O paradigma da mistura – parte 2

No final de novembro eu estive em Porto Alegre e tive o prazer de fazer uma atividade junto com Bruna Crioula e a cozinha solidária do MTST. O evento fez parte da Jornada do Veganismo Popular, que durou todo o mês e aconteceu em várias cidades do país. Naquele encontro descobri que a cozinha solidária do MTST de Porto Alegre serve unicamente refeições 100% vegetais. O responsável pela cozinha explicou que não era uma decisão política: simplesmente não tinha orçamento pra colocar carne no cardápio. Como antiespecista e militante pelo veganismo popular, vou te dizer que isso é político, sim, como tudo que diz respeito ao acesso à comida (ou à falta dela) e quem consideramos como comida. Mas a conversa de hoje não é sobre isso, é sobre outra coisa que descobri naquele dia, relacionada à primeira. Como, por questões econômicas, não dava pra colocar carne no cardápio, o pessoal da cozinha solidária explicou que serve “carne de soja” (proteína texturizada de soja -PTS) todos os dias pra preencher o vazio deixado pela carne animal. 

Mas será que precisamos de carne de soja se quisermos parar de comer, e servir, animais?

Na segunda parte do post sobre o paradigma da mistura gostaria de tratar do aspecto prático: como preparar refeições 100% vegetais e sem algo que “ocupe o lugar da carne” no prato. E concluir com uma reflexão que vai muito além da cozinha e tem um imenso potencial transformador.

Feijão macaça (branco), arroz, jerimum com coco, rúcula e tomate.

Construir uma estrutura alimentar antiespecista: valorizar o vegetal

É comum pensar que se você quer parar de consumir animais, precisa descobrir o que colocar no lugar da carne. Na verdade o que você realmente precisa fazer é repensar a estrutura da nossa refeição principal, o almoço. Ao invés de partir do animal (o protagonista da refeição) e escolher os acompanhamentos (vegetais) em função disso, você vai ter que imaginar um novo padrão de almoço sem essa hierarquia. Diga adeus a estrutura elemento principal + acompanhamentos e passe a ver cada componente do prato como igualmente importante. 

Pode parecer que isso é mais trabalhoso do que comprar um “hambúrguer vegano”, ou um “falso frango”, ou até a ultra popular proteína (carne) de soja, e deixar todo o resto como antes. Mas garanto que embora necessite um pequeno tempo de adaptação no início, logo essa maneira de cozinhar e compor seus cardápios vai se tornar a coisa mais natural do mundo e não vai mais exigir nem um pingo de trabalho mental, nem físico, extra da sua parte. Vai ser tão simples como quando você cozinhava da antiga maneira, a maneira especista. Garanto.

E como colocar isso em prática? Não tem nada de complicado, nem de caro, você vai ganhar em autonomia (adeus dependência do agroalimentar!), não vai gastar dinheiro com ultraprocessados e suas refeições se tornarão muito mais saborosas e nutritivas.

Pra facilitar a compreensão, vou começar fazendo um resumo das duas sugestões principais e depois entro nos detalhes. Minha intenção, como sempre, é promover autonomia alimentar, melhorar a saúde do povo e enfraquecer o sistema especista e capitalista. Prontas? Bora lá.

Tenho duas sugestões de modelo pra te ajudar a criar uma refeição vegetal completa que não precisa de algo pra representar a “mistura”.

1- Feijão + Arroz + Verdura cozida + Verdura crua

(Variações: Farofa/Farinha de mandioca no lugar do arroz. Ou macarrão. Ou cuscuz de milho.)

Nada novo por aqui, já que essa “fórmula” reflete a maneira como a maior parte das pessoas (no Brasil) se alimenta no dia-a-dia, mas continue lendo pra entender o detalhe que faz toda a diferença. Lembrando que, do ponto de vista nutricional, juntar esses 4 elementos (leguminosa + cereal + vegetal cozido + vegetal cru) é o ideal. Mas eu diria que essa combinação também é perfeita pra criar diversidade de sabor e textura e tornar o prato interessante do ponto de vista gustativo.

