Nenhuma trégua pro especismo!

Lembra da série de entrevistas com pessoas veganas que comecei muitas luas atrás? Hoje voltei com mais uma.

Conheci Féli em 2019, durante uma ação de Extinction Rebellion em Paris: uma ocupação em pleno centro da cidae, que durou uma semana inteira. Eu precisava entrevistar alguma jovem que participava da organização, pra uma matéria que Anne estava fazendo sobre jovens e a luta contra mudanças climáticas. Quando o vi pensei: “Essa pessoa parece ser bacana” e fui lá entrevista-lo. Eu não estava enganada e nos tornamos amigas naquele dia. Féli (pronuncie “Fê-li”, com acento tônico no “i”, ou seja, é uma palavra oxítona) é uma das pessoas mais interessantes e generosas que conheço. Mas o que mais me impressiona é a sabedoria dele, apesar de ser tão jovem.

Ele é francês (metade português), vive numa ocupação em Marselha, uma grande cidade no sul da França, mas estava de passagem pela região parisiense semana passada. Sempre que ele está no meu território, damos um jeito de nos encontrar, colocar as novidades em dia e fazer consultas mútuas (ele me ensina coisas da realidade dele, eu ensino coisas da minha). Dessa vez aproveitei pra entrevista-lo pela segunda vez, só que agora, pro blog. Além de vegano, Féli é anarquista, não-binário e completamente doido por tofu.

O que é veganismo pra você?

É a prática concreta do pensamento revolucionário antiespecista.

Por que você é vegano?

Porque existir num mundo onde humanos torturam e matam tantos, tantos, tantos coabitantes do planeta dói demais. Tinha esse fogo que queimava forte e ocupava um espaço grande em mim. Aí um dia eu aprendi que isso tinha nome, que se chamava “antiespecismo” e que o veganismo era a sua prática. Então chegou um momento em que eu disse: “Essa convicção, que está crescendo dentro de mim, na minha cabeça e no meu coração, precisa existir aqui fora”. Foi então que eu decidi fazer algo a respeito e me tornar vegano.

Você se tornou vegano da noite pro dia ou foi um processo longo? Passou por uma fase vegetariana?

Eu tive uma fase vegetariana antes de me tornar vegano, mas por razões econômicas, não ideológicas. A questão da exploração animal era algo que me revoltava há bastante tempo, no entanto eu não transformava isso numa prática concreta. Nessa época eu ainda estava mergulhado na dissonância cognitiva. Mas cinco anos atrás eu estava morava com um amigo e a gente teve acesso a materiais sobre antiespecismo e veganismo. Então de repente a ficha caiu. Eu entendi o que está por trás de produtos de origem animal, as consequências dessa produção no mundo. E à partir daquele momento tudo que o nosso super cérebro é capaz de criar pra manter a gente na dissonância cognitiva parou de funcionar. Em seguida veio uma vontade forte de agir e a mudança aconteceu facilmente.

Como destruir o especismo?

Ensinando aos humanos e humanas que estão chegando nesse planeta, e as que já estão aqui, novas formas de se relacionar com os seres vivos. Aprender a ter estima pelos seres ao nosso redor é, pra mim, a chave de muitas coisas. Em seguida conhecer o funcionamento do sistema econômico sob o qual vivemos, das estruturas especistas, colonialistas, de todas as relações de dominação em vigor, pra que possamos entender como elas se manifestam no nosso consumo. E com isso poderemos abrir espaços onde humanos e humanas possam criar conexões com os camaradas não-humanos ao nosso redor. 

Esse conhecimento já está disponível pra maioria das pessoas, mas elas escolhem ignorá-lo. É muito difícil mudar a relação que temos com o resto do mundo e, sinceramente, acho que pra algumas pessoas isso não mudará nunca. Só nos resta esperar que elas não estejam mais aqui. Mas pras pessoas que estão chegando no planeta agora, isso deve ser uma prioridade. A mudança virá daí.

Você acha que vai ver o fim do especismo durante a sua vida?

Uma parte de mim diz “não”, mas eu acho que vou ver a evolução em direção a um mundo sem especismo. E é isso que conta.

Como falar da luta antiespecista com militantes de esquerda? Cansei de ouvir de camaradas que “é preciso desconstruir todas as formas de dominação!”, mas quando começo a falar da dominação humana sobre animais outros que humanos, essas mesmas pessoas se transforma nas guardiãs do especismo.

Que a pessoa seja de esquerda ou não, é normal se aproveitar do especismo. É fácil achar que podemos continuar a dominar todos os outros seres vivos. É fácil, pra quem é humana, continuar a existir num mundo especista.  Mas quando penso especificamente em camaradas da esquerda, acho que é importante continuar produzindo material informativo e construindo espaços onde podemos conectar a luta antiespecista com outras lutas. E, mais uma vez, é importante trabalhar pra desenvolver estima pelo mundo ao nosso redor e todos os seres que o habitam.

Imagine que é o fim da sua vida. Uma longa vida de alegria, luta e festa. Qual seria a sua última refeição?

Posso escolher vários pratos? Pães e pastas pra compartilhar com as pessoas. Tofu com alho selvagem. Um mexidão com arroz, feijão vermelho, tomate e muita cebola. Rolinhos primavera e samