Creme de tapioca e coco com abacaxi caramelizado

É verdade que na cozinha as coisas mais simples podem ser as mais difíceis de fazer. Tapioca, por exemplo, é uma delas. Depois que você aprende, se torna a coisa mais natural do mundo, mas até chegar nesse ponto você vai precisar suar um pouco. Repare que se a receita for extremamente simples (no caso da tapioca, com apenas um ingrediente), cada detalhe faz diferença. Nessa categoria de receitas, é mais sobre técnica. E prática é tudo que você precisa pra dominar a técnica. Infelizmente essa parte (a prática) não pode ser terceirizada.

Já a receita de hoje faz parte de uma categoria diferente. Sim, leva tapioca. Não a comida de café da manhã à base de goma fresca (ou polvilho hidratado) e feita na frigideira, mas sim os pequenos grãos irregulares de polvilho que também chamamos de “tapioca” (veja a foto mais abaixo). E também tem uma lista de ingredientes enxuta, com apenas três elementos (no máximo 4). Mas a parte complicada dessa receita foi encontrar as proporções exatas e o modo de preparo pra atingir a textura que eu procurava. E a boa notícia é que quem fez a parte difícil desse trabalho foi essa que te escreve, logo você não terá que fazer esforço nenhum.

Se você acha entediante ler sobre o processo de desenvolvimento de receitas, pule os próximos parágrafos e retome a leitura a partir da foto das mãos segurando tapioca (esquerda) e sagu (direita).

Essa talvez seja a receita que mais demorou pra ficar do jeito que eu queria. Foram inúmeros testes, que começaram no ano passado e só chegaram no resultado que eu queria algumas semanas atrás. Há alguns anos comi uma sobremesa gelada, dessas que compramos prontas nos supermercados em potinhos de plástico, feita por uma pequena empresa francesa que, apesar de não ser vegana, está aumentando a oferta de opções vegetais. Lembro de estar em uma estação de trem com Anne, em algum lugar da França, e de ter precisado comprar um lanche antes de entrar no trem. Essa sobremesa era um creme de sagu com leite de coco, coberto com purê de manga. Apesar de ser muito doce pro meu paladar, a sobremesa era uma delícia. Manga e coco são uma combinação divina (já fez esse sorvete aqui? Recomendo!) e qualquer sobremesa com tapioca é sucesso pra essa nordestina (a gente faz dindin de tapioca, sorvete de tapioca, pudim de tapioca…) Fiz uma anotação mental pra tentar reproduzir a sobremesa em casa um dia, mas acabei esquecendo. 

Aí ano passado comprei o e-book maravilho de receitas de natal das talentosas Thallita Flor e Ruan Felix. E dentre as sobremesas, pois não é que tinha sagu com abacaxi? E foi esse o meu ponto de partida.

Depois de muitas tentativas com o sagu cheguei à conclusão que ele é um ingrediente que, apesar de lindo, não oferece o resultado que eu estava procurando. Explico. Ele precisa ser cozido na água primeiro pra ficar com aquela aparência linda característica (pequenas pérolas transparentes). Mas aí eu acho que ele fica sem gosto, mesmo depois de misturado ao leite de coco. Morder uma daquelas pérolas é divertido, mas tem gosto de água pra mim. Eu queria tentar injetar sabor no coração do sagu e tentei cozinhar a mistura diretamente no leite de coco, assim as bolinhas absorvem coco (delícia) e não água (insípida). Mas elas ficam turvas e perdem o aspecto lindo que a transparência traz. Na verdade mal dá pra distinguir as bolinhas depois de cozidas, fica tudo visualmente homogêneo. 

Sagu também leva mais tempo pra cozinhar, o que faz soltar mais polvilho no processo, deixando a sobremesa mais firme no final. O que é ótimo se você quiser fazer um pudim firme (ponto de corte), mas a textura que eu queria era a ultracremosidade da sobremesa que eu tinha provado naquela estação ferroviária francesa. Dá pra corrigir isso usando mais líquido? Sim, mas eu acabei achando uma solução ainda melhor.

