Onde o meu coração se sente em casa

Ontem foi o aniversário de 74 anos da Nakba (catástrofe” em Árabe), a triste data que lembra o momento em que 2/3 da população palestina foi expulsa de suas terras e se tornou refugiada. Quando a maior parte da Palestina histórica foi ocupada e colonizada. Mas eu não queria falar sobre isso hoje. Gostaria de trazer um post dos arquivos Papacapim que é muito pessoal e fala sobre Jerusalém, a minha cidade preferida no mundo. A que me fez me apaixonar pela Palestina, sua comida, seu povo e sua cultura. O lugar onde, quando meus pés tocam a terra, minhas narinas sentem o cheiro do pão com gergelim assado dentro dos muros da cidade antiga, e meus olhos encontram as pedras douradas das construções históricas, meu coração se sente em casa.

Me apaixonar não estava nos meus planos

Mês passado fez seis anos que cheguei na Palestina de mala e cuia, decidida a morar na terra santa. Ainda lembro perfeitamente desse dia. Na verdade lembro perfeitamente, com minúcia de detalhes, dos dias que antecederam minha chegada também. E Jerusalém está no coração desses eventos. Já contei pra vocês como fui parar na Palestina? Então procurem um assento confortável e uma caneca de chá que lá vem história.

A primeira vez que coloquei os pés em Jerusalém foi no final de 2007. Fazia alguns anos que a vontade de visitar a Palestina me acompanhava. Culpa de um episódio aparentemente banal. Um dia eu estava no aeroporto, indo de Paris pra Budapeste, e percebi que não tinha levado nada pra ler durante a viagem. Passei pelo quiosque de livros e encontrei uma revista de antropologia que tinha dedicado uma edição inteira à Palestina. História, política, conflito, muro, ocupação, tudo o que eu sempre quis saber sobre o assunto estava ali. Até hoje penso onde estaria e como seria minha vida se eu não tivesse encontrado aquela revista. Tudo que eu não teria vivido, todas as pessoas que eu não teria conhecido… Nunca se sabe qual pequeno detalhe vai mudar a trajetória da sua existência.

A leitura daquela revista me deixou em estado de choque durante meses. Eu perdi noites e mais noites de sono pensando nos palestinos, na ocupação israelense e em como a ignorância nos faz ser cúmplices de tantas injustiças mundo afora. E uma vontade irresistível de visitar a Palestina se instalou no meu peito.

Anos depois estava eu mais uma vez no aeroporto em Paris, dessa vez indo passar três semanas na Palestina e em Israel. Estava indo fazer um trabalho voluntário de duas semanas em Belém, depois passaria uma semana visitando algumas cidades israelenses, porque eu queria conhecer os dois lados do muro. Na fila do check in conversei com um senhor palestino de Nazaré. Ele contou que estava indo visitar a família, eu expliquei que estava indo fazer um trabalho voluntário na Palestina. O senhor arregalou os olhos e disse: “Minha filha, não diga isso no aeroporto, senão você terá problemas com a imigração israelense”. Eu tinha lido depoimentos de pessoas que tinham tido dificuldades pra sair do aeroporto porque disseram que iam visitar a Palestina, mas tinha decidido não mentir. Culpa da minha mãe.

Quando eu era pequena minha mãe contou uma história que aconteceu ali mesmo, na terra santa. Ela disse que depois do nascimento de Jesus, Maria, José e o filho recém nascido precisaram fugir de Belém porque o rei malvado (Herodes) tinha ordenado que todos os meninos da região fossem assassinados. Ele estava com medo de perder o trono pro bebê que tinha acabado de nascer. Maria escondeu Jesus num pote (seco!) e subiram os três na carroça rumo à Nazaré. No caminho uma patrulha romana parou a carroça e perguntou à Maria: “O que tem dentro desse pote?”. Maria sabia que se o filho fosse descoberto seria imediatamente assassinado, então perguntou a Deus o que fazer. Deus falou no ouvido dela: “Passe com a verdade.” Então Maria obedeceu e disse: “Dentro do pote tem um menino”. Os soldados romanos caíram na risada e disseram: “Se tivesse um menino aí você nunca nos contaria, pois sabe muito bem que estamos matando todos os meninos da região.” E eles passaram sem problemas.

Eu sabia perfeitamente que minha mãe contava aquilo pra que eu nunca mentisse pra ela, mas não sei por que cargas d’água me senti toda iluminada naquele dia e decidi que já que eu estava indo pra Belém, eu ia passar com a verdade no aeroporto. Acontece que a moça da imigração israelense não reagiu como os soldados romanos da história da minha mãe. Quando eu disse que estava indo visitar Belém ela fechou a cara e declarou: ‘Eu não quero você em Israel’. E antes que eu pudesse responder que depois de ter sido acolhida com tanta hostilidade eu é que não queria mais e que por favor me deixasse passar que eu trataria de ficar só na Palestina, policiais tomaram meu passaporte e me levaram pra uma salinha onde fui interrogada por várias pessoas, durante duas horas. Entre uma pergunta e outra (perguntaram o nome do meu pai mais de vinte vezes e como eles nunca pareciam convencidos, eu também comecei a duvidar. Será que era aquele mesmo o nome do meu pai?) minha mente ia de ‘nem cheguei e já vão me deportar?’ pra ‘mas que crime eu cometi, gente?’ pra ‘vão me deportar agora’ pra ‘mas eu não fiz nada de errado’ etc. Parece que o nome disso é tortura psicológica.

