Sobre resistência

Porque hoje é um dia difícil aqui na França e o risco do domingo terminar com a eleição de uma neofascista como a próxima presidente do país é grande…

Porque comecei um trabalho novo no início do mês e desde então tenho jornadas de trabalho de 10h30 e já não consigo mais manter o antigo ritmo de posts aqui…

Porque estamos atravessando mais uma onda de crimes do colonialismo israelense na Palestina (apesar da violência colonial nunca dar trégua pro povo palestino, só quando ela atinge picos altos a mídia se interessa e isso vira notícia)…

Porque o pessoal que chegou no blog nos últimos tempos não costuma ler os posts antigos e tem muito material interessante, emocionante e inspirador nos arquivos do Papacapim e acho uma pena que ele não chegue a mais pessoas…

Gostaria de repostar a história de três amigas palestinas, que postei separadamente anos atrás, numa série que chamei de “Histórias Palestinas”. Peguem um café, um chá, se instalem confortavelmente no sofá, respirem fundo e se preparem pra revolta, a emoção e, espero, a inspiração que vocês sentirão ao longo dos próximos parágrafos. Estamos atravessando tempos difíceis, mas não podemos abandonar a luta. Sempre que o desespero quer tomar conta de mim lembro das pessoas palestinas, que seguem resistindo apesar de tudo. Se elas ainda estão de pé, lutando, quem sou eu pra baixar os braços e me deixar invadir pela desesperança?

Khoulud, de véu rosa, com a mãe, a avó e duas filhas. Foto Anne Paq.

Khoulud Ayyad tem 32 anos e mora no campo de refugiados de Aida, na região de Belém, com seu marido Ayman e quatro filhos. Sua família é de Ras Abu Ammar, um vilarejo que fica a 14 quilômetros de Jerusalém. Os 719 habitantes de Ras Abu Ammar foram expulsos pelas tropas do recém-criado estado de Israel no dia 21 de outubro de 1948 e o vilarejo foi completamente destruído. Conheci Khoulud em um centro cultural no campo de Aida assim que me mudei pra cá. Trabalhamos um tempo juntas e logo nos tornamos amigas. Ela é uma das pessoas mais fortes que já encontrei e sua história merece ser contada.

“A vida no campo de refugiados nunca foi fácil, mas lembro de um período, quando eu era criança, que as coisas eram ainda piores. Durante a primeira intifada (entre 1987 e 1993) os soldados israelenses entravam no campo o tempo todo e muitas pessoas foram assassinadas. Todo mundo tinha medo de sair de casa e levar um tiro. Lembro que um dia, eu devia ter uns 8 anos, vi dois jovens correndo no campo. Pensei que os soldados estavam os perseguindo então abri a porta de casa e comecei a agitar os braços, chamando eles pra se esconderem ali. Quando meu avô viu a cena me colocou pra dentro e fechou a porta imediatamente. Depois explicou que aqueles jovens não eram palestinos fugindo de soldados israelenses e sim soldados israelenses a paisana correndo atrás de palestinos. Durante a primeira intifada muitos soldados entraram nos campos e nas cidades à paisana pra prender palestinos e ainda continuam fazendo isso.

A adolescência, e as formas de mulher, chegaram muito rápido pra mim e aos 12 anos recebi minha primeira proposta de casamento. A situação econômica era muito difícil e as pessoas se casavam mais jovens do que hoje em dia. Na mesma época um vizinho que era muito próximo da nossa família estava pensando em se casar e quando minha avó disse que eu tinha recebido uma proposta, ele perguntou se também podia pedir minha mão a meu pai. Esse vizinho  era  quinze anos mais velho do que eu e tinha me pegado no colo quando eu era bebê. Desde criancinha eu nutria uma paixão secreta por ele e quando falaram pra eu escolher um dos dois pretendentes eu não hesitei um segundo! Ayman foi preso pela polícia israelense pouco tempo depois e eu tive que esperar ele sair da cadeia pra fazer a festa de noivado. Como eu era jovem demais, esperamos dois anos antes de casar.

As pessoas sentem pena de mim por eu ter me casado aos 14 anos, mas a verdade é que eu casei com o homem que amava e nunca tive nenhum arrependimento. Eu era a melhor aluna da sala, mas depois do casamento abandonei a escola. Eu tinha que cuidar do meu marido, da nossa casa e também dos meus sogros. Por causa da ocupação militar israelense a economia estava parada e depois de ter sido preso várias vezes pelos israelenses Ayman não conseguia arrumar emprego. Aos 15 anos me tornei mãe de gêmeas. Minha mãe, que tinha me tido aos 14 anos, foi avó aos 29! Poucos meses depois, uma das gêmeas morreu e comecei a me sentir muito triste. Eu via minhas colegas de escola passar em frente à minha casa e me olhar com um ar de superioridade, como se elas valessem mais do que eu. Eu sentia falta da escola, dos meus pais, do tempo em que eu ainda podia brincar de boneca e não tinha tantas responsabilidades.  

Alguns anos mais tarde tive meu segundo filho, seguido do terceiro. Meu marido continuava desempregado e nós morávamos, com nossos três filhos, em um pequeno cômodo nos fundos da casa dos meus sogros. Tentei voltar a estudar sozinha algumas vezes, mas as obrigações, a pressão da família e o cansaço sempre me faziam desistir. Quando meu marido finalmente conseguiu um emprego fixo, como motorista de ônibus, começamos a economizar dinheiro pra construir nossa casinha, em cima da casa dos pais deles. Embora feliz pelo meu marido, eu me sentia muito deprimida, enterrada cada vez mais nas obrigações domésticas. De tanto ver o olhar de desprezo das minhas antigas colegas de escola acabei me convencendo de que eu não tinha valor nenhum.

Khoulud é uma ótima cozinheira e sempre nos convida pra degustar seus quitutes. Nessa foto ela está com Anne, Celine (irmã de Anne) e o marido.

