Reabilitar a fava

Gosto de me dar missões difíceis. Como, por exemplo, reabilitar a fava. Poucos alimentos do reino vegetal são tão mal-amados e mal-afamados como a fava. Eu já defendi publicamente o quiabo e o maxixe. Um dia volto pra falar de jiló, que também aprecio. Mas hoje, vamos falar sobre ela, a rainha dos feijões.

Eu poderia falar das propriedades nutricionais da fava, mas não é o propósito do meu trabalho. Minha ambição é fazer você se apaixonar pela comida que vem da terra porque ela é deliciosa e porque ela conta a historia do nosso povo e nos conecta ao nosso território. E é justamente no meu território, o Nordeste, que o apreço pela fava ainda resiste. Mas até lá as coisas mudaram e esse alimento tão nutritivo e saboroso se tornou comida de antigos e de pobres. Triste isso de ver a que ponto a comida que vem da terra é constantemente categorizada como “comida de pobre” (coisa “de rico” é consumir animais) e em seguida desprezada. O próximo passo é parar de cultivar esse alimento, já que ninguém mais quer comê-lo e aos poucos vamos perdendo biodiversidade no campo e variedade na mesa. E deixando pra trás a nossa cultura alimentar. Não somos mais o povo que come fava, somos o povo que come frango congelado e, pra quem tem mais dinheiro na conta, sushi de salmão geneticamente modificado e alimentado com soja transgênica, vinda da monocultura, da grilagem de terras e manchada com sangue indígena.  

Minha mãe me ajudando a “escolher” a fava, o que significa “separar os grãos ruins dos bons”.

Quando eu levei um quilo de fava branca pra casa, comprada na feira da agricultura familiar em Natal, a maior parte das pessoas que almoçam ali disse não gostar dessa leguminosa. Na verdade a única pessoa que se entusiasmou com a perspectiva de ter fava no almoço do dia seguinte foi Nalva, que cuida da limpeza da casa. Ela cresceu no interior e ainda conserva gostos conectados com nossa cultura alimentar. 

Confesso que antes de ir morar na Palestina, fava também não era um alimento pelo qual eu nutria algum carinho especial. Até então eu tinha comido uma ou duas vezes em Natal e não guardava uma lembrança boa. Foi naquele país que descobri as enormes favas marrom que são transformadas em pasta depois de cozidas, misturada com azeite (também dali) e cominho e degustada com pão no café da manhã (um dia compartilho a receita aqui). Ou vendidas nas esquinas, em saquinhos de papel, temperadas com alho, cominho e muito limão. Essa fava marrom (“ful” em Árabe) tem o amargo característico desse tipo de leguminosa, um sabor que tende a ser rejeitado pela maioria das pessoas, mas que é extremamente popular na Palestina e países vizinhos, como Líbano, Egito e Jordânia. Depois de ter morado vários anos na Palestina, e alguns meses no Líbano, meu amor por favas cresceu muito. E eu estava decidida a provar pra minha família que elas estavam perdendo a oportunidade de degustar um prato maravilhoso ao torcer o nariz pras favas.

Então foi minha missão desse ano convencer irmãs e sobrinhas que fava pode ser deliciosa. Tem uma maneira de prepará-la que reduz bastante o amargo da bichinha, ao ponto de ficar quase imperceptível. E, olha que interessante, eu descobri isso por acaso. Fava, contrariamente à maior parte dos feijões, não dá caldo (explicação: como a pele é mais espessa do que a dos seus primos, os feijões, o amido que mora dentro do grão não escapa pro caldo, fazendo com que o mesmo se mantenha ralo), por isso costumo usar só os grãos cozidos, que misturo a um refogado de legumes, e descarto o caldo. Eu estava procurando, intuitivamente, uma maneira de agregar outros sabores às favas. E pois não é que a maior parte do sabor amargo fica no caldo? Sem saber, eu estava reduzindo o amargo das favas ao não usar o líquido de cozimento. Se você já comeu uma fava bem amarga, ela provavelmente foi servida junto com esse líquido. 

Você também pode reduzir o amargo fervendo a fava (demolhada) por 10 minutos, descartando a água e cozinhando (dessa vez na pressão) com água nova. Eu prefiro o método que descrevo na receita abaixo, pois é mais simples e os resultados são excelentes, mas saiba que ele não é o único. 

