Ninguém precisa saber

Fazia anos, muitos anos que eu não sentia isso: dor de barriga porque comi um bolo quente. Acho que a última vez deve ter sido uns 25 anos atrás.

Estou no interior da França agora e acontece que meus sobrinhos franco-alemães me pediam há dias pra eu fazer um bolo vegano com eles. Os meninos, que têm 10, 7 e 4 anos, acham fascinante eu ser chef e mais ainda eu ser chef vegana. Eles querem cozinhar comigo o tempo todo e sempre que entro na cozinha um dos três aparece (às vezes os três ao mesmo tempo) perguntando se pode fazer alguma coisa pra me ajudar. Fiz massa à carbonara com Ben, milk-shake de morango e amendoim e, no dia seguinte, de banana com chocolate com Noé, essa salada e arroz “chinês” com Léo, rabanada salgada com os três…

Mas desde o primeiro dia eles me pediam um bolo de chocolate (“Um bolo vegano, titia Sandra!”, eles sempre fazem questão de insistir no “vegano”). Na última vez que estive em Berlim a mãe deles, minha concunhada alemã, me mostrou um bolo lindo e perfumado feito no dia anterior e que ela queria veganizar pra nós. Dei umas dicas de como substituir os ovos, único ingrediente de origem animal na receita original e pedi a receita pra testar na minha cozinha. Acabei esquecendo de anotar a receita, mas não esqueci do aroma delicioso daquele bolo. E fiquei intrigada com o ingrediente principal: quase meio quilo de abobrinha.

Os meninos pediram um bolo de chocolate, com recheio de creme de morango e cobertura de chocolate, mas ontem à noite enquanto eu discutia do projeto com minha concunhada ela pediu pra eu fazer o famoso bolo de abobrinha em versão vegana. Eu disse que as crianças iam ficar decepcionadas, mas ela insistiu que elas ficariam feliz com qualquer tipo de bolo. Mesmo assim sugeri colocar chocolate picado na massa e ela, uma grande chocólatra, aprovou com entusiasmo.

Hoje à tarde fui pra cozinha testar nossas ideias combinadas e imediatamente apareceu um par de mãos de 10 e outro de 4 anos pra me ajudar. Adoro cozinhar com crianças e percebi, depois de ter passado uma semana na cozinha com esses pequenos, que eles devoram com prazer tudo que ajudaram a preparar. Ben até declarou que o nosso macarrão à carbonara vegano era o seu prato preferido de todos os tempos (mesmo se o pai dele faz carbonara com bacon/creme/ovo pra ele regularmente).

Fizemos o bolo intrigante com várias adaptações, porque não resisti a tentação de melhorar a receita, e depois que coloquei no forno me perguntei se aquilo ia dar certo. Tive que me ausentar e deixei minha concunhada com a missão de tirar o bolo do forno. Voltei menos de uma hora depois e encontrei os três meninos, junto com os adultos da casa, se jogando em cima do bolo quente. Perguntei se o bolo tinha ficado bom e eles me responderam de boca cheia que o bolo tinha ficado delicioso. Não resisti e me juntei à tropa. E foi assim que acabei com dor de barriga. Em pouco tempo só o pedaço nas fotos aqui tinha sobrado pra contar a história.

A abobrinha deixa o bolo incrivelmente macio e tenro, mas o sabor dela, que não é dos mais pronunciados, desaparece sem deixar rastros. Juro. Ninguém precisa saber que tem legume ali. Minhas mudanças na receita original foram: usei mais amêndoas em pó e menos farinha, menos açúcar, troquei o óleo de canola por coco (muito melhor em bolos e em todo o resto, na minha opinião), acrescentei chocolate picado à massa e substituí os ovos por chia hidratada. O resultado final é um bolo com muitas fibras, perfumado e delicioso. Minha concunhada disse que o bolo continua perfeito até três dias depois de assado, mas isso eu não vou poder  confirmar porque o nosso bolo não vai sobreviver as próximas horas.

Só posso dizer que a dor de barriga valeu a pena.

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Bolo de abobrinha só que ninguém precisa saber

Não digam pra ninguém que tem abobrinha nesse bolo e garanto que ninguém vai adivinhar. Como minha tolerância pra doce é limitada, usei somente 2/3 da quantidade de açúcar da receita original, mas use a quantidade toda se quiser um bolo com um sabor mais tradicional.

