A minha tentativa de descolonização do chutney

As ameixas estavam se estragando no cesto das frutas. Anne comprou dois quilos (promoção de fim de feira) e elas já chegaram em casa maduras demais. Expliquei que nunca daríamos conta de comer tudo a tempo, mesmo assim comemos todas as que pudemos nos dois dias que seguiram. Tem essas regras de economia doméstica, como “comprar uma quantidade grande de uma fruta que já está madura demais e que não pode ser congelada não é economia, mesmo se for uma promoção, porque vai se estragar antes que você possa comer tudo”, que quem não cozinha com frequência geralmente ignora. Eu compro banana madura demais (ou frutas vermelhas) pra congelar e colocar nas vitaminas, mas ainda não me animei pra colocar ameixa fresca na minha vitamina. Isso foi na terça e hoje, sexta, um terço das ameixas que não tinham sido devoradas estavam apodrecendo e eu precisava agir.

Foi depois do café da manhã. Excepcionalmente teve Camembert e queijo azul. Comecei recentemente uma colaboração com um projeto aqui em Berlim de queijos veganos artesanais, que usa técnicas da queijaria tradicional. Estou aprendendo muito e ainda tenho o privilégio de testar os queijos e trazer alguns pra casa pra serem testados em Anne e em quem mais passar pela minha casa. Então hoje tomei um café da manhã de rainha, com minha amada papa de aveia (com chia e óleo de coco), pão de fermentação natural, café dos Zapatistas, mais Camembert e queijo azul. Depois teve um segundo café da manhã lá pelas onze, com mais camembert, mais café e um omelete (grãomelete). As britânicas chamam essa refeição de “evelenses”, que é uma pausa às onze da manhã pra tomar um café ou chá acompanhado de uma coisinha pra mastigar. Tem povo mais fofo que os brits? Digo, quando não estão colonizando e oprimindo o resto do mundo, obviamente.

Então lá estava eu e a esposa que compra fruta madura demais em grandes quantidades degustando o café das onze (minha tradução de “elevenses”), mais bem servida que a rainha Beth e tive vontade de dar minha gargalhada de bruxa. “HAHAHAHAHAHA! Disseram que eu nunca mais ia comer omelete e Camembert!” Eu e meus inimigos imaginários… Digo inimigos no masculino porque são homens. Nenhuma mulher é minha inimiga, são todas minhas manas. (Com excessão talvez de Thatcher, uma brit que não era nada fofa, mas ela já morreu, então é irrelevante.) Mas voltemos à minha cozinha hoje de manhã, onde se encontravam eu, a esposa, o café das onze, o Camembert de castanha, o riso de bruxa e a visão das ameixas apodrecendo. Levantei da mesa decidida a dar um destino às pobres frutas.

Primeiro pensei em fazer uma compota, pra comer com minha papa de aveia matinal. Tudo a ver com o outono! Cortei as ameixas que ainda podiam ser salvas ao meio, retirei o caroço, cobri com suco de maçã integral (outro alimento que precisava de um destino, pois eu geralmente não bebo sucos de frutas e a garrafa tinha sido trazida por um amigo) e coloquei no fogo. Eu cozinho e faço trabalhos domésticos escutando podcasts e atualmente o meu preferido se chama “The vegan option”. Escutei dois episódios sobre pessoas que nasceram e cresceram veganas e foi extremamente instrutivo. Uma das pessoas entrevistadas, filho de pessoas veganas e atualmente criando duas crianças veganas, explicou que nunca se sentiu mal por não comer o que as outras crianças comiam, pelo contrário. Ele disse que ficava com pena das outras crianças, que não sabiam que aquilo que elas comiam eram animais e se sentia “empoderado por poder fazer escolhas conscientes”. Um dia ele contou pra um amiguinho que salsicha era na verdade porco e a mãe do amiguinho foi reclamar com a mãe dele dizendo: “Não quero que seu filho conte essas coisas pro meu filho.” A mãe dele respondeu: “Meu filho falou a verdade e eu não vou ensinar meu filho a mentir.” E enquanto eu escutava o podcast (inglês) e mexia a compota de ameixas me veio a ideia de transformar aquilo num chutney. “Chutney” significa uma variedade de molhos na Índia, mas o tipo de chutney que eu queria fazer é uma especialidade anglo-indiana, um tipo de geleia de fruta agridoce. A receita é mais ou menos essa: Império Britânico + apropriação cultural + molho indiano + muito açúcar e vinagre = chutney. Mas eu tento descolonizar o meu chutney fazendo uma versão sem açúcar e sem vinagre e com muitas especiarias.

