Só pela subversão

Continuando a série “requentando posts antigos porque esse blog tem mais de 12 anos e a maior parte das pessoas me lendo agora não tem ideia das coisas bacanas que já postei aqui”, vou seguir no tema “Palestina” porque, como expliquei no último post, em breve será mais um triste aniversário da ocupação israelense naquelas terras. Gostaria que a Palestina não aparecesse na timeline de vocês apenas quando a violência da colonização israelense chega em picos tão elevados que volta a ser manchete. E sobre os posts que escrevi na Palestina, o de hoje é, até hoje, o que mais deu o que falar na história do blog.

Mas de dez anos depois, ainda tem gente comentando esse post. Já encontrei até gente que estudou ele na faculdade!! Não sei que professora levou meu texto pras suas estudantes (em que curso?), mas agradeço de coração. A história de hoje foi só uma das aventuras lindas que vivi, ou testemunhei, por lá, mas segue sendo um dos meus posts preferidos do Papacapim, no top 5. Foi a primeira vez que escrevi sobre a Palestina no blog e como o retorno das leitoras foi extremamente positivo, à partir daí passei a falar regularmente da luta do povo palestino aqui. Esse post foi um marco e um divisor de águas pro blog.

Desde que me mudei pra cá vi coisas extraordinárias acontecerem. Poderia escrever um livro (um dia, quem sabe), mas me contento, por hora, de escrever um post.

Alguns dias atrás minha grande amiga Johanna, que mora em Tel Aviv, ligou dizendo que tinha um amigo israelense precisando da minha ajuda e que era urgente. Ela não tinha tempo pra explicar, mas ele podia contar tudo direitinho. Fiquei surpresa, mas disse: “Pois não, pode falar pra ele me telefonar”. E fiquei matutando sobre esse pedido estranho. Por que cargas d’água um rapaz que não me conhecia precisava de minha ajuda? Conhecendo os amigos ativistas de Johanna, torci pra que não fosse algo ilegal, mesmo sabendo que meu espírito subversivo se deixaria convencer de qualquer coisa. Só confessei isso porque minha mãe não lê o blog e se lesse não entenderia, pois ela não sabe o que significa “subversivo”.

Poucos minutos depois o telefone tocou e essa foi a história que o amigo de Johanna me contou. Esse israelense judeu de Jerusalém, que chamarei de O., tinha um namorado palestino muçulmano, que chamarei de F.. Os dois se conheceram pela internet e namoram há algum tempo. Vou abrir um pequeno parênteses pra fazer algo que jurei nunca fazer aqui no blog: falar da ocupação israelense na Palestina.  Misturar comida com política pode dar indigestão, mas dessa vez não posso evitar.

Os territórios palestinos estão hoje divididos entre a Cisjordânia, a Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental, todos sob ocupação e controle militar total israelense desde 1967. Um palestino de Belém (Cisjordânia) não pode entrar em Jerusalém Oriental, a menos que tenha uma autorização do governo israelense e é proibido de entrar em Israel. Israel também proíbe os civis israelenses de entrar nos territórios palestinos, ou seja,  nem O. pode visitar o namorado na Palestina, nem F. pode visitar O. em Jerusalém. O. entrou várias vezes (de maneira ilegal) na Palestina e sempre ficava hospedado na casa de F. A família de F. não tem nada contra os israelenses (como disse mais acima, é o próprio governo israelense que proíbe seus cidadãos de entrarem na Palestina, não os palestinos) e sempre receberam O. de braços abertos. Isso, claro, porque não sabem que ele é o namorado de F., eles acreditam que ele é só mais um amigo. A sociedade palestina ainda é extremamente conservadora e homossexualidade é um tema tabu por aqui. Já a família israelense de O. aceita o fato dele ser gay sem problemas, mas não sabe que O. tem um namorado palestino. Ser homossexual é algo tolerável, mas namorar o “inimigo” seria considerado uma alta traição na família dele. No dia anterior O. tinha pedido o carro dos pais emprestado, entrado (ilegalmente) na Cisjordânia e levado o namorado palestino pra Jerusalém (ilegalmente). Os dois acabaram sendo presos na mesma noite e por um milagre F. foi solto depois de apenas algumas horas de interrogatório. Palestinos que entram ilegalmente em Jerusalém ou em Israel podem ficar vários meses na cadeia israelense. Depois do ocorrido os pais de F. ficaram com medo de hospedar O., pois a poucos metros da casa tem duas torres militares israelenses e os soldados estão sempre rondando as terras da família. Se eles suspeitarem que tem um israelense na casa, toda a família pode ser acusada de ter “sequestrado” um israelense e será presa (não, infelizmente não é piada). Depois que F. foi detido em Jerusalém os soldados aparecem com mais frequência e a família teme pela segurança de seus membros. Por isso pediram que O. não viesse mais ali, para o seu próprio bem e para o bem de toda a família. Então naquele momento eles estavam na rua, precisando conversar pra resolver essa situação e querendo passar um pouco de tempo juntos, já que talvez essa fosse a última vez que eles se encontrariam. Entendi então por que O. precisava da minha ajuda e fiz o que qualquer pessoa com um pouco de sentimento e um muito de irresponsabilidade teria feito no meu lugar: convidei os dois pra passar a noite aqui em casa.