2- Prato completo (leguminosa + cereal + verdura) + salada

Apesar de combinar os mesmos elementos da primeira fórmula, pratos completos, onde os ingredientes são misturados e acompanhados de um molho saboroso, são um “modelo” visualmente alternativo, onde é mais difícil ter a impressão de que tem um lugar vazio ali, que precisa ser preenchido com uma “mistura” vegetal. Também é uma maneira mais rápida de cozinhar e que suja menos louça.

Agora vamos entrar nos detalhes pra entender o que precisa acontecer pra que esses “modelos” funcionem.

Feijão + Arroz + Verdura cozida + Verdura crua

O segredo aqui é saber preparar cada elemento da melhor maneira possível, pra que cada um deles tenha sabor sozinho e, misturados no prato, os sabores se intensifiquem e se complementem, oferecendo satisfação pras papilas. Como fazer isso? Vou começar aprofundando cada elemento separadamente, depois colocarei tudo junto no final. Ou seja, eu escrevo como cozinho.

Aprenda a preparar feijão (gostoso)

O ponto de partida é saber fazer um feijão gostoso. Cereais e verduras/frutas são igualmente importantes pra nutrir nosso corpo, mas geralmente comemos esses outros grupos de alimentos nas outras refeições, enquanto o feijão só aparece no prato, quando aparece, na hora do almoço. Por isso ele é essencial aqui. Tudo bem se você não comer feijão um dia ou outro, mas procure ter mais almoços com feijão do que sem ele. 

Aqui entra o primeiro detalhe que vai fazer toda a diferença. Pra se livrar do paradigma da mistura e, por tabela, da maneira especista de estruturar a alimentação, seu feijão tem que ser gostoso ao ponto de você sentir prazer ao comê-lo puro. Infelizmente muita gente não sabe fazer feijão, muito menos um feijão gostoso. Por isso o artifício de usar pedaços de animais (charque, bacon), ou temperos artificiais, pra “dar gosto” ao feijão.

Ele é o alimento mais importante da alimentação do nosso povo, a proteína do proletariado e o que sobra no prato quando a carestia leva todo o resto. Devemos muita coisa ao feijão. Então vamos tratá-lo com o respeito e a gratidão que ele merece e aprender a fazer o melhor feijão do bairro. Quiça da cidade! Experimente as receitas sugeridas abaixo, adapte ao seu paladar até descobrir como fazer um feijão perfeito pra você. E, se puder, compre o melhor feijão que encontrar (sem veneno, da reforma agrária) e varie os tipos. Tem tantas variedades de feijão cultivadas no Brasil que seria um crime não aproveitar! E não esqueça das favas! 

Tutoriais: Como preparar o feijão da minha mãe. E feijão acebolado. E fava com tomate.

Arroz (e farofa)

Assim como no caso do feijão, saber fazer um arroz gostoso, ou farofa (ou os dois) faz parte dos conhecimentos culinários de base. A dupla “feijão com arroz/farinha” faz parte da nossa cultura alimentar e, embora não seja obrigatória pra se livrar do paradigma da mistura, é essencial pra muita gente. Eu como feijão com verduras na maior parte do tempo (como cereais nas outras refeições), mas entendo que a maior parte das pessoas só se sente satisfeita quando almoça feijão com arroz. 

Não tem tutorial pra fazer arroz aqui no blog, porque faço parte do pequeno grupo de pessoas que não faz questão nenhuma de comer arroz no almoço. Mas de farofa, meu bem, eu entendo.

Tutoriais: Ensinei a fazer uma farofa incrível aqui. E postei também a receita da farofa rica (vulgo: “limpa restos da geladeira”), da farofa de beterraba, farofa d’água e farofa de cuscuz.

Dica pro1: farofa é a categoria de prato perfeita pra reaproveitar todos os restos de refeições anteriores podendo se tornar um elemento que agrega muito sabor à refeição com esforço mínimo, ao mesmo tempo que você evita desperdício e cozinha de maneira econômica.

