Vegana na periferia e no mercado do bairro

Incrível como um conceito tão simples, alimentação vegetal, pode causar tanta confusão. Vem daí o mito de que ser vegana é elitista, que só é possível pra quem tem muito dinheiro e acesso a lojas de produtos especializados. 

O Brasil voltou pro mapa da fome (de acordo com a FAO) e atualmente mais de 10 milhões de brasileiras sofrem com ela (Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE 2017-2018). Desertos alimentares (lugares onde a oferta de alimentos frescos é escassa – ou inexistente- e sobra ultraprocessado) é uma realidade pra muita gente. O Brasil é do tamanho de um continente, as culturas alimentares são diversas e o acesso a comida varia muito de um território pra outro. Mas sem querer ignorar essa realidade, se alimentar exclusivamente de alimentos vegetais já é uma possibilidade pra muito mais gente do que se imagina. 

Trouxe dois exemplos pessoais aqui: a mercearia no pé do meu prédio, aqui na França, e o mercado do bairro onde minha família mora, no Brasil. 

Eu moro na periferia norte de Paris, numa das cidades mais pobres da França. O desemprego é altíssimo, uma parte considerável das moradias é insalubre e a presença/violência policial é alta. Aqui tem uma população imigrante gigante e muito diversa e isso determina o tipo de alimentos que encontro nas ruas. 

Vegana na periferia de Paris

É possível ter uma alimentação totalmente vegetal, e equilibrada, morando numa das periferias mais empobrecidas de Paris, gastando pouco e comprando tudo na mercearia da esquina? Sim.

Essa é a mercearia embaixo do meu prédio, onde encontro todos os alimentos necessários pra ter uma alimentação 100% vegetal e completa. Tem todo tipo de leguminosa (crua e enlatada). Todo tipo de cereal (de arroz a trigo sarraceno, passando por cuscuz marroquino). Tem oleaginosas (castanha,amendoim, sementes de girassol). Tem óleo, azeite, o melhor leite de coco industrializado e uma variedade gigantesca de temperos. Sem falar nas frutas e verduras frescas (o saco de 5kg de batata ou cebola sai por 2,5€, muito mais barato do que no supermercado). E quando os legumes começam a ficar maduros demais, rola promoção. Já levei cestas de frutas pra casa por apenas 1€.

E pra deixar a felicidade dessa vegana completa, tem farinha de grão de bico e tahina libanesa. Ah, falei que tem guloseimas pra nós, também? Chocolate meio amargo e o melhor biscoitinho do velho continente. E, se você fizer questão de leite de caixa, tem leite de soja (orgânico) e de amêndoa.

Não tem tofu, salsicha, nem iogurte vegetal, mas esses produtos não são indispensáveis. E sempre tenho a possibilidade de caminhar 15 min e comprá-los na loja de orgânicos mais próxima (dentro de Paris). É bacana comer esses produtos de vez em quando, mas gostaria que mais gente entendesse que a comida da vegana sempre foi a comida do proletariado.

“Mas Sandra, a realidade na periferia do Brasil é muito diferente!” Eu comecei explicando que não vim negar o fato de que o acesso a alimentos varia muito no Brasil. Aqui também. Eu tenho a sorte de poder comprar comida embaixo do meu prédio e de ter uma feira a poucos metros de casa. As pessoas morando em outras periferias podem não ter comida fresca e abundante tão perto. Talvez elas sejam obrigada a pegar um ônibus pra chegar na feira mais próxima. Também tenho a sorte de estar colada à Paris e poder caminhar um pouco e chegar numa loja de orgânicos, com muita comida vegetal especial (iogurte de soja e coco, tofu defumado, salsicha de tofu, biscoitos mais refinados…). Lembrando mais uma vez que essas comidas especiais (processadas e ultraprocessadas), por mais gostosas que sejam, não são indispensáveis pra ter uma alimentação vegetal.

Então a ideia é mostrar que é possível ser vegana em lugares onde muitas pessoas achariam impossível (uma periferia empobrecida na França), não dizer que toda periferia é igual.

Segundo contexto:  ser vegana em uma cidade grande do Brasil, comprando comida somente no mercado do bairro.

Vegana no mercado do bairro 

Primeiro preciso explicar que tipo de bairro. Minha família mora em um bairro residencial, onde arrisco chutar que a maior parte da população se encontra na classe D (renda total do domicílio entre 2 e 4 salários mínimos). Tem algumas (poucas) linhas de ônibus circulando e próximo da nossa casa tem 2 mercados, que começaram como mercearias de bairro. Por isso ainda tem moradora que chama o lugar pelo nome do dono (“Vou ali em M.”).

