O povo da paçoquita

Não era a minha intenção. Eu só queria testar uma ideia. Levar um agrado comestível pro grupo de apoio entre militantes que acabamos de criar aqui. Preparar um lanchinho pras crianças que frequentam a oficina do domingo, organizada pelo meu coletivo. Mas sabe o que aconteceu? Descobri algo que talvez, talvez mude sua vida. 

Aconteceu assim. Eu estava lendo um blog de comida que sigo há mais de uma década e achei uma receita de biscoito de amendoim. Ela me intrigou. A receita usa ovo e no próprio texto a autora explica que dá pra substituí-lo por uma mistura de linhaça triturada e água (ela até chama isso de “ovo de linhaça”). Decidi fazer a receita sem tentar substituir o ovo, por duas razões.

Primeiro porque manter a prática de procurar “substituto pro ovo” acaba reforçando a ideia (falsa) de que o ovo é essencial na culinária. Tem algumas receitas cuja a estrutura física depende de ovos (pudim, quindim, souflê), mas até essas aí podem ser feitas sem os danados. Se acho válido seguir obstinada a criar versões vegetais “idênticas” às receitas à base de animais e seus derivados, é conversa pra outro dia (já adianto que a minha resposta é “não”). Eu prefiro explicar que vegetalizar receitas com ovos é simplesmente procurar um ingrediente vegetal que cumpra a função do ovo ali (fazer crescer, servir de “cola”, formar a estrutura, etc), não “substituir o ovo”, como o pessoal gosta de falar. Pra mim o cúmulo do absurdo é ver receitas, muitas feitas por pessoas veganas, falando de “ovo de linhaça”. Como eu disse, isso só reforça o mito de que bolos, tortas e biscoitos precisam necessariamente de ovo, seja ele de galinha ou “de linhaça”. A verdade é que muitas vezes o ovo está ali por puro hábito e a receita pode perfeitamente se livrar dele, sem que um substituto venha ocupar o seu lugar, sem nenhum dano. Basta dar uma olhada em alguns dos bolos que postei aqui, como o bolo de laranja de Lu, meu bolo de banana com chocolate e puxuri ou, mais recentemente, esse bolo de chocolate intenso

A segunda razão que me fez querer testar os tais biscoitos sem tentar substituir o ovo por um ingrediente vegetal é que gosto da ideia de simplificar ao máximo as minhas receitas, pra que elas fiquem o mais acessível possível. E aí que entra a revelação que tive esse fim de semana. 

A receita original já era extremamente simples e só levava 4 ingredientes. Fiz uma primeira versão vegetal que ficou supimpa e juro que em breve volto aqui pra compartilhar essa joia. Mas na segunda vez que fiz os biscoitos pensei que eu poderia tentar reduzir ainda mais a quantidade de ingredientes. Seria possível fazer biscoitos somente com pasta de amendoim e açúcar? A resposta é “mais ou menos”. Biscoito, do jeito que estava imaginando (leve e crocante), eu não fiz. Mas, e aqui entra um imenso “mas”, fiz algo talvez ainda melhor. 

Querida pessoa lendo esse blog, preste bastante atenção. Se você faz parte do imenso grupo humano que ama amendoim, chega mais. E se você é uma apreciadora de paçoquita, aquele doce de amendoim e açúcar baratinho e que sempre foi livre de produtos de origem animal (até inventarem a marmota de juntar “whey” ao bichinho), salvando a vida da pessoa vegana com fome fora de casa, essa receita é pra você. Você vai se apaixonar. Você vai querer me mandar flores. Você vai querer me escrever poemas. 

Quando tentei fazer biscoitinhos de amendoim usando apenas amendoim e açúcar acabei criando uma versão assada da paçoquita. Porque, realmente, os ingredientes da paçoquita são apenas amendoim e açúcar (mais uma pitada de sal, que também usei na minha receita). Óbvio, né? Mas juro que não estava pensando no nosso amado doce de amendoim quando coloquei as bolinhas no forno domingo. O resultado foi um doce que lembra a textura do “sablé” francês (“sable” é “areia” e “sablé”, com acento – no particípio passado- seria algo como “areiento”, mas no bom sentido). Ou seja, se esfarela na boca, porém se dissolve ainda mais facilmente que os sablés franceses. 

“Se é como paçoquita, por que se dar ao trabalho de fazer esse doce quando posso simplesmente comprar um pacote de paçoquita pronta?” Que bom que você perguntou.