Dica pro2: colocar verduras pra cozinhar junto com o arroz é uma maneira de simplificar suas refeições, além de incrementar o sabor. Aliás, essa dica também vale pro feijão. 

*Um feijão gostoso junto com um arroz com verduras (cenoura ralada, beterraba ralada, talos de couve, brócolis, vagem…ou tudo junto) já é uma refeição completa, que exige pouco trabalho e poucos ingredientes. Junte uma fruta de sobremesa, se puder, e é só alegria!*

Feijão preto, purê de batata (no leite de coco), arroz, abobrinha refogada com tomate, folhas com abacaxi.

Verdura cozida

É aqui que muita gente, sem intimidade com a culinária vegetal, comete os maiores erros. Eu olho pra um chuchu ou pra um repolho branco, dois dos legumes mais acessíveis e, infelizmente, desprezados, e vejo mil possibilidades. Um refogado/ensopado de legume é, pra mim, o elemento de sabor mais intenso na refeição. Feijão e arroz/farinha alimentam e satisfazem, mas um refogado de legume é o veículo perfeito pros temperos e molhos que antes iam parar nas carnes animais. E apesar de comer o mesmo feijão com arroz todos os dias (que você pode preparar uma vez por semana e congelar), variando as verduras refogadas/ensopadas você vai ter a impressão de comer um prato diferente a cada dia com esforço adicional mínimo.

Alguns exemplos de receitas dessa categoria: jerimum com coco, carne de caju, refogado de chuchu com tomate, quiabo salteado, maxixada, quiabo no coco, creme de milho e cebola, repolho refogado

Verdura crua

Prefiro falar de “verdura crua”, ao invés de “salada”, porque muita gente tem uma ideia limitada, e fixa, do que é salada. Geralmente essa palavra é associada a alface + tomate (podendo ter também pepino, cebola e/ou cenoura). O perigo aqui é pensar que se não tiver todos esses ingredientes associados à ideia de “salada”, então não podemos acrescentar um elemento cru à refeição.  E comer verduras cruas não é só uma questão de saúde, é riqueza pro paladar! 

Pode ser só um punhado de rúcula, uma mistura de folhas verdes (rúcula + alface), folhas com frutas, ou apenas cenoura ou beterraba crua ralada. Como eu falei mais acima, além de ser importante, nutricionalmente falando, esse elemento cru realça muito o sabor da refeição e traz contraste de textura (importante pra alegrar o paladar).

Dica pro1: incluir uma fruta crua é o pulo do gato pra fazer as melhores saladas do mundo. Acredite. Deve ser a mistura da acidez (realça sabores) com o contraste doce-salgado que deixa tudo tão gostoso. Abacaxi e manga são minhas frutas preferidas pra comer com o almoço. Mamão e banana vêm em segundo lugar. Muitas vezes a “verdura crua” do meu almoço é simplesmente uma banana e nem tenho palavras pra dizer o quanto amo feijão com farofa e banana!

Dica pro2: um bom molho pra salada pode transformar até um simples punhado de pepino em algo delicioso. Recomendo o molho tradicional pra saladas cruas francês (receita da minha cunhada;) Também expliquei a fórmula pra criar molhos pra salada sempre deliciosos nesse post.

“Certo, mas você tem paladar de vegana (comedora de planta)! Eu não consigo achar um prato de feijão com arroz e repolho refogado gostoso. Falta sabor aí e eu vou, sim, sentir falta da mistura.” Nesse caso a minha resposta é que talvez pra você a segunda sugestão de “fórmula” seja mais interessante:

Prato completo (leguminosa + cereal + legume cozido) + salada

Algumas pessoas não conseguem (ainda) olhar pra um prato de feijão com arroz/farofa e verdura e ver uma refeição completa. Acredito que é porque seu paladar foi moldado dentro do especismo (que vê um pedaço de animal, e suas secreções, como exemplo máximo de sabor), e de uma alimentação limitada, mas também porque, visualmente, elas estão tão acostumadas com o esquema feijão/arroz/pedaço de animal, por isso esperam ver algo similar num prato 100% vegetal.  

