Exercício de economia doméstica

Estava na rua resolvendo coisas e voltando pra casa decidi passar pelo mercado de produtos orgânicos que fica no caminho, já que a geladeira estava vazia. Acontece que eu só tinha 15 euros na bolsa, o que aqui não é grande coisa. Comprar comida pra semana, pra duas pessoas, com um orçamento tão limitado seria um exercício interessante de economia doméstica. A verdade é que não tenho trabalho remunerado no momento e preciso mesmo manter as despesas sob controle. Mas a Pollyanna que mora em mim viu aquilo como uma oportunidade pra ser mais criativa na cozinha.

Saí do mercado com 1 jerimum pequeno, 1 repolho branco, 2 alhos-porós, 1 molho de salsinha, 1 lata de feijão branco e 1 pedaço de tempeh (valor da compra: 13 euros). Poderia ter comprado muito mais comida em um supermercado comum, mas comprar vegetais orgânicos é uma prioridade aqui em casa. Como comprar comida produzida localmente e limitar os industrializados também são prioridades nossas, as compras acabam ficando mais baratas. Se kiwi (da Nova Zelândia), manga (do Brasil) e hambúrguer vegetal ultraprocessado fizessem parte das compras, por exemplo, a conta seria muito mais alta.

Isso limita a variedade de verduras e frutas que entra na minha cozinha, certo, mas pra mim não faz sentido morar em Paris e me alimentar com vegetais que atravessaram o mundo de avião pra chegar na minha mesa. Seria difícil comer exclusivamente o que foi produzido na região onde moro, mas tento comprar apenas comida cultivada na França ou, no máximo, nos países vizinhos. Ênfase no verbo “tentar”, já que por aqui não se planta café nem a maioria das especiarias que uso, por exemplo. Porém a França tem uma diversidade grande de climas e produz muitas hortaliças, frutas (principalmente na primavera/verão), mas também arroz, leguminosas, trigo, aveia, soja, sarraceno, cogumelos… Dá pra se virar bem comendo localmente. Mas voltemos às compras.

Se você pensou que não dava pra alimentar duas pessoas por uma semana com apenas os ingredientes citados acima, você pensou certo. Eles se juntaram às comidas que já estavam em casa. Veja. Mesmo quando a gente acha que não tem mais nada na despensa, ainda tem algumas coisas. Se você tem uma cozinha ativa, ou seja, se cozinha regularmente, provavelmente sempre vai ter alguns ítens de base no armário, além de alguns condimentos frescos (cebola, alho) e temperos (especiarias, ervas desidratadas, molho shoyu).

Então eu sabia que ia encontrar na cozinha: lentilha, um pouco de arroz, um pacote de macarrão, feijão macaça (trouxe do Brasil), aveia em flocos, farinha de grão de bico, farinha de mandioca (também trouxe do Brasil), além dos sobreviventes das compras da semana anterior (2 batatas, 1 batata doce e 3 maçãs), um punhado de nozes (também está na época aqui), os condimentos de base (cebola, alho, 1 pedaço de gengibre, 1 limão, especiarias, sal com ervas -uso pra fazer sopa) e uma caixinha de leite de coco orgânico deixado por Camille, a pessoa que morava no apartamento antes de nós.

Leite de coco é algo que uso muito no Brasil, mas raramente entra no meu carrinho de compras aqui, justamente por vir de longe. Então quando tenho acesso a ele uso com parcimônia, em pratos especiais. Aquela pequena caixinha de leite de coco (250ml) se transformou no molho de um curry e deu cremosidade à uma sopa de jerimum. Se você quiser fazer economias na cozinha, sem abrir mão do prazer, use ingredientes especiais (entenda: raros e caros na sua região) pra enriquecer receitas, não como o elemento principal do prato.

Se eu tiver ingredientes secos de base, como cereais (arroz, macarrão, aveia) e leguminosas (lentilha, farinha de grão de bico), além de azeite e temperos, eu consigo preparar um cardápio bem variado com apenas alguns legumes frescos, como foi o caso aqui.

Antes de contar o que cozinhei naquela semana, deixa eu explicar uma coisa sobre produtos processados. Eu falei que ultraprocessados raramente entram aqui em casa, mas derivados da soja aparecem na nossa alimentação com frequência. Estou me referindo a molho shoyu, tofu e tempeh e, mais raramente, iogurte de soja. Os produtos que compro são orgânicos e feitos com soja não-transgênica cultivada na França e transformada aqui mesmo. Quando estou na casa da minha família, em Natal, nunca como tempeh nem iogurte de soja, mas adapto minha alimentação ao que tem disponível nos lugares onde moro. Não encontro feijão francês com facilidade (na verdade só produzem um tipo de fava aqui), então acabo consumindo tofu e tempeh pra variar as leguminosas, senão fica só na lentilha verde e ervilha (as outras leguminosas cultivadas aqui).

