23 de outubro

Pensei em fazer um breve apurado da minha vida no momento, como eu costumava fazer quando esse blog era uma mistura de caderno de receitas e diário de bordo. Era gostoso conversar por aqui, mas acabei afastando o conteúdo pessoal desse espaço porque, aos poucos, minhas leitoras e leitores forma migrando pro Instagram, outras chegaram por lá e nunca vieram pro blog. E, apesar de reclamar regularmente sobre isso, acabei seguindo o movimento e aparecendo mais por lá do que por aqui. Grande erro. Então vim anunciar a volta daquela que não foi.

Mês passado fez um ano que me mudei Paris. Na verdade, pra periferia norte de Paris, colada à capital, mas que pertence a um universo totalmente diferente. Minha cidade é a segunda mais pobre da França, mas se eu atravessar algumas ruas, chego na cidade mais rica do país (Paris). O contraste nunca deixa de me impressionar.

Esse ano entrei prum coletivo local, as Brigadas de Solidariedade Popular. Nos formamos no início da pandemia, pra responder à urgência da situação, que deixou muitas famílias da nossa periferia na rua, sem ter o que comer. Mas desde o início combinamos que nosso trabalho iria além da crise sanitária-alimentar e continuamos organizando ações dos mais variados tipos aqui: acompanhamento de refugiados menores de idade, apoio material ao abrigo de mulheres do bairro (todas estrangeiras, a maioria indocumentada), feiras gratuitas regulares pras famílias mais vulneráveis (comida que coletamos no mercado, doada por feirantes), distribuição de kits de higiene pras pessoas refugiadas que dormem na rua (e acampam na margem do canal do lado da minha casa)…Além da participação em outras lutas que estão acontecendo no nosso território, pois a ideia é construir a solidariedade na base. Tem a luta dos trabalhadores migrantes indocumentados, que ocupam uma fábrica abandonada aqui perto, a luta pra salvar os jardins operários, uma horta comunitária criada em 1935, atualmente ameaçada de destruição pelo projeto de piscina olímpica (as Olimpíadas de 2024 serão em Paris e, como sempre, está sendo uma desculpa pra gentrificar a periferia e expulsar os “indesejáveis” do caminho), coletivos de habitantes se organizando pra ocupar as terras que estão nas mãos da especulação imobiliária e plantar comida pra população, aumentando a segurança alimentar da periferia… Com tudo isso acontecendo, a militância está ocupando a maior parte do meu tempo, mas quando me mudei pra cá eu tinha colocado como prioridade me envolver nas lutas locais, então estou muito feliz de poder me juntar a tanta gente bacana resistindo e construindo alternativas.

Enquanto isso um toque de recolher (das 21h as 6h) foi decretado na região (Paris e cidades vizinhas), porque os casos de covid-19 voltaram a aumentar de maneira vertiginosa. E enquanto a segunda onda da pandemia chega aqui, já tem rumores que vai ter lockdown novamente, à partir da semana que vem. O inverno será longo.

Me resta o refúgio da cozinha. Apesar de ter uma cozinha micro, sem janela e sem fogo (tenho placas de indução ao invés de um fogão a gás e não tenho forno), é pra onde corro quando a realidade ao meu redor se torna dolorida demais. Sei que pra muita gente a cozinha é o último lugar pra onde se vai em momentos difíceis, mas pra mim sempre foi meu lugar preferido. Nigella Lawson disse uma vez que gostaria que a cozinha não fosse um lugar de onde escapamos, mas sim um lugar pra onde escapamos e eu não poderia concordar mais com ela.

E nesses momentos de cozinhar pra acalentar a alma, tenho feito esse prato que consegue a proeza de juntar os sabores do meu Nordeste e da Palestina, ao mesmo tempo em que usa os legumes da estação (é outono aqui). É um prato extremamente simples, o que me convêm perfeitamente quando procuro a cozinha pra relaxar. Claro que o sabor e nutrição que ele oferece complementam o meu bem-estar geral e é como um grande abraço de dentro pra fora. Essa é minha ideia de comida afetiva, que alimenta e reconforta.

Acho que 2020 está precisando de mais pratos assim.

Legumes de outono com molho de tahina

Esses legumes aparecem no outono aqui, mas estão disponíveis quase o ano inteiro no Nordeste, então sinta-se livre pra mudar o nome dessa receita. As quantidades são aproximadas, só pra dar uma ideia, mas elas importam pouco. Adapte de acordo com o que você tiver na geladeira ou com o seu gosto. Como sempre, a melhor tahina é fluida e clara (feita com gergelim descascado). A combinação de tahina e grão de bico foi feita no paraíso, mas se você não tiver tahina pode usar pasta de amendoim. Obviamente o sabor será outro e só recomendo pra quem adora amendoim.