Então essa dica não só te faz sair dessa expectativa visual, como é uma maneira mais prática de cozinhar. E falei que cozinhar assim suja menos panelas? Pois é. E sobre a parte “salada”, as dicas no parágrafo “verdura crua” acima se aplicam igualmente aqui.

Alguns exemplos de pratos nessa categoria: arroz com lentilha e legumes, salada de quinoa e feijão preto com molho de laranja, mudjadara (arroz com lentilha e cebola caramelizada)…

Se a sustância vem do feijão, à partir dele basta saber preparar um bom arroz (ou farofa) e tratar os legumes com a atenção e o cuidado que, na culinária especista, são reservados aos pedaços de animais. Cada elemento do prato é gostoso individualmente e, combinados, formam uma refeição rica e que satisfaz o paladar.

Resumindo: você pode substituir a carne por aprender a cozinhar vegetais.

Quando não tem verduras nem frutas na cozinha

Claro que falar de diversidade alimentar pressupõe que você tem acesso a todos esses alimentos, mas saiba que mesmo em tempos de carestia e insegurança alimentar generalizada, essas dicas podem ser aplicadas dentro das suas possibilidades. 

Só tem feijão com farinha pra comer? A importância de saber dar gosto ao feijão, sem recorrer a pedaços de animais (que, de todo jeito, está fora do orçamento de quem se encontra em situação de insegurança alimentar) é ainda maior. Em termos de verdura, só deu pra trazer um pedaço de repolho da feira? Saber prepará-lo da maneira mais saborosa possível é crucial. Só tem restos de alimentos dos dias anteriores na geladeira? Poder transformá-los em uma farofa deliciosa ou em prato completo vai fazer toda a diferença. E se você ganhou umas mangas da vizinha, não é legal saber que elas podem ser combinadas com o feijão preto do almoço e melhorar o sabor da refeição? 

E já que estamos falando de insegurança alimentar, é importante saber que ao invés de gastar o pouco de dinheiro na carteira comprando salsicha (ou outro ultraprocessado animal que acaba aparecendo na mesa da população que não tem dinheiro pra comprar carne animal), é muito mais saboroso e nutritivo comprar feijão, um punhado de verduras e transformá-los em várias coisas diferentes, melhorando a qualidade da alimentação da sua família sem gastar mais.

Voltando ao causo que abriu esse texto, expliquei pro companheiro do MTST que não só ele não precisava incluir obrigatoriamente a carne de soja no cardápio da cozinha solidária, como dava pra usar as verduras doadas ao projeto pelo MST pra aumentar o sabor das refeições sem gastar um tostão a mais. Veja que ao valorizar cada elemento vegetal do seu prato estaremos, num mesmo movimento, valorizando quem plantou esses vegetais. Promover vegetais ao papel de protagonistas da alimentação é o primeiro passo pra dar todo o reconhecimento e valorização que agricultoras e agricultores merecem. 

Achar que é preciso uma “mistura” vegetal pra substituir a carne é seguir reproduzindo a estrutura especista que hierarquiza o alimento vegetal em posição inferior aos corpos (e secreções) animais consumidos pela espécie humana. É seguir vendo um prato de feijão, arroz e verduras como incompleto. E, como eu não me canso de repetir, quem ganha quando vemos a ausência de carne animal no prato como uma lacuna que deve ser preenchida com outra coisa? Os produtores de soja e as grandes empresas do agroalimentar, que enxergam ali uma imensa oportunidade de lucro (hamburguers e linguiças “veganas”). Acompanhada, obviamente, de toda a exploração e destruição impostas por esse tipo de “oportunidade”. Sem falar nas pseudo-soluções tecnológicas, como carne de laboratório.

Pode parecer insignificante, mas sair do paradigma da mistura, animal mas também vegetal (quando essa mistura vegetal representa hambúrgueres e outros ultraprocessados feitos por empresas que lucram com a exploração especista, humana e ambiental), é a chave pra começar a repensar a atual organização social baseada em dominação (capitalismo especista) e construir uma alternativa a isso que seja realmente justa pra todos os seres. 

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