No dia em que nos mudamos pra nossa nova casa, que era pequena, mas que pelo menos tinha um quarto, sala, cozinha e banheiro, me debrucei na janela e fiquei olhando a rua lá embaixo. Eu tinha 24 anos e ainda sonhava em terminar meus estudos, mas meu sonho parecia cada vez mais distante. Ayman veio pro meu lado e vendo minha tristeza disse: ‘Quero que você volte a estudar. Vai ser difícil, as pessoas vão falar que é tarde demais, que você deveria estar em casa cuidando dos filhos, mas eu quero que você ignore todos os comentários que elas possam fazer e siga em frente. Eu te darei todo o apoio que você precisar.’ No dia seguinte, dez anos depois de ter abandonado a escola, eu voltei a estudar. Fazia tanto tempo que eu não pegava em um lápis que tive dificuldades pra escrever no início. Comecei um supletivo intensivo, que me permitiria terminar o ginásio e o segundo grau em apenas um ano, e estudava o tempo todo pra recuperar o tempo perdido. Começaram a falar muito de mim, como meu marido tinha previsto, mas isso não me atingia mais. Ayman estava do meu lado e eu não ia deixar mais nada impedir meus planos de se realizarem.

Poucos dias antes das provas de final de ano (“taugihi”, equivalente do  nosso vestibular) meu cunhado Ali foi assassinado por um soldado israelense.  Naquele dia os soldados tinham cercado o campo e atiravam pra todos os lados. Ali foi prestar socorro a alguns feridos que estavam na rua quando um soldado o viu e atirou pra matar. Meu marido e toda a sua família ficaram devastados e de repente, no meio de tanta dor, injustiça e revolta, terminar meus estudos parecia algo tão sem importância. Eu segui em frente, mas sem a convicção do começo do ano. Ninguém mais acreditava que eu seria capaz de completar o supletivo e no dia seguinte às provas finais meus parentes começaram a me visitar pra dizer que eu não deveria ficar triste quando recebesse os resultados, que eu tinha me esforçado, mas esse negócio de estudar já não era mais pra mim. Qual não foi a surpresa deles quando cheguei em casa com um papel da escola dizendo não somente que eu tinha passado nas provas, mas que minhas notas tinham sido as melhores de toda a Cisjordânia naquele ano! Eu não cabia em mim de felicidade e dois jornais de Belém publicaram artigos sobre minha proeza. (Khoulud guarda até hoje os jornais e me mostrou um deles onde tinha escrito: ‘Depois de dez anos sem estudar, uma mulher do campo de Aida passa em primeiro lugar no taugihi’). Graças às minhas excelentes notas a Universidade Americana de Jenine (no norte da Cisjordânia) me ofereceu uma bolsa de estudos. Como eu não queria ficar longe da minha família, tive que recusar a oferta. Felizmente a Universidade de Belém também me ofereceu uma bolsa de estudos e pude realizar o maior sonho da minha vida: fazer faculdade.

Comecei a estudar Língua e Literatura Inglesa e assim que terminei o curso consegui um emprego de professora. Eu estava grávida do meu quarto filho quando duas amigas francesas, Anne e Caroline, que conheciam minha vontade de aprender, me perguntaram se eu gostaria de fazer um mestrado. Respondi que sim, mas que meu salário de professora, mesmo junto com o salário de motorista de Ayman, não me permitia ir tão longe (na Palestina só existem universidades particulares e o custo de um curso superior ou mestrado são bastante elevados). Elas me ajudaram a preparar uma carta onde eu contava minha história, que enviamos em seguida à algumas ONGs européias que financiam a educação de mulheres em países pobres. No dia que dei a luz à minha caçula, recebi o telefonema de uma associação belga dizendo que eles estavam dispostos a custear meu mestrado.

Khoulud segurando o seu diploma de mestrado. Foto Anne Paq.

Os anos de mestrado foram os mais difíceis da minha vida. Eu trabalhava das 8 às 14 horas e como a escola fica em um vilarejo um pouco distante de Belém, eu saía de casa às seis e meia da manhã e só voltava depois das três da tarde.  Minha mãe cuidava do bebê enquanto eu trabalhava e na volta da escola eu passava pela casa dela pra pegá-lo. Chegando em casa eu tinha que preparar comida pras crianças, ajudá-las a fazer a lição, limpar a casa… tudo em poucas horas. Às cinco da tarde Ayman chegava do trabalho e eu saía pra universidade, onde eu ia três vezes por semana pra assistir às aulas do mestrado. Eu voltava pra casa de noite e depois de dar banho no bebê, fazer o jantar e colocar as crianças pra dormir eu tinha que preparar a aula dos meus alunos e estudar pro mestrado. Eu só ia dormir às duas da manhã e no dia seguinte me levantava às cinco pra preparar o café das crianças, deixar as grandes na escola e o bebê na casa de minha mãe, antes de ir pro centro de Belém pegar o ônibus que me levaria pro trabalho. Às vezes, por causa dos check points (barragens militares israelenses dentro dos territórios palestinos, onde os soldados controlam a identidade dos palestinos e decidem quem pode ou não passar), a viagem que podia ser feita em poucos minutos levava mais de uma hora. Eu só tinha um dia de folga por semana e aproveitava pra fazer pesquisas e escrever minha dissertação. Até hoje quando penso no meu mestrado me pergunto como consegui ir até o final. Se antes de ter começado alguém me dissesse que eu teria que enfrentar tudo aquilo, eu teria dito que nunca seria capaz de passar por cima dessas dificuldades. Mas consegui. Quando recebi meu diploma de mestrado ano passado Ayman fez uma grande festa e chamou toda a família. Ele trouxe um bolo imenso, com minha foto colada na cobertura e tudo, enquadrou meu diploma e pregou na parede da sala. Ele estava tão orgulhoso de mim! Ayman nunca fez faculdade e hoje me olha cheio de admiração.

Com o marido e Sheraze, a filha caçula. Foto: Anne Paq.

Nossa vida mudou muito. A ocupação israelense continua e os check points aumentam a cada ano. O muro construído por Israel passa ao lado do campo e roubou mais um pedaço das nossas terras. Ainda não temos o direito de entrar em Jerusalém. O exército ainda invade o campo semanalmente. Perdi a conta do número de vezes que os soldados entraram na minha casa no meio da noite, nos colocaram pra fora e nos deixaram esperando no frio, às vezes embaixo de chuva, durante horas, sem razão nenhuma. É sempre mais difícil quando você tem crianças pequenas e é obrigada a tirá-las da cama porque os soldados estão gritando no seu ouvido e quebrando os seus móveis. Numa noite muito fria fiquei com tanta pena de colocar meus filhos, tão pequenininhos, na rua que disse aos soldados que não ia sair de casa coisa nenhuma, mas eles nos obrigaram a sair e fiquei horas em pé, com o bebê nos braços e os outros chorando agarrados às minhas pernas, sentindo a dor terrível que é não poder proteger os próprios filhos. Nossos dias são tão duros e de noite não temos o direito de colocar a cabeça no travesseiro e descansar porque os soldados israelenses invadem nossa casa, nosso quarto, nosso sono…  E depois eles dizem que somos nós os terroristas! Mas a gente continua lutando. Graças aos nossos esforços, reformamos nossa casa e pudemos comprar móveis melhores. Continuo trabalhando como professora de Inglês e Ayman ainda é motorista de ônibus. Nossa caçula vai fazer quatro anos em breve e já posso pensar no meu próximo objetivo: fazer doutorado. Só falta encontrar uma organização que queira me ajudar a realizar mais esse sonho.”

