Engrossar o fino, esfriar o quente e aumentar o pouco

Meus pais, nascidos e criados no Sertão potiguar, devem sua sobrevivência à farinha de mandioca. Um dia minha tia Luísa, irmã caçula do meu pai, me explicou que quando ela era criança a família guardava a farinha num baú. “Quando ele estava cheio, a gente sabia que tinha comida por pelo menos três meses.” Perguntei o que ela comia naquele tempo. “Cuscuz de manhã, com o milho que a gente moía, feijão macaça com farinha no almoço e à noite mais feijão com farinha, ou um pedaço de rapadura com farinha.” Minha mãe também me contou do pirão de óleo que fazia pro almoço das irmãs e irmãos, quando meus avós estavam no roçado e não tinha mais nada pra comer. A receita? Água fervente, um pouco de óleo, sal e a bendita farinha.

Desde muito pequena escuto meus pais falarem que farinha serve pra três coisas: engrossar o fino, esfriar o quente e aumentar o pouco. Mais eu acrescentaria mais uma função: salvar o sertanejo da fome, quando não tem mais nada pra comer.

Nasci no litoral, onde não tem seca, e por isso cheguei à idade adulta sem desenvolver o gosto pela farinha. E, o que só vim entender esse ano, sem a gratidão pelo alimento que salvou minha família materna e paterna de morrer de fome algumas vezes. Porém sempre gostei de pirão, pra mim a única maneira de transformar a insípida farinha em algo palatável. Já a farofa, uma das paixões gastronômicas nacionais, nunca me interessou. Eu a considerava uma variação da farinha com um tiquinho de nada de gosto a mais. Nada que merecesse ocupar um lugar no meu prato.

Até que esse ano tudo mudou. Começou com uma passagem do livro “A cozinha vegana amorosa”, do meu querido amigo, e cozinheiro, André Cantú. O livro é uma coleção de textos tão deliciosos quanto a comida de André, misturando técnica e conceito. Abri o livro de maneira aleatória e caí no texto chamado “Robôs não fazem farofa”. André me autorizou gentilmente a reproduzir aqui partes desse texto.

“(…) Uma boa farofa compõe-se essencialmente de farinha, gordura, alimentos sólidos ou líquidos variados e o mais importante: “jeitinho”. Não entendeu? Vou tentar explicar passo a passo, então.

Esqueça tudo o que sabe sobre colesterol, gorduras trans, poli, mono in ou ultrassaturadas, aterosclerose e outras informações que geralmente nos trazem mais preocupações que benefícios à saúde. Vamos deixar bem claro: não existe farofa diet. No máximo alguém pode dizer que uma farofa seja light, mas, francamente, duvido da intenção dessa pessoa.

Minha avó materna dizia que numa boa farofa ia de tudo, menos ponta de cigarro. Na minha, em respeito aos animais, não vai carne alguma, nem mesmo a ponta do dedo do cozinheiro.

Você pode usar o óleo vegetal que mais lhe agrada, gordura de palma, azeite de dendê, óleo de babaçu ou misturar alguns desses ingredientes entre si. Escolha um fogo condizente com a sua sagacidade (não vai queimar, ô boca aberta!) e derreta a gordura, espalhando-a por toda a panela. Se ela for de ferro, pedra, barro, melhor. Se não, que ao menos seja de sua confiança. Evite as muito finas, muito altas ou muito pequenas. Não existe dosagem de ingredientes para fazer farofa. Você até pode usar uma medida como referência, ponto de partida, mas enquanto seu olho não assimila a prática, pegue uma panela maior e comece fazendo uma pequena quantidade, assim, algum excesso de “correção” não vai cair para fora da panela.

