O conto do ovo que não mata a galinha

Frequentemente perguntam à pessoas veganas o que achamos de ovos de galinhas criadas no quintal. Até prometi à uma leitora escrever sobre isso aqui no blog e, anos depois, ainda estou devendo esse post. A conversa de hoje não é exatamente sobre isso, mas se aproxima. Semanas atrás vi esse letreiro (foto acima) numa estação de metrô em Paris. Ele me deu a ideia de vir aqui trazer alguns esclarecimentos quanto à ligação entre consumo de ovos, exploração e crueldade animal, mas também tocar em um ponto que está causando divergências dentro do movimento vegano.

Se você faz parte do imenso grupo de pessoas que se perguntam por que veganas não consumem ovos, já que “não precisa matar a galinha pra obter ovos”, vamos começar do princípio.

Por volta de 18 meses de idade galinhas poedeiras já não poem ovos suficientes pra que sua exploração seja considerada rentável. Assim como mulheres nascem com um número determinado de óvulos, galinhas também põem um número determinado de ovos durante a vida e eventualmente entram no que pra nós seria chamado de menopausa. Então a conclusão lógica da indústria é matar aquela galinha e substitui-la por outra mais jovem. Sim, galinhas são mortas pra que pessoas possam comer seus ovos. E tem mais. Na seleção das novas galinhas poedeiras, somente as fêmeas são interessantes (afinal galo não bota ovo), então pintos machos são mortos logo depois do nascimento. Só na França 100 milhões de galinhas poedeiras e pintos machos são mortos por ano, como consequência direta da indústria do ovo.

Aí que entra a proposta de empresa que será o centro da nossa discussão aqui. “Poulehouse” é uma empresa francesa que existe desde 2017, cuja proposta é vender “o ovo que não mata a galinha.” Poulehouse vende apenas ovos de criadores que se comprometem a enviar as galinhas de 18 meses pra um abrigo (gerenciado pela empresa), não pro abatedouro. Lá as galinhas terão um resto de vida feliz, segundo a empresa. Tudo isso tem um preço, claro, e o “ovo que não mata a galinha”, que vamos chamar a partir de agora de OQNMG, custa de 2x à 4x mais que ovo orgânico, que já é mais caro que um ovo comum. A unidade desse ovo custa 1€ (quase 5 reais).

Até pouco tempo atrás era consenso dentro do movimento vegano entender que o objetivo da nossa luta era abolir a exploração animal. Essa era a diferença fundamental entre abolicionistas e bem-estaristas, que pediam melhorias de bem-estar pros animais, ou seja, melhores condições de exploração, sem no entanto se opor à exploração animal. Até que o veganismo de cúpula (ONGs e associações veganas) resolveu, em nome de uma suposta estratégia tática, apoiar reformas bem-estaristas. A teoria é que já que a abolição da exploração animal não vai acontecer amanhã, toda reforma que alivie, mesmo que pouco, o sofrimento animal deve ser não só aplaudida como incentivada pelo movimento vegano.

Mas eu não estou aplaudindo a iniciativa da empresa que vende OQNMG? Entenda por quê.

1- A empresa incentiva criadores a utilizarem uma tecnologia que identifica o sexo dos pintos ainda no ovo, pra que só as fêmeas sejam chocadas, o que evitaria a matança dos pintos machos. Mas no site da empresa está escrito que apenas dois criadores usam essa tecnologia, então o ovo ainda produz morte, sim!

2- Qual a capacidade desse abrigo de galinhas poedeiras aposentadas? Porque no ritmo que ovos são consumidos na França, serão muitas galinhas se aposentando todos os anos. Não é difícil imaginar que essa solução é inviável a longo prazo.

Uma palavrinha sobre o consumo de ovos na França. O povo que inventou a quiche gosta muito, muito de ovo: 98% das pessoas aqui consomem ovos, em média 222 ovos por pessoa/ano (no Brasil, em 2018, foram 212 ovos por pessoa). É só pensar em todos os omeletes, bolos, merengues e mousses da culinária francesa pra entender que vai ovo em praticamente tudo.

