Hoje é um dia triste. Dois anos. Dois anos! Não imaginávamos, naquele dia de outubro de 2023, que estaríamos onde estamos dois anos mais tarde. Mais de 680 mil pessoas palestinas assassinadas por Israel. Mais da metade, crianças de menos de 5 anos. Como disse Francesca Albanese, relatora especial da ONU na situação dos direitos humanos nos Territórios Palestinos Ocupados, o que está acontecendo em Gaza é a vergonha do nosso tempo.
Mas eu queria lembrar a Palestina de outra maneira hoje.
Mês passado eu estava trocando mensagens com meu amigo Izzeldin, de Jerusalém (a entrevista que fiz com ele pro projeto Baladi rendeu esse vídeo lindo). Ele também é cozinheiro, então a gente conversa muito sobre comida. Só que naquele dia falamos da nossa dificuldade em continuar escrevendo sobre comida enquanto Israel usa a fome como arma de guerra em Gaza. Mesmo assim, ele me mandou fotos de um jantar que tinha feito recentemente e logo reconheci um prato do qual muito ouvi falar quando eu morava na Palestina, mas que nunca tive o prazer de degustar. Pedi a receita, mas recebi algo ainda melhora. A receita de Izzeldin veio acompanhada de um texto sobre o significado daquele prato pra ele. As palavras dele me emocionaram muito e gostaria de compartilha-las com vocês no dia de hoje, porque, no final das contas, o objetivo do projeto colonial sionista é nos fazer esquecer a história do povo palestino.
E agora, passo a palavra pra Izzeldin Bukhari.
“Rummaniyeh é mais do que uma receita; é um reflexo da resiliência, da cultura e das ricas tradições culinárias do povo palestino. Ela carrega consigo histórias de sobrevivência, de deslocamento forçado e de uma conexão inquebrável com a terra e seus frutos. O nome “Rummaniyeh” vem da palavra árabe rumman, que significa romã. (Mais uma palavra da língua portuguesa que veio do Árabe.) Embora o prato use apenas uma quantidade modesta da fruta, seu sabor ácido e marcante une os ingredientes, resultando em um sabor único que encanta os sentidos.
Originária de Jaffa, Ramla e Lydd, o Rummaniyeh era um prato comum nessas cidades antes de 1948, quando o povo palestino foi arrancado de suas terras. A família da minha mãe, como tantas outras, fugiu de Ramla durante a Nakba e buscou refúgio na Cidade de Gaza. Foi ali, na região de Rimal, que minha avó continuou a cozinhar os pratos com os quais havia crescido. Essas receitas se tornaram uma herança culinária passada de geração em geração e, em Gaza, o Rummaniyeh se transformou em um prato muito apreciado, hoje intimamente associado à região.
Lembro de sentar, quando criança, à mesa da minha avó em Gaza e comer Rummaniyeh. Ela cortava a berinjela em pedaços grandes e, convencido pela riqueza dos sabores, eu acreditava estar comendo carne. Só muito tempo depois percebi que era berinjela, e não carne, que dava ao prato aquela textura encorpada e sabor intenso. Essa lembrança ficou comigo, muito antes de eu me tornar amante da gastronomia ou de começar a cozinhar. Hoje, quando preparo pratos vegetarianos ou veganos, sempre recorro à berinjela, sabendo que sua textura e sabor podem recriar aquela sensação reconfortante e satisfatória.
Nossas visitas a Gaza eram uma tradição anual, um tempo de reconexão com a família materna. Todo verão, de 1985 até 2000, passávamos dois meses em Gaza. Um táxi vinha nos buscar em casa, na Cidade Velha de Jerusalém, e nos levava direto à casa da minha avó, na Cidade de Gaza. Com o passar dos anos, porém, vi as restrições se intensificarem. A cada verão, o posto de controle de Erez se tornava mais fortificado, com mais revistas e regulamentos. Em 2000, Gaza foi completamente isolada, e já não pudemos mais fazer nossas visitas anuais.
