Quando a saudade aperta

No último post eu disse que apesar de não ter planejado, acabei virando a rainha do makluba (veg). Meu relacionamento com ele começou em 2007, quando cheguei na Palestina. Descobri que era o prato nacional por ali e sempre que era convidada pra comer na casa de alguém, lá estava ele na mesa. Depois fui trabalhar no projeto de mulheres no campo de refugiados de Aida e aprendi, junto com os estrangeiros que participavam das aulas de culinária, a preparar o famoso prato. A versão tradicional é feita com frango, mas como muitos dos nossos ‘alunos’ eram vegetarianos/veganos, consegui convencer Islam (a coordenadora palestina do projeto e nossa cozinheira-mor) a preparar também uma versão 100% vegetal durante as aulas.

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Minha vizinha Violet, uma palestina cristã, me contou que os palestinos (cristãos) também preparam uma versão vegana do makluba. Os cristãos ortodoxos excluem todos os alimentos de origem animal do cardápio durante a quaresma, então aprendi com eles a fazer várias receitas veganas, adaptações dos pratos tradicionais feitos com animais. Tinha até uma padaria perto de casa que se tornava 100% vegana durante a quaresma. A  maior parte da clientela, assim como os donos, eram cristãos ortodoxos, então todos os biscoitos, bolachas e pães eram veganos nessa época do ano.

Mas voltemos ao makluba. Durante os cinco anos que morei na Palestina nunca passei mais de algumas semanas sem comer esse prato, sempre preparado com talento pelas minhas amigas, todas ótimas cozinheiras. Por isso só fui preparar o meu primeiro makluba depois de ter saído do país, alguns meses atrás. Foi meu amigo Bilal, um palestino refugiado da Síria, que me pediu pra preparar um makluba pra um grupo de 25 budistas. Algum monge budista tibetano estava dando palestras aqui em Bruxelas e a moça que organizou o evento nos contratou pra preparar três almoços pro pessoal. Então fui parar na pequena cozinha de Bilal, nós dois e um palestino de Gaza, e durante três dias preparamos juntos comida palestina vegana pra um grupo de belgas budistas, mais dois monges tibetanos, enquanto ouvíamos Fairuz e tomávamos chá. E acabei tendo que explicar dezenas de vezes que a cozinheira palestina era brasileira. Mais uma das situações deliciosamente absurdas nas quais me meto regularmente.

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E foi assim que fiz o meu primeiro makluba. Bilal tinha perguntado se eu sabia preparar o prato mais popular da culinária palestina e eu respondi que depois de ter visto tanto makluba sendo preparado na minha frente, com certeza eu sabia como fazer aquilo de olhos fechados, com as mãos amarradas nas costas e pulando num pé só. Mas depois de ter colocado tudo na panela bateu uma tremenda insegurança. Será que eu ia dar conta do recado? Será que o meu makluba seria tão bom quanto os que eu comia na Palestina? Só relaxei quando os dois palestinos presentes ali provaram e aprovaram a minha preparação.

A partir de então comecei a fazer makluba por todos os lados, em oficinas de culinária em Paris e aqui em Bruxelas. E quanto mais eu faço essa receita, mais prazer ela me dá.  Esse é um prato festivo, generoso, que sempre impressiona os convidados e arranca elogios de todos. Os ingredientes são simples, mas produzem um resultado espetacular. Um cruzamento de risoto com paella, mas com temperos árabes e desenformado como uma ‘tarte tatin’. Não é o tipo de receita que você faz numa terça-feira à noite, quando chega cansada do trabalho e quer comida na mesa o mais rapidamente possível.  Eu não vou mentir pra vocês: ele é longo e trabalhoso. Se você não tem paciência pra cozinhar deve passar longe dessa receita. Esse é um prato que deve ser preparado em ocasiões especiais, quando você tem várias horas pra passar na cozinha e várias pessoas pra degustar, e apreciar, o fruto dos seus esforços.