Eu já estava quase desistindo de reproduzir o creme de tapioca dos meus sonhos, que tinha que ser muito cremoso e saboroso, quando tive um insight. E se eu usasse tapioca ao invés de sagu? Bingo! Quer dizer, precisei recomeçar os testes pra achar a proporção ideal com o ingrediente novo, mas o resultado valeu a pena. Além de cozinhar mais rápido (e, contrariamente ao sagu, não precisa deixar de molho antes) e poder ser cozinhada diretamente no leite (intensificando o sabor), achei a textura da tapioca ainda mais agradável que a do sagu. Tem alguma coisa a ver com o fato dos grãos terem ângulos, criando uma textura mais interessante que as esferas perfeitamente lisas. Sim, eu passei tanto tempo cozinhando sagu e tapioca que acabei notando esse tipo de sutileza que provavelmente não interessa ninguém. Se você leu até aqui e ainda não revirou os olhos, obrigada.

A tapioca dessa receita é essa aqui, à esquerda. À direita temos sagu.

Minha família serviu de cobaia (teve consentimento) durante todo o processo e servi meus testes em todas as oportunidades que apareceram. Um dia fiz até uma degustação com 4 tipos de textura (tapioca e sagu em versão firme ou cremosa) e duas frutas diferentes! Apesar de todo mundo ter gostado da minha sobremesa, quem realmente adorou foram as outras duas veganas da família. O que me fez tecer algumas reflexões. 

Acredito que o veganismo popular é uma ferramenta de descolonização. Não só da terra, mas também do paladar: uma coisa está intimamente conectada à outra. Lembram da conversa sobre o leite condensado? É exatamente sobre isso. Minha sobrinha Luna, que é vegana, pediu pra eu preparar uma travessa desse creme pra servir pras amigas dela (todas não-veganas). Com excessão de uma, que nem quis comer porque não gosta de sobremesas com frutas, as outras acharam gostoso, mas disseram que se pudessem escolher entre esse creme e qualquer coisa com chocolate e leite condensado, pediriam a segunda opção. E apesar da minha família ter gostado muito, eu sei que se tivessem que fazer esse tipo de escolha também optariam pela sobremesa com leite condensado. E quem ganha (eu deveria dizer “lucra”) quando um país inteiro se torna viciado em um produto que é um concentrado de açúcar e gordura? Como explico lá no artigo sobre leite condensado, uma lata desse produto (395g) tem nada menos que 217g de açúcar e 31,6g de gordura, ou seja, mais da metade (55%) é açúcar. Quem lucra quando nosso paladar só aprecia sobremesas com esse ingrediente “mágico”, nos tornando dependentes das empresas do agroalimentar? 

Na última vez que fiz essa sobremesa, pouco antes de deixar Natal e voltar pra Paris, minha irmã Lu, que também é vegana, compartilhou algo comigo. Ela entrou no quarto onde eu estava e disse: “Acabo de comer o creme de tapioca com manga e enquanto degustava fiquei pensando: ‘Que gratidão eu sinto por ser vegana e poder apreciar a delicadeza desses sabores’”. 

Não, não precisa ser vegana pra gostar dessa sobremesa. Garanto que ela é realmente deliciosa (e minha família não-vegana confirma). Mas se você for, e se for uma vegana como eu, que adora leite de coco fresco e sobremesas com frutas, talvez essa seja a sua futura sobremesa preferida.

Creme de tapioca e coco com abacaxi caramelizado (ou purê de manga)

Inspirada de uma sobremesa das maravilhosas e talentosas Thallita Flor e Ruan Felix, essa é a sobremesa dos meus sonhos: muito cremosa, suave, delicada, refrescante e perfumada. Ela é leve e de doçura comportada, o que faz com que o sabor da fruta seja realçado pelo creme de tapioca e coco, ao invés de ser afogado em açúcar e laticínios. “Tapioca” aqui é um produto à base de polvilho de mandioca, com uma textura (quando crua) que lembra pedrinhas irregulares. Ela é vendida em supermercados, junto com milho pra mungunzá/canjica e tem escrito “tapioca” no pacote (não cofundir com sagu – veja foto acima pra entender a diferença). NÃO CONFUNDIR com o polvilho fresco (goma) usado pra fazer essa tapioca aqui.