3-4 xíc de repolho, cortado fino
2 xíc de jerimum (abóbora), em cubos pequenos
1-2 xíc de grão de bico cozido (reserve a água do cozimento)
Azeite ou óleo
Coentro a gosto (ou salsinha)
Sal e pimenta do reino a gosto

Molho de tahina
4 col. sopa de tahina (ou tahine, pasta de gergelim)
2 col. sopa de suco de limão
Água até dar o ponto
Molho de pimenta a gosto (só pra quem gosta!)
Páprica defumada a gosto (opcional)

Em uma frigideira grande (com tampa) aqueça um pouco de azeite (ou óleo) e refogue o repolho, temperado com algumas pitadas de sal. Deixe cozinhar (sem água!) coberto, mexendo de vez em quando, até ficar macio e levemente dourado. Junte o jerimum, mais algumas pitadas de sal, e cubra tudo com a água do cozimento do grão de bico (ou água). Atenção! Se você cozinhou o grão de bico com sal (o que aconselho), deixe pra salgar o prato no final, se necessário. Talvez nem precise. Tampe e deixe cozinhar até o jerimum amolecer, acrescentando mais líquido (água do cozimento do grão de bico ou água), se necessário. Quando o jerimum estiver bem macio e o líquido tiver evaporado completamente, junte o grão de bico cozido e pimenta do reino a gosto, mexa pra esquentar e desligue o fogo.

Prepare o molho misturando a tahina como o suco de limão e vá acrescentando água aos poucos, uma colher por vez, até atingir a consistência de um creme fluido. Junte o molho de pimenta e a páprica defumada, se estiver usando, mais uma pitada generosa de sal, prove e corrija o tempero, se necessário. Se você gosta de pimenta, tahina + pimenta vai te encantar. Se picante não for a sua praia, use só a páprica (doce) defumada, que realça bastante o prato. O sabor defumado me lembra a fogueira que aquece as noites frias do outono, então, na falta de lareira, tenho usado esse ingrediente em tudo.

Despeje o molho de tahina sobre os legumes, distribua o coentro picado por cima e sirva imediatamente. Pode servir como prato único ou acompanhado de arroz. Rende 2 porções. (Também é uma delícia frio, com pão.)

12 comentários em “23 de outubro

  1. Bom dia, Sandra.
    Muito grata, por sua generosa partilha.
    Estava sentido falta de receitas. A de hoje chegou bem
    na hora, como deliciosa sugestão para meu almoço.
    Gratidão.

  2. Sandra, eu adoro seu blog. Ouso dizer que gosto mais dele do que o Instagram até… Não me leve a mal, sou sensível e o Instagram é poluído demais pra mim. Sempre venho aqui pra olhar sua receita de focaccia, e amo como você define as tuas comidinhas de conforto. Pra mim nada mais confortável que legumes assados. Também vejo na cozinha meu refúgio, tenho até um alarme no celular destinado a preparações culinárias. Nunca pare de escrever aqui (só se quiser, né rsrs), porque a tua escrita sempre me inspira.

  3. Olá, Sandra, confesso que sou parte da geração que já cresceu com o Instagram haha. Lembro perfeitamente do dia em que você falou que no instagram as coisas eram um pouco superficiais e você conseguia abordar muito melhor alguns temas aqui no blog, foi quando tomei o hábito de visitar sempre esse espaço. Já li tanta coisa maravilhosa documentada aqui <3.

    Seus textos são acolhedores, posso dizer que aprendo muito contigo, eles têm me ajudado de diferentes formas, e você com certeza é muito especial para todes que te acompanham. Um grande abraço do interior do RN, rsrs, espero um dia a sua visita nos cajueiros aqui do sertão :*

  4. Sempre uma alegria ler os seus textos também aqui no blog, Sandra! Para quem acompanha seu conteúdo aqui há anos, esse cantinho aqui parece bem mais pessoal do que o instagram! Feliz retorno 🙂

  5. Adorei a notícia, Sandra. Acho que te descobri por aqui há uns dez anos. Te sigo no Instagram, mas confesso que aquela rede me irrita um bocado; de vez em quando (como agora) eu me desligo da minha conta e fico usando só as profissionais, e só porque não tem muito jeito. Prefiro aqui, mesmo 🙂

  6. Oi Sandra! Sou daqui das terrinhas quentes desse nordeste, Pernambuco, sou uma grande fã sua. Amo sua escrita, suas receitas, já fiz algumas e adorei. E gosto muito do seu ativismo. Fico feliz que irá postar mais por aqui, como não tenho instagram, sempre aguardo suas postagens aqui. Gratidão por existir e fazer um trabalho tão necessário e com tanta maestria. Um abraço linda flor!

  7. Oi Sandra! Também prefiro o blog ao Instagram! Aqui os conteúdos ficam muito mais organizados e a leitura mais objetiva também.

    Ótimo texto e receita. Fraterno abraço.

    Achei legal a menção ao jerimum! Vou exercitar mais no meu vocabulário do que somentemoranga (usado mais frequente aqui no sul pra ábobora cabotiá

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