Khubeza

No começo da primavera reparei que tinha uma planta crescendo no nosso lote. Uma planta que eu não tinha visto por ali antes e que ninguém tinha plantado. Se trata de uma planta “selvagem”, que cresce espontaneamente em vários lugares. Ela chamou minha atenção porque era uma planta que eu vi muito na Palestina. Se trata de um tipo de malva chamada, em Árabe, “khubeza” (leia “Rubeza”, e a sílaba tônica é “be”). Comi muita khubeza preparada pelas minhas amigas palestinas, pois essa planta faz parte da cultura alimentar dos países da região (Palestine, Jordânia, Líbano e Síria). A visão daquela planta ali, no nosso lote, na periferia de Paris, me emocionou. Lembrei das refeições compartilhadas com amigos e amigas palestinas e a saudade apertou meu peito.

Descobri a khubeza na nossa horta bem no momento em que as pessoas começaram a morrer de fome em Gaza. Israel, na sua campanha genocida contra o povo palestino, que já dura mais de um ano e meio, impedia qualquer ajuda humanitária de entrar em Gaza. Usando a fome como arma de guerra pra seguir com a limpeza étnica do povo palestino, a parte mais fragilizada da população- bebês, crianças e idosas- estava morrendo. A ONU tinha acabado de declarar que se Israel seguisse impedindo a comida de entrar em Gaza, 14 mil bebês morreriam de fome nas próximas 48 horas. E se você se pergunta por que essas pessoas precisam de ajuda humanitária pra comer, aqui vai a resposta: 95% das terras agrícolas em Gaza foram destruídas (bombardeadas) e/ou são inacessíveis (porque o exército israelense impede o povo palestino de pisar ali). Foi o que um relatório da FAO, a agência da ONU para alimentação e agricultura, feito em abril revelou.

Umas semanas depois do encontro com a khubeza da horta, comecei a ler histórias sobre pessoas palestinas escapando da morte por inanição graças à essa planta. Li um palestino, que só comia khubeza há tempos, dizer: “Pessoas sobreviveram aos momentos mais sombrios dessa guerra graças à Khubeza, pois é a única coisa que elas comem. Ela nos apoiou mais do que qualquer pessoa no mundo.” Só que até mesmo colher uma planta selvagem pra escapar da fome imposta por Israel é algo perigoso pro povo palestino. Muitas pessoas foram assassinadas por atiradores do exército israelense enquanto colhiam khubeza. Imagine ter que escolher entre ver suas crianças morrerem de fome ou tentar procurar comida e correr o risco de levar um tiro na cabeça.

Meu coração, com um machucado que não sara desde o início do genocídio cometido por Israel ao povo palestino, dói todo dia. E naquele dia, a dor foi amplificada. Às vezes eu choro muito e a dor, misturada com revolta e vergonha (vergonha por ser testemunha de um genocídio e não fazer nada pra que ele cesse), se espalha pelo corpo inteiro.

No final do dia fui pro lote nos jardins operários cuidar da nossa horta. Ainda não descobri tratamento melhor pra amenizar as dores do coração e os males da cabeça do que colocar a mão na terra. Aí vi o pezinho de khubeza crescendo ali, bem no meio do lote. Colhi algumas folhas e mandei uma mensagem pra minha grande amiga Draguitsa, que mora no campo de refugiados de Desheisha, em Belém (a palestina), perguntando como cozinhar a planta. Apesar de ter comido muita khubeza por lá, era sempre preparada por uma das minhas amigas palestinas e eu queria fazer igualzinho. Mandei a mesma mensagem pra Lila, uma amiga, e vizinha de lote, síria porque fiquei curiosa pra saber se no país dela o preparo era diferente. As duas me responderam com praticamente a mesma receita: lave a khubeza (folhas e talos tenros) e pique miúdo, dê uma fervura nela (Lila pula essa etapa), escorra, refogue cebola (Lila usa alho também) em bastante azeite, junte a khubeza picada, salgue e cozinhe até que fique bem macio. Sirva com molho de pimenta e coma com pão. Lila gosta de servir com limão e me disse que em Alepo, a cidade natal dela, também é comum preparar essa folha com quiabo.

Chegando em casa preparei a khubeza colhida no meu lote seguindo as instruções das minhas amigas. Cozinhei com muito carinho, mas acabei temperado tudo com lágrimas. E acho que quando isso acontece, a gente sente a tristeza quando coloca a comida na boca e acabei chorando de novo quando sentei pra jantar, depois de ter feito uma oração pedindo que não faltasse comida na mesa de ninguém em Gaza.

Mas no meio de toda essa tragédia (criada por Israel, nunca é demais repetir, já que a mídia se refere à fome em Gaza como “crise humanitária”, como se não fosse algo intencional. Não é crise humanitária! É genocídio, é limpeza étnica, são crimes contra a humanidade e Israel é um projeto colonial que já dura quase cem anos), no meio de toda essa tragédia, pensar que de uma terra devastada, que recebeu- e recebe ainda- toneladas de bombas, brota uma planta que é a diferença entre a vida e a morte pra um povo, me emocionou.

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