Cresci na cidade e ninguém plantava nada ao meu redor. Hoje tenho o maior orgulho de dizer que sou lavradora de quintal. Mas deixa eu contar como tudo começou.

No final de 2019 me mudei pra França. Pra uma pequena cidade na periferia norte de Paris, pra ser precisa. Uma cidade tão perto geograficamente de Paris que dá pra ir andando (fica a duas estações de metrô), mas tão longe socialmente que parece outro país. Fomos morar, Anne e eu, em um alojamento social, um CoHab com muitos prédios e uma população em sua maioria composta de migrantes. Nosso pequeno apartamento de 30m2 ficava no 17° andar e tinha vista pra pracinha que ficava bem no meio das torres, de onde eu via coisas que não imaginei ver na França. Como violência policial quase quotidiana e pessoas revirando o lixo procurando comida. Bem-vinda à periferia do Norte global, onde o centro vira margem. E por que estou contando tudo isso num texto sobre horta? Porque foi ali, naquele pequeno apartamento no 17° andar, que minha vontade de plantar nasceu. Eu nunca tinha vivido cercada de tanto cimento e concreto, tão longe da terra e aquilo estava mexendo comigo de uma maneira que eu não estava gostando nem um pouco.

Meu psicológico devia estar bem abalado, mesmo, porque minha primeira tentativa de horta foi essa aqui. Juro que plantei raízes das verduras numa pequena vasilha de plástico. Eu colhia as folhinhas à medida que elas apareciam, mas obviamente que eu estava ciente que aquilo era apenas uma tentativa simbólica de me aproximar da terra, não uma maneira de produzir alimento. Isso foi no início de 2020, o que aqui significa inverno. Assim que a temperatura aumentou comecei a plantar em vasos que eu colocava no parapeito da janela da sala. Meu apartamento era muito ensolarado e tinha uma janela imensa, então aproveitei pra plantar comida pela primeira vez na vida. Plantei batata num vaso de barro (meu desespero pra plantar me faz rir hoje), alguns pezinhos de tomate cereja, um de pimentão e manjericão. Era tudo que eu conseguia colocar ali. Infelizmente não consegui achar fotos da minha horta de janela, mas lembro muito bem da alegria quando colhi meus primeiros tomates e do sabor das minhas batatinhas, que eram miúdas (porque o pote de barro era pequeno), mas deliciosas.

Pula pra 2021. Saímos do apartamento no CoHab e fomos morar numa casa na mesma cidade. Na verdade alugávamos só uma parte da casa, a garagem. A dona da casa, que é mexicana, morava sozinha na casa de dois andares e nós ficávamos no subsolo (em comparação ao nível da rua), que tinha sido transformado em kitnet. Mas a vantagem de estar no subsolo era que tínhamos acesso direto ao quintal da casa. E aí, minha gente, as humilhadas foram exaltadas! Saímos de um mar de cimento e concreto pra um pequeno paraíso, com algumas arvores (magnólias e louro), uma vinha selvagem, flores e um gramado. Nos mudamos no finalzinho da primavera e estávamos muito envolvidas na luta pra salvar os Jardins Operários, as hortas comunitárias que existem, e alimentam famílias das classes populares aqui na periferia há quase cem anos. Então naquele ano plantamos, coletivamente, nos lotes ameaçados de destruição nos Jardins Operários. Infelizmente, no início do outono os lotes que estávamos defendendo foram destruídos, mas a luta continua até hoje.