Khoulud sempre me recebeu, independente do quão cansada e ocupada estivesse, com um grande sorriso no rosto e um copo de chá na mão. Nos conhecemos há quatro anos e nunca, nunca escutei ela reclamar, somente agradecer as oportunidades que a vida ofereceu e o apoio incondicional do seu marido. Sua determinação me inspira e minha admiração por ela é imensa. Vi várias pessoas ficarem impressionadíssimas com a escolha de vida que fiz, ter deixado pra trás um mestrado em Paris pra ir morar na Palestina e trabalhar em um campo de refugiados, declarando que sou muito corajosa. Quando isso acontece eu agradeço o elogio, embora sinta que não o mereço, mas só consigo pensar em uma coisa: “Ah, se vocês conhecessem Khoulud…”

(Texto originalmente publicado aqui, no dia 24 de maio de 2012)

Campo de refugiados de Deheisha. Foto Anne Paq.

Eu fiz amizade com Mustafa assim que me mudei pra cá, quatro anos atrás. Ele trabalha como fisioterapeuta e é meu tradutor voluntário no projeto no campo de Aida. Acabei conhecendo toda a família de Mustafa e fiquei muito próxima da esposa dele, Draguitsa. Ele estudou fisioterapia na Iugoslávia, onde conheceu Draguitsa, que vem da Bósnia. Eles se casaram na Europa, tiveram seu primeiro filho por lá e Mustafa voltou pra casa, acompanhado de sua pequena família, quase vinte anos atrás. Ambos falam Inglês perfeitamente e tive o prazer de ser convidada pra almoçar na casa deles várias vezes (Draguitsa é uma excelente cozinheira). Aos poucos fui descobrindo a história de Mustafa. Ele me contou como perdeu o emprego em Jerusalém depois de ter recusado se tornar um espião pro governo israelense. Ofereceram muito dinheiro em troca de informações sobre os seus pacientes palestinos. Ele se recusou a trair seu povo e como punição perdeu o direito de entrar em Jerusalém. Todo palestino precisa de uma permissão dada pelo governo israelense pra entrar em Jerusalém e Mustafa nunca mais conseguirá uma. Desde então ele trabalha como funcionário temporário, sem contrato oficial, pra UNRWA (agência da ONU que trata das questões relacionadas com os refugiados palestinos), mas somente na região de Belém. Draguitsa foi obrigada a esperar 15 anos antes de obter um visto de residência. Tudo aqui é controlado pelo governo israelense e durante todos esses anos eles recusaram seu pedido de residência na Palestina. Draguitsa, morando ilegalmente em Belém, corria o risco de ser expulsa do país a qualquer momento e ficou todos esses anos sem visitar a família na Bósnia. Um dia a administração israelense telefonou pra sua casa. Ela se encheu de esperança achando que a funcionária do outro lado da linha anunciaria a legalização da sua situação, mas a única coisa que ela disse à Draguitsa foi “Você casou com o homem errado”. “Errado” porque desde que se recusou a espionar contra o seu povo Mustafa entrou pra lista negra do governo israelense. Em uma das visitas à casa de Mustafa encontrei o seu pai. Mustafa me contou um pouco sobre a vida dele e como na época eu escrevia pro, hoje defunto, Jornal da Fotografia de Natal resolvi dedicar um artigo a esse senhor. Voltei lá alguns dias depois e entrevistei Mohamad, o pai de Mustafa. A história que ele me contou dois anos atrás é a que eu gostaria de contar pra vocês hoje.

Mustafa (à direita) com o pai, Mohamad, e o filho caçula, Aissa. Três gerações de refugiados.

Meu nome é Mohamad Alafandi, tenho 76 anos e moro no campo de refugiados de Deheisha, na região de Belém. Nasci em Dayr Aban, a 21 km de Jerusalém, no que então ainda era a Palestina. Minha cidade resistiu enquanto pôde à invasão sionista, o que custou a vida de quarenta habitantes. A gente só tinha dois fuzis e os homens se revezavam pra defender nossas casas. Mas o exército sionista era muito mais bem equipado. No dia 18 de outubro de 1948 os soldados do recém-criado estado de Israel invadiram minha cidade e obrigaram a população a partir sem poder carregar absolutamente nada, abandonando nossas terras, casas, animais e pertences, deixando toda a nossa sua vida para trás. Eu tinha 14 anos quando isso aconteceu. Meu pai não suportou tão duro golpe e sofreu um derrame que o deixou paralisado. Fui obrigado a carregar meu pai nas costas durante todo o tempo em que caminhamos. Minha família errou durante um ano e meio, andando de cidade em cidade procurando um lugar para viver. Meu pai morreu um ano depois de ter sido expulso de sua cidade natal e eu, como filho mais velho, tive que tomar conta da minha mãe e dos meus irmãos. Acabamos chegando em Deheisha, um dos inúmeros campos criados pela ONU. Esses campos, organizados como solução temporária ao problema dos refugiados palestinos, não passavam de gigantescas aglomerações de tendas de lona. As famílias tiveram que suportar a fome, a falta de água, a neve no inverno e o calor sufocante no verão. Apesar das condições extremamente difíceis, os refugiados permaneceram nos campos, pois, assim como a minha família, eles não tinham para aonde ir. 