Justamente por ter a pele um pouco mais espessa, você pode cozinhá-la até o interior se tornar um purê-creme, sem que ela se rompa. E que delícia é morder uma pérola dessas e sentir o conteúdo cremoso se espalhar sobre a língua. Eu acho fava uma leguminosa linda, saborosa e, serei ousada aqui, sensual. Preparada como na receita abaixo, garanto que ela vai seduzir qualquer pessoa que ache que odeia fava. Fiz o teste várias vezes quando estive em Natal esse ano. Alguém chegava na cozinha, eu oferecia fava, a pessoa dizia que (achava que) não gostava, eu pedia que provasse a minha fava que, garanto, é deliciosa e depois da segunda garfada a pessoa em questão declarava que “é realmente gostoso, não tem o gosto que eu imaginava/lembrava”. Na segunda vez que fiz fava na casa da minha família ela foi recebida com entusiasmo. E na semana que fui embora, minha irmã caçula chegou da feira da agricultura familiar com um quilo de fava na bolsa. Esse alimento tão nosso, tão nutritivo, tão saboroso e tão importante pra terra (leguminosas fixam o azoto no solo) e pras agricultoras que ainda o plantam voltou pro cardápio da minha família. E tenho certeza que se você der uma chance pra bichinha, você vai querer que ela faça parte do cardápio da sua também. 

Aqui a fava foi servida com purê de jerimum e farofa de beterraba

Deixa eu terminar dizendo que Nalva (que já adorava fava, lembra?) ficou tão feliz com a minha fava que na primeira vez que fiz ela decidiu não colocar mais quase nada no prato, pra sobrar mais espaço pra estrela do almoço. A alegria dela foi tamanha que ofereci a última porção de fava pra ela levar pra casa. “Na hora do jantar vou esquentar a fava e comer pura, só com um punhadinho de farinha!” ela me contou rindo. Naquele dia, por volta das 19h, recebi uma mensagem Whatsapp dela. Abri a mensagem e encontrei apenas uma foto, sem texto. A foto de um prato cheio da fava que eu tinha preparado, reinando sozinho no meio da mesa. 

Fava com tomate

1/2 kg de fava branca

2 cebolas (branca ou roxa)

4-6 tomates grandes (e bem maduros)

4-6 dentes de alho grandes (ou a gosto)

Um punhado generoso de coentro

Azeite, sal e pimenta preta

Limão (opcional)

No dia anterior, coloque a fava de molho. Ela deve ficar na água por no mínimo 12 horas. Quem tem um estômago mais sensível na hora de digerir leguminosas pode deixá-la mais digesta (traduzindo, evitar possíveis efeitos colaterais gasosos) deixando de molho por 24 horas, trocando a água na metade do tempo.

Depois da demolha escorra as favas (descarte a água) e cozinhe (na panela de pressão) no dobro de volume de água (nova), junto com um punhado generoso de sal. Esse tipo de fava pequena (e demolhada) cozinha no mesmo tempo que feijão, então quando a panela tiver chiado por 15 minutos (o chiado significa que a panela pegou pressão e o tempo deve ser contado à partir do momento em que ela começar a chiar), desligue e deixe a pressão sair naturalmente. Teste 3 grãos pra ver se está tudo bem cozido (deve estar cremoso no interior). Se ainda estiver um pouco duro, leve de volta ao fogo por mais alguns minutos. 

Enquanto isso corte a cebola em 4, no sentido do comprimento. Pique os tomates (grosseiramente) e o alho (finamente). Em uma panela grande e idealmente com o fundo grosso, aqueça uma boa quantidade de azeite (umas 3 colheres de sopa) e doure a cebola. Quando alguns lados estiverem dourados (etapa muito importante pra aumentar o sabor final do prato), junte o alho e deixe cozinhar mais alguns segundos. Acrescente o tomate, salgue e deixe cozinhar coberto, em fogo algo, até os tomates começarem a se desfazer. Nesse momento acrescente a fava cozida (só os grãos), tempere com pimenta preta e deixe cozinhar em fogo brando por uns 10-15 minutos (pra fava pegar o sabor dos legumes). Desligue o fogo e despeje o coentro picado na panela. Esprema meio limão por cima, se quiser (é opcional), misture, prove e acerte o sal, se necessário. Deixe descansar 5 minutos antes de servir, regado com um fio de azeite. 

Rende fava suficiente pro almoço de 6-8 pessoas, dependendo do apetite e dos acompanhamentos. Você também pode separar em porções menores e congelar. 

17 comentários em “Reabilitar a fava

  1. Esses dias apareceu fava verde por aqui, a gente comeu cozida na água, sal e coentro. Da próxima vez que aparecer vou fazer tua receita, Sandra. Obrigada por sempre partilhar tanto com a gente <3

    1. Essa minha receita pede fava seca (que é madura). A verde produziria um resultado diferente. Mas também acho fava verde uma delícia e gosto de preparar como você 😉

    2. Hoje manhã de domingo, minha fava no molho! Sou mineira, já conhecia o alimento pelo meu falecido tio que amava conhecer as variedades de legumes e principalmente as variedades de fava. Apresentava -nos, aos sobrinhos com brilho nos olhos. Hoje sou apaixonada. Amei a sugestão da receita!