Os meses de ocupação, e plantio, nos Jardins Operários foram um verdadeiro curso prático de roça. Tive a honra de plantar do lado de pessoas que cultivam há muitos anos e aprendi muita coisa ali. Então no ano seguinte, em 2022, me senti segura pra começar minha primeira roça de quintal.
A foto acima mostra uma parte do nosso jardim antes da gente começar a plantar. Quando chegamos ali já tinha 3 composteiras (a caixa de madeira na foto acima é uma delas) e isso foi indispensável pra começar a horta. A primeira etapa pra fazer uma horta é cuidar do solo, então um solo rico e fértil deve ser seu objetivo antes mesmo de começar a pensar no que plantar no quintal. Sim, em matéria de horta, a gente começa pelo fim (fim da vida dos legumes). Então essa é a primeira dica que tenho pra compartilhar: comece a compostar os resíduos orgânicos da sua casa. Você pode comprar composto pronto, principalmente se quiser começar a plantar imediatamente, mas pra mim, buscar autonomia faz mais sentido. Compostar no seu quintal também faz com que o ciclo se complete: você planta, colhe, come e as cascas do que plantou se tornam a terra onde você plantará novamente. Lindo!
Não vou escrever sobre os detalhes da compostagem aqui, porque o texto vai ficar longo demais, porém preciso explicar uma coisa importante, que imagino que algumas pessoas estão se perguntando agora. Por razões antiespecistas, nunca comprei nem comprarei minhocas pra fazer “compostagem com minhoca”. Mas repare que tendo quintal, basta cavar um buraco pra enterrar suas cascas que as minhocas, e outros bichinhos, virão decompor a matéria por livre e espontânea vontade. Veja que as “composteiras” aqui são simplesmente caixas de madeira sem fundo, mas com tampa, e que também abrem na frente (fica mais fácil tirar o adubo dali depois). Você coloca a matéria orgânica vegetal ali dentro, em contato direto com a terra do quintal, alternando com punhados de folhas secas (pra impedir que odores desagradáveis escapem e pra equilibrar a umidade – o ideal é que não fique nem molhado, nem seco) e só. Quando uma composteira enchia, deixávamos ela descansar e começávamos a encher a outra. Quando a segunda composteira chegava no limite, os bichinhos na primeira já tinham terminado o trabalho de decomposição e transformado aquela montanha de vegetais e sementes numa terra preta, ou seja, em adubo (foto acima, à esquerda).
A gente começou a usar duas dessas caixas-composteiras pra colocar os resíduos orgânicos vegetais e a terceira pra guardar as folhas secas que caíam no outono (além de utiliza-las nas composteiras, elas são importantes pra preparar a terra da horta). Mas mesmo produzindo uma quantidade grande de restos vegetais, o que acontece quando você é vegana e que 90% da sua comida tem casca, não embalagem, uma casa com 3 pessoas não conseguiria encher as duas composteiras em poucos meses. A dona da casa é vegetariana, mas cozinhava pouco, logo produzia pouca casca. Sem falar que depois de se decompor, a matéria orgânica reduz muito. Então de vez em quando Anne ia à feira do bairro, na hora em que feirantes estavam indo embora e levava pra casa restos de vegetais que tinham sido descartados. Principalmente antes de começar uma nova “lasanha”. Mais na frente explicarei sobre o que é lasanha nesse contexto.
Fizemos a horta em 2022, num espaço pequeno, e plantamos poucas coisas, porque a ideia era fazer um teste. Esse é meu segundo conselho pra você: se você nunca plantou na vida, sua primeira horta deve ser bem pequena. Deu tão certo que no ano seguinte resolvemos triplicar o tamanho da horta. As fotos que vocês vão ver à partir de agora são do segundo ano da nossa roça de quintal.
Então imaginem (porque esqueci de fazer fotos) que fizemos a horta em 2022, colhemos muito tomate no verão (julho-agosto), os pés morreram, no início do outono (final de setembro) arrancamos tudo, agradecemos a terra pelo alimento ofertado, cobrimos ela com folhas secas e deixamos descansar por um mês, mais ou menos. Entre o final de outubro e o início de novembro plantamos favas do lado de onde tínhamos plantado os tomates. Primeiro, porque queríamos comer favas no início da primavera. Segundo, e mais importante, porque leguminosas (fava, feijão, grão de bico, etc) fixam nitrogênio no solo, o que o deixa mais rico. É um fertilizante natural, que coloca de volta no solo os nutrientes que ajudaram a produzir a comida que cresceu ali. Como diria Nego Bispo, “a terra dá, a terra quer”.
Na foto acima, à esquerda, os pezinhos de fava ainda pequenos e a hortelã, que voltava sempre depois dos meses frios. E, claro, Satan, o gato que morava com a gente. À partir de abril começamos a colher favas, ao mesmo tempo em que preparávamos a terra (onde tínhamos plantado tomate no ano anterior) pra plantar novamente, cobrindo com uma nova camada de adubo – a terra preta do composto do nosso quintal (foto acima, à direita).
Entre abril e maio (primavera) também é o momento de começar a preparar as mudas. Mas antes disso, é importante fazer um plano da horta, determinando onde e o que você quer plantar (foto acima, à direita). Essa é minha terceira dica. É preciso saber onde tem mais sol, onde só tem sombra, que plantas gostam de crescer juntas e planejar de acordo. Também tem que incluir flores, porque elas atraem polinizadores (besouros, borboletas, abelhas) e hortas dependem desses animais pra dar certo.
Depois de escolher o que plantar, a gente seleciona as sementes pra fazer as mudas (foto acima, à esquerda – cada pacotinho desses tem dezenas de sementes). Temos sementes dos Jardins Operários, da nossa horta (que guardamos no ano anterior), da Palestina, da Irlanda, da Bósnia e da Síria. As sementes que vieram de longe foram ofertadas por amigas e eram uma maneira de nos manter conectadas à elas. Mas elas foram uma parte pequena do que plantamos porqu o ideal é usar sementes do seu território, que estão bem aclimatadas e são mais resistentes. Essa é minha quarta dica.
Vou falar mais sobre as mudas no próximo post, mas pra manter a ordem cronológica dessa aula informal, aqui estão algumas fotos do processo. Acima tem mudinhas de couve e diferentes tipos de alface. E enquanto as mudinhas vão crescendo, você vai preparando a terra pra recebe-las.
Então bora fazer um resumo do meu processo de roça de quintal. Primeiro, comecei a alimentar as composteiras. Depois fiz um plano do que queria plantar e de onde iria plantar, consegui sementes e fiz mudinhas. Depois fui preparar a terra onde eu iria plantar as mudinhas. E é agora que explico o que é uma “lasanha”.