Colher de pau, lógico. Coordene sua farofa com a arrumação da geladeira. Recicle, reutilize, reforme, remexa tudo aquilo que você guardou de souvenir das últimas refeições. Esvazie seus potinhos esquecidos. Aquela carne de soja que sobrou, o fim da pimenta em conserva, o legume picado que não chegou a ser usado, as cinco últimas azeitonas, o talo do salsão, a parte do pimentão que ainda está boa, as castanhas-do-pará querendo rançar, as uvas-passas do Natal, a nata do leite de soja… Me diga se esse refogado não é ecologicamente correto, hein?

Mas se você pensa que a lição de economia termina por aqui, enganou-se. Acrescente aos poucos, mexendo sempre, a farinha de sua preferência. Pode ser fina ou grossa, de mandioca ou de milho, vale enriquecer com fibra de trigo, é aqui que você faz volume com ingrediente barato. Também deixa o braço malhado sem precisar ir à academia. Mexa mais rápido ou baixe o fogo. Se quiser a farofa mais úmida, é agora que você acrescenta banana, abacaxi ou uma sobrinha de caldo, de molho, que deverá ser integrado à um sabor maior que muito provavelmente jamais se repetirá.

Pode acontecer de o cozinheiro devanear, e se por esse descuido ela pegar no fundo não o raspe em hipótese alguma. Mantenha a calma, o fogo baixo, reacenda a intuição e avalie o momento certo de parar. Esse é o ponto.

O sal, recomendo colocar quase por último, esse também é o momento do coentro ou da salsinha picados entrarem. Confira o sabor usando o instrumento mais adequado pra degustação: a palma da sua mão. Deu certo? Muito bem! Ficou seca ou úmida demais? Encaroçou? Tá estranha? Jeitinho nela! Dê um jeitinho e não me pergunte como! Até aqui você gastou pouco tempo e dinheiro, então não tenha medo de seguir sua intuição: arrume sua farofa!

Existe um negócio esquisito embalado a vácuo sendo vendido nos supermercados como farofa. Quando vejo essa comida estéril nas prateleiras (…) sinto um pouco de asco. Não exatamente do que vem no pacote, mas da indústria de produtos alimentícios que investe no parco poder de decisão das pessoas que abdicaram do direito de ter tempo de cozinhar para se entregarem aos assépticos e insípidos sabores de algo cuja principal promessa é adequá-las às demandas padronizadas da escravidão moderna. Gente que nunca vai encher a boca de farofa e falar: fa-ro-fa! Gente que perdeu o paladar, que desaprendeu a arte de temperar, esqueceu da graça que é estar vivo, do “jeitinho”. Gente com tão pouca autoestima que precisa de uma peça publicitária para lhe indicar o que é bom ou saboroso. Gente tão pouco gente que corre o risco de ser substituída por um robô. E, como não sabe fazer farofa, compra no supermercado.”

Em poucos parágrafos André me fez pensar a farofa de uma maneira completamente nova. E, acho que ele vai ficar feliz em saber disso, me deu uma baita vontade de fazer farofa.

Fui pra cozinha e comecei um exercício que repeti várias vezes durante as férias em Natal. O jogo era simples. Eu abria a geladeira e me perguntava: “Que restos vão virar a farofa do almoço hoje?”

Verdade seja dita: tinha uma farofa que eu gostava. A receita chegou lá em casa muitos anos atrás, através de uma prima. Se trata de uma farofa de cenoura com farinha de rosca (pão seco ralado). Eu achava que gostava dessa farofa justamente por não levar farinha de mandioca, mas eu estava errada e vou explicar o porque mais adiante. Mas voltemos à cozinha e ao meu recém descoberto jogo. A lição que eu podia tirar da farofa (falsa) de cenoura era que me apetecia farofa úmida. Então seguindo os conselhos de André e tendo sempre em mente que o resultado procurado era uma farofa úmida, criei minha primeira farofa.

Sucesso absoluto!

Depois veio a segunda, a terceira e eu não consegui mais parar de fazer, nem de comer, farofa. Vou lembrar sempre de 2019 como o ano em que eu entendi a farofa. O conceito de farofa, mas também a função, a utilidade dela e o apreço por ela.