Secos:

300g farinha de trigo

200g de amêndoas em pó

300g de açúcar (usei 200g) – bom se for demerara, melhor ainda se for de coco

2cc de fermento

1/2cc sal

3cc canela em pó

100g de chocolate (60%-70% de cacau), picado

Molhados:

1cc extrato de baunilha

3cs de chia, inteira (ou linhaça triturada)

250ml de óleo de coco (ou outro óleo neutro), em estado líquido

400g de abobrinha italiana (‘courgette’ em Portugal), descascada e ralada no ralo fino

Óleo de coco e farinha pra untar/enfarinhar a forma

Aqueça o forno a 200 graus.

Misture a chia (ou linhaça) com 9 colheres de sopa de água e deixe hidratar enquanto prepara os outros ingredientes (lembre de mexer de vez em quando pra que hidrate de maneira uniforme).

Em um recipiente grande misture todos os ingredientes secos. À parte misture todos os ingredientes molhados, incluindo a chia hidratada. Lembre de deixar o óleo de coco em temperatura ambiente por algumas horas, se o clima estiver quente, ou esquentar um pouco no banho-maria pra que ele fique completamente líquido. Despeje os ingredientes molhados sobre os secos e, usando uma colher de pau, misture bem.

Idealmente use duas formas retangulares pequenas pra assar o bolo, pois assim ele fica com uma casquinha crocante irresistível. Mas se não tiver esse tipo de material, use uma forma média de qualquer formato. Unte a(s) forma(s) com óleo de coco e enfarinhe e despeje a massa. Leve ao forno pré-aquecido e asse entre até que uma faca inserida no meio do bolo saia limpa. A potência dos fornos domésticos varia bastante e dependendo da forma (ou das formas) utilizadas o tempo de cozimento vai variar, por isso só o teste da faca pode te ajudar pra saber se o bolo está cozido. Faça o primeiro teste 30 minutos depois de colocar o bolo no forno.

Deixe esfriar completamente antes de servir se não quiser ter dor de barriga.

21 comentários em “Ninguém precisa saber

  1. Nossa, incrível essa receita. Nunca imaginei uma abobrinha num bolo. Virei fã de abobrinha recentemente. Meu sogro mora no Sul da França e lá ele tem uma hortinha de orgânicos no quintal de casa, e quando fico na casa dele, ele sempre vem com abobrinhas para a gente comer. Elas eram tão saborosas que me deixaram viciadas. Hoje eu não tenho problemas para pensar uma abobrinha no bolo, eu até adoro essa idéia. Tenho que fazer já essa receita!

    Xeru

  2. Aqui na Alemanha é o famoso Zucchini, acabei de ganhar um enorme dos vizinhos, amanha vou comprar os ingredientes que faltam e vou fazer dois bolos. Um pros de casa e outro pros vizinhos, claro.
    Semana passada dei uns pepinos, pois aqui em casa foi uma explosao deles e será de tomates tambem e ganhei uma caixa de Mirabelle (especie de ameixa) e hoje abobrinha. A verdadeira vizinhanca escambo. Amo. kkkkk
    Obrigada por mais uma joia, ja fiz algumas receitas do seu blog e nao me arrependi de nenhuma. Boa semana pra voce.

  3. Oi Sandra, adorei a ideia! Aqui onde moro amêndoa custa uma fortuna. Daria para trocar por farinha de castanhas? Amo suas histórias e receitas.

  4. Estou me tratando de uma gastrite entao nao posso comer nem canela, nem cacau 100% mais otima receita , nem um limaozinho na salada , mais essa gastrite e de maus abitos alimentares anteriores de um quase ex onivoro

  5. Ola sandra. Primeiramente Fora Temer! Segundamente, essa que vos fala acabou de ser condenada a uma dor de barriga e ainda queimou os dedos comendo o bolo quente fervendo risos Ainda tirei o trigo e troquei amendoas por farinha de castanha de caju e mesmo assim ficou maravilhoso. Obrigada.

  6. Ola Sandra, só quero dividir com voce a minha experiencia ao fazer esse bolo… sempre fui boa com bolos, mas depois q virei vegana nao consegui mais acertar… pq o povo inventa umas receitas muito rebuscadas e que nao ficam gostosas, ai da a impressao que só pq somos veganos temos q nos contentar com qlq coisa q lembre um bolo! Mas esse com abobrinha… meu Deeeeus! Eu fiz pra minha tia, de aniversario, que não é vegana, amou e nao sabe que tem base de abobrinha! hahahaha Sucesso! E maravilhoso!!!! Muito bom mesmo. Obrigada pelas receitas!

    1. Martha, você nem imagina o quanto fiquei feliz com o seu comentário. Saber que minhas receitas estão dando certo em outras cozinhas e fazendo a alegria de outras barrigas me enche de felicidade. Mesmo. Obrigada por compartilhar 🙂

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