Então comecei a cortar cebola e escolher especiarias quando me ocorreu que eu nunca tinha postado uma receita de chutney no blog e que essa era a oportunidade perfeita. Pra publicar a receita eu precisava de medidas precisas, algo que não existe quando cozinho em casa. Fiquei olhando as ameixas borbulhando na panela e tentando visualizar quantas xícaras seria aquilo quando vi o montinho de caroços de ameixa na pia e resolvi conta-los. 26 caroços. 26 ameixas. A quantidade de ameixas da receita teria que ser em unidades.

O aroma do chutney perfumou o apartamento e pra mim poucas coisas são mais prazeirosas do que passar horas criando delícias e escutando podcasts na minha mini-cozinha, onde sentada à mesa eu consigo mexer as panelas no fogão, abrir a mini-geladeira e alcançar as prateleiras, tudo sem me levantar. Nem esperei o chutney esfriar e provei com um pedaço de Camembert, porque chutney com queijo é uma dupla que adoro. Ficou delicioso, uma combinação de sabores perfeita pro frio e chuva do outono em Berlim.

Depois do almoço, que foi um prato suculento de feijão branco, brócolis, berinjela defumada e tahina com muita salsinha, sentei pra escrever a receita enquanto ela ainda estava fresquinha na minha memória.

Eram quase cinco da tarde quando Anne me propôs uma xícara de chá. Earl Grey ainda por cima! Meu trabalho de descolonização ainda deixa muito a desejar.

Logo depois o sol resolveu dar as caras, no fim de um dia inteiro de chuva. Quando isso acontece por aqui nessa época do ano você se sente na obrigação de largar tudo que estiver fazendo e correr pra rua, porque talvez você só veja novamente um pedaço de céu azul dali a seis meses. Coloquei algumas camadas de roupa suplementares e fui passear pelo meu quarteirão. Me mudei pra esse apartamento algumas semanas atrás e ainda estou descobrindo a vizinhança. No passeio de hoje visitei uma mercearia sem embalagens (você leva seus potes e sacos de casa, tudo é vendido a granel) e me empolguei pra diminuir consideravelmente a quantidade de lixo que produzo. Mas o tesouro mesmo foi uma livraria anarquista, a poucos metros da minha casa. Meus olhos brilharam e me perguntei como não tinha visto o lugar antes. Eu sou anarquista, mas não tenho muitas amigas com quem discutir a revolução aqui em Berlim. Entrei e precisei de vários segundos pra conseguir enxergar alguma coisa no meio da nuvem de fumaça. “A revolução não será televisionada, mas será fumada”, pensei com meus botões. Perguntei se tinha livros em Inglês , com um leve receio de ser chamada de imperialista, e tinha! Em várias línguas, inclusive. Trouxe Frantz Fanon pra casa, porque minhas intenções de descolonizar a mente são sérias.

Cheguei em casa e o chutney me chamou lá da cozinha. E lá se foi mais um pedaço de Camembert (a emoção de ter, depois de dez anos de veganismo, um camembert vegano na geladeira faz isso com a pessoa) com uma colherada do meu chutney super saboroso numa fatia de pão, folheando Fanon. E no meu celular as amigas de uma recém independente Catalunha me mandavam notícias. Catalunya Lliure!