Eu tenho sete filhos homens. Eu e todos os meus filhos passamos pelas cadeias israelenses. Um dos meus filhos foi preso quando tinha apenas quatorze anos e ficou quatro anos na cadeia. Até hoje ninguém sabe que crime ele cometeu, nunca houve acusação formal. Meu filho caçula está preso há dezoito anos. Ele foi condenado a trinta anos de prisão por ter se defendido de um ataque de colonos israelenses. Meus outros filhos foram presos porque estavam no lugar errado, na hora errada. Eu fui preso duas vezes. Em 1984 visitei as ruinas de Dayr Aban. Estava colhendo ervas, para levar para casa como recordação da minha antiga cidade, quando a polícia israelense chegou. Primeiro os policiais me espancaram, depois me levaram pra cadeia, pois segundo eles eu não tinha permissão pra estar naquele lugar. Alguns anos mais tarde, soldados israelenses invadiram minha casa em Deheisha e agrediram meus netos. Tentei proteger os meninos e fui parar na cadeia pela segunda vez. Quatro dos meus netos já foram presos, sempre por motivos semelhantes aos que levaram meus filhos pra cadeia (estar no lugar errado, na hora errada). Um deles perdeu a mão ainda criança por causa de uma granada lançada pelos soldados israelenses, durante uma das inúmeras invasões ao campo. Outro neto meu socorria um vizinho ferido pelos soldados israelenses quando foi baleado no ombro. O menino tinha quatorze anos e perdeu os movimentos do braço. Há dois anos meu neto Kussai foi a Belém cortar o cabelo com os amigos. No caminho eles passaram por um jipe militar israelense, que abriu fogo contra o grupo ferindo várias pessoas e matando Kussai. Os soldados usaram um tipo especial de bala que explode no interior do corpo, fazendo com que as chances de sobrevivência sejam zero. Meu neto tinha dezesseis anos.

Mas eu não perdi as esperanças. (Mohamad faz um movimento com a mão na direção dos netos, os filhos de Mustafa, que brincam do lado) Acredito nas crianças. Eu estou velho e cansado, mas elas vão crescer, lutar pelo nosso país e todos voltarão a ser livres, longe dos campos de refugiados e da crueldade da ocupação israelense. Tenho fé que vou terminar minha vida em paz e serei enterrado na terra que pertenceu aos meus antepassados.

Assim como os outros milhões de refugiados palestinos, Mohamad Alafandi ainda guarda a chave e a escritura da casa que um dia foi sua. Antes de ir embora ele disse “Por favor, conte essa história no seu país. As pessoas precisam saber o que estão fazendo com a gente.” Como expliquei mais acima, Mohamad Alafandi me contou sua história dois anos atrás. Hoje ele está com 78 anos e já não pode mais visitar seu filho caçula na cadeia. Eu quis começar a série de posts sobre os palestinos contando a história de Mohamad por uma razão. Sua saúde está cada vez mais frágil e meu querido amigo Mustafa, que cuida do pai, assim como seu pai cuidou do avô, anda muito abatido. Mohamad está se despedindo desse mundo e a situação só fez piorar nos últimos dois anos. Ele não vai poder ver sua terra (Dayr Aban foi destruída e uma cidade israelense foi construída sobre as ruínas), nem ser enterrado lá. Mas enquanto a vida ainda sopra em seus pulmões eu vou fazer o que ele me pediu e contar sua história ao maior número de pessoas que eu puder.

(Texto originalmente publicado no dia 25 de abril de 2012. O pai de Mustafa, Mohamad, faleceu alguns anos atrás e foi enterrado no campo de refugiados.)

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Conheci Tareq na ONG palestina onde eu trabalhei durante meus dois primeiros anos aqui. Ele participava do grupo de teatro e me ajudou a organizar atividades físicas pros meus “alunos” uma vez por semana e a montar uma peça com as crianças do grupo, ensinando a importância de escovar os dentes. Nossa amizade foi crescendo com o tempo e também me tornei muito próxima da esposa dele, Sara. Ele é professor de tecnologia em uma escola secundária, ela é tradutora e juntos eles formam um dos poucos casais que conheço aqui que desafiaram a tradição e se casaram por amor (geralmente os casamentos são organizados pelas famílias).

Tareq tem dois filhos e mora com a família no campo de refugiados de Al Arroub, 15km ao sul de Belém. Um campo que tem apenas 0,24km², mas que abriga mais de 10 mil pessoas (fonte ONU). A situação desse campo é ainda mais difícil do que nos campos onde trabalho aqui em Belém. Ele foi construído em 1949 ao longo da estrada 60, que liga Belém à Hebron, mas nas últimas décadas essa região da Cisjordânia foi invadida por colônias ilegais israelenses e hoje os colonos usam a estrada 60, junto com os palestinos, pra se locomover entre elas (algumas estradas que cortam a Cisjordânia são exclusivas pros colonos israelenses, uma das razões pra afirmar que a ocupação israelense também é um sistema de apartheid). Com a desculpa de proteger os colonos que passam pela estrada, o campo é totalmente controlado pelo exército israelense. Existem duas entradas: uma fechada com blocos de concreto (colocados ali pelo exército) e que só pode ser utilizada por pedestres e outra, a entrada pros carros, fechada por um portão controlado pelos soldados. Uma cerca metálica coberta de arame farpado cria uma barreira física entre as primeiras casas do campo e a estrada. Duas torres militares, uma na frente de cada entrada, e dezenas de soldados armados até os dentes completam a “segurança”. Entrar em Al Arroub é sempre penoso e não sei se um dia me acostumarei com as cenas que vemos por lá, como soldados instalados na entrada do campo, apontando suas metralhadoras pras crianças jogando bola na rua.

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Tareq segurando Watan, seu o primeiro filho, na maternidade.

Nos últimos cinco anos eu acompanhei as mudanças na vida de Tareq e Sara: as várias casas por onde eles passaram, o novo emprego de Sara (que começou a trabalhar como tradutora com os Médicos sem Fronteiras), o nascimento dos meninos, a morte do pai de Tareq, as aventuras dele tentando sair da Palestina…  Tareq deixou de ser um amigo e se tornou um irmão. E é com muita honra que eu apresento pra vocês hoje o meu irmão palestino, uma das pessoas mais generosas e gentis que eu tive a sorte de conhecer.