Essa foi a primeira de muitas experiências traumáticas naquele aeroporto. Eu ainda não sabia, mas aquela estava longe de ser a pior. Hoje eu sei que tem situações onde passar com a verdade NÃO é uma boa ideia e se o próprio Jesus tentasse cruzar o checkpoint de Belém hoje ele seria impedido (um palestino barbudo disposto a morrer como mártir?! HÁ!). Quando finalmente me liberaram fui procurar minha mala e qual não foi a minha surpresa quando vi o senhor palestino sentadinho do lado da esteira. Ele tinha ficado me esperando aquele tempo todo. Quando me viu falou: “Minha filha, fiquei com medo de não te deixarem passar. Já estava perdendo a esperança.” Ele me mostrou onde pegar a van que me levaria pra Jerusalém e me deu o telefone da família em Nazaré, caso eu precisasse de alguma coisa. Nas horas mais difíceis da minha vida sempre apareceu uma alma boa pra oferecer reconforto.

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Desci da van uma hora depois, em frente ao portão de Damasco, uma das entradas da cidade antiga de Jerusalém. A combinação avião + experiência traumática no aeroporto + van tinha me deixado tonta, mas quando olhei pra muralha que cerca a cidade antiga e me vi no meio da agitação que é essa parte da cidade meu coração disparou. Dois segundos depois eu estava apaixonada pela cidade. Eu tinha ido parar ali pra descobrir outra realidade e pra mostrar solidariedade a um povo. Me apaixonar não estava nos meus planos.

Três semanas depois, pouco antes de voltar pra Paris, eu sentei naquela muralha e, com a cidade antiga aos meus pés, descobri que a partir daquele momento a vida na França não fazia mais sentido. Jerusalém foi a cidade que me fez ficar na Palestina. Apesar de sempre ter morado em Belém, que fica a poucos quilômetros ao sul, os momentos mais felizes e mais difíceis dos cinco anos que morei lá aconteceram em Jerusalém. Pensei em deixar a Palestina algumas vezes e, coincidentemente (ou não), sempre mudei de ideia em Jerusalém.

Os ativistas estrangeiros que conheci na Palestina escapavam pra Tel Aviv quando queriam férias da loucura que é viver sob ocupação militar. Bares, festas, praia e o clima mais livre e menos religioso da cidade atraem muita gente. Eu nunca gostei de Tel Aviv e quando queria respirar outros ares atravessava o checkpoint de Belém e subia no ônibus que me levava de volta ao portão de Damasco, onde tudo começou. Estranhamente a atmosfera carregada de religião (ou melhor, de religiões, no plural) nunca me oprimiu. Preciso dizer que nunca me aventurei no bairro judeu ultra ortodoxo da cidade e minhas andanças se resumiam à cidade antiga, Salahadim Street e, mais raramente, Jaffa Street, na parte ocidental. Eu evitava a parte ocidental da cidade que além de ser menos charmosa, abriga o Ministério do Interior, onde eu ia renovar o visto todos os anos e onde me ofereceram algumas das piores horas da minha estada na região. Até hoje sinto vibrações negativas quando passo pela área. O meu coração estava no caos e na overdose de cores e sabores de Jerusalém Oriental, especialmente na cidade antiga.

Lá fiz alguns dos amigos mais queridos que tenho hoje e tive a honra de desfrutar da imensa generosidade deles, o que salvou a minha vida uma vez. Lá eu provei comidas memoráveis, incluindo o melhor hummus do mundo (tem muita controvérsia sobre esse assunto). Lá eu abri meu coração várias vezes e deixei a camada mais profunda do meu ser respirar o ar fresco. As pedras da cidade são sedosas, desgastadas pelo tempo e eu gostava de andar pelas ruas com o braço levemente esticado, acariciando-as com as pontas dos dedos. Jerusalém pra mim é dourada, tem cheiro de terra seca, pedra e alecrim e tem gosto de suco fresco de romã e kayek, o pão típico da cidade, salpicado de gergelim.

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Na Via Dolorosa tem um prédio que funciona como pousada pra peregrinos e onde o teto abriga um terraço. De lá dá pra ver o Santo Sepulcro, a mesquita Al-Aqsa e boa parte da cidade antiga. Fui lá pela primeira vez em 2007, guiada por uma amiga alemã. Voltei inúmeras vezes, sozinha e acompanhada, mas sempre que me deparava com aquela vista meu coração disparava. Exatamente como na primeira vez que coloquei os pés na cidade. E cada vez que eu ia lá me apaixonava novamente por aquele lugar. Apesar de abrigar tanta loucura e injustiças, Jerusalém continua sendo a minha cidade preferida no mundo e ainda penso nela quase todos os dias.

(Texto originalmente postado aqui, no dia 07/03/2014.)

*Na quarta foto está meu querido amigo Nader, que tinha uma loja de joias e bijuterias na cidade antiga de Jerusalém. A solidariedade e generosidade de Nader fizeram toda a diferença em alguns momentos chaves da minha estada na Palestina. Ele morreu alguns anos atrás, de um enfarto, e ver essa foto hoje me encheu de emoção.

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