Lembra que aprendi a plantar com pessoas que tem lotes nos Jardins Operários? Sim. Tenho vergonha de admitir que, apesar de ser filha de agricultor (hoje aposentado) nunca pedi pro meu pai, nem minha mãe, compartilharem esses conhecimentos comigo. E a pessoa com quem mais aprendi aqui, uma força da natureza chamada Dolorès, pratica permacultura e planta sempre em “lasanhas”, o que nada mais é do que uma técnica que vai alternando camadas de materiais diferentes pra deixar a terra o mais fértil possível.

Nas fotos acima dá pra ver uma composteira ainda com matéria orgânica não decomposta e também o adubo mais antigo, já totalmente decomposto. Os dois estados são necessários pra fazer uma lasanha. Nunca vou deixar de me maravilhar ao ver essa transformação. Como pode pedaços de cenoura, casca de batata e restos de limão (sim, pode colocar frutas cítricas na composteira de quintal, que fica em contato direto com a terra) se tornarem terra preta? Uma coisa mágica!
Como queríamos expandir a área da roça, tivemos que fazer duas lasanhas novas e nas fotos abaixo tem o passo-a-passo dessa técnica. E, se quiser tentar aí no seu quintal, essa é minha quarta dica.
1-A primeira camada é de papelão (sem fita adesiva e sem cor -texto ou imagens impressas). É bom começar uma horta assim, pois reduz a quantidade de ervas não desejadas crescendo entre seus legumes e reduz a perda de nutrientes que podem escoar com a água, mas não é indispensável.
2- Por cima do papelão vai uma camada mais espessa de madeira picada. Aqui usamos os galhos que caem das árvores durante o inverno, mais galhos maiores das podas das árvores que foram triturados. Uma vez por ano a dona da casa podava as árvores e pedia emprestado uma máquina pra triturar madeira de uma amiga. Em seguida a gente guardava esses flocos de madeira, bem protegido da chuva, pra usar na horta.
3- Por cima dos pedacinhos de madeira, espalhei o “composto verde”. Ou seja, as cascas e restos de verduras ainda não decompostas.
4- A quarta camada é de folhas secas, também recolhidas durante o inverno, no nosso quintal. Mas antes, colocamos pedaços de madeira pra delimitar a horta e impedir que o material orgânico se espalhasse pelo quintal cada vez que aguássemos.
5- Por último vem a terra preta, o adubo, que deve ser a camada mais espessa.
Importante: entre cada camada é preciso regar com bastante água, pra facilitar a decomposição da matéria ali. Depois de fazer sua lasanha, tem que esperar um pouco antes de plantar. Ela só vai estar pronta dali a algumas semanas (o tempo de decomposição varia de acordo com a temperatura no seu quintal).
Cada camada da lasanha traz nutrientes diferentes pra sua futura horta. O objetivo é tentar reproduzir o que aconteceria no solo de uma floresta, onde caem galhos, folhas, restos de frutas comidas pelos animais, adubo (nesse caso, cocô dos bichinhos morando ali na floresta)… Depois cai chuva, passa o tempo, faz calor e tudo se decompõe e se transforma numa terra preta e fértil.
Essa de camiseta laranja é Claire, a irmã caçula de Anne. Ela estava nos visitando no dia em que fizemos as lasanhas novas e nos ajudou durante todo o processo. Vejam que na cabeceira dessa lasanha tem algo que só posso descrever como sacos de plantar. Foi presente de uma amiga e apesar de terem sido criados pra quem quer fazer uma micro-horta em um lugar onde não tem terra (em cima de uma laje ou numa varanda de apartamento, por exemplo), resolvemos testar o sistema no nosso quintal e fizemos as mesmas camadas da lasanha ali dentro.

Eu disse que a gente queria triplicar o espaço da horta, não foi? Pois além de aumentar a primeira lasanha, criar uma lasanha menor, acompanhada dos “sacos de plantar”, também fizemos outra lasanha no pé de uma das magnólias (foto acima). Esse era o lugar mais sombreado do jardim, mas resolvemos testar plantar ali vegetais que não precisam de tanto sol.
No próximo post: colocar as mudinhas na terra, cuidar da horta, colher e comer e, mais uma vez, deixar a terra descansar.