a autonomia alimentar de vocês. 

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Pra se organizar e fortalecer o movimento

Hoje a pauta é: como fortalecer o veganismo popular e se organizar dentro do movimento vegano. Bora lá. 

Vocês sabiam que nos dias 27 e 28 de novembro aconteceu o segundo ENUVA, o Encontro Nacional da União Vegana de Ativismo? Foi todo on-line (a pandemia nos obrigou) e gratuito, reuniu pessoas de diferentes países e renovou nossa esperança. Bem no espírito da UVA. Se você perdeu as mesas/conversas, ou se viu e quer rever, tá tudo no nosso canal do YouTube

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O que não dizer pras mães

Acabo de voltar do aeroporto, onde fui deixar minha amiga Mariana, que estava me visitando aqui em Paris. Ela é a minha amiga mais antiga, além da primeira lá de Natal a vir me visitar aqui na França e essa foi a razão do meu sumiço aqui do blog nas últimas duas semanas. Eu estava levando ela pra conhecer Paris, mas também compartilhando um pouco da minha vida aqui. Logo no primeiro dia levei a bichinha pra uma ocupação, onde eu tinha uma reunião pra escrever (a muitas mãos) um livreto sobre antiespecismo e luta decolonial com um coletivo antispecista e anarquista aqui da periferia. À partir daí foi só aventuras! 

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Biodiversidade e produtos vegetais ultraprocessados


Essa semana a ocupação que também serve de base pro nosso coletivo anarco recebeu caixas e mais caixas de hambúrguer vegetal que iriam pro descarte. Falei sobre comida de descarte, e como isso alimenta não só as camaradas do coletivo, mas também as pessoas ao nosso redor, nesse post. Além da comida que pegamos regularmente (frutas e verduras da feira, todo tipo de alimento transformado que pegamos do descarte de supermercados) duas vezes por semana, de vez em quando uma montanha de alguma coisa que acabaria no lixo chega até nós. Umas semanas atrás foram 2 toneladas (sim, literalmente) de cogumelo orgânico congelado. Semana passada foram centenas de quilos de hambúrgueres vegetais, também congelados. Eram hambúrgueres feitos de proteína de soja com beterraba, temperos e alguns aditivos. Provei pela primeira vez ontem e o sabor é tão ruim que agora não sei o que fazer com o enorme saco de hambúrguer no congelador. 


Enquanto eu tentava tragar o intragável (pra que o jantar não acabasse no lixo), me vi pensando, mais uma vez, na obsessão geral com hambúrgueres vegetais e no mantra do veganismo liberal (“Quanto mais produtos veganos industrializados, melhor pros animais.”). Já escrevi longamente sobre como essa visão liberal do veganismo vai contra os objetivos do movimento antiespecista nesse post e nesse post . Mas hoje eu queria chamar a sua atenção pra algo que é frequentemente ignorado nessa discussão: a questão da biodiversidade.

Moqueca de caju, arroz da terra, feijão verde, farofa de couve e bolinho de macaxeira
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Comida como ferramenta de ‘conversão’

Durante os primeiros anos de veganismo, acreditei que oferecer pratos veganos deliciosos pras pessoas ao meu redor seria a porta de entrada delas pra causa animal. Talvez eu tenha sentido essa responsabilidade ainda mais forte porque cozinho profissionalmente. Então não perdia nenhuma oportunidade (aniversários, reuniões de família) de passar horas (às vezes dias) preparando menus, comprando ingredientes e cozinhando pra impressionar as não-veganas. Nos jantares onde cada convidada leva um prato, eu levava 4 e era sempre a mais cansada, a que trabalhava mais, a que gastava mais com ingredientes… As pessoas comiam minha comida, sim, e adoravam. Porém minhas preparações vegetais dividiam espaço nos seus pratos com animais e seus derivados. Nunca ninguém deixou de comer o animal assado, ou a sobremesa entupida de leite condensado, porque tinha pratos veganos deliciosos na mesa.

Quiche de cogumelo e espinafre, usando esse método
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Sabemos construir também. E plantar.

No último dia em que eu estive na ocupação dos Jardins Operários de Aubervillers teve uma reunião do coletivo de defesa dos jardins.  Eu saí da reunião frustrada pela maneira como a pauta principal da reunião tinha sido conduzida e, principalmente, pelas dificuldades constantes que enfrentamos quando construímos uma luta com um grupo de pessoas vindas de horizontes tão diferentes. Eu viajaria pro Brasil dali a dois dias e ao me despedir das camaradas pedia a todas que seguissem resistindo, pois eu queria ver a ocupação de pé quando voltasse. Foi a última vez que eu vi aquela terra coberta de árvores, legumes e frutas.

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