“Meus pais nasceram em Iraq Al-Manshya, um cidadezinha no litoral da Palestina histórica, entre Jafa e Gaza.  Meu pai era agricultor e junto com a família cultivava laranjas e outras frutas cítricas. Em 1948, quando as tropas sionistas invadiram nosso vilarejo, meu pai tinha 20 anos. Fazia já algum tempo que as notícias de expulsões e massacres de palestinos por soldados sionistas chegavam por lá e algumas pessoas tinham abandonado suas casas com medo do que iria acontecer quando a vez de Iraq Al-Manshya chegasse. Toda a população recebeu ordem de ir embora, mas muitas pessoas se recusaram a abandonar suas terras. Os que tentaram ficar foram executados e meu pai perdeu muitos amigos e um irmão. A família do meu pai foi pra Hebron (no sul da Cisjordânia). Quando eles chegaram lá, os habitantes da cidade se compadeceram com o triste destino dos refugiados e os acolheram em suas casas. Alguns meses depois eles escutaram que a ONU estava reagrupando o pessoal em campos de refugiados, na espera do retorno. Foi assim que a família da minha mãe, que também é de Iraq Al-Manshya, e a do meu pai vieram parar em Al Arroub. Um dia, em uma viagem organizada pela escola, fomos à Jafa ver o mar (a antiga cidade de Jafa foi anexada à Tel Aviv). No caminho eu vi uma placa indicando Qiryat Gat, a cidade israelense construída sobre as ruinas da nossa cidade, e pedi ao motorista pra passar por lá. Quando vi aquelas pessoas, que moram hoje nas terras que um dia pertenceram ao meu pai, olhando pra mim como se eu fosse um estrangeiro que não tinha direito nenhum de estar ali meu sangue ferveu e a revolta tomou conta de mim. O professor que tinha organizado a viagem sabia que minha família vinha dali e quando viu o meu estado ficou com pena de mim e disse ao motorista pra dar meia volta.

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Tareq, Watan e Sara.

Eu nasci em Belém, pois é lá que fica a maternidade mais próxima do campo. Minha infância em Al Arroub foi marcada pela presença constante do exército israelense. Toda criança sonha em ser um super herói e fazer coisas incríveis. Quando eu era pequeno lembro que todas as crianças do campo sonhavam em ter super poderes pra lutar contra os soldados israelenses. Eles estavam sempre por perto, batendo nas pessoas, prendendo nossos familiares, jogando gás lacrimogênio em quem passava pela rua, atirando na gente… Então eu e meus amigos jogávamos pedras nos soldados. Na nossa ingenuidade achávamos que podíamos defender o campo com pedras. Pedras contra metralhadoras. Pedras contra jipes blindados. Crianças contra soldados armados até os dentes. Mas a gente não tinha medo nenhum, aquilo tinha se tornado um jogo. Lembro que um dia, eu tinha seis anos, eu estava jogando pedras nos soldados do outro lado da rua e quando me abaixei pra pegar mais pedras vi um coturno. Levantei a cabeça e vi um soldado olhando brabo pra mim. Corri com todas as minhas forças e entrei feito um foguete em casa. Troquei imediatamente de roupa e sentei na sala com o ar mais inocente do mundo. O soldado me seguiu, claro, e entrou gritando na minha casa. Meus pais tinham saído e eu estava só com uma das minhas irmãs. O soldado disse que ia me prender porque eu estava jogando pedras. Eu, com a minha melhor cara de santo, disse: ‘Eu? Eu estava aqui dormindo, olha só, ainda estou de pijamas!’ (risos) Mas o soldado me reconheceu – era o dono do coturno- e me levou pra base militar que eles tinham instalado na entrada do campo. Ele me colocou sentado no chão, na frente da base, embaixo do sol quente durante horas. Eu estava com muita sede e calor, mas não podia sair de lá. O soldado que me prendeu proibiu os outros de me darem água, mas não me importei pois era Ramadan e eu estava fazendo o jejum (durante o mês do Ramadan muçulmanos não comem nem bebem nada, nem água, entre o nascer e o pôr do sol). Meus pais não queriam que eu jejuasse, pois eu ainda era muito pequeno, mas quis dar uma de forte e disse que naquele ano eu ia tentar. Mais tarde um soldado ficou com pena de mim, um garotinho de seis anos sentado naquele asfalto quente, e me ofereceu água. Eu disse que não queria porque estava fazendo o jejum do Ramadan. O soldado que me prendeu escutou isso e imediatamente mudou de ideia com relação à água: ele veio correndo, tomou a garrafa das mãos do outro soldado e me obrigou a beber. Eu travei os dentes, mas ele empurrou a garrafa com tanta violência que machucou minha boca, então tive beber a água. Fiquei cinco horas ali, até que uma tia minha apareceu–meus pais ainda não tinham voltado pra casa- e conseguiu convencer os soldados a me liberar. Durante minha infância fui levado pra base militar várias vezes. Às vezes me pegavam na rua, às vezes vinham me pegar dentro de casa… Apanhei muito dos soldados, mas esse episódio ficou profundamente gravado na minha memória, pois corria um boato que os colonos levavam as crianças do campo pras colônias e as matavam. Era um boato infundado, mas aos seis anos essa história me assombrava. Naquele dia, enquanto eu esperava ser liberado, sentado no asfalto quente, um carro cheio de colonos parou em frente à base e eles começaram a discutir em Hebraico com os soldados. Pensei que minha hora tinha chegado e que os colonos me levariam embora e me matariam. Ainda não consegui esquecer o terror que senti naquele dia.

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Entrada do campo Al Arroub.

A pior lembrança que tenho da minha infância aconteceu nesse mesmo ano. Um dia eu estava brincando em frente à casa dos meus pais com outros meninos da minha idade. Mais longe tinha um grupo de rapazes jogando pedras nos soldados que, pela milionésima vez, invadiam o campo. Um deles veio correndo na nossa direção, fugindo dos soldados. Mas atrás do meu grupinho tinha um sniper (atirador de elite do exército) e quando o rapaz estava a poucos metros de mim o soldado atirou na testa dele e ele caiu morto nos meus pés. Eu tinha seis anos, mas essa imagem continua muito viva na minha mente.

Ser adolescente em um campo de refugiados é difícil. Não tem nada pra fazer e o campo estava sempre cercado de soldados. Pra me divertir eu jogava futebol com os amigos, às vezes íamos passear em Belém e só. Um dia, eu tinha 17 anos, eu estava na entrada do campo, quando avistei um amigo do meu tio do outro lado da estrada, esperando o ônibus. Começamos a conversar, cada um de um lado da estrada. Ele pedia notícias do meu tio, que não via há tempos, quando de repente um colono israelense puxou o carro pra cima do amigo do meu tio, jogando o corpo dele longe. Infelizmente esse tipo de acontecimento não é raro por aqui. Vários habitantes do campo perderam a vida dessa maneira, sendo atropelados –de propósito- ou baleados por colonos. O exército, sempre presente, nunca prende os colonos assassinos e na maioria das vezes invade o campo e coloca a população sob toque de recolher, punindo a gente, as vítimas, ao invés de fazer justiça. Nunca vou esquecer o rosto do colono que matou o amigo do meu tio. Lembro do rosto dele, do cabelo, mas o que mais me marcou foi a expressão que ele tinha: ele estava transfigurado pelo ódio. O amigo do meu tio morreu na hora e o seu assassino nunca foi julgado.