5 xícaras de leite de coco fresco encorpado (receita aqui – use um pouco menos de água pro leite ficar mais concentrado)

1/2 xícara de tapioca (os grãos de polvilho de mandioca – veja foto acima)

2 col. de sopa de açúcar (adapte a quantidade ao seu paladar)

2 abacaxis maduros

ou

2 mangas maduras

Eu uma panela funda misture os 3 primeiros ingredientes e leve ao fogo médio. Cozinhe mexendo o tempo todo com uma colher de pau, até a mistura engrossar um pouco (como um mingau mole) e os grãos de tapioca amaciarem (leva uns 12-14 minutos). Recém saído do fogo, vai parecer líquido demais. Confie que conforme esfria, e depois gela, o creme continua engrossando.

Transfira a mistura quente pra um recipiente com tampa, cubra e deixe esfriar em temperatura ambiente enquanto prepara a cobertura de fruta.

Se estiver usando abacaxi, descasque e corte em pedaços pequenos (uso os talos também). Recolha todo o suco que escorrer durante o processo, precisaremos dele também. Transfira os pedaços de abacaxi, mais o suco que escapou enquanto ele era cortado, pra uma panela idealmente com o fundo grosso. Leve ao fogo alto. Primeiro o abacaxi vai ferver e soltar mais líquido, porém à medida que o líquido evapora o açúcar da fruta se concentra e carameliza. Sim, vamos caramelizar o abacaxi sem acrescentar açúcar, usando apenas o açúcar naturalmente presente na fruta. Quando o líquido tiver evaporado e o abacaxi estiver levemente caramelizado, desligue o fogo e deixe esfriar. 

Se estiver usando manga, basta descascar, cortar em pedaços grosseiros e mixar tudo no liquidificador. Não precisa acrescentar mais nada, nem líquido nem açúcar. Está pronto o seu purê de manga (ou “coulis” se você quiser ser chique).

Quando o creme de tapioca estiver frio, transfira colheradas dele (ainda vai estar meio líquido, mas engrossa mais na geladeira) pra copos pequenos e cubra com um pouco do abacaxi caramelizado (frio) ou com o purê de manga. Alternativamente você pode deixar o creme em um recipiente maior, cobrir com a fruta escolhida e fracionar somente na hora de servir (fica menos bonito, mas o sabor é o mesmo). Leve pra geladeira por pelo menos 4 horas antes de servir. Rende o suficiente pra 6-8 pessoas dependendo do tamanho das porções.

Dicas:

-Eu gosto de servir 2/3 de creme pra 1/3 de fruta, mas se quiser uma sobremesa mais frutal (e mais doce) aumente a quantidade de abacaxi/manga e sirva metade/metade.

-A textura fica optimal depois de 4 horas na geladeira. Não tente acelerar o processo colocando no congelador (fiz essa besteira e o creme virou uma gelatina firme em pouquíssimo tempo). 

-Se sobrou creme, no dia seguinte a textura também vai ficar mais pra gelatina do que pra creme (foto acima). Tem quem goste, mas como eu prefiro essa sobremesa bem cremosa, descobri uma maneira de consertar o problema. No dia seguinte misture seu creme com mais leite de coco fresco e gelado, aos poucos, até voltar a ficar no ponto de creme. Claro que só dá pra fazer isso se você não tiver colocado o creme em copinhos e coberto com a fruta. E ao fazer isso (tentar remendar o resto do creme do dia anterior) descobri que fica ainda mais gostoso com essa dose extra de leite de coco cru. Recomendo. 

21 comentários em “Creme de tapioca e coco com abacaxi caramelizado

  1. Querida Sandra, que alegria ler esse post <3
    Minha mãe é famosa (e requisitada) por fazer uma torta de abacaxi que é basicamente a que voce publicou. Só que a torta da minha mãe a ordem é ao contrário do que você montou: o abacaxi caramelizado vem por baixo, depois o creme branco e por cima ela polvilha o côco ralado.
    Todo mundo devora essa torta! Quando os parentes de fora vem pra minha casa eles já deixam avisado que querem comer a torta quando chegarem hahahahhah
    Agora estou propensa a fazer minha versão vegetal da receita e tomar o posto da mamãe. Vou colocar a culpa em você ein… Abraços!