Chutney de ameixa e especiarias

Eu gostaria de dar a quantidade de ameixas em gramas, mas tive que contar as unidades (explicações no texto acima). Se você tiver uma a mais ou uma a menos não vai fazer diferença. Uma pitada generosa pra mim tem 4 dedos (pegue a especiaria em questão com quatro dedos, não dois). Eu acho a doçura das ameixas e do suco de maçã suficiente, mas tradicionalmente chutney é feito com açúcar. Sinta-se livre pra colocar açúcar (de qualquer tipo) até atingir a doçura ideal pra você. Mas lembre-se que isso é um chutney, não uma geleia, então não exagere. Update: Acabo de me dar conta que as ameixas que encontro aqui são de uma variedade bem pequena, talvez tenham apenas 1/3 do tamanho das ameixas encontradas no Brasil. Misericórdia! Quase dou a receita de um desastre pra vocês.

8-9 ameixas frescas maduras, partidas ao meio e sem o caroço (usei 26 de uma variedade bem pequena – explicações acima)

1 cebola grande, picada

1cc cheia de alho picado (3-4 dentes)

2cs de azeite

Suco de maçã suficiente pra cobrir as ameixas (natural, sem açúcar)

1cc de canela em pó

6-8 favos de cardamomo (ou 1/3cc de cardamomo em pó)

Uma pitada generosa de cada: pimenta do reino, cúrcuma, semente de coentro, cominho

Sal a gosto (coloco uma pitada generosa)

1-2cs de açúcar, opcional (melhor se for mascavo ou de coco)

Em uma panela média/grande, com o fundo grosso (importante! senão seu chutney vai queimar), aqueça o azeite e doure a cebola. Junte o alho e deixe cozinhar por mais alguns segundos. Junte as ameixas (cortadas e sem o caroço) e cubra tudo com suco de maçã. Junte só o suficiente pra cobrir as ameixas, pois elas vão soltar bastante líquido durante o cozimento. Quando começar a ferver baixe o fogo e deixe cozinhar, sem tampa, até metade do líquido ter evaporado. Junte as especiarias (abra os favos de cardamomo e use só as sementes), o sal (e o açúcar, se estiver usando) e continue cozinhando até o chutney engrossar, mexendo de vez em quando com uma colher de pau. Pra saber se está pronto, raspe o fundo da panela com a colher de pau. Se o traço feito pela colher de pau não voltar a ser coberto pelo chutney imediatamente, está pronto. Se minha explicação te parecer esotérica demais, veja se seu chutney atingiu uma consistência espessa, quase uma geleia e pronto. Prove e corrija o sal ou açúcar, se necessário. Se você nunca provou chutney saiba que o objetivo é atingir uma mistura equilibrada de doce, salgado e ligeiramente ácido (a acidez vem naturalmente das ameixas e do suco de maçã).

Coloque em um pote de vidro e espere esfriar completamente antes de transferir pra geladeira. Se conserva pelo menos uma semana na geladeira. Rende aproximadamente 2 1/2 xícaras. Deguste seu chutney com queijos, burgers, croquetes ou simplesmente com pão. Você provavelmente não vai conseguir comer tudo em uma semana, então faça como eu e dê uma parte de presente pras amigas.

 
 
 

29 comentários em “A minha tentativa de descolonização do chutney

  1. Oi Sarah, Rosana aqui 🙂 as suas postagens estão cada dia mais divertidas. também estou num esforço danado e contínuo de descolonização da mente (haja Fanon), mas não é dos processos mais fáceis. vou tentar começar pelo chutney então 😉

  2. Sandra, que delícia esse post! Lembra quando você perguntou quem lê o blog ainda? Não só leio, sorvo. Me inspiro. Rio. Aprendo.