Assim, cerca de 50 milhões de galinhas poedeiras são mortas por ano na França. Imagine que se todas elas se aposentassem, em 10 anos teríamos que encontrar espaço pra abrigar 500 milhões de novas aposentadas! E como alimentar tantas galinhas vivendo em abrigos? Com ração feita com soja e milho da monocultura que devasta floresta, solo, água?


3- Apesar de garantir a aposentadoria das galinhas poedeiras, a empresa não garante que esses ovos não produzem sofrimento. No site tem escrito que ela “incentiva produtores a não cortarem a ponta do bico das galinhas”, mas não é um imperativo pra trabalhar com eles. Essa prática é comum na indústria de exploração de aves. Presas e privadas de ter as necessidades da sua espécies atendidas, elas se tornam agressivas, machucando outras galinhas e até se tornando canibais. A “solução” que a indústria encontrou foi cortar a ponta do bico das galinhas. Então não podemos dizer que esse ovo é “sem crueldade”, ou “ético”, como está escrito nas propagandas da empresa.

4- A bandeja com 6 ovos orgânicos dessa empresa custa 6€ (ou 4€ pra versão não-orgânica), enquanto uma bandeja com 30 ovos dos mais baratos aqui custa 3€ (Carrefour). Ou seja, 10 centavos a unidade, o que significa 10x mais barato que o OQNMG. Esse ovo está longe de ser uma opção pras pessoas mais pobres, que constituem um grupo cada vez maior aqui na França e que consume muito ovo (por ser mais barato que animais).

Assim o rico compra sua consciência “ecológica-sustentável”, “fazendo a diferença com pequenas mudanças”, enquanto a maior parte da população não tem escolha na hora de alimentar a família e é obrigada a comprar os ovos mais baratos, sendo excluída desse processo de “comprar um planeta verde/comida ética” e passando a ser vista como parte do problema por comprar o produto que “não é ecológico nem ético”.

5- Sem falar que como apenas a elite compra esse produto, enquanto nas cantinas escolares, refeitórios de fábricas, restaurantes, lanchonetes e casas de trabalhadores os ovos consumidos continuam sendo os mais baratos (que matam a galinha), o impacto dessa empresa na redução do sofrimento animal é minúsculo.

6- Olha o beco sem saída. Pra fazer uma diferença significativa a maior parte dos ovos consumidos na França teria que vir desse sistema “que não mata a galinha”, mas aí em pouco tempo teremos o problema que mencionei acima: onde abrigar todas as galinhas poedeiras aposentadas e de onde virá o alimento delas?

Aqui entra o desacordo entre a base e as organizações, ou seja, entre a maior parte das pessoas na militância vegana e o ativismo das ONGs e sociedades veganas no Brasil, mas também fora dele. Essa corrente liberal, que defende um ativismo de mercado (acreditando que aumento de produtos vegs significa redução de sofrimento animal) afirma: “Pra cada ‘ovo que não mata a galinha’ comprado, será um ovo a menos produzido de maneira muito mais cruel. Logo isso é uma vitória pros animais que deve ser acolhida e incentivada pelo movimento vegano.”

O que eu tenho a dizer sobre isso? Muita coisa.

Fiz algumas pesquisas sobre consumo de animais desde que voltei pra França. Descobri, por exemplo, que o consumo de ovos aqui não parou de aumentar nos últimos anos (cerca de 2% ao ano). Pois é. Enquanto o mercado de produtos industrializados veganos francês aumenta (fato), aumenta também o consumo de ovos (outro fato), de modo que francesas e franceses nunca comeram tanto ovo na História.

A mesma coisa é válida no Brasil. 2018 foi um ano recorde no consumo de ovos no nosso país. Foi 10,6% a mais (ou 20 ovos) em comparação com 2017 segundo dados divulgados pela Associação Brasileira de Proteínas Animais (ABPA). As razões? É mais barato que carne animal. E com o aumento do preço da carne que aconteceu em novembro, a estimativa é que em 2019 o consumo de ovo, uma proteína animal mais barata, será ainda maior do que no ano anterior. Não vamos esquecer que 2019 foi também o ano em que a maior produtora de ovos da América Latina lançou o seu “ovo vegano” no Brasil e adeptas do veganismo liberal declararam que essa era mais uma vitória pros animais.