      1. Infelizmente a receita não é vegetal e está cheia de produtos da nestl(eca). Mas aqui vai a receita: 2 litros de leite, 2 colheres sopa margarina, 2 gemas peneiradas, 1 lata leite condensado, 10 colheres rasas de sopa de amido de milho (dissolvido em um pouco de leite). Leva em forno baixo até engrossar mexendo sempre. Essa receita serve pra 2 abacaxis caramelizados.

        1. Imaginei que era algo assim, mesmo. Na minha família também fazem uma sobremesa chamada “Delícia de abacaxi” com um creme (que a gente chama “papa”) bem parecida.

  2. Quando tive que parar de comer doce, umas das sobremesas que mais senti falta foi delícia de abacaxi. E sempre pensava nela. Com certeza vou fazer essa sobremesa.

    Sandra, eu posso não colocar nada de açúcar no creme de tapioca?
    Essa tapioca que você fala, é a goma que fazemos a tapioca ou é outra coisa?

    Abç.,

    PS., adoro as histórias por trás das receitas.

    1. O açúcar entra nessa receita pra adoçar, não tem nenhuma função na estrutura (como é o caso de bolos, por exemplo). Então você coloca a quantidade que quiser e se quiser não colocar nada, fique à vontade. Como expliquei no texto e mostrei na foto, a tapioca que falo aqui é um produto à base de polvilho de mandioca, mas que não é a goma usada pra fazer tapioca. Sei que é confuso ter dois produtos que são feitos com o mesmo ingrediente (goma, que quando desidratada é chamada de “polvilho) e são chamados pelo mesmo nome, por isso fiz questão de explicar mais de uma vez no texto a diferença entre um e outro 😉

      1. Desculpa, Sandra, mas ainda não sei que tapioca é essa. Conheço o sagu, a goma pra fazer a tapioca e os polvilhos doce e azedo. Mas essa tapioca granuladinha, não consigo identificar.

  3. Parece uma delícia, Sandra. Quando eu deixei de comer carne, há três anos, eu estava participando de um curso de meditação, e eu guardo uma lembrança muito gostosa de uma das sobremesas servidas durante o curso: um cuscuz de tapioca feito com leite de aveia e de coco. A textura era bem parecida com o seu creme de tapioca no dia seguinte. Na época eu já sabia que era intolerante a lactose e foi muito gostoso poder apreciar aquele gostinho suave, cheio de afeto e carinho. Virou uma das minhas sobremesas favoritas desde então. Vou testar a sua sugestão também. Um abraço!

  4. A diferença no paladar quando deixamos o leite condensado e diminuímos o açúcar é imensa. Amo sobremesas assim e amo suas receitas. Me lembrou um pouco o cuscuz de tapioca (deve ter outros nomes), é feito colocando a tapioca com coco ralado pra hidratar no leite de coco adoçado, mas ele fica bem firme. Depois servem com mais leite de coco por cima (em alguns lugares leite condensado).

      1. acho que você vai adorar quando provar, eu faço sempre que tenho chance, muito delicada e saborosa a combinação da tapioca com essa fruta maravilhosa que é o côco.

  5. Que coisa boa por voltar a te ler! Sem o insta para trazer seu conteúdo em certa meduda espontaneamente (porque afinal a que preço?), vou me esforçar para vir aqui de vez em quando relembrar essa prosa. 🙂 bjs

  6. Sandra, acabei de ver uma versão dessa sobremesa feita por um restaurante vegano aqui no Rio! Eles chamaram de Tapioca Hidratada no Leite de Coco, Calda de Maracujá e Farelo de Paçoca. Pareceu uma boa combinação também!
    (Fiquei com vontade de te enviar a foto da sobremesa, mas não dá por aqui)

  7. Adoro esse creme de tapioca. Aqui no centro da cidade eles vendem uma versão de corte com muito coco ralado fresco por cima. Eu curto com calda de ameixa, no estilo manjar branco. A galera faz muito com chia, o famoso “pudding”.

  8. Sandra, que receita maravilhosa! Vou fazer, o creme tem a cara da minha bahia 🙂
    Senti sua falta no insta e vim dar um passeio nesse blog sensacional!

    Sinto muito pelo jardim…
    Abraços

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