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Mas confesso que apesar de ser delicioso e de aumentar a minha quota de popularidade com os amigos, a razão que me faz adorar preparar makluba é outra. A primeira garfada costuma me levar de volta pra Palestina e sinto o cheiro da terra seca, o gosto do chá com sálvia e as vozes dos meus amigos, me contando histórias e dando gargalhadas. E enquanto a próxima viagem à Palestina não chega, é esse prato que me faz viajar pra lá quando a saudade aperta.

*Todas as fotos desse post foram feitas por Anne Paq.

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Makluba

Tradicionalmente esse prato é feito com frango, mas essa é a versão vegetariana/vegana que é consumida durante a quaresma pelos palestinos cristãos (mais informações no texto acima). Na Palestina se usa arroz comum, mas eu gosto de fazer essa receita com arroz basmati, pois o prato fica ainda mais perfumado. Minha versão também é mais leve pois não frito os legumes mergulhados no óleo quente, como é feito por lá. Se quiser aumentar a quantidade de proteína do seu makluba (e ter uma proteína vegetal completa) junte grão de bico cozido à receita (2 xícaras, no momento em que colocar os legumes fritos na panela). Não é nem um pouco tradicional, mas vai deixar o seu prato ainda mais robusto. Na Palestina tem sempre um pratinho de hummus na mesa, então não falta proteína (vegetal e completa) na dieta deles, mesmo durante a quaresma:)

250g de arroz (comum ou basmati)

2 berinjelas médias

1 couve-flor grande

2 cenouras médias

4-6 tomates maduros

1 cebola grande

4-6 dentes de alho

1cc de cada especiaria (em pó): cominho, semente de coentro, paprica suave, cúrcuma

Sal e pimenta do reino a gosto

Azeite

Um punhado de amêndoas em lascas, tostadas, e/ou um punhado de salsinha picada (opcional)

-Deixe o arroz de molho, na água fria, durante uma hora (pode deixar mais tempo, se quiser).

-Prepare os legumes. Corte as berinjelas em fatias de espessura média, no sentido do comprimento (com a casca). Salgue generosamente e deixe descansar enquanto você prepara o resto dos ingredientes. Corte as cenouras em fatias e a couve-flor em buquês pequenos. Corte a cebola em fatias, no sentido vertical. Pique ou amasse o alho. Corte os tomates em fatias grossas (quatro fatias por tomate).

-Enxugue as fatias de berinjela com papel absorvente (o sal faz com que ela solte um pouco da própria água). Em uma frigideira grande aqueça uma camada fina de azeite e frite as fatias de berinjela, deixando dourar bem dos dois lados. Regue a couve-flor com azeite e tempere com sal. Asse em forno médio até ficar ligeiramente dourada. Depois de ter dourado toda a berinjela, faça a mesma coisa com a cenoura, juntando um pouco mais de azeite sempre que colocar uma nova camada de legumes na frigideira. Reserve os legumes fritos/assados separadamente.

-Por último doure a cebola em mais um pouco de azeite, junte o alho e deixe cozinhar mais alguns segundos. Acrescente todas as especiarias e uma pitada generosa de sal. Quando o perfume das especiarias ficar mais intenso desligue o fogo.

-Escorra o arroz e tempere com 1/2 cc de sal (ou a gosto).

-Agora chegou a hora de montar o makluba. Use uma panela grande o suficiente pra caber todos os ingredientes com sobra (lembre-se que o arroz aumenta de volume depois de cozido), de preferência com o fundo grosso. Cubra o fundo e metade das laterais da panela com as fatias de tomate e tempere com uma pitada de sal. Distribua os legumes sobre os tomates, nessa ordem: mistura de cebola/alho/especiarias, berinjela, couve flor e, por último, a cenoura. Tempere os legumes com sal à medida que for distribuindo as camadas. Cubra os legumes com o arroz escorrido e compacte ligeiramente com as costas de uma colher.

