Um punhado de farinha e um pedaço de rapadura

Quando minha conta no Instagram foi desativada (contra a minha vontade), o que mais me chateou foi ter perdido o conteúdo que eu vinha publicando ali há anos. Eu não tenho a maioria das fotos que estava lá, mas o que mais me deixou realmente triste foi perder os textos, que representavam centenas de horas de trabalho. Mas não tinha só texto de trabalho ali. No meio da montanha de informação pra conscientizar sobre antiespecismo, sobre a construção do veganismo popular, receitas, dicas e material pra refletir sobre diversas lutas (feminismo, libertação do povo palestino, combate ao racismo e LGBTfobia…) tinha um pequeno texto extremamente precioso pra mim. Um trecho da última conversa que eu tive com a minha mãe, dois anos atrás.

Chamar de “conversa” vai parecer estranho, pois a mente da minha mãe já estava bem debilitada pelo Alzheimer e nosso diálogo não fazia sentido nenhum. Mas foi tão engraçado, eu ri tanto naquele dia, que corri pra pegar um papel e anotar tudo. Eu não queria perder aquele tesouro.

Foi a última vez que houve uma troca de frases longa entre nós. Depois daquele dia ela passou a falar cada vez menos e nunca dizia mais de uma ou duas frases por vez. Apesar de todos os cuidados da minha família, minha mãe teve Covid recentemente. A doença afetou muito a saúde dela e uma das sequelas foi mergulhá-la no silêncio. Ela já não fala praticamente nada e quando tenta pronunciar alguma palavra, ela sai da boca tão fraquinha que não consegue chegar inteira nos nossos ouvidos.

Isso foi uma porrada grande pra mim. Estou me preparando emocionalmente pra encontrar uma mãe silenciosa daqui a algumas semanas (vou ao Brasil no final do mês). O que mais me dói é pensar que nunca mais vou escutar ela responder “Oi, filha”. Eu gostava de falar “Mãe?” só pra ter o prazer de ouvi-la me chamar de “filha”. Por causa do Alzheimer, hoje minha mãe precisa da nossa ajuda pra tudo. Pra comer, ir ao banheiro, pra tomar banho, pra se vestir. Chega esse momento na vida em que nos tornamos a mãe da nossa mãe. Eu me tornei a responsável, a adulta. Ela se tornou um ser frágil que não sobrevive sem nossos cuidados. Por isso eu apreciava tanto esses momentos em que ela me chamava de filha. Nossa relação voltava a ser o que era. Ela, a mãe. Eu, a filha. Eu reencontrava minha mãe pour um segundo. 

Foi então que o universo me enviou um presente. Na semana em que ela parou de falar, descobri o diálogo engraçado, que eu pensava ter perdido pra sempre, em um dos meus cadernos. Não lembrava de ter anotado ali, então foi uma enorme surpresa. Nem consigo explicar a felicidade que senti ao ler aquilo de novo. E pra não correr o risco de perder as palavras dela novamente, vou deixar gravado aqui no blog também.

(Era depois do almoço. Minha mãe me chamou pra dar um cochilo.)

-Deite um pedacinho* aqui comigo.

-Deito, mãe.

-Trouxe o sal?

-Trouxe.

-O sal, não, mulher. O açúcar. 

-Trouxe também.

-Achou uma linhazinha aí, minha filha?

-Achei, mãe.

-E tão jogando fora?

-Tem ninguém jogando fora.

-Cadê tu, cabelo de angu?

-Tô aqui, mãe. 

-No chão?

-Não, na cama.

-Eu queria era saber como tira cenoura.

-Puxando.

-E ele saiu por essa porta?

-Saiu. Mas volta.

-Tá chovendo muito.

-O que?

-Chovendo, não. Tão fazendo uma brincadeira muito séria, muito boa.

(ela começa a tossir)

-Tá doente, mãe?

-Tô. Mas também já aturei* muito. Chega*, Lavin!

-Quem é Lavin?

-Um rapaz lá de Santana.

-Vai dormir não, né, mãe?

-Agora, não. Só de noite. É raposa.

-Raposa, o que é?

-Um bichinho assim… Do jeito que ele sentir for, ele vai e ferve.

-Mãe?

-Oi, filha.