Não quer consumir soja? Não acha soja orgânica por aí? Não tem tempeh (meu alimento à base de soja preferido, feito somente com soja fermentada) na sua cidade? Sem problemas. Ninguém precisa comer soja nem tempeh pra ter uma alimentação vegetal nutritiva, completa, variada e barata. Adapte o seu cardápio aos alimentos da sua região (e ao seu paladar).

Concretamente, como foi minha semana de refeições com os ingredientes da lista acima? Pra me ajudar a bolar um cardápio usando tudo (e nada mais, pois a ideia era me virar com o que já tinha aqui, sem fazer novas compras) tem uma coisa que me ajuda muito: escrever a lista de tudo que tenho na cozinha. Quando trabalho como chef particular, faço o contrário: monto o cardápio primeiro, depois faço a lista dos ingredientes necessários pra prepara-lo. Mas ter feito isso durante alguns anos me ensinou a raciocinar nas duas direções. Então primeiro fiz a lista dos ingredientes disponíveis (compras + o que já tinha em casa), depois fui elaborando pratos utilizando os ítens da lista. Além de garantir que usarei tudo, evitando desperdício, isso ajuda naqueles dias que você chega em casa no final do dia, cansada, e não consegue pensar em nada pra cozinhar. Ter a lista de pratos que podem sair da sua geladeira ajuda demais nesses momentos de falta de criatividade.

A primeira coisa que fiz quando cheguei em casa foi cortar o repolho pra fazer repolho fermentado (chucrute). Me sinto melhor comendo alimentos fermentados diariamente e repolho fermentado é a maneira mais barata de incluir probióticos na sua alimentação. Sem falar que ele é rico em vitamina C, o que é muito importante durante o outono/inverno aqui, quando tem poucas frutas disponíveis e quase não como saladas cruas (tem meses que as únicas verduras locais na feira são batata e jerimum). Sobrou um pouco de repolho picado (não coube na jarra onde deixei o chucrute fermentando), então guardei num potinho, na geladeira, pra ser usado mais tarde.

Depois coloquei a lentilha e o feijão macaça de molho (pra serem cozinhados no dia seguinte). Também preparei a mistura pra grãomelete (farinha de grão de bico + água) porque ela tem que ser preparada na véspera, sempre. Faço uma quantidade grande (suficiente pra fazer 4 grãomeletes) e deixo na geladeira. Assim posso preparar um grãomelete sempre que quiser e ter uma refeição nutritiva que levou poucos minutos pra ficar pronta.

Lembra que fiz uma lista com os pratos que poderia preparar com o que tinha na cozinha? Isso também serve de guia pra que eu cozinhe as coisas mais antigas primeiro, como os vegetais que sobraram da semana anterior. Então naquela mesma noite usei as batatas e a batata doce no jantar. No dia seguinte cozinhei a lentilha e o feijão macaça e guardei na geladeira pra ser comido durante a semana.

Outra dica importante: faça porções dobradas. Assim seu almoço ou jantar do dia seguinte estará garantido.

No fim das contas consegui preparar comida suficiente pra 6 dias (6 almoços + 6 jantares), pra duas pessoas, usando somente o que você vê na foto de abertura desse post. Os pratos que preparei foram:

-Curry de batata e batata doce com tempeh + arroz (2 refeições)
-Ensopado de feijão branco com alho poró e salsinha
-Sopa de jerimum com coco e gengibre (2 refeições, mais uma porção)
-Mudjadara (2 refeições)
-Feijão macaça com cebola e farinha
-Salada de lentilha com nozes
-Macarrão com grãomelete picado
-Sopa de aveia (com alho poró)
-Feijão macaça com repolho, maçã e salsinha

Eu moro com Anne, minha esposa, então quando digo “2 refeições” quero dizer que preparei 4 porções. Se você mora sozinha, meu curry de batata doce, por exemplo, teria te alimentado 4 vezes. Não faço mais que 4 porções de um prato porque não quero comer a mesma coisa 3 dias seguidos, mas se algum ingrediente estiver perto de estragar e eu precisar preparar uma quantidade maior de uma vez, congelo o excesso em porções menores. Isso faz a gente economizar ainda mais tempo na cozinha, mas infelizmente atualmente tenho um congelador minúsculo e não posso congelar muita coisa.

Sim, as refeições são muito simples e sou adepta do prato único. Quando estou no Brasil adoro fazer pratos coloridos com feijão, verduras cozidas, salada crua e frutas, mas cozinhar desse jeito exige mais tempo (e ingredientes), então simplifico meu dia-a-dia ao máximo fazendo pratos únicos. Sempre como aveia (geralmente com maçã) no café da manhã durante a semana, e pão nos fins de semana, então não falta cereal na minha alimentação. Pra garantir todos os aminoácidos e ter uma proteína vegetal completa, o importante é comer pelo menos uma leguminosa e um cereal durante o dia, não precisa ser na mesma refeição. E como naquela semana não teve salada crua, compensei comendo meu repolho fermentado em praticamente todas as refeições (vitamina C garantida).