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-Acrescente água suficiente na panela pra cobrir tudo e passar aproximadamente 1,5 cm do nível do arroz. Leve ao fogo alto até começar a ferver, tampe e deixe cozinhar em fogo baixo. O makluba está pronto quando o arroz estiver bem macio e quase todo o líquido tiver evaporado (use uma colher pra empurrar um cantinho do makluba pro lado e checar o nível de líquido). É importante que ainda tenha uma certa quantidade de caldo no fundo da panela, pro prato ficar suculento. Mas se o arroz estiver totalmente cozido e ainda tiver líquido demais na panela, aumente o fogo e deixe cozinhar descoberto por alguns minutos.

-Depois de pronto, deixe o makluba descansar, tampado, por 5 minutos. Em seguida cubra a panela com uma travessa ligeiramente maior e vire o makluba de cabeça pra baixo. O chef palestino Sami Tamimi jura que se na hora de virar a panela todos os membros da família colocarem a mão sobre ela, como estamos fazendo numa das fotos acima, e esperar 3 minutos, ele desenforma perfeitamente. Não custa nada tentar e é divertido . Se o seu makluba não desenformar direitinho, nada tema. Use uma colher pra ‘descolar’ o que ficou grudado no fundo da panela. Ele ficará menos atraente, mas o sabor será o mesmo.

-Sirva imediatamente, decorado com amêndoas tostadas e/ou salsinha picada (optional) e acompanhado de uma salada crua (tomate+pepino+salsinha+hortelã, tudo bem picadinho, como nas fotos) ou, melhor ainda, com uma salada árabe. Rende 4-6 porções. 

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35 comentários em “Quando a saudade aperta

  1. Eu ADORO quando você faz receitas da Palestina ou conta histórias de lá. Minha família materna é de origem libanesa, meu tataravô veio de lá em uma história absolutamente surreal. Mas o que mexe comigo mesmo, de verdade, é a culinária. Minha avó faleceu há 3 anos e era ela quem cozinhava esses pratos na família. A grande maioria com adaptações para o nosso paladar e para os ingredientes brasileiros; vovó nunca foi uma purista na cozinha. A morte dela foi um golpe muito duro para mim, e ver você cozinhando esses pratos é um bálsamo. É como se ela estivesse na cozinha novamente, e eu ali xeretando entre as panelas e os temperos. Minha avó morreu sem que eu tivesse tido oportunidade de aprender todas as receitas que ela fazia, então quando você divide suas artes conosco, é um pouco da minha avó e daquele amor que estão comigo. Nunca comi makluba, mas faço questão de fazer qualquer dia desses, acompanhado de uma porção de hommus. Em sua homenagem e em homenagem a ela. Obrigada por tanta generosidade.

  2. Encontrei seu blog recentemente… li…tudo… todos os posts…. e estava com saudades! Quero me tornar vegana, mas o caminho nao estah tao facil, enfim, nao vem ao caso. O que quero dizer eh: que prato mais Lindo, Generoso! Vou fazer aqui no meu lar…. bjo…

  3. Que lindo prato, quase posso sentir o cheiro pelas fotos rsrsrsrs
    Com certeza me organizarei para fazê-lo com toda a família reunida.
    Grande beijo

  4. Algo muito curioso para mim, foi ver as mãos de todas as pessoas que partilhavam o momento de virar a panela. É como se passassem sua energia, não apenas a curiosidade ver e saborear. É um prato verdadeiramente saboroso, adoro o doce da cenoura e da berinjela, a cebola quando refogada carameliza também fica adocicada, ao juntar as tomates e “cheiro verde”, ficou apetitoso! Não sou vegan, quem sabe um dia desses!

  5. Já estou sentindo o cheiro delicioso dessas especiarias!! Semente de coentro? Que delícia! Costumo ficar só com as maravilhosas folhinhas!