Posso pensar em algumas razões. Porque o sabor me parece ainda melhor, com uma textura mais leve (menos compacta) e um sabor de amendoim torrado mais pronunciado, o que deixa esse doce ainda mais viciante. Também porque talvez você more em um lugar onde não tenha paçoquita (fora do Brasil, por exemplo). Porque fazendo em casa, você pode controlar a dose de açúcar e usar menos, se quiser. Além de poder fazer variações. Já estou pensando em usar um pouco de cacau na próxima vez que eu fizer essa receita, porque cacau e amendoim formam um casamento perfeito. Pensei em colocar nibs de cacau em outra versão, porque adoro esse ingrediente e o amargo do cacau (na forma de nibs ou em pó) equilibra a doçura da receita. Eu nunca fiz parte do time paçoquita justamente porque ela é insuportavelmente doce pra mim.  

Recentemente participei de um episódio do podcast Femingrantes BR, onde falei sobre descolonizar a alimentação. Nele eu contei que não deveríamos nos ver como o povo do churrasco nem do leite condensado. A vaca foi levada pro território conhecido como Brasil pelos invasores europeus e participou  da colonização da nossa alimentação (contra a sua vontade! Ela é mais uma vítima, a principal, nessa história). Durante a conversa falei que, na verdade, somos o povo da macaxeira (mandioca). Dias atrás, quando coloquei o doce recém saído do forno na boca, lembrei que também somos o povo do amendoim. Sim, essa planta, que é da família das leguminosas (amendoim está mais pra um feijão do que pra uma castanha), é nativa do território conhecido como “América do Sul”. Então somos o povo do amendoim. E o povo da paçoquita. 

A receita é de uma simplicidade extrema e exatamente por isso é importante ler o modo de preparo com bastante atenção. Tem um segredinho aqui e se você ignorá-lo o negócio não vai dar certo. E antes de te deixar com essa maravilha da culinária, que usa apenas ingredientes da terra, da nossa terra, que honra nossa cultura alimentar, que é acessível em termos econômicos e em nível de facilidade de preparo, termino como uma pequena anedota que me aqueceu o coração.

Preparei a segunda fornada desses doces na ocupação onde mora a minha namorada, que também é uma camarada de coletivo. Como comentei no início do texto, preparei os biscoitos pra levar pra oficina de domingo com as crianças, no pé  do CoHab onde eu morei por quase dois anos. Dividi a cozinha com Debora, uma migrante da Costa de Marfin, que está sendo abrigada na ocupação junto com a família (o marido e suas duas crianças).  A ocupação acolhe regularmente pessoas migrantes em situação irregular e Debora, que está grávida, e sua família estão em situação irregular no momento. Ela estava preparando o almoço enquanto eu fazia os biscoitos. Quando ficaram prontos ela provou um e disse: “No meu país a gente come muito isso daí. Se chama ‘kuli-kuli’ e é muito popular.” “Só amendoim e açúcar?”, perguntei. “Sim. Mas fazemos também uma versão salgada e apimentada”, ela respondeu. 

Dei uma parte dos doces pra Debora e a família dela, que ficou muito feliz de se reconectar com um sabor da terra dela no meio de um domingo glacial do inverno francês, e fui pra oficina pensando que esses doces são realmente muito especiais.

Doce assado de amendoim 

Apesar das instruções longas, essa receita tem um nível de facilidade extremo e fica pronta em 15 minutos. Use proporções iguais de pasta de amendoim e açúcar pra fazer um doce próximo da doçura da paçoquita (ou seja, bem doce!). Se quiser um doce menos enjoativo diminua a quantidade de açúcar. Açúcar mascavo tem mais sabor, mas também vai deixar o seu doce mais escuro. Também tanto faz se sua pasta de amendoim for lisa ou com pedaços (a minha tinha pedacinhos).

1 xícara de pasta de amendoim (pura, sem açúcar ou outros ingredientes)

1 xícara de açúcar (qualquer um) 

Pitada generosa de sal

2 col. de sopa de água

Aqueça o forno a 180 graus.

Essas medidas fazem 25 doces pequenos. Se quiser fazer uma quantidade menor, basta adaptar. Por exemplo, use uma xícara de café ou um copinho pequeno. O importante é usar o mesmo recipiente pra medir a pasta de amendoim e o açúcar e respeitar as proporções: 1 pra 1, se quiser um doce bem doce, ou 1 pra 3/4, se quiser aliviar na doçura.

Misture a pasta de amendoim, o açúcar e o sal (uma pitada generosa, pra equilibrar tanto açúcar). Pode usar um batedor de arame (fouet) ou um garfo, mesmo. Quando o açúcar tiver incorporado, acrescente a água e bata vigorosamente até que a mistura endureça e se torne uma bola de massa uniforme. Minha pasta de amendoim é bem fluida e talvez a que você use seja mais compacta, então junte 1 colher de sopa de água, mexa vigorosamente e veja se precisa de mais. Se tiver usando uma xícara de café, comece acrescentando uma colher de chá de água, mexa bem e junte mais um pouco, se necessário. 