    Obrigada 🙂

  3. Adorei a sua risada de bruxa! Adoro bruxas, para mim são o símbolo da resistência.
    Que mais? Adoro seus textos. Odeio colonização. E viva o anarquismo!
    Beijos!

  4. Adoriei a receita, e os motivos que levaram a ela, claro. mas tenho uma dúvida, vc acha que é compatível com ameixas pretas secas?

    1. Não posso garantir, Ivani, porque nunca testei. Mas acredito que sim, apesar do sabor ficar ligeiramente diferente. Eu sou louca por ameixa seca e com certeza ia adorar um chutney feito com ela. Se testar me conta como ficou 😉

  5. Demorô. Minhas tentativas de chutney foram um fracasso, agora vai.
    Mas quanto às inimigas, sei não, hein. Só aí pelas suas bandas, me ocorrem a Angela, a Marine e a Theresa.

    1. Realmente, elas enfraquecem a sororidade. Principalmente Marine… Mas vejo isso como uma oportunidade de praticar a compaixão :/
      Quanto ao chutney, se você quiser um sabor mais autêntica, aconselho usar o açúcar. O açúcar também faz ele durar mais na geladeira.

      1. Pô Sandra, haja iluminação pra compaixão com essas criaturas. Não chego nem perto de ser capaz disso.
        .
        E sim, merci, vou pôr açúcar – um daqueles ítens que ainda têm um papel mais relevante do que deveriam na minha mesa.
        Falando no danado – sei que não é um tema presente na sua mesa, mas vai que é útil pra leitoras -, ouvi um sujeito uma vez dizendo uma coisa que pareceu-me fazer sentido: que o mascavo não-orgânico pode ser até pior que o refinado, por manter muito mais veneno (por não passar pelo processo de refino).
        Aqui em RJ-SP, é fácil (e relativamente barato) achar o demerara orgânico da Native, que tem sido minha opção.

  6. Amei a receita e amo muito seu blog! Não sei se vc vai ler esse comentário, mas vou deixar sugestões de autoras pra pensar decolonialidade numa perspectiva latinoamericana e feminista: Julieta Paredes, q fala mt sobre feminismo comunitário, e é sapatão <3 e Silvia Rivera Cusicanqui. Ambas tem origem indígena aymara, tbm. De novo: amo seu blog!!

    1. Muito obrigada pelas dicas, Giovana. Estava precisando mesmo descolonizar mais perto de casa 😉 Se tiver mais sugestões de leitura, pode mandar sempre.

  7. Você faria excelentes podcasts. Fala tão bem como escreve. E a vantagem é que poderiam ser poliglotas! 🙂
    Infelizmente meu inglês ainda não permite degustar nada que não seja em português brasileiro. Mas esse projeto já tá na minha (longa) wishlist.
    O mais perto do que você descreveu desse tipo de ameixas que já vi aqui em terras fluminenses é o que chamam aqui de Ameixa Dagen. São bem menores que as ameixas que se encontram em qualquer mercado. Mas são tão difíceis de achar como moscas brancas e custam um rim e meio. Mas são deliciosas.
    Agora… Queijos veganos fermentados? Ou poderia chamar de obras de arte? Pelas fotos, são lindos, e não duvido nem um milímetro do sabor deles!
    Comprei “A Arte da Fermentação” do Sandor Katz, que creio que você já conheça de cor e salteado. Um daqueles mimos que a gente faz pra si mesmo de vez em quando. Vou levar uns dois anos lendo, considerando a loucura que está sendo minha vida atualmente. Fora que o livro é enorme e extremamente denso em informações. Mas pelo pouco que já li, sei que não me arrependerei jamais dessa compra. Não é “descolonizador”, mas será delicioso de ler!
    Beijos, paz e luz sempre!

    1. Menino, também fiz um mimo a mim mesma comprando esse livro há duas semanas! É a bíblia da fermentação 🙂
      Cheiro
      PS Vivo sonhando com esse podcast 😉 Um dia ele sai.

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