Comida como ferramenta de ‘conversão’

Durante os primeiros anos de veganismo, acreditei que oferecer pratos veganos deliciosos pras pessoas ao meu redor seria a porta de entrada delas pra causa animal. Talvez eu tenha sentido essa responsabilidade ainda mais forte porque cozinho profissionalmente. Então não perdia nenhuma oportunidade (aniversários, reuniões de família) de passar horas (às vezes dias) preparando menus, comprando ingredientes e cozinhando pra impressionar as não-veganas. Nos jantares onde cada convidada leva um prato, eu levava 4 e era sempre a mais cansada, a que trabalhava mais, a que gastava mais com ingredientes… As pessoas comiam minha comida, sim, e adoravam. Porém minhas preparações vegetais dividiam espaço nos seus pratos com animais e seus derivados. Nunca ninguém deixou de comer o animal assado, ou a sobremesa entupida de leite condensado, porque tinha pratos veganos deliciosos na mesa.

Quiche de cogumelo e espinafre, usando esse método


E tem mais. Ninguém, nesses meus quase 15 anos de veganismo, se tornou vegana depois de ter provado minha comida, mesmo depois de chegar à conclusão que sim, comida vegetal pode ser tão gostosa quanto comida com ingredientes animais. Algumas pessoas na minha vida se tornaram veganas nesses quase 15 anos, mas o fizeram por razões éticas. Então uns tempos atrás tomei uma decisão: não vou mais me acabar na cozinha pra impressionar carnistas nas reuniões e jantares de família. Agora eu cozinho um prato, em quantidades que dê pra alimentar somente a(s) convidada(s) vegana(s), mais um pouquinho, caso alguém queira provar e pronto. Claro que se me pedirem pra eu preparar a refeição inteira pra que animais e seus derivados não apareçam nos pratos, a conversa muda (mas nesse caso vou pedir ajuda na cozinha). 


Não estou dizendo que todo mundo tem que parar de preparar comidas vegetais nas reuniões de família. Nada disso! Mas pra mim isso era uma carga extra de trabalho que além de me esgotar fisicamente acabava me deixando ressentida com a família, que nunca parou de comer animais, apesar de todos os meus esforços em preparar comida cada vez mais gostosa.  E comecei a pensar que esse discurso de que devemos pegar carnistas pelo estômago (eu mesma já disse isso) só coloca mais uma responsabilidade nas minhas costas. A culpa era minha se ainda não tinha “convertido” o pessoal ao veganismo, a culpa era da minha comida que ainda não era tão boa quando a comida que usa animais e o que seus corpos produzem como ingredientes. Acabei adicionando essa missão à longa lista de obrigações na minha carga mental e muitas vezes escolhia cozinhar o que eu achava que tinha mais chances de impressionar as carnistas do jantar/festa/reunião, ignorando minhas próprias preferências gastronômicas. 


E a verdade é que é um braço de ferro impossível de ganhar. Hoje a minha família, tanto no Brasil quanto na França, se familiarizou com comida vegetal e adora tudo que faço, mas continua tão apegada aos pratos com animais e derivados que ninguém abre mão deles. A verdade é que não basta se convencer que comida vegetal pode ser muito gostosa. É preciso perceber que aquilo no prato é o pedaço de uma pessoa não-humana. Depois que essa mudança de percepção acontecer, aí sim comida vegetal deliciosa se torna uma ferramenta capaz de impulsionar a mudança e te fazer não abandonar a prática (porque veganismo não é estilo de vida, nem regime alimentar, é uma prática política de solidariedade com animais outros que humanos).


Se cozinhar pra toda a família/amigas nas reuniões te faz feliz, continue que tá tudo lindo. Só vim aqui dizer que ser vegana não te obriga a ser a embaixadora da culinária vegetal 100% do tempo. Outro dia fui num brunch de aniversário e levei só uma tortilla (que comi com salada de macarrão e aspargos, feita por outra pessoa). Cheguei e coloquei minha contribuição na mesa coberta de queijos, quiches e bolos amanteigados. E pela primeira vez não fiquei me sentindo mal porque “preciso mostrar pra esse povo que também dá pra fazer quiche e bolo sem derivados de animais!” E foi libertador! Talvez até aquele dia eu tenha sempre tratado comida “vegana” como algo que eu precisava convencer as pessoas a provarem. Mas no meu contexto (isso pode muito bem não se aplicar a você lendo essas linhas), as pessoas já se convenceram que comida vegetal é deliciosa, então agora a bola está com elas. Eu fiz a minha parte e estarei sempre aqui pra responder as perguntar que quiserem fazer sobre veganismo. Agora posso aproveitar a reunião e me permitir cozinhar o que eu estiver desejando comer e degustar meu prato sozinha no meu canto.

*Essa é uma versão modificada e mais longa de um texto que publiquei no meu finado perfil do Instagram tempos atrás.

13 comentários em “Comida como ferramenta de ‘conversão’

  1. De acordo! Acho que é uma boa decisão porque não penso que pessoas deixem de consumir animais como alimentos porque as opções veganas são saborosas. E tem o consumo de animais naquilo que não se come! A sensibilização vem, para alguns, pelo respeito à vida de todos os animais e isso tem a ver com uma quebra de paradigmas que a gente carrega desde a infância. Na minha, meus pais criavam animais no quintal para serem comidos, galinhas e porcos principalmente, mas as vezes tartarugas. E nessa época, eu testemunhava a matança, que hoje me parece cruel. Eu não deixei de ingerir animais, não sei se conseguirei parar completamente a ingestão, que se limita a 1 vez por semana, no almoço.

  2. Oi Sandra,

    infelizmente a gente ainda se sente responsavel pelas escolhas alimentares de outras pessoas, e isso traz um peso enorme que em muitos casos vem acompanhado de uma culpa.
    Eu confesso que as vezes me sinto bem deprimida quando tem um prato delicia que seja vegano, mas a pessoa opta pelo cruel.
    Enfim, eu meio que me fechei numa bolha para não tentar pensar em todo sofrimento animal. Continuo fazendo a minha parte e quando tenho a oportunidade de falar sobre o assunto, especialmente quando alguém me pergunta, eu exponho meus motivos de ter me tornado vegana. Mas tento não me desgastar mais discutindo, até porque quem normalmente entra nesse tipo de discussão, não esta muito disposto a escutar e refletir.

    Abs

    Camila

  3. Sandra, receba minha gratidão por você compartilhar seu modo de pensar publicamente. Trilho um caminho quase solitário rumo ao veganismo e você é minha inspiração nessa trajetória. Há anos sou sua leitora e aprecio muito seu modo de viver e pensar. Um grande abraço, muita paz.

  4. Reflexão necessária! As pessoas realmente sabem que pratos veganos podem ser tão saborosos e até superiores em sabor que pratos carnistas, mas, escolhem continuar na sua bolha, cultivando hábitos não saudáveis e cruéis simplesmente por não estarem a vontade para sair da sua zona de conforto.

  5. Oi Sandra!
    Eu precisava ler isso e não sabia… Me tornei vegana há 10 meses e estou sempre cozinhando (não profissionalmente) para mostrar para as pessoas que moram comigo e os amigos mais próximos (que voltei a ver depois da segunda dose da vacina) que a alimentação vegetariana é maravilhosa! E apesar de ouvir sempre um “olha, isso é bem gostoso, não acredito que não tem carne/leite/manteiga!”, eles realmente continuam comendo os animais. Eu fico com a sensação de “ok, vou fazer um prato melhor ainda da próxima vez!” e realmente fico exausta. Para o aniversário de uma amiga, que seria um churrasco para 6 pessoas, eu preparei pão de alho feito com creme de inhame, vários espetinhos de legumes, farofa, vinagrete… e sim, eles comeram tudo e não sobrou nada! Mas eles também se empanturraram de carne. Eu estava tão cansada que mal aguentei até o final da festa… Eu teria aproveitado muito mais se tivesse feito só o suficiente pra mim e um pouco para eles provarem, só.
    Obrigada por abrir meus olhos e, de certa forma, aliviar um pouco da culpa que carrego.
    Um bom resto de semana!