Me sinto imensamente sortudo por ter retornado a Gaza duas vezes nos últimos anos. A primeira foi para o casamento da minha irmã Amina, em 2008, depois que ela se mudou para a Cidade de Gaza. A segunda, em maio de 2023, foi para um projeto com as Nações Unidas, que garantiu nossas autorizações de viagem. Poder visitar Gaza antes que fosse reduzida a escombros — ver a casa da minha família e caminhar pelas ruas das minhas memórias de infância uma última vez — foi uma verdadeira bênção. Agora, restam as memórias doces e amargas para carregar comigo.
Rummaniyeh é um dos meus pratos favoritos, não apenas por sua simplicidade. Feito de lentilhas e berinjela, combina sabores rústicos com o toque ácido da romã — um equilíbrio de texturas e gostos sem igual. É também um dos poucos pratos que conheço em que a berinjela é fervida, o que lhe confere ainda mais singularidade. Naturalmente vegano, é um prato rico em proteínas e encorpado, uma refeição realmente completa.
Em cada garfada de Rummaniyeh, sinto o gosto da minha história, da minha herança e das memórias dos verões passados com a família em Gaza. É um prato que me lembra da força de nossas tradições culturais, mesmo diante do deslocamento e da adversidade.
E em cada prato da culinária palestina há histórias — de uma terra, de um povo e de uma História que se recusa a ser esquecida. São esses pratos que nos lembram de onde viemos, e da força duradoura das tradições culturais capazes de sobreviver até às circunstâncias mais desafiadoras.

Rummaniyeh
Essa é uma receita tradicional palestina, levada por pessoas refugiadas pra Gaza e, hoje, considerada um prato típico de Gaza. Izzeldin usa a receita da mãe, que é de Gaza, mas com algumas poucas modificações feitas por ele. É essa versão que vocês encontram aqui.
Rende 6 porções
Ingredientes:
1½ xícara de lentilhas marrons (350 g)
3 berinjelas pequenas (aprox. 650 g)
1 cabeça de alho (25 g)
2 pimentas vermelhas médias (25 g)
⅓ xícara de tahine (75 g)
1 xícara de suco de romã fresco
½ xícara de melaço de romã (120 g)
2 colheres de sopa de sementes de endro moídas
1 xícara de endro fresco (15 g)
1 colher de chá de cominho em pó (4 g)
2 colheres de chá de coentro em pó (7 g)
2 colheres de chá de sal (10 g)
Para decorar (opcional):
Sementes de romã
Fatias de rabanete
Cebolinha verde picada
Endro fresco picado
Pinoli (ou nozes)
Tahine extra
Modo de preparo:
- Preparar as lentilhas:
Lave bem as lentilhas marrons em água fria. Coloque-as em uma panela, cubra com água e leve para ferver. - Preparar as berinjelas:
Enquanto as lentilhas cozinham, descasque as berinjelas no sentido do comprimento, alternando faixas descascadas e com casca. Corte-as em cubos grandes. - Cozinhar as berinjelas:
Quando as lentilhas estiverem quase macias, adicione os cubos de berinjela à panela. Certifique-se de que há água suficiente para cobri-las e continue cozinhando até que fiquem bem macias e afundem no fundo da panela. - Reduzir o líquido:
Escorra o excesso de água, deixando cerca de ½ xícara de líquido junto às lentilhas e berinjelas. - Adicionar tahine e romã:
Acrescente a tahine e o suco ou melaço de romã. Misture bem até incorporar completamente. - Preparar os aromáticos:
Pique finamente o alho e as pimentas vermelhas. Em uma frigideira, aqueça um pouco de azeite em fogo médio. Adicione o alho picado, as sementes de endro, uma pitada de sal, o cominho e o coentro em pó. Refogue até o alho dourar e soltar seu aroma. - Combinar os sabores:
Despeje essa mistura aromática na panela com as lentilhas e berinjelas. Misture bem para combinar todos os ingredientes. - Ajustar o tempero:
Prove e ajuste o sal ou as especiarias, se necessário. Deixe cozinhar por mais 5 minutos para que os sabores se integrem. - Servir:
Transfira o preparo para uma tigela de servir e deixe repousar por pelo menos 30 minutos. Este prato é servido em temperatura ambiente. Decore com sementes de romã, fatias de rabanete, cebolinha, endro fresco e um fio de tahine e azeite, se desejar.
Como se diz em árabe: Saahha!
Palestina livre!