-Quem não pode com o pote…

-não pega na rudia.*

-…

-Tinha duas cabeças.

-Quem?

-O bode e a bada.

-Né cabra, não?

-Tu quer mastigar, é?

-Cabra? Mãe, pare de contar brebote*!

-Eu vou é plantar uma ruma*! Quem é seu pai?

-Paulo.

-Ah, o meu marido. E você só tem um?

-De pai, só. 

(Ela levantou da cama e sentou na rede. Sentei de frente à rede, peguei as mãos dela e beijei. Ela acariciou minha palma direita, depois fechou minha mão e a segurou, fechada, entre as mãos dela, como se estivesse protegendo algo.)

-A senhora colocou o que na minha mão?

-Um punhado de farinha e um pedaço de rapadura.

(e sorriu)

*Pequeno dicionário sertanejo

Minha família é do Sertão potiguar e tem algumas palavras e expressões nessa conversa que nem todo mundo vai entender.

1-“Pedaço” pode ser uma medida física (um pedaço de bolo) ou uma unidade temporal (“Espere um pedaço” / “Fique comigo um pedacinho”). Acredito que, assim como o espaço, o tempo também pode ser dividido em pedaços.

2- Aturar: nesse contexto, é um verbo sinônimo de “durar”. “Já aturei muito!” significa “Já durei muito, já vivi muito”. Mas também significa “suportar” (“Eu não aturo essa pessoa!”)

3- Chega, _____(nome de alguém)!: expressão que significa algo como “Venha ver isso aqui!”. O “chega” que significa “basta!” é pronunciado diferente, de maneira enfática. Já o “chega” que quer dizer “venha ver aqui” é pronunciado “Cheeeega”. Aliás “basta” também tem um significado duplo no dialeto sertanejo;)

4-Rudia: na verdade é a nossa maneira de pronunciar a palavra “rodilha”. Significa uma corda ou, como era mais comum no Sertão, um pano que você coloca arrumado em círculo em cima da cabeça pra carregar algo pesado. No caso aqui, o pote d’água. Minha mãe adorava falar esse ditado, que quer dizer que “se você não dá conta do trabalho, nem comece”. Uma versão moderna e sudestina seria: “Se não sabe brincar, não desce pro play.”

5-Brebote: significa coisa sem sentido. “Falar brebote” = falar besteira.

6- Ruma: sinônimo de “um monte”. Uma ruma de gente. Uma ruma de comida. De acordo com minha irmã mais velha, “ruma” é coletivo de “bosta”. Mas, por extensão, se tornou coletivo de tudo.

8 comentários em “Um punhado de farinha e um pedaço de rapadura

  1. Lindo texto, me fez sentir saudades da minha avó e das conversas que tínhamos há uns anos atrás, quando ela me oferecia um pretinho (café) do jeitinho doce e amoroso dela a cada 5 minutos. O Alzheimer é uma doença muito cruel com os familiares e a minha avó esquecer de mim foi uma das maiores dores que já senti. Um abraço afetuoso!

  2. Sandra, tem meses que penso em te escrever, hoje resolvi te visitar no seu cantinho na internet. Mesmo sem conversa, tá sendo um delicioso reencontro. Eu não tenho uma boa memória, mas lendo esse post e o anterior, mergulhei em várias sensações que tive no passado com seus textos. Lembro como gostei da ideia de dividir o tempo em pedacinhos, do memorável relato da colheita de cogumelos no quintal do sogro, do sabor da abobrinha com espinafre que aprendi aqui e repito sempre, sempre. Sem falar dos tantos aprendizados sobre veganismo político, a Palestina ou os jardins de Aubervilliers. Tô comentando só pra fazer pra mim mesma a promessa de voltar com mais frequência aqui, mas vou te escrever também!

  3. Sandraaaaa, que texto singelo, lindo, sensível e que nos toca fundo. Me emocionei, como em tudo que tu faz nos emociona. Força, firmeza, alegria e união entre as suas, minha querida. Saudades!

  4. Que lindeza… Acho que já tinha visto no insta, tive a impressão de estar voltando a algo já conhecido.
    Que seu reencontro seja bonito, apesar do momento difícil.
    (Eu conheci o RN pela primeira vez agora, nos últimos dias, e fui justamente pro sertão. Lembrei um bocado de vc!)

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