  6. Ahhh que alegria te ver de volta!
    E voltou em grande estilo. Qd vc falou aqui no blog sobre makluba fui correndo procurar na internet e fiquei louca qd vi. Estou mt feliz por vc ter compartilhado essa receita e por ver que vc esta melhor.
    P.S: Nao pense que esqueci do carbonara vegano 🙂
    Bj para vcs

  7. A barriga roncou com a leitura!
    Sandra, como é esse chá com sálvia? Tô com um pezinho de sálvia tão pródigo que nem dou conta de usar!

  8. Sandra, fiz a receita e ficou MARAVILHOSA, perfeita!Achei que fosse dar um pouco de trabalho mas foi tranquilo, não tem muito segredo!Muito obrigada por compartilhá-la!

  9. Sandra, Sandra… duas coisinhas nada a ver com o tentador makluba. Pode ser? rsrs
    Primeiro: como vai ou como foi o trabalho com os leitores sortudos?
    Segundo: na primeira foto em que aparece você, EU achei que parecia comigo. Mas na foto em que você está ‘desenformando’, SOU EU!!! kkkkkk I-gual-zi-nha! Inclusive os bracinhos fazendo força…. rarara
    Mostrei a foto para minha mãe (que estava me visitando), e ela também achou igual!
    Tô boba… kkkkkk
    Beijo e até a próxima postagem com foto (minha?) pra eu comparar… 🙂

  10. Oi, Sandra, conheci seu site na quinta feira passada, estou encantada! Já fiz a sopa de cogumelos (deliciosa) e hoje estou preparando o Makluba e a omelete vegano. Está tudo adiantado, estou feliz da vida tomando um vinhozinho enquanto espero meus convidados chegarem. Muito, muito, muito obrigada por compartilhar.
    Bjs,
    didica

      1. Piraram. A omelete também arrasou. No dia anterior fiz a sopa de cogumelos para mim e meu marido, ficou incrível!
        Somos (meu marido e eu) onívoros, minha filha vegetariana, mas todos aqui em casa somos adeptos de uma comida de verdade, nada de abrir pacotes.Bj e mais uma vez, obrigada.

  11. o meu primeiro makluba ficou ainda com muita água e como dobrei a receita, não me atrevi a virar a panela, porque eu não tinha um pote que coubesse. Mas mesmo assim ficou muito saboroso.

  12. My dear Sandra, I am late , of course, but that did not keep me from laughing like crazy over laptop . Brazilian Palestinian or Palestinian Brazilian that is the question. The answer is not important for me, for you are going to be and to stay my Sandra ( rose is a rose ….)

  13. Obrigado por usar seu tempo para compartilhar com o mundo o seu conhecimento. Esse ano estava em busca de receitas palestinas para a ceia de natal da minha família e esta foi de longe a receita mais interessante e bem explicada que encontrei. Acabei não tendo tempo de testar e arrisquei fazer do mesmo jeito direto para a ceia. O resultado não poderia ser melhor. Todos elogiaram e ficaram satisfeitos. Achei a receita saborosíssima.
    Obrigado mais uma vez e muito sucesso nos seus projetos!!

  14. Uma brasileira, dois palestinos, cozinhando para monges budistas belgas e tibetanos. Isso é o que eu chamo de salada cultural!!!!! Adoro seu blog, não só pelas receitas mas também pelos relatos das suas experiências!!!!

  15. Eu fiz e ficou delicioso!!
    Achei difícil a questão sal e acabei pecando pela falta (ainda bem)! É cheiroso, saboroso e tem as texturas do arroz, dos vegetais e das amêndoas!

  16. O teu site é realmente especial. Foi um dos primeiros que eu encontrei quando a vida me pediu para seguir meu coracao e me tornar vegao. Isso foi há uns quatro anos. Aindo volto aqui para me inspirar. Parabens! Recomendo esse blog para todos os meus amigos!

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