  6. Quando iniciei no veganismo eu sentia uma necessidade mto grande de convencer as pessoas. Hoje tento canalizar minha energia pra outras coisas. Lembro desse texto seu no instagram e sobre como foi um “clique” pra eu compreender minha forma de me relacionar com a cozinha quando se trata de cozinhar pra mais pessoas. Sempre aprendo mto com você!

  7. Muito importante esse texto, Sandra! Isso me ocorreu várias e várias vezes, até que cheguei a uma conclusão similar à sua.

    Sempre que havia um evento familiar eu me dava ao trabalhão de fazer comidas veganas maravilhosas (que precisavam obrigatoriamente estar maravilhosas, o que por vezes tirava até o prazer de cozinhar devido à pressão imposta), que as pessoas carnistas provavam e confirmavam estar muito saborosas, para em seguida mencionar “mas eu não consigo parar de comer carne, é tão gostoso, né?”. Lá estava minha quiche sendo acompanhamento de um pedaço de carne ou lasanha cheia de tudo de origem animal, me frustrando duplamente: pelo desafio mental de estar numa mesa repleta de animais mortos e precisar naturalizar para seguir, pq a vida impõe dessas contradições, enquanto todo o meu trabalho de proporcionar uma culinária vegetal deliciosa, com toda a complexidade envolvida no processo, era renegado à lateral do prato e da mente das pessoas.

    E claro que isso tem a ver com a minha percepção e expectativas, com os meus anseios e valores, e não é correto (viável?) querer que as pessoas decidam viver de acordo com os preceitos que eu elegi para minha vida. Justamente por isso que decidi parar de dedicar minhas melhores comidas, com tudo que envolve o ato de prepara-las, para provar algo/tentar converter carnistas – não como birra, mas para ser mais verdadeira e justa comigo mesma. O que eu antes entendia por “ativismo culinário” perdeu o sentido e hoje, via de regra, eu foco em fazer as melhores comidas para mim, para os veganos do meu convívio íntimo (dividindo as tarefas!), mas me colocando à disposição para repartir se for necessário – não somente comida vegana, mas conhecimento sobre veganismo para quem estiver interessado.

  8. Foi através de um vídeo seu com a Sabrina Fernandes que comecei a entender veganismo como você diz nesse texto “prática política de solidariedade com animais outros que humanos” e foi a partir daí que fez sentido e dentro das minhas possibilidades fui aderindo. Hoje, vejo como que foi um processo, e muito além da alimentação.

    Esse sentimento de querer impressionar com a contribuição de um prato vegano num encontro não-vegano, eu tive algumas vezes e foi realmente frustrante. Nas minhas experiências, vira uma sabatina aberta quase que querendo testar o “meu” veganismo.

    Parabéns e obrigada pelo texto, Sandra! Seu blog é muito acolhedor.

    Um abraço!

  9. Sandra, você é um exemplo de lucidez e bom senso. Quanta coisa aprendi com você, que tem talvez a idade dos meus filhos. Obrigada, querida.

  10. 3 coisas sobre esse texto.