Eles chegaram por volta das sete da noite e eu ofereci chá, jantar, orelhas, conselhos e o colchão de hóspedes. Eles me contaram como se conheceram, o pesadelo da noite anterior, passada em uma delegacia de Jerusalém e como se sentiam perdidos. O., o israelense, faz teatro por paixão e faxinas pra pagar o aluguel. F., o palestino, é professor de Inglês em uma escola secundária, mas fez questão de dizer que O. ganha mais fazendo faxina do que ele ensinando.  Eles são dois dos rapazes mais doces que já tive o prazer de conhecer. Depois do jantar deixei os dois deitados (espremidos seria o termo adequado) no meu colchãozinho que já é pequeno pra uma pessoa sozinha, imagine então pra dois rapagões de mais de 1.80m. Antes de subir pro meu quarto passei pela sala pra dar boa noite e vi os dois abraçados naquele colchão estreito, conversando baixinho e sorrindo. Deitada na minha cama pensei nos riscos que nós três estávamos correndo (que não vou citar aqui porque imagina se minha mãe decide ler o blog!), mas o que predominava era a esperança que crescia no meu peito. Apesar de todos os check points, do muro, da propaganda e estratégias desenvolvidas pra que esses dois povos nunca se encontrem, pois é mais fácil justificar a necessidade de uma ocupação se o povo que ocupa não conhece o povo ocupado, apesar de todos esses obstáculos eles conseguem se encontrar. E se apaixonar. Israel e Palestina estavam se amando na minha sala. Ainda era possível ter esperanças.

Eles foram embora na manhã seguinte, cada um pra um lado diferente da fronteira. Depois de agradeceram a hospitalidade pela décima vez eu respondi “Imagina! Eu tenho que ajudar o meu povo”. Mas sei que mesmo se eu não fizesse parte desse “povo” eu teria ajudado os rapazes da mesma maneira. Só pela subversão.

Salada de funcho, toranja e tâmaras

Detesto publicar receitas que só pouca gente pode fazer, mas essa foi a salada que servi durante o jantar quando O. e F. estavam aqui e desde então ela me faz pensar neles. Funcho, também conhecido com erva-doce,  é um vegetal engraçado e com gosto de anis (veja foto acima). Toranja é uma laranja maior e mais amarga. Nessa receita ela pode ser substituída por laranja, mas gosto do amargor da toranja junto com a doçura das tâmaras. Essa receita também serve pra explicar como cortar gomos de laranja/toranja sem pele e sem sementes pra usar em saladas (ou tortas), então entre uma história, uma técnica e uma receita, todo mundo vai achar algo interessante nesse post.

1 funcho médio (erva-doce)
1 toranja (ou 2 laranjas pequenas)
1 tâmara
Azeite, sal e pimenta do reino

Corte o funcho em fatias finíssimas, depois pique bem miudinho. Corte a toranja, ou as laranjas, como mostrado nas fotos abaixo e misture com o funcho picado. Esprema a “carcaça” da toranja (com a mão) sobre a salada. Corte a tâmara em pedaços bem pequenos e junte à mistura funcho/toranja. Regue com um fio de azeite, tempere com uma pitada generosa de sal e pimenta do reino a gosto. Se quiser, decore com as folhinhas verdes do funcho. Rende 2-3 porções.

Corte uma fatia do topo e da base da fruta, expondo a polpa.
Retire a casca das laterais da fruta, seguindo seu contorno arredondado (você vai precisar de uma faca afiadíssima).
Toranja pelada.
Corte fatias da fruta, liberando os gomos. A pele branca funciona como paredes,  separando os gomos, e a faca deve passar o mais próximo possível delas.
Gomos sem pele e sem sementes (retire-as com os dedos) e a “carcaça” da fruta do lado.

(Texto publicado originalmente aqui, no dia 15/02/2012. F e O já não estão mais juntos há alguns anos.)

8 comentários em “Só pela subversão

  1. Eu entendi porque é uma de suas postagens preferidas! Ele fala de amor e descreve as dificuldades de um casal palestino-israelense enfrentam! Você viveu na Palestina, conheceu O. e F., já pensou em escrever um romance com essa essência?

  2. Incorporei essa palavra – subversão – no meu vocabulário após esse post lá em 2012, difícil escolher um texto preferido diante de tantos que já li aqui mas com certeza esse foi um dos mais marcantes

  3. Teve alguma notícia deles depois dessa noite Sandra?
    Sou leitora antiga, lembro dessa historia com muito carinho e admiração, pela tua acolhida e pela atitude e amor deles diante de tantas barreiras. Quando reli, fiquei na expectativa, será que Sandra vai nos contar o final feliz?

  4. É uma linda imagem, Israel e Palestina se amando. Olhando para as pessoas, é possível. Que assim seja.
    Me emociono sempre com seus relatos sobre a Palestina. Desejo fortemente que toda essa beleza cultural siga viva e possa se reconstruir em paz.

    Um abraço, desejo que você também esteja bem com sua família.
    Anna

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