Depois que ela se foi

Ontem eu estava limpando meu computador, que não para de me enviar mensagens dizendo que não tem mais espaço pra nada por aqui, quando achei essa foto feita há exatamente um ano.

Eu sempre tive medo de cachorros. Um velho trauma de infância, nada grave, mas suficiente pra ter me feito temer aproximação com cães durante quase toda a minha vida. Até que Nina entrou pra família. A história de como ela chegou até nós é bonita, então vou contar.

Meu irmão caçula é bombeiro. Um dia teve a seguinte ocorrência no trabalho dele: dois cães ferozes tocando terror em algum lugar da cidade. Ele foi lá, junto com seus colegas de trabalho, e os “cães ferozes” em questão eram dois Golden Retriever inofensivos. Meu irmão levou os dois pra casa e colocou anúncios por todos os lados procurando as pessoas humanas responsáveis por eles, pois aquele casal de Golden com certeza tinha escapado de um lar. Levou algum tempo até encontrar as pessoas humanas responsáveis pelas pessoas caninas e nesse ínterim minha família alimentou, cuidou e, como era de se esperar, se afeiçoou pelos cães. Quando eles finalmente voltaram pra casa deles, não antes de um momento de desconfiança por parte da minha família (“E se essas pessoas não forem as verdadeiras responsáveis pelos cães?”), ficou um vazio grande em casa. Pula pra alguns meses depois. Escutamos alguém chamar no portão (não tínhamos campainha). Era o casal de humanos responsáveis pelo casal de Golden, com um filhote nos braços. Uma maneira de agradecer meu irmão por ter encontrado e cuidado dos cães até que eles pudessem voltar pra casa. Foi assim que Nina entrou na nossa vida.

O meu medo de cachorros já estava sob controle, graças a uma outra pessoa canina que fez parte da família por alguns anos, mas eu ainda não conseguia relaxar totalmente. Não confiava ainda que aquela boca cheia de dentes não iria me morder se eu fizesse um gesto brusco ou que fosse interpretado como uma agressão. Nina era a doçura incarnada num corpo de cadela. Vi crianças pequenas colocarem a mão (no caso de bebês, o braço) na boca dela, durante as brincadeiras, e ela ficava imóvel, pra não correr o risco de machucá-las. Pela primeira vez eu confiava num cachorro (na verdade, cadela). Eu conseguia me deitar no chão, do lado dela, abraçá-la e beijá-la sem o mínimo medo de ser mordida. Ela conseguiu me cativar e me fez superar completamente o meu trauma de infância. Depois da chegada de Nina consegui perder o medo de todos os cachorros e minha relação com a comunidade canina se transformou completamente. Nina me fez amar cachorros.

Sempre quis escrever sobre ela aqui no blog e me dói só estar fazendo isso agora, quando sou obrigada a usar o passado pra falar dela. Nina se foi dois dias antes do natal.

Na última vez que estive na casa da minha família, no Brasil, notamos que ela estava com um caroço no ombro esquerdo. Pouco tempo depois o câncer foi confirmado. Minha sobrinha Lenita, que é veterinária e era a humana responsável por Nina, junto com meu irmão, fez o possível pra salvá-la. Tentou todos os tratamentos e remédios e seguia obstinada a curá-la, mesmo considerando amputar uma pata, até chegar no ponto em que os veterinários da clínica onde Nina estava internada tiveram que chamar minha sobrinha pra conversar e convencê-la de que a batalha tinha sido perdida. Nina já estava com as quatro patas paralisadas há alguns dias e sofrendo muito. Nunca passei por isso, então posso apenas imaginar a dor da minha sobrinha quando teve que tomar a decisão de colocar um fim ao sofrimento de alguém que ela amava tanto.

Nina morreu em casa, cercada pelas pessoas humanas, canina e felinas que compõem a nossa família. A família dela. Minha sobrinha a trouxe do hospital de manhã cedo e ela passou as últimas horas comendo coisas que ela não poderia comer em tempos normais e recebendo carinho das parentes de diferentes espécies. Eu sempre pergunto às pessoas o que elas escolheriam como última refeição, se soubessem que morreriam dali a pouco. Pela primeira vez eu sei exatamente o que uma pessoa que eu amo comeu na sua última refeição. Nina comeu uma torrada (“Com queijo de manteiga!”, explicou a minha sobrinha) e chocotone. Como todo mundo sabe, chocolate é nocivo pra cães e ela nunca tinha provado até então. Nina adorou chocolate, apesar de, por causa do seu estado de saúde, só ter conseguido comer um pouquinho do que foi oferecido. Liguei pra minha sobrinha e pude me despedir de Nina numa chamada de vídeo. No final da manhã minha sobrinha e meu irmão colocaram ela no colo, o resto da família, todas as espécies misturas, se juntaram ao redor e Nina partiu. Ela morreu com dignidade e cercada de amor, depois de ter lutado contra o câncer durante vários meses.

As cinzas dela estão numa caixa na sala, esperando pra serem jogadas na praia onde ela passou tantos momentos felizes. Nina adorava praia. Em julho do ano passado minha irmã Lu e eu alugamos uma casa de praia pra passar uns dias com a família. Nina viveu dias de alegria intensa ali. Ela passava o dia inteiro do lado de fora, olhando o mar e levando vento na cara. Tanto que meu irmão, o humano dela, precisou improvisar um abrigo pra que ela não ficasse o dia inteiro embaixo do sol. A alegria dela era uma coisa linda de se ver. Quando voltamos da praia ela caiu numa tristeza profunda. Achávamos que era saudade da praia, depressão por ter voltado pra uma casa na cidade, sem quintal, longe do mar que ela tanto amava. Mas aquilo durou dias e dias… Até que descobrimos o caroço. Não era tristeza, era a doença já tomando conta do corpo dela.

Uma das minhas maiores felicidades, e alento, é saber que proporcionamos os dias mais felizes da vida dela pouco antes dela adoecer.

Mês que vem estarei em Natal novamente e apreendo o momento em que entrarei na casa familiar pela primeira vez desde que ela se foi. A casa sem ela deve parecer enorme. Chico, o outro cachorro que faz parte da família, ainda está perdido. Levanta, procura ela pela casa, se deita, se levanta novamente, procura mais uma vez… Sinto que, pelo menos nos primeiros dias, é isso que vai acontecer comigo.

7 comentários em “Depois que ela se foi

  1. Muito difícil perder nosso companheiro canino. Meu cachorro se foi em 2014 e até hoje sinto muita falta e nunca mais tive vontade de ter outro bicho, um bocado pelo sofrimento que passamos nos últimos tempos dele (teve um tumor também)

  2. Poxa, sinto muito, Sandra. Que oportunidade bonita que ela teve de passar seus últimos momentos em casa, com a família, eu não sabia que isso era possível nesses casos.

  3. Sou humana de uma Nina também! Como a gente ama essas criaturas divinas! E como somos também amadas por elas! Sinto muito pela partida da Nina. Saber que ela foi tão querida e teve uma vida cheia de amor e cuidado deve amenizar um pouco a dor, né? Agora ela deve estar no céu dos cachorros se empanturrando de torrada e chocotone!

Deixe uma resposta para Andrezza Bicudo Cancelar resposta