    1) Realmente, não adianta pensar que as pessoas vão ser veganas apenas por gostarem da comida vegana; mas mesmo assim, o vegano deve continuar fazendo bem feito a comida para as festas de família. Por falar nisso, ouvi falar 2 coisas sobre isso:
    a) Um vegano (por ser vegano liberal, prefiro nem comentar o nome dele) falou que no natal cozinha mais para a família do que para ele mesmo, porque ele não liga para comemorações (natal, ano novo, aniversário).
    b) No vídeo Veganos em uma casa NÃO vegana >> 10 dicas do canal CACA SOUZA. A apresentadora do canal (Caca Souza) falou que no Natal, ela faz uma parte da comida para a família (que não é vegana) e uma parte para ela comer; ela recomenda isso porque se fizer a comida para família, a comida costuma acabar rápido e o vegano fica sem ter o que comer; isso mostra que as pessoas não tem empatia por veganos.

    2) Crueldade não define gosto alimentício: Ouvi falar que em um vídeo a Xuxa apareceu com a Eliana, a Xuxa falou que a comida vegana é gostosa porque não tem crueldade. Isso que a Xuxa falou é uma coisa errada de se falar, porque o gosto alimentício também varia entre os veganos; um exemplo disso é que o Giancarlo Eidler (apresentador de canal homônimo) e as apresentadoras do canal TÁ NA MESA VEGG experimentaram o The New Fish (peixe vegano da empresa The New Butchers), enquanto o Giancarlo Eidler falou que parece peixe (ele gostou), elas acharam que parece caldeirada (elas não gostaram).

    3) Vou comentar comparações que fazia com alimentos vegetais e o porquê deixei de fazê-las:
    a) Alguns anos atrás falava com o maior orgulho que shimeji grelhado tem gosto de carne de boi; meu pai sempre achou isso estanho, sendo que ele experimentou o shimeji grelhado.
    b) A alguns anos falava com o maior orgulho que carne de jaca possui gosto de frango; meu pai sempre achou isso estranho, sendo que ele experimentou carne de jaca. Estava passeando com um amigo, fomos a uma galeria próxima a Avenida Paulista e falei para o meu amigo experimentar a carne de jaca. Depois perguntei se ele gostou e se tem gosto de frango; ele me respondeu que isso não tem gosto de frango, que ele prefere frango e que ele gostou mais ou menos de carne de jaca.
    c) Alguns anos atrás falava com orgulho que queijo vegetal tem gosto de queijo animal. O queijo animal tem mais gordura do que o queijo vegetal; porque o queijo animal é feito de leite animal (que tem uma gordura chamada caseína; essa gordura é feita para o filhote de mamífero ficar próximo da mãe); já alguns queijos vegetais podem ter gordura, mas talvez não tenham tanta gordura como num queijo animal.

    Observação:
    Se você experimentou um alimento de origem vegetal e achar que tem gosto parecido com um alimento de origem animal (exemplo: comer a erva peixinho frita e achar que parece peixe); tudo bem. Mas, não fale isso com empolgação, achando que uma outra pessoa vai concordar com isso.
    Relativo a observação anterior: valorize o alimento vegetal pelo que ele é.

  11. Oi, Sandra,
    Vim aqui compartilhar uma descoberta, que fiquei curiosa se você conhece e já faz em Natal, ou se vai se encantar também. Vi no documentário com o livro do Camara Cascudo “História da Alimentação no Brasil” (bem bonito, vão passeando pelos ingredientes da nossa cozinha, que são vegetais em sua maioria!). É um cuscuz de mandioca (com uma farinha de mandioca prensada ainda úmida) com coco ralado e sal, só.
    Olha que lindeza: https://www.youtube.com/watch?v=HlDa8C-PcpM&ab_channel=M%C3%B4nicaSilva
    A Neide Rigo ensina no blog dela outras receitas e a fazer a farinha (como aqui onde estou, no sudste, não se acha):
    https://come-se.blogspot.com/2009/08/cuscuz-com-massa-de-mandioca-e-coco.html
    Um abraço!

    1. Só complementando, pq achei o vídeo perfeito. A arte de levar horas na cozinha fazendo algo precioso como isso para nós mesmos (e quem for do coração e estiver por perto).

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