A existência desses produtos, sejam ovos caríssimos que não matam a galinha ou “ovo vegano” da empresa exploradora de animais, não está de maneira alguma substituindo uma parte do mercado tradicional de ovos, que não para de crescer. Isso não passa de criação de novos mercados. Os argumentos do veganismo liberal desmoronam assim que se adquire um mínimo de compreensão sobre o funcionamento do sistema econômico vigente (capitalismo).

“E por que o consumo de ovo está aumentando na França?”

Obrigada por perguntar, pois a resposta é fundamental pra nos ajudar a entender algumas problemáticas do ativismos vegano que vê a expansão do mercado e iniciativas bem-estarias como a maneira mais “estratégica” de obter libertação animal.

Já expliquei as razões que estão fazendo o consumo de ovos no Brasil aumentar. Será que mesma coisa está acontecendo na França? Mais ou menos.

Primeiro que fique claro que isso não está sendo puxado pelo aumento da população francesa, que aumentou de 0.3% em 2018 (lembre que o aumento do consumo de ovo aumentou de 2% no mesmo período).

O aumento no consumo de ovo na França se deve, principalmente, ao…aumento do “flexitarianismo”. Sabe aquelas pessoas que comem animais/seus derivados e vegetais, ou seja, carnistas, mas quiseram inventar uma palavra nova pra se definirem, pois o mundo precisava saber que elas eram mais evoluídas que um mero carnista? Aquela galera que diz reduzir seu consumo de animais, mas sem ser vegetariano/vegano porque não são “radicais/extremistas”? Pois bem, esse povo aí está reduzindo o consumo de animais, mas ao mesmo tempo aumentando o consumo de ovos. Viram como é problemático retirar a ética do centro da militância vegana e reduzir a questão ao consumo?

A pessoa flexitariana pode até ter reduzido seu consumo de carne bovina, mas se isso provocou um aumento no consumo de ovos (e, em muitos casos, provocou o aumento do consumo de aves também), podemos realmente dizer que ela está reduzindo o sofrimento animal?

Atenção! Não estou dizendo que não acharia melhor se todos os ovos consumidos no mundo viessem de galinhas criadas em liberdade, que não serão mortas aos 18 meses e sem a matança de pintos machos. De maneira nenhuma!

Mas sou antiespecista, por isso acredito que o problema não é a maneira que as galinhas são exploradas e sim o fato delas serem exploradas. O papel de militantes veganas é lutar pelo fim da exploração animal, não por reformas pra que animais sejam explorados de maneira menos cruel. Essa é a diferença essencial entre abolicionistas e bem-estaristas.

No final das contas esse ovo é mais uma artimanha do capitalismo, que incorpora as pautas da atualidade pra se manter relevante, mais um nicho de mercado criado, mais um produto elitizado, mais uma oportunidade de ganhar dinheiro com a exploração animal…tudo, menos a redução do sofrimento animal.

Enquanto isso a indústria do ovo aqui segue comemorando o fato dos franceses nunca terem comido tantos ovos (mesma coisa no Brasil). E está ainda mais feliz com a lei Egalim, aprovada recentemente pelo governo, que obriga as escolas a oferecerem uma refeição vegetariana por semana daqui pra 2022. A indústria do ovo vê isso como uma grande oportunidade pro setor, pois obviamente a carne será substituída por ovos.

2 comentários em “O conto do ovo que não mata a galinha

  1. Sandra, querida! Concordo totalmente.
    Quando alguém me pergunta: — “por que nem ovos? Comer ovo não é cruel, os ovos não são nem galados” — eu costumo devolver para a pessoa: você comeria os ovos da beija-flor? Ou da papa-capim que fizesse um ninho no seu jardim? Ou da sariemas, ou da saracura…?
    Praticamente todos dizem que não. Aí eu pergunto: por que da galinha pode? Ela lhe deu o ovo ou ele foi pilhado, roubado?

  2. O veganismo liberal é contraditório e por isso é bem aceito entre eles porque não há questionamento, crítica ou reflexão sobre o que está seguindo.

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