    1. Eu acabei de fazer fava e o pessoal sentiu amargo. Será que porque servi com o caldo? Como faço agora para salvar a fava para comer amanhã?

      1. Como expliquei na receita, o caldo concentra o amargo. Se você não queria o amargo, por que usou o caldo? :/ Não sei o que você pode fazer agora, além de comer assim mesmo e acostumar seu paladar a apreciar esse sabor 😉

  2. Oi, Sandra 🙂 Eu acho que posso contar nos dedos as raríssimas vezes que comi fava na minha vida. Quando era criança, lembro que fava era uma das comidas favoritas da minha vó, mas como ninguém gostava ela mal fazia, mas eu sempre gostei e comia junto com ela. Fava pra mim tem gosto de saudade! Minha cunhada nutre o gosto pela fava, mas acaba preparando com muita carne junto. Vou experimentar fazer a sua receita e levar para voinha experimentar. Não conheço a feira que você falou que compra a fava, poderia me dizer onde fica em Natal? Grande beijo <3

    1. Parece que fava é a comida “dos antigos” por excelência. Mas bora mudar isso e mostrar pra juventude o que elas estão perdendo!

  3. Adorei!! Nunca comi muita fava, mas sempre ouvi falarem muito mal da bichinha… O amargo nunca me incomodou, mas o pessoal de casa não gosta e acabamos nunca comprando. Vou testar a receita pra ver se mudo a opinião de todo mundo! Hahaha

  4. Fiquei te procurando no Inst4gr4m (é vergonhoso como a gente fica mergulhada nesses hábitos terríveis), mas não te encontrei mais por lá. Então, me lembrei de um dos melhores blogs do mundo. Que coisa boa ler suas postagens aqui. Trouxe um conforto tão grande pro coração.
    Fiquei com água na boca com a receita, mas a história que você conta é o tempero mestre pra qualquer receita sua.
    Já tomei vergonha na cara e vou vir aqui ler suas postagens que trazem só amor pra vida da gente – bem diferente do ódio encontrado (na grande maioria das vezes) nas redes sociais do grupo f4c3b00k.
    Muito obrigada por compartilhar suas histórias e receitas.

    1. Alire, minha conta IG foi hackeada em julho e quando finalmente consegui ela de volta, a turma do Zuka resolveu desativar minha conta sem me dar explicações. Então fui expulsa de lá (mas já tava pensando em sair há anos!) e contei tudo num post aqui (vá descendo a tela que você acha). Agora você só me encontra no blog 😉 Seja bem-vinda de volta.

      1. Hey Sandra,

        Lembro sim do acontecimento.
        Fico muito feliz que esse blog maravilhoso existe pra encher nossa vida de ensinamentos e receitas maravilhosas.

        Obrigada pelo acolhimento ♡

        Ps.: tinha escrito um outro comentário mas acho que sumiu pq esqueci de por meu nome. Se aparecer um comentário parecido com esse pode ficar a vontade para deletar ☺️

  5. Aqui em São Paulo não é comum comer fava.

    A primeira vez que comi fava foi em um restaurante do CTN (Centro de Tradições Nordestinas) de São Paulo e também essa vez foi a primeira vez que fui no CTN de São Paulo; isso aconteceu faz uns 10 anos.
    A fava foi o que me ajudou a comer melhor por lá; porque naquela época já era peixetariano (não como frango e carne vermelha) e a fava era a única opção sem frango e carne vermelha que encontrei nos restaurantes de lá. Talvez isso tenha mudado, mas fui lá umas 2 ou 3 vezes na vida e faz tempo que fui lá pela última vez.

  6. Que coincidência maravilhosa! Quinta feira fui na zona cerealista, aqui em São Paulo, e comprei favas vermelhas – nunca comi favas. Me apaixonei pelo visual, quero experimentar, e tuas receitas vieram na hora certa. Imaginei que fazer patê com fava pode ser muito bom tb. Que venham mais receitas com favas, vou comprar todos os mese quando for na zona cerealista.

  7. olha que engraçado, nunca soube que a fava precisava ser reabilitada haha sou de família baiana, que tinha uma trepadeira de fava e sempre fui apaixonada desde criancinha… comia na farofa, em vinagrete ou cozido como feijão, sempre acompanhado de arroz! já salvei a receita pra fazer aqui em casa 🙂

  8. Oi Sandra! Essa semana encontrei fava “fresca” na feira orgânica, achei que preparava como ervilha e só refoguei. Achei gostoso, meio com sabor de castanha, apesar do amargor. Como eu nunca tinha feito, fiquei em dúvida se estava crua, e lembrei de você já ter falado aqui no blog! Agora fiquei com vontade de fazer de novo. Sabe se a fava fresca também precisa de molho? Estou curiosa com as receitas palestinas, agora que provei acho que deve combinar os sabores. Abraços!

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