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Rua principal do campo.

Eu frequentei a escola da UNRWA (agência da ONU que cuida dos refugiados palestinos) aqui do campo e fui fazer o segundo grau em Beit Umar, uma cidade vizinha. Na época não tinha segundo grau aqui, hoje já tem. Durante toda a minha adolescência sonhei em entrar pra Universidade de Belém. É provavelmente a melhor universidade da Cisjordânia, então imagina a minha alegria quando consegui me matricular lá. Aos 18 anos comecei a estudar fisioterapia. No primeiro dia de aula eu não cabia em mim de alegria: meu sonho tinha se realizado! Cheguei em casa feliz da vida, mas essa felicidade durou pouco. Durante a noite dezenas de soldados invadiram minha casa pra me prender. Eu estava dormindo e demorei um pouco pra entender aquela algazarra. Meus pais, meus irmãos, todos tentaram impedir os soldados de me levarem, mas fui arrancado da cama, vendado, algemado e jogado dentro de um veículo militar. Não me deixaram nem trocar de roupa e fui de pijamas. Dentro do jipe fui espancado pelos soldados e eu, algemado e vendado, nem podia proteger o meu corpo. O comandante me perguntou: ‘Se eu tirar suas algemas você vai bater em mim?’ Respondi: ‘Tire minhas algumas e você descobre’, o que fez com que os soldados me batessem com mais força ainda. Não senti medo, só raiva, muita raiva. Eu me perguntava por que aquilo estava acontecendo. Eu não jogava pedras desde criança, era um universitário, o que eu tinha feito de errado? Só depois entendi a razão da minha prisão. Um jovem do campo tinha sido preso um dia antes enquanto jogava pedras nos soldados e durante o interrogatório os soldados falaram que ele só sairia dali se desse os nomes de todos os jovens que estavam jogando pedras naquele dia. O medo fez com que ele dissesse os nomes de vários rapazes que ele conhecia e, falta de sorte, ele lembrou de mim nessa hora.

Primeiro me levaram pra uma base militar perto da colônia que fica aqui perto e me colocaram imediatamente em uma cela. Só dois dias depois comecei a ser interrogado. Durante o interrogatório me falaram que o rapaz tinha assinado uma declaração que me condenava. Meus crimes? Jogar pedras nos soldados, pichar muros, colocar bandeiras palestinas nas casas do campo e participar do grêmio estudantil. Eu disse que aquilo tudo era mentira e me recusei a assinar o papel que dizia que eu era culpado. Fui interrogado novamente no dia seguinte e como eu me recusava a ‘colaborar’ fui torturado durante horas. Eu estava cansado, machucado e faminto, mas o fato de estar falando a verdade me dava forças pra continuar me recusando a assinar a tal declaração. Falei: ’Tudo que eu tinha pra dizer eu já disse e vocês podem me bater o quanto quiser, a verdade não vai mudar’. Então, como punição pela insolência, me colocaram na ‘louca’. É assim que a gente chama um cubículo que serve de cela, com 1m de altura por um 1 m de largura. Não dá pra ficar em pé, nem pra deitar no chão. Não tem janela e a luz forte fica acesa 24h por dia, nos impedindo de dormir. Tem também um alto falante e uma câmera. Quando os soldados viam que eu estava adormecendo eles ligavam o alto falante no volume máximo e eu acordava assustado. Eu só podia ir ao banheiro uma vez por dia, no resto do tempo tinha que usar o penico que ficava dentro da cela e que empestava o ar. Por isso a gente chama essa cela de ‘a louca’, porque quem passa por ela acaba endoidando. Eu fiquei 21 dias lá dentro.

Depois me transferiram pra uma prisão em Israel, perto de Jafa, um lugar temido por todos, pois lá você passa por interrogatórios constantes e os soldados são extremamente violentos. Fiquei mais de um mês por lá e, dois meses depois de ter sido preso, fui julgado por uma corte militar. Fui declarado culpado de tudo e condenado a 10 meses de prisão. Os dois meses que passei preso antes da condenação não foram deduzidos da minha pena e no final fiquei um ano inteiro preso. Fui transferido pra uma cadeia no norte da Cisjordânia, entre Jenine e Nazaré. Lá fiz amizade com prisioneiros mais velhos, aprendi muito sobre a situação dos prisioneiros palestinos e comecei a me interessar por política. Um dia encontrei o jovem do campo que tinha me delatado. Quando me viu ele começou a tremer de medo, achando que eu ia bater nele. Eu disse: ‘Fique tranquilo rapaz, eu não te quero mal nenhum. Quem sabe se, no seu lugar, eu não teria feito a mesma coisa?’

Quando terminei de cumprir minha pena tive que passar pela sala de um comandante, que assinaria a minha liberação. No momento em que fui preso eu era um jovem feliz por estar ingressando a faculdade, de cabelos longos. Na prisão eu cortei o cabelo, deixei a barba crescer e meu rosto ficou muito marcado. O comandante olhou pra minha foto no dia que fui preso e pra minha cara e perguntou: ‘Esse aqui na foto é você, mesmo? Jovem, cabeludo, sorridente?’ Expliquei que antes de ser preso nunca tinha me interessado por política nem sobre resistência, mas que graças à prisão eu tinha feito um curso completo e que agora ia ser muito mais ativo na defesa do meu país. A prisão faz isso com a gente. É tanta injustiça, tanta violência que mesmo o jovem mais inconsequente fica com desejo de se tornar um militante e lutar contra o sistema brutal da ocupação israelense.

No dia em que saí da prisão um soldado me levou de jipe até o check point mais próximo. Quando ele abriu a porta eu quase não acreditei. Nem conseguia sair do jipe e perguntei hesitante: ‘Posso ir, mesmo?’ Saí andando e o sentimento que me invadiu ao ver pessoas rindo, árvores, a estrada… nem sei como descrever com palavras. Eu só descobri o valor de poder andar livremente quando perdi a minha liberdade. Do outro lado do check point meus amigos me esperavam. Eu disse pra minha família que não precisava ir me pegar, que eu ia chegar com os amigos. Que alegria senti dentro daquele carro, me aproximando cada vez mais da minha família. Mas foi difícil voltar à vida normal. Meu corpo estava de volta a Al Arroub, mas minha mente levou três meses pra sair da prisão. Na primeira noite que passei em casa eu acordei às seis da manhã e sentei na cama esperando ser contado. Na prisão os guardas contam os prisioneiros três vezes por dias, às seis da manhã, no meio do dia e à noite. Fiquei esperando alguns minutos, sentado na escuridão do meu quarto, quando percebi que os guardas não viriam porque eu estava em casa. Que alívio!