Descobri que o que eu não gostava, na verdade, não era a pobre farinha de mandioca, era a maneira que a maioria das pessoas prepara farofa. Pra muita gente farofa é só gordura (óleo, manteiga ou o que sobra na panela quando um animal foi cozinhado ali) e farinha. Esse tipo de farofa continua não me interessando. Prefiro farofas multi-ingredientes, cheias de surpresas, sabores e texturas. Por isso o texto de André era o que eu precisava pra abrir os olhos. Ver a farofa como um veículo pra juntar os restos da geladeira é uma ideia de gênio (e peço perdão se só eu ainda não tinha entendido essa obviedade)! Essa maneira de ver a farofa resolve dois problemas: faz bom uso dos restinhos esquecidos na geladeira (evitando desperdício) e deixa a farofa do jeitinho que eu gosto (cheia de ingredientes).

Outra coisa que encontrei com frequência nas farofas alheias e que me dá um desgosto profundo: caroços. Tem farinha fina e farinha mais grosseira, cheia de caroços. Esses caroços são pequenos demais pra serem quebrados pelos dentes, mas grandes o suficiente pra entrarem nos buracos dos dentes e ficarem lá, incomodando. Talvez eu tenha uma arcada dentária particularmente esburacada, mas o fato é que farofa feita com farinha com caroço me irrita profundamente. Felizmente a solução é simples: peneirar a farinha antes de usar. Eu peneiro até a farinha fina, pois realmente gosto da minha farinha finíssima e livre de qualquer caroço.

Quando compreendi que na verdade não era do prato “farofa” que eu desgostava, mas da maneira como ele era preparado (sem graça e com caroço) um mundo de possibilidades se abriu na minha frente. Então pude entender o que a amiga Maria Helena, nordestina também, me disse um dia: “farofa é a argamassa da vitória.”

Farofa de couve e banana

Das farofas que saíram da minha cozinha em 2019 a minha preferida, e que agradava sempre a família, foi essa aqui. Vou indicar medidas, mas não precisa seguir à risca porque fazer farofa não é uma ciência exata. Releia o texto de André e siga a sua intuição.

2 cs de óleo (ou azeite)
1 cebola
2 dentes de alho
2-3 folhas de couve
2 bananas (maduras, mas firmes)
1 x de farinha de mandioca fina (peneirada)
Sal e pimenta do reino a gosto

Ingredientes opcionais (mas que deixam sua farofa supimpa):
Um punhado de coentro
1-2 pimentas de cheiro

Pique a cebola e o alho. Corte o talo das folhas de couve e pique os dois separados.

Em uma panela grande e, idealmente, com o fundo grosso, aqueça o óleo. Doure a cebola junto com os talos de couve. Acrescente o alho e as folhas de couve e refogue por mais alguns segundos, só o suficiente pra couve murchar ligeiramente. Enquanto refoga os legumes, descasque e pique as bananas.

Junte metade da farinha peneirada, depois a banana e polvilhe o resto da farinha por cima. (Entenda: a ideia é envolver os pedacinhos de banana com farinha, assim eles ficam soltinhos e não grudam uns nos outros virando um bolo só ou, pior, um purê porque você mexeu demais tentando separa-los.) Misture delicadamente e deixe cozinhar mais dois minutos.

Tempere com sal, pimenta do reino e prove. Acerte o sal, se preciso. Desligue o fogo e acrescente o coentro e a pimenta de cheiro, se estiver usando. Agora é só dar mais uma mexidinha e servir. Rende de 4 à 6 porções, dependendo do que você considera como uma porção de farofa.

PS Eu disse que gostava de farofa úmida e cheia de ingredientes, por isso uso pouca farinha. Gosto de uma proporção de vegetais pra farina de 2 pra 1 (calibro no olho, nunca meço os ingredientes quando cozinho em casa. Só faço isso quando quero publicar a receita aqui). Quer uma farofa mais seca? Só acrescentar mais farinha.