Um dia explico a ciência da água que transforma uma mistura semi-líquida em uma bola de massa que podemos enrolar na mão, mas por ora só confie. 

Enrole pequenas porções dessa massa entre as palmas da mão (graças à gordura do amendoim, ela não gruda) e coloque em uma placa (forrada com papel manteiga, se tiver) que vá ao forno. Aperte cada bolinha, delicadamente, com um garfo. Asse por 10-12 minutos, dependendo da potência do seu forno e do tamanho das suas bolinhas. Está pronto quando um suave aroma de amendoim tostado invadir a sua cozinha e o doce ficar levemente dourado. Se estiver usando açúcar mascavo, ele vai ter uma cor marrom-claro mesmo antes de ir ao forno e vai ser mais difícil ver a mudança. Fique por perto, aguce o olfato e cuidado pra não deixar queimar.

Quando o aroma de amendoim se intensificar e o doce ficar levemente dourado (ou marrom mais escuro, se estiver usando açúcar mascavo)  retire imediatamente do forno. Aqui entra a vantagem de usar papel manteiga: você pode levantar a folha (com cuidado) e transferir todos os doces ao mesmo tempo pra uma mesa, pra que esfriem. Eu não tinha papel manteiga e fui transferindo um por um, usando uma espátula, pra algumas tábuas de madeira.

Atenção! Quando saem do fogo esses doces são extremamente frágeis e se desintegram facilmente. Por isso devem ser manipulados com muito cuidado. Se quiser ter certeza que nenhum acidente vai acontecer, deixe esfriar na placa antes de guardar. Nesse caso asse um tiquinho menos, já que o calor da placa vai fazer com que continuem assando mesmo depois de terem saído do forno. Depois que esfria eles ficam firmes e podem ser transferidos sem problemas pra um recipiente com tampa (importante pra eles não amolecerem). 

Não sei por quantos dias podem ser guardados antes de perderem textura e sabor, mas ainda tenho alguns da fornada de domingo e hoje, quarta, seguem perfeitos. *Atualização: uma semana depois de ter feitos esses doces, eles seguem perfeitos, crocantes e deliciosos como no primeiro dia. Só deixar em um recipiente bem fechado (os meus estão num vidro com tampa de rosca), em temperatura ambiente. Suspeito que, graças a enorme quantidade de açúcar, que preserva, os danadinhos vão se conservar por bastante tempo.

4 comentários em “O povo da paçoquita

  1. Eu também prefiro ser conhecido como o povo do amendoim e da mandioca (e também da ora-pro-nobis, do açaí, da castanha de caju, da castanha do pará) do que do churrasco e do leite condensado (coisas que não surgiram no Brasil).
    Uma observação: por mais que hábito de comer arroz e feijão foi introduzido pelos portugueses no Brasil (no livro Ingredientes do Brasil, da Bela Gil, está escrito isso); mesmo assim, isso menos colonizado do que comer churrasco, leite condensado e hambúrguer/pão.

    O podcast que você citou no texto foi uma das coisas mais interessantes que já ouvi. Algumas coisas interessantes que foram faladas nele:
    1) Durante o seu ensino fundamental nos anos 90, você pensava que era a única lésbica de Natal. Por na naquela época não ter canais de Youtube, era comum um LGBT pensar que ele era o único LGBT da cidade (isso devia ser ainda mais comum nas cidades pequenas e médias, como Natal).
    2) O fato de você ser lésbica influenciou muito o fato de você morar em algum país desenvolvido. Principalmente, porque você leu em uma revista de viagem comentando sobre uma drag queen em Amsterdam e você soube que lá é um lugar mais amigável aos LGBT’s; e porque você foi morar em Paris porque é onde mora/morava uma tia da sua ex-namorada.
    3) Não tinha percebido que nos países subdesenvolvidos a proteína vegetal é mais predominante que nos países desenvolvidos; como os brasileiros comerem arroz com feijão e os palestinos comerem trigo com grão-de-bico.
    4) Quanto ao que você falou que o Brasil está mais adiantado no veganismo que a França. Pelo fato de muitos chefes de cozinha franceses serem muito reconhecidos mundialmente, talvez isso influenciou os franceses a serem mais tradicionalistas quanto a culinária. Também é interessante, o fato de que Berlim, Amsterdam e Londres são cidades mais veganas que Paris (sendo que essas 4 cidades são europeias).

  2. É muito bom ler seus textos, suas histórias! Parece que sou transportada para uma cozinha onde nós duas estamos cozinhando juntas, enquanto você conta suas histórias. Muito obrigada!!!

  3. Demaaaais!!! Lembro de ter ouvido falar do seu blog há muitos anos atrás. O encontrei por conta de uma receita de queijo de castanha de caju fermentado com missô. Cá estou eu navegando em várias receitas interessantissimas 😀

    Obrigado pelo lindo trabalho

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