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Pintura na parede de uma casa do campo.

Além de ter perdido uma ano da minha vida na prisão, perdi o direito de estudar o curso que eu tinha escolhido. Quando comecei fisioterapia era o primeiro ano do curso na faculdade e eles decidiram esperar essa primeira turma se formar antes de abrir outra. Ou seja, eu teria que esperar três anos pra poder estudar fisioterapia novamente. Acabei mudando de curso e estudando química. A segunda intifada começou quando eu estava na faculdade. Naquela época sair do campo se tornou muito difícil, pois tinha sempre toques de recolher e pegar a estrada que liga o campo à Belém tinha se tornado muito perigoso. Então pra poder ir às aulas eu ia do campo até Belém a pé, evitando as estradas e passando pelas colinas, o que tornava o percurso muito mais longo. Entre a ida e a volta eu andava quase 50 km por dia, por dentro do mato, me escondendo dos soldados, mas eu não queria interromper meus estudos novamente. Consegui me formar e hoje eu sou professor na escola secundária da UNRWA no campo, a mesma onde estudei.

Um dia fiz um curso de Inglês em Ramala (cidade no norte da Cisjordânia) e a professora, uma jovem recém diplomada, me encantou imediatamente. Comecei a namorar Sara logo depois e nunca mais nos separamos. Um ano depois do casamento nasceu o nosso primeiro filho. Eu escolhi chama-lo ‘Watan’, que significa ‘pátria’ em Árabe. Anos depois fui à Jordânia e quando atravessei a fronteira (controlada pelos israelenses) o soldado que verificava minha identidade perguntou: ‘Por que o seu filho se chama Watan?’ O serviço de informação israelense é extremamente eficaz e eles sabem absolutamente tudo sobre nós: o que estudamos, onde trabalhamos, nome e apelido dos nossos filhos… Somos vigiados e controlados 24h por dia, 365 dias por ano. Respondi: ‘Porque assim eu tenho, enfim, uma pátria!’

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Aniversário de Tareq ano passado (com Watan, eu e duas amigas belgas).

Depois de ter passado pela prisão israelense ficamos fichados durante anos, sem poder sair da Cisjordânia. Eu ia até a fronteira (sempre a fronteira com a Jordânia, já que essa é a única porta de saída pros palestinos), os soldados colocavam o número da minha identidade no computador e pronto: minha passagem pela prisão aparecia e eles se recusavam a me deixar passar. A única maneira de saber se seu nome saiu da lista é tentando atravessar a fronteira, então eu voltava, de novo e de novo. Numa dessas vezes eu estava tentando ir pra Itália, pois tinha ganhado uma bolsa de estudos lá. Mais tarde ganhei outra bolsa de estudos, dessa vez pra Grécia. Quantas oportunidades perdidas! Ou melhor, quantas oportunidades me foram roubadas! Depois de formado recebi uma ótima proposta de trabalho no Catar e mais uma vez tive que engolir o NÃO dos soldados, que me impediram de sair do território. Esperei quase dez anos pra poder sair da Palestina. Ao todo foram doze tentativas frustradas. Passei um ano na prisão e mais dez anos preso dentro do meu próprio país.

Hoje o meu nome foi retirado, enfim, do sistema e pude sair do território duas vezes. Na primeira vez fui visitar uns parentes na Jordânia. Na segunda, fui participar de uma turnê de teatro na Europa. Eu sou professor, mas minha verdadeira paixão é o teatro. Participei de uma peça montada pelo centro cultural do campo de Aida (em Belém) e conseguimos financiamento pra sair em turnê no verão de 2011. Fomos pra França, Luxemburgo e Bélgica. Depois de ter visitado esses países as injustiças que sofremos aqui me pareceram ainda maiores.

Apesar de hoje poder sair da Cisjordânia, continuo sem poder entrar em Jerusalém. Todo palestino da Cisjordânia precisa de uma autorização de Israel pra entrar em Jerusalém e, como eu passei pela prisão, é praticamente impossível obter uma autorização. Meses atrás eu dei entrada no visto pros EUA, pois pretendo visitar um primo que mora lá e ver se é uma boa ideia morar um tempo nesse país. Enviei os documentos através de uma agência, mas o visto deve ser retirado pessoalmente no consulado. Como meu pedido de autorização pra ir à Jerusalém foi negado, como todas as outras vezes, dei um jeito de entrar ilegalmente na cidade. Recebi o visto e pra voltar pra casa peguei o ônibus que liga Jerusalém à Belém. Na volta os ônibus nunca são controlados no check point (os soldados estão mais preocupados com quem quer entrar em Jerusalém, não com quem quer entrar na Cisjordânia), mas eu estava muito sem sorte naquele dia. Não é que pararam o ônibus na volta? Quando viram que eu não tinha permissão pra ter entrado em Jerusalém os soldados me obrigaram a descer do ônibus e lá fui eu ser interrogado novamente. Um soldado ordenou que eu assinasse um papel dizendo que eu tinha entrado ilegalmente em Israel. Eu disse: “Não entrei em Israel. Jerusalém faz parte da Palestina ocupada, um fato reconhecido pela comunidade internacional.” O soldado ficou furioso e disse ‘Vou te mostrar agora o que é a Palestina ocupada’ e me trancou em um cubículo minúsculo que eles têm em todos os check points pra prender pessoas. Sem janelas, só uma porta. Fiquei algumas horas em pé lá dentro, mais uma vez sendo punido por ter ousado falar a verdade. Finalmente me deixaram ir embora com a condição que eu assinasse um documento dizendo que eu não ia fazer pedidos de autorização pra entrar em Jerusalém durante seis meses. Assinei rindo, pois isso não faz diferença nenhuma pra mim: eu nunca consigo autorização, mesmo!

Ano passado nasceu Yemen, nosso segundo menino. Eu assisti o parto dos meus dois filhos e mesmo sendo a segunda vez, ainda assim me emocionei muito e chorei quando segurei Yemen nos braços. Viver em Al Arroub continua tão perigoso e revoltante quanto quando eu era criança. Os soldados continuam aqui, atirando, prendendo, jogando gás lacrimogêneo. Sara sofre de asma e várias vezes durante a gravidez foi obrigada a atravessar nuvens de gás lacrimogêneo pra entrar em casa. Watan vai fazer quatro anos mês que vem, mas ele já sabe o que significa exército, soldado, tiros. Quando ele vê alguém triste pergunta: ‘Atiraram em você?’ Hoje é ele que sonha em ter super poderes pra poder lutar contra a ocupação. Outro dia ele me disse que queria ser Ben10 (personagem de um desenho animado muito popular entre os meninos) pra expulsar os soldados do campo.