11 comentários em “Engrossar o fino, esfriar o quente e aumentar o pouco

  1. Adorei o texto, lindo, parece um poema!
    Quanto à farofa, sou muito farofeira, como não como carne criei desde sempre a farofa de cenoura.
    Só nunca coloquei a couve e banana, mas a próxima será la Papacapim!

  2. Sandra, conheci seu site há alguns anos. Não sou vegano, nem vegetariano, mas adoro cozinhar e acho fantástico quando encontro um legume bem feito, surpreendente. Acredito que as pessoas não gostem de legumes e verduras porque não sabem extrair o sabor deles. Estava eu a procurar boas receitas de legumes, maneiras diferentes de prepará-los e pensei: Os veganos/vegetarianos devem saber preparar melhor do que nós! Foi aí que caí no seu site e fiquei ENCANTADO. Assim em maiúsculo mesmo. Seu texto é leve, apaixonante, diria até viciante. E as receitas? Ah! Quanto amor, quanto esmero. Já preparei algumas e gostaria que o mundo as fizesse. Gostaria que vc estivesse toda semana na televisão ensinando alguma a milhares de pessoas! Suas receitas precisam ganhar o mundo!
    Leonardo
    Brasília

  3. Adorei a dica de livro e também a sua história! Meus pais são do RN e eu, apenas por acaso, nasci no Rio de Janeiro, mas amo demais as terras potiguares. Sempre gostei de farofa, mas as sem crueldade animal são definitivamente as melhores!

  4. Lindo texto, Sandra. Quase uma oração. Minha mãe era nordestina, trazia a farinha no sangue. Nós nunca passamos fome, mas uma certa necessidade. A farofa, então, era muitas vezes nossa mistura. Esta cultura, trago comigo. Nos almoços em família, sempre sou solicitado a fazer a farofa. Obrigado pelas receitas e histórias. Minha filha é vegana e sempre bebo muito no seu blog.

  5. Leio seu post imediatamente após almoçar uma farofada deliciosa. Usei taioba refogada, fatias de jiló assadas na frigideira, temperadas com shoyu, azeite e tempero de alho caseiro. Juntei tudo que tinha de sobra na geladeira: um guisado de cenouras (refogadas com coco seco batido com água e temperos no liquidificador, e depois grelhadas ao forno), restinho de abóbora d’água, couve, grão de bico. Refoguei tudo em uma frigideira funda, coloquei farinha torrada e finalizei com com salsinha, tomilho e pimenta. Ficou fino!

  6. Adorei esse texto!
    Porque farofa é a argamassa da vitória, mesmo! Concordo plenamente!
    Eu amo farofa com todas as minhas forças. Uma das poucas lembranças afetivas culinárias da minha infância é a farofa do meu avô. Levava óleo e um pouco de banha (você torceu o nariz agora, eu sei, Sandra, me desculpe, mas não tem nenhum vegetariano na família), farinha, alho e sal. E só. E eu comia de ficar constipado.
    A madrinha da minha esposa fazia (fazia, pois infelizmente a perdemos pra Covid) uma com muuuita cebola. Bem tostadinha até quaaase queimar. Mas não queimava, e ficava divina. Levava margarina, sim, mas não levava bicho picado nenhum. Só óleo, margarina, umas quatro ou cinco cebolas parrudas, sal e farinha. Tento fazer, mas a minha versão é um arremedo da dela.
    Eu como farofa com feijão num potinho enquanto faço comida, pra ver o nível da criatura aqui. Tipo uma mousse salgada quente. Feliz da vida.
    E vou seguir os conselhos seus e do grande André Cantú (o Broto de Primavera já estava na lista de desejos para a próxima vez que eu voltar a SP, assim que essa situação permitir!), e deixar a criatividade aflorar e reciclar o que for possível. Sempre tem algo suplicante na geladeira.

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