Adoro comer e quero comer bem sempre. Mas como não quero passar horas na cozinha todos os dias, preparando algo elaborado pra cada refeição, sigo uma fórmula que funciona bem (pra mim!). Se eu fizer um prato especial na semana (nesse caso, o curry com tempeh), mais uma sopa que eu adoro, eu consigo comer algo bem simples (feijão macaça com farinha ou lentilha com nozes) nos outros dias e ficar feliz mesmo assim.

Tendo em vista que devo ter gastado, ao todo, uns 25 euros (os 13 das compras + o que já tinha comprado antes), pra alimentar duas pessoas por 6 dias, somente com comida orgânica, acho que meu exercício de economia doméstica foi um sucesso! Quero ver alguém ainda ousar dizer que é muito caro ser vegana.

Mas, mais uma vez, a ideia desse post é mostrar como preparo a comida da semana, gastando pouco dinheiro e passando pouco tempo na cozinha, na esperança que essas informações te ajudem a se alimentar melhor e a cozinhar de maneira mais prática. Você pega o que for útil e ignora o que não te servir.

Posso resumir as informações nesse post assim:

1- Tenha sempre uma base de cereais, leguminosas e condimentos na despensa. Geralmente compro esses ítens uma vez por mês.
2-Escolha frutas e verduras de estação: é mais barato, mais gostoso e mais ecológico.
3-Quando chegar em casa com as compras, anote os ingredientes que tem na cozinha naquele momento e use essa informação pra fazer uma lista de pratos que você pode preparar com eles. Deixe a lista na porta da geladeira.
4-Cozinhe porções dobradas pra garantir pelo menos uma refeição extra no dia seguinte, sem esforço suplementar.
5- De vez em quando faça porções triplicadas e congele uma parte. Naqueles dias que você não tem tempo pra nada, você vai ficar muito grata a si mesma quando encontrar uma refeição prontinha no congelador.
6- Use ingredientes especiais (aqueles que vem de longe e custam caro) como incremento nos seus pratos, não como o elemento principal.
7- Se quiser reduzir consideravelmente seu tempo na cozinha, pense em preparar pratos únicos. Bônus: menos louça pra lavar depois, logo, menos tempo ainda passado na cozinha.

Dá pra cozinhar de maneira inteligente e ter refeições gostosas e equilibradas todos os dias, com pouco esforço e sem gastar muito. Sim, pedir um sanduíche por telefone sempre exigirá menos esforço SEU (entenda que várias pessoas – a cozinheira da lanchonete e o entregador que trouxe sua comida de bicicleta- fizeram o esforço por você e foram explorados no processo). Mas é muito mais caro, e menos saudável (pra você e pros trabalhadores explorados nesse processo), do que cozinhar em casa. Lanchonetes, e a grande maioria dos restaurantes, cozinham pra ganhar dinheiro, não pra te nutrir. E é tão libertador ter autonomia alimentar!

9 comentários em “Exercício de economia doméstica

  1. Muito bom o post. Eu costumo fazer isto também. Preparo a mais, congelo, uso ingredientes que são produzidos mais próximo e estão mais baratos. Elaboro praticamente todas as minhas refeições, até o tofu, pois vegana que não come glúten não tem quase nenhuma opção fora de casa, exceto frutas. E eu não gosto de comer nada processado, claro que ainda não é possível. E quanto a orgânicos consigo 70%, eu acho.

  2. Eu adoro cozinhar em casa e consigo me organizar pra isso – o problema aqui é quando estou na rua, e é um problema psicológico mesmo, pq quando estou ansiosa (e nos últimos tempos, difícil não estar ansiosa direto), tenho vontade de engolir todos os ultraprocessados que vejo pela frente… Quando estou com dinheiro, é justamente o que tenho feito, e isso me gera mais ansiedade, que gera mais vontade alucinante, que, que gera mais… Enfim 🙁
    Sandra, vi isso hoje é me lembrei das suas discussões: https://www.nytimes.com/2019/10/14/business/the-new-makers-of-plant-based-meat-big-meat-companies.html

    1. Tem 3 receitas de grãomelete (duas com grão de bico cru e uma com farinha de grão de bico) aqui no blog. Só procurar na página “receitas” lá em cima. Mas também coloquei o link pro grãomelete com farinha de grão de bico no texto, quando menciono ele.

  3. Me identifiquei bastante, pois moro na Dinamarca e sei o quanto é importante ter um certo planejamento para conseguir economizar e comer bem. Estou tentando gastar no máximo 30 euros por semana, mas é um desafio.

    Amei o post.

    Fique bem, Sandra 🙂

  4. Obrigada por esse post maravilhoso! Mas eu tenho um pedido a fazer Sandra: será que dá para partilhar mais dicas e conselhos para ser mais rápida e eficiente na preparação das refeições? É que perco muitas horas na cozinha, somos uma familia de 4 (dois adultos e duas crianças) e estamos numa fase de acrescentar mais refeições vegetais para subtrair as outras. Adoro o seu blog! Beijinhos

Deixe uma resposta para Katia Moreira Cancelar resposta