(perguntei: ‘Tareq, quais são os seus sonhos hoje?’)

Quero voltar pra minha terra. Eu moro nesse campo de refugiados, mas o meu lugar é em Iraq Al-Manshya. Mas sonho? Hoje eu não sonho mais pra mim, sonho pros meus meninos. Penso em tudo que eu não pude realizar na vida e desejo que meus filhos não passem pelas mesmas injustiças. Gostaria que eles crescessem sem medo, sem o perigo constante de ser vítima de crimes que nunca serão punidos. Gostaria de comprar uma bicicleta pra eles. Quando menino eu sonhava em ter uma bicicleta, mas isso nunca se realizou. (Nesse momento o rosto de Tareq se ilumina e ele abre um largo sorriso). Sabe, eu sempre quis ter uma filha…”

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Em outubro nasceu Ahmad, o segundo filho de Tareq e Sara.

Ontem eu visitei Tareq e Sara em Al Arroub e aproveitei pra fazer essa entrevista. Quando eu cheguei no campo vi várias viaturas do exército israelense e dezenas de soldados barrando a entrada. Mesmo se a presença deles por lá é constante, eu nunca tinha visto tantos reunidos.. Cheguei na casa dos meus amigos na hora do almoço e enquanto me instalava entre a mãe e uma das cunhadas de Tareq, que estavam visitando o meu amigo, perguntei se ele sabia o que estava acontecendo. Ele ligou imediatamente pra um amigo que mora perto da entrada do campo e segundos depois nos deu a notícia que quatro palestinos tinham acabado de ser baleados. Um carro de colonos (ou de policiais israelenses à paisana, isso ainda não está claro) que passava pela estrada abriu fogo contra um grupo de pessoas que se encontrava na frente do campo. Uma estudante de 21 anos foi baleada na cabeça e mais três pessoas tiveram ferimentos leves. A moça estava no hospital em um estado crítico.

Depois do almoço sentamos pra conversar ao redor do chá e do café e pude fazer algumas perguntas a Tareq. Eu já conhecia bem a história dele, mas pela primeira vez ouvi meu amigo falar sobre a infância e os horrores que ele viu e sofreu. No meio da entrevista ele recebeu um telefonema dizendo que a moça não resistiu aos ferimentos e morreu. Ela morava em Belém, mas estudava na faculdade de agronomia em frente ao campo. A notícia se espalhou rápido e pouco tempo depois recebi um telefonema de Anne, que está atualmente trabalhando em Gaza, dizendo pra eu voltar pra casa imediatamente, antes que escurecesse, pois a situação em Al Arroub estava ficando muito perigosa (os sites de notícias aqui são muito eficientes e graças a Twitter podemos saber o que está acontecendo em todas as cidades e campos da Palestina, minuto após minuto).

Nossa conversa me fez perder a noção do tempo e quando levantei pra ir embora já era noite. Tareq sempre me acompanha até a entrada do campo e espera a van comigo, mas eu fiquei com medo dele ser preso ou ferido pelos soldados se saísse de casa. Como mulher eu corro menos riscos e se por acaso algum soldado tivesse a ideia de me prender, meu passaporte estrangeiro garantiria a minha liberação rápida, mas pra Tareq a história seria bem diferente. Insisti pra ele ficar em casa, mas meu amigo nunca me deixaria atravessar o campo sozinha, à noite, com dezenas de soldados escondidos pelos cantos. Apressamos o passo, mas não podíamos correr (seria considerado suspeito e poderíamos receber uma granada de gás lacrimogêneo, ou coisa pior) e o campo estava mergulhado na escuridão, as ruas desertas cheirando a gás lacrimogêneo. A entrada do campo estava coberta com as granadas de gás que tinham explodido há pouco. Felizmente a van que vai pra Belém já estava lá e assim que entrei o motorista partiu.

Poucos minutos depois Tareq me ligou: “Você não vai acreditar, mas assim que a van saiu o exército invadiu o campo. Foi tanto gás, balas e uma chuva de pedras dos moradores tentando impedir a invasão que eu pensei que a terceira intifada tinha começado!” Tareq consegue manter o humor em qualquer situação. Milagrosamente ele tinha chegado em casa ileso, mas não pude não me sentir culpada por ter exposto o meu amigo ao perigo. Vim o caminho todo pensando nas histórias que Tareq tinha me contado, sentindo o peito doer de tristeza. De repente lembrei que ainda não tinha pagado o motorista da van e quando estendi a mão com o dinheiro ele disse: “Seu amigo pagou sua passagem enquanto você subia.” Esse é Tareq. O campo sendo invadido pelo exército, pessoas sendo assassinadas com balas na cabeça e ainda assim ele consegue lembrar de ser cavalheiro.

(Texto originalmente publicado no dia 24 de janeiro de 2013. Hoje Tareq mora nos EUA, pra onde ele conseguiu imigrar com Sara e as crianças. E pra grande alegria dele, alguns anos atrás ele se tornou pai de uma menina.)

6 comentários em “Sobre resistência

  1. É muito fácil esquecer que há lugares e pessoas passando por isso quando vivemos em um país pacífico (não diria totalmente, mas em comparação a outros…). Eu adorei as histórias e apesar de já ter lido muitos posts antigos, não tinha chegado tão longe! Queria saber se Khoulud conseguiu fazer o doutorado!

  2. Sandra, que emocionante reler essas entrevistas. Fiquei feliz de saber como está seu amigo agora. É impensável imaginar ter a vida tão marcada pela violência dessa forma. Obrigada por compartilhar, por trazer uma pouco dessa vivência terrível que os Palestinos vivem. Vem uma sensação de impotência muito forte, difícil de ler tudo isso, mas é tão importante que o mundo saiba o que se passa por lá.

  3. Obrigada pelos relatos. Ler (e divulgar) estas histórias é fundamental para conscientizar as pessoas e tentar fazê-las sair da anestesia generalizada.

  4. Eu torço profundamente pra que cada um deles e suas respectivas famílias estejam vivos hoje.

    Obrigada pelo trabalho, obrigada pelo texto, pelo olhar e por não deixar esmorecer a fagulho do odio contra o opressor.

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