A oferta de alimentos nesses dois lugares é idêntica, assim como os preços. Quinta-feira tem promoção de frutas e verduras nos dois e dá pra economizar muito se você for lá nesse dia. Além de uma boa variedade de frutas e verduras, também tem:

Cereais (arroz, milho, aveia), farinhas (de mandioca e trigo), goma pra tapioca, tubérculos (macaxeira, batata doce e inhame/cará), feijão (de alguns tipos), azeite e óleo de girassol, sementes ricas em ômega 3 (linhaça e chia), pasta de amendoim pura, leite de coco industrializado (mas também vende coco seco fresco pra fazer o leite em casa), alguns biscoitos doces vegetais, alguns pães industrializados e pão francês feito na padaria do próprio mercado (os outros pães da casa têm ingredientes de origem animal).

Mais uma vez, não tem iogurte, nem queijo vegetal, nem hambúrguer de soja. Mas o objetivo é exatamente esse: mostrar que a comida da vegana é aquela que vem da terra e é vendida na feira e nos mercados. Ultraprocessado com selo “vegano” NÃO é uma necessidade nem pra nós nem pra ninguém.

Mais uma vez, a ideia é mostrar que se alimentar exclusivamente de vegetais é mais simples e está ao alcance de muito mais pessoas do que se imagina. Não vim dizer que tem essa mesma oferta (com esses mesmos preços) em todos os bairros populares do Brasil!

A mensagem que eu gostaria que você levasse desse post é a seguinte. A menos que você esteja em um deserto ou pântano alimentar, provavelmente já tem comida vegetal suficientemente variada ao seu redor pra você se alimentar bem sem precisar comer animais ou produtos vindos da sua exploração. Comer outros animais já se tornou obsoleto pra uma parte enorme da população, pra quem isso não passa de um hábito, não de uma necessidade.

3 comentários em “Vegana na periferia e no mercado do bairro

  1. Muito interessante esse post!

    A comida industrializada vegana é cara, no entanto os alimentos naturais veganos (frutas e vegetais) são baratos.

    Por mais que eu já sabia que todo o mundo deve se importar com a comida que vem da terra. Acho muito boa e interessante, essa expressão comida que vem da terra.

    A primeira vez que eu ouvi essa expressão foi em um vídeo do canal CACA SOUZA chamado AS 5 FASES DO VEGANISMO & PQ EXISTEM EX-VEGANES? Nos tempos 4:26 a 6:10 e 7:24 a 8:00:
    Ela foi passou 5 dias em uma ilha, lá ela não tinha acesso aos produtos veganos que imitam produtos de origem animal (como hambúrguer, salsicha, queijo, manteiga, presunto veganos); ela se hospedou em uma pousada em que a dona é vegana e a dona da pousada falou que as pessoas devem comer a comida que vem da terra; o que dona da pousada disse para ela, foi uma reflexão importante da qual ela não teve acesso através de filosofias orientais, de yoga e de meditação.

    Link do vídeo citado: https://www.youtube.com/watch?v=9YSPUO74Cuw.

  2. Toda a leitura foi uma reflexão pra mim. Estou longe de me tornar vegana – a caminhada é longa, mas a cada dia tento me aproximar um pouquinho, fazendo exatamente esse movimento de incluir mais alimentos que venham da terra ou excluir os processados e de origem animal.

    Lá em casa tentamos movimentos que contemplem todas as pessoas da casa. Pois nada adianta eu me tornar vegana se o restante da família não acompanha. Então estamos em uma velocidade lenta, duradoura e constante em melhorar nossa alimentação e nossos hábitos (incluindo a questão da limpeza da casa com produtos mais simples e naturais, reciclagem de materiais e compostagem, o não-uso de sacola plástica e outros).

    E outra coisa que me chamou atenção no texto foi esse costume da gente dizer que “vai ali no M…”. Aqui dizemos que “vamos ali na Eliane” – uma amiga de infância que começou com uma mercearia bem pequena e hoje em dia já pode ser considerada um mercado. Esse tipo de coisa é tão legal, saber que com esse pequeno costume fazemos parte de um hábito reconhecido em todo Brasil. Coisas que a gente acaba não reparando.

    Sandra, adoro teus textos. Eles sempre me movem pra frente ou no mínimo me fazem pensar. Obrigada por compartilhar.

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