Falar da luta antiespecista com camaradas de esquerda. E um bolo.

De cara, já aviso que não tenho a resposta. Vim aqui compartilhar minhas experiências militando dentro de um coletivo anticapitalista de tendência anarquista, na esperança de que elas possam inspirar quem está numa situação parecida.

Esse mês faz um ano que o nosso coletivo, as Brigadas de Solidariedade Popular (BSP), foi criado. Era o início da pandemia de Covid 19 e estávamos atravessando o primeiro lockdown na França. A primeira BSP apareceu em Milão, uma iniciativa de militantes antifascistas. Com o objetivo de organizar a solidariedade popular diante da crise sanitária e alimentar, as BSP logo se espalharam por uma parte da Europa. A BSP de onde eu moro, na periferia norte de Paris, foi a primeira da França e também veio da militância antifascista. Outras surgiram logo em seguida, fazendo com que a França fosse o país com o maior número de Brigadas. Um ano depois, poucas continuam ativas. A nossa nunca deixou de organizar atividades de solidariedade e seguimos mais ocupadas do que nunca. Isso se explica, de uma parte, pelo fato do território onde estamos ser o cantão mais pobre da França inteira. A crise alimentar e econômica, que já existia pré-Covid, nunca parou de aumentar por aqui. A longevidade do nosso coletivo também tem outra razão: o compromisso das militantes que o compõe, que ja vinham da luta antifascista, antiracista, feminista….mas não antiespecista. 

E é aqui que começa a reflexão sobre ser uma militante antiespecista inserida em um contexto de militância organizada que ainda não considera o antiespecismo como parte da luta da esquerda radical.

Anne e eu somos as únicas veganas do coletivo, mas praticamente todas as nossas camaradas já tinham consciência que precisamos “reduzir o consumo de carne”. Uma, inclusive, teve uma alimentação totalmente vegetal por um tempo, mas acabou se afastando dela e hoje é ovo-lacto-vegetariana em casa e come animais quando é convidada pra jantar. Mas essa conscientização veio através da necessidade de mudar o modo de alimentação como parte dos esforços contra a mudança climática, não por questões éticas. Então decidi não falar sobre a luta antiespecista, até que alguém me fizesse perguntas. 

Todo mundo sabe que somos veganas e, como sempre acontece, aos poucos foram apareceram os questionamentos. Porque existir como vegana entre pessoas que comem animais é suficiente pra fazer com que o especismo se torne visível. Essa ideologia, que é dominante quando se trata de relações humanos-não humanos, precisa seguir invisível pra se perpetuar, por isso ser vegana, mesmo calada, causa desconforto nas outras pessoas.

As primeiras perguntas eram básicas. Por que não comer animais criados em liberdade por pequenos produtores? Por que não comer mel? Faz parte da agenda política vegana impor o veganismo a povos tradicionais? Veganas odeiam pequenos criadores de animais? Por que um modo de vida elitista e à base de soja transgênica deveria receber alguma consideração? 

Eu ia respondendo tentando não prolongar muito o discurso. Pensei que se respondesse cada pergunta com uma hora de palestra, não iam me perguntar mais nada. De vez em quando Anne e eu conversávamos em casa sobre as perguntas que nos faziam. Sobre a incoerência política das camaradas, que estavam construindo uma luta contra toda e qualquer dominação. Toda e qualquer, menos a dominação do humano sobre os outros animais. 

Nas atividades de solidariedade que realizamos junto com a comunidade (migrantes em situação de rua, mulheres migrantes em abrigos, famílias em situação de vulnerabilidade econômica…), as camaradas traziam bolos pra compartilhar, sempre com produtos de origem animal. Nunca reclamamos nem pedimos bolos vegetais pra que pudéssemos comer também. Mas partilhar comida com a nossa comunidade é algo importante pra nós, então quando eu tinha tempo, levava um bolo vegetal. Nessas ocasiões a curiosidade de todas despertava. O que eu tinha colocado ali? É possível fazer bolo sem ovos? Além das perguntas das camaradas, muitas das famílias vinham conversar comigo. Lembro de um dia em que uma das mulheres do abrigo, que é marroquina, me contou que era confeiteira e que recentemente tinha aprendido a fazer bolos vegetais. Quando ela tirou o celular da bolsa e começou a me mostrar, orgulhosa, as fotos das suas criações, eu me emocionei. 

À partir desse dia uma das camaradas, a maior boleira entre nós, começou a fazer bolos vegetais  pra trazer pros lanches durante as atividades. Os elogios que ela recebia eram um incentivo pra que ela repetisse a dose no domingo seguinte. E durante alguns meses os lanches tinham bolos com produtos vindos da exploração animal e um bolo vegetal.  

O fato das mulheres sempre serem as responsáveis pelos bolos começou a nos incomodar. Durante uma reunião decidimos verbalizar nosso descontentamento. “Os homens podiam fazer os bolos também, né?” A mensagem foi recebida e dois camaradas do coletivo passaram a ser responsáveis pelos bolos. Um deles sempre me pedia dicas pra fazer bolos sem ovos, sem manteiga, mas ficava na teoria e nunca se aventurava na cozinha vegetal. 

Tiveram outras coisas, muitas outras coisas. Umas pequenas, outras maiores. O estudo de um livro sobre ecologia decolonial, escrito por um pesquisador da Martinica, onde ele falava rapidamente sobre a dominação animal. A participação de um encontro anarquista internacional onde a questão do especismo foi abordada. Um artigo escrito por um antiespecista francês que incomodou um camarada. O namoro de uma camarada com um vegano e a decisão que ela tomou de se tornar vegana (projeto que foi abandonado após o término do namoro). A chegada de duas pessoas vegetarianas no coletivo. Uma camarada que reconheceu, durante um almoço aqui em casa, que comer animais se tornou obsoleto. 

Umas semanas atrás convidamos H, a boleira do coletivo, pra lanchar conosco. Ela contou por que quis aprender a fazer bolos vegetais: “É um prazer pra mim fazer bolos pras pessoas na minha vida. Quando eu vi que vocês não comiam os meus bolos, eu me senti mal. Excluir vocês não era uma opção aceitável pra mim.” Antes de ir embora naquele dia ela disse que, embora as camaradas do coletivo não tenham se tornado veganas, nossa presença ali tinha feito todo mundo começar um processo de reflexão. Ela, que ainda não é vegana, mas que anda pensando seriamente em se tornar, tem certeza que em breve veremos um aumento considerável do número de veganas dentro do coletivo.

Recentemente tivemos um encontro entre todas as Brigadas de Solidariedade Popular da região e, sem combinar, nenhum dos pratos levados pra compor nosso almoço coletivo tinha corpos de animais. Sim, 70% dos pratos tinha queijo e/ou ovo, mas além da salada de lentilha que levei, mais duas pessoas tinham feito pratos quentes vegetais. Pode parecer pouco, mas em uma cultura como a francesa, onde gastronomia e prazer gustativo são associados ao consumo de corpos de animais, isso é significativo.

Nossa última atividade de solidariedade popular foi há pouco mais de uma semana. Mais uma distribuição alimentar pra pessoas da comunidade em situação de vulnerabilidade econômica. V, um dos camaradas responsáveis pelos bolos, disse que cuidaria sozinho do lanche. E no início da tarde ele chegou com os braços carregados de delícias. Ele preparou a mesa do lanche e, como estava tudo lindo e cheiroso, o pessoal correu pra se jogar nos três tipos de cookies e no bolo de banana que ele tinha feito. Quando me aproximei da mesa e ele avisou que era tudo vegetal. Exatamente um ano depois da nascimento do coletivo tivemos nosso primeiro lanche inteiramente vegetal. Iniciativa de um camarada não-vegano.

Não sei se esse relato vai oferecer alguma inspiração pras veganas me lendo que são militantes organizadas em coletivos, grupos, organizações, sindicatos ou partidos da esquerda radical que não pautam a luta antiespecista. Não tenho a fórmula infalível pra convencer do óbvio: que o antiespecismo é uma pauta intrínseca à luta anticapitalista, feminista, anticolonial e antiracista.  A luta antiespecista continua sendo a grande órfã da esquerda, como disse Axelle Playoust-Braure, uma jornalista e militante antiespecista francesa, co-autora do livro “Solidarité Animale”. Mas acredito que isso está mudando.

Sei que o tempo que nos resta é contado. Raramente um dia se passa sem que eu me pergunte como acelerar a conscientização das pessoas na esquerda radical ao especismo. Enquanto a galera segue procurando desculpas pra evitar de refletir sobre a questão e alinhar suas práticas ao seu discurso político, bilhões de animais estão presos e são torturados, explorados e mortos a cada ano. O que fazer então? Ocupar espaços de luta, não impor o veganismo nesses espaços mas, sempre que possível, fazer críticas bem argumentadas ao sistema de exploração animal. Promover o debate, visibilizar o especismo e apontar a imensa contradição que é reforçar esse sistema quando estamos engajados em transformar o mundo. Veja que falei em criticar a exploração animal, que é sistêmica, e apontar as contradições políticas de indivíduos, não criticar suas camaradas e apontar o dedo pra elas. 

Dica final: acompanhar tudo isso de um bolo vegetal vai deixar o processo muito mais agradável. E a receita abaixo produz um bolo espetacular!

Esse não é o fim da história, é o começo. Espero que daqui a algum tempo eu possa voltar aqui pra contar que o nosso coletivo de tendência anarquista agora pode afirmar, sem contradição, que se está na luta contra toda e qualquer dominação. 

Bolo de banana com chocolate e puxuri 

Esse bolo é meu bolo dos sonhos! É o bolo de banana que V levou pra atividade e impressionou todo mundo naquele domingo. Ele me passou o link pra receita original, explicando que tinha usado uma banana a menos e incluído chocolate. Eu parti da versão dele, mas diminuí significativamente a quantidade de açúcar pra adaptar a doçura do bolo ao meu paladar (a receita original pedia 150g de açúcar branco, usei 80g de açúcar de coco). Na receita abaixo coloquei uma quantidade um pouco maior, o que vai produzir uma bolo mais doce (próximo da doçura dos bolos brasileiros), mas ainda equilibrado. Se você é louca por açúcar e acha que bolo tem que ser bem doce, use 150g. Mas posso sugerir que talvez seja interessante educar o seu paladar pra apreciar doces que não são extremamente doces? Na minha versão também incluí puxuri, porque ganhei de presente da minha querida amiga Juliana e estou apaixonada por essa especiaria da Amazônia. Se não tiver, não use. O bolo não vai ser menos delicioso por isso.

3 bananas maduras

100g de açúcar (melhor se for demerara)

70ml de óleo (usei de coco, mas pode ser girassol)

150g de farinha de trigo

2 col. de chá de fermento

Pitada generosa de sal

1 col. de chá de puxuri ralado (ou cumaru) – opcional

Um punhado de chocolate (60% ou 70%), picado

Aqueça o forno a 180. Unte com óleo e enfarinhe uma forma pequena, idealmente daquelas retangulares (como as usadas pra fazer pão de forma).

Amasse as bananas com um garfo (alguns pedaços inteiros são bem-vindos), despeje o açúcar e o óleo por cima e misture bem. Noutra tijela misture a farinha de trigo, o fermento, o sal, a especiaria (se estiver usando) e o chocolate picado. Despeje a mistura de banana sobre a mistura de farinha e mexa bem (mas sem bater!) até toda a farinha ser incorporada. Transfira a massa pra forma untada/enfarinhada e asse por aproximadamente 45-50 minutos, ou até que ele esteja dourado na superfície e passe o teste do palito.

Gosto de comer esse bolo morno (não quente!), com o chocolate ainda derretido. No dia seguinte a textura fica mais densa, mas também acho gostoso o contraste entre o bolo macio e os pedaços de chocolate firmes. 

6 comentários em “Falar da luta antiespecista com camaradas de esquerda. E um bolo.

  1. Eu realmente acho difícil de entender como a esquerda não está aberta ao veganismo. Deveria ser uma das pautas de qualquer movimento de esquerda, radical pelo menos.

  2. Gosto tanto do jeito que você aborda o veganismo com as pessoas! Me inspiro em vc, quero ter mais coragem pra falar mais sobre o tema quando me perguntam. Às vezes sinto que fico nervosa e falo pouco, pq tenho uma tendência muito grande a evitar conflito.
    E sobre esse bolo, quero fazer pra ontem! Não sou muito fã de bolo, mas de banana tem meu coração, só lembro dos bolos de banana da minha avó <3 Ah, e quero te dar um abraço por colocar as medidas em gramas kkkkk depois que descobri que, na confeitaria, quanto mais precisão, melhor, minha vida ficou muito mais fácil!
    Sobre as bananas, vc usa qual tipo? De que tamanho? Obrigada!!

    1. Uso as mais comuns, de tamanho médio. A verdade é que você pode usar bananas grandes ou pequenas que vai dar certo do mesmo jeito. Só vai ficar mais ou menos com gosto de banana 😉

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