Bolo cremoso de jerimum

Desde o ano passado falo que vou compartilhar essa receita… Acontece que, como digo sempre, comida de panela é de Humanas, mas bolo é de Exatas. O que significa que a alquimia delicada entre os ingredientes e, principalmente, as proporções, exigem precisão. E eu ainda não estava 100% segura com a minha receita.

Durante os testes, às vezes dava muito certo, às vezes ficava muito gorduroso, outras vezes não ficava doce o suficiente. Os bolos-testes sempre eram comidos, e apreciados, mas eu queria chegar numa fórmula estável antes de compartilhar a receita com vocês. Foi uma das receitas que mais exigiu testes na minha cozinha: comecei em 2021 e só agora, em março de 2023, cheguei onde queria. Pois é, vocês não imaginam o investimento de tempo e ingredientes que entra no desenvolvimento de receitas. Sem falar na quantidade de louça suja que esse trabalho gera! Mas finalmente vou poder compartilhar a versão final, perfeitinha, com vocês.

“Mas que danado de bolo trabalhoso é esse, mulher?”, vocês devem estar perguntando. Talvez o que vou dizer agora surpreenda quem não é íntima da cozinha, mas geralmente são as receitas mais simples que dão mais trabalho. A boa notícia é que agora que a receita está no ponto, vai ser muito fácil pra vocês prepará-la em casa. É um bolo humilde, singelo, mas que representa muito pra mim em termos de sabor e de memória afetiva.

Quem é de Natal (minha cidade) conhece o famosíssimo “Bolo da Moça”. Em outros lugares do Nordeste (e acho que do Norte também) ele é conhecido por outros nomes, mas a receita é basicamente a mesma: uma quantidade grande de ovos e um arroubo de laticínios (leite condensado + leite de vaca + manteiga). Como ele leva pouca farinha, o resultado final é entre o bolo e o pudim, denso e quase cremoso. Se a gente quiser ser malvada com esse bolo podemos dizer que parece um bolo “solado” (um bolo que não cresceu). Eu gostava desse bolo, por ter essa textura tão peculiar, mas lembro que o cheiro forte de ovo sempre me incomodou. Sem falar que ele é exageradamente doce.

Pesquisei a origem desse bolo e parece que é uma adaptação do “Bolo de Leite” português, que leva muitos ovos e muito leite de vaca líquido. Só que na versão brasileira ele era feito com leite de coco. Claro que aquela multinacional que explora vacas em números estratosféricos e que colonizou quase todas as nossas sobremesas não ia deixar de colonizar mais essa receita! Assim o leite de coco foi substituído por leite condensado. Muitas pessoas acreditam que vem daí o nome do bolo (“da moça”, como a moça da lata).

Se levei você a pensar que vou propor aqui uma versão vegetal do Bolo da Moça, não é bem isso. Minha ideia inicial era fazer um bolo de jerimum (abóbora), mas como logo nos primeiros testes ele ficou com a textura densa e cremosa do Bolo da Moça, não pude não pensar nele. Não era minha intenção “veganizar” esse bolo tão popular na culinária do meu estado, mas acabei desenvolvendo um bolo que é maravilhoso por si só, mas que também pode ser lido como uma evolução duplamente descolonizada da receita especista. 

Já passei muita raiva com o “raio gourmetizador”, aquela tendência de transformar nossas receitas típicas em algo mais caro e mais pretensioso, mas não necessariamente mais gostoso. Basicamente adicionando Nutela e leite Ninho em tudo (mais uma vez, entupindo tudo de laticínios! Eu ouvi colonialismo alimentar novamente?). Minha alegria hoje é ver o quanto a culinária vegetal não só retira nossa alimentação do padrão especista, parando de ver animais e suas secreções como “ingredientes” e valorizando o que vem da terra (e, por tabela, quem está na terra plantando), mas também tem o poder de descolonizar a maneira como cozinhamos. 

Voltemos pro bolo. Essa receita é uma base que pode ser adaptada em várias direções. Os ingredientes são acessíveis pra quem está em qualquer lugar do território, basta fazer algumas alterações em função do que você encontra na sua cidade. E é um bolo perfeito pra quem não tem costume de fazer bolos: como ele não vai crescer nem ficar fofinho, não tem como você “solar” o seu bolo. Ele também é o primeiro bolo de liquidificador que publico aqui e que coisa maravilhosa é fazer bolo desse jeito! Tão simples, tão rápido, pouca louça suja depois… 

O sabor do jerimum vai ser mais ou menos presente dependendo do tipo de jerimum utilizado. Idem pra cor alaranjada do bolo. Em Natal eu uso jerimum de leite (meu preferido) ou jerimum caboclo, que são cultivados no RN. Aqui na França já fiz com abóboras do tipo butternut e moranga. Aconselho assar o jerimum pra que ele fique mais concentrado, quase caramelizado, mas se não puder, cozinhe no vapor que também dá certo. Só não cozinhe na água, pois ele vai ficar encharcado, atrapalhando a textura do bolo, e deixando o sabor um pouco aguado. 

Quem acompanha o meu trabalho sabe que não sou uma grande apreciadora de doces. Mas esse bolo acabou se tornando muito especial pra mim. Imagina a alegria dessa potiguar ao criar um bolo tão cremoso e delicioso quanto o outro lá, mas sem exploração animal e honrando o nosso vegetal mais amado? Se você ainda não sabe, quem nasce no Rio Grande do Norte é chamada de “papa-jerimum”.  Mas mesmo pra quem é de outros estados, não deixe de experimentar esse bolo. A cremosidade e a delicadeza dele vão te conquistar.

Bolo cremoso de jerimum (abóbora)

Aviso: esse bolo está mais perto de um pudim/flan do que dos bolos fofinhos e entupidos de recheios que costumamos ver em padarias. Mas o sabor quase caramelizado e a textura cremosa são um carinho pras papilas. Use o leite vegetal que mais gostar. Em Natal, uso leite de coco fresco e confesso que é o meu preferido (apesar de deixar o bolo um tico mais gorduroso). Aqui na França uso leite de soja e também fica muito bom (a soja, rica em proteína, carameliza até melhor). Um óleo vegetal neutro é ideal (girassol, por exemplo), mas já fiz com óleo de coco e ficou bom, embora o sabor de coco domine tudo (nem todo mundo na minha família aprovou). Pra perfumar o bolo você pode usar canela, uma mistura de especiarias, extrato de baunilha ou, pra ficar deliciosamente brasileiro, cumaru ralado na hora. Mas é opcional. Essa receita faz um bolo pequeno e isso é intencional: assim ele assa de maneira homogênea e atinge a textura ideal (cremosa, mas no ponto de corte). Ainda nutro a ideia de fazer uma versão sem trigo, usando fécula de mandioca ou amido de milho, mas essa versão vai ter que esperar mais um pouco. Dependendo do tipo de leite (se usar leite industrializado adoçado) e do jerimum, você vai precisar de mais ou menos açúcar. Uso 1/2 xícara quando faço esse bolo aqui em casa, porque gosto de bolos com pouco açúcar. Mas quando cozinho pra outras pessoas, uso 2/3 de xícara (o bolo fica doce, mas sem exagero).  

*A medida na receita é uma xícara, mas você não precisa ter uma xícara medidora em casa. Use um copo pequeno ou qualquer caneca pequena que tiver no armário como medida, basta respeitar as proporções (Ex: 2 copos de jerimum, 1 copo de farinha, 1/3 de copo de leite etc).*

2 xícaras de jerimum (abóbora), assado ou cozido no vapor

1 xícara de farinha de trigo

2/3 de xícara de leite vegetal (de coco fresco ou de soja)

1/3 de xícara de óleo vegetal (de sabor neutro)

2/3 de xícara de açúcar (leia explicações sobre o açúcar acima)

Opcional (escolha um):

Canela

Mistura de especiarias (canela + cravo + noz moscada)

Cumaru (ralado na hora)

Extrato (ou essência) de baunilha

Comece assando o seu jerimum. Corte-o pela metade, se for bem pequeno, ou em pedaços médios, se for grande e leve ao forno médio pra assar até ficar bem macio. O tempo de cozimento vai depender do tipo de jerimum e do tamanho dos pedaços, então espete com um garfo pra verificar. 

Quando estiver bem macio retire do forno e use uma colher pra retirar as sementes e separar a polpa da casca. Dependendo do jerimum (abóbora de pescoço ou moranga), eu como com casca, mas descarte essa parte se a sua for muito dura. Meça duas xícaras de jerimum assado (aperte bem na hora de medir) e bata no liquidificador com o leite vegetal, o óleo, o açúcar e a canela, se estiver usando (ou a baunilha, ou o cumaru), até ficar bem cremoso. Por último acrescente a farinha de trigo e bata mais alguns segundos, na velocidade baixa, só até ficar bem misturado. 

Despeje a massa em uma forma pequena (se tiver uma forma de pudim, aquelas com o furo no meio, melhor ainda), previamente untada (com óleo) e enfarinhada, e leve ao forno baixo-médio (180 graus). Não precisa pré-aquecer, já que esse bolo não vai crescer, mas se você assou o seu jerimum, seu forno ainda estará quentinho. O tempo de cozimento vai depender do seu forno, então você vai ter que abrir a porta e verificar algumas vezes (mais uma vez, esse bolo não cresce, então pode abrir a porta do forno sem medo de estragar tudo). O bolo está pronto quando ficar levemente inchado (um pouco como um suflê), as bordas começam a se soltar da forma e a parte de cima ficar bem corada (marrom), como na foto abaixo. No meu forno levou exatos 42 minutos (cronometrei).

Não faça o teste do palito aqui, pois esse bolo sai do forno ainda bem mole. Ele vai ficar firme depois de frio. Por isso tem que esperar ele esfriar completamente antes de degustá-lo.

Rende um bolo pequeno. Se conserva em temperatura ambiente (se colocar na geladeira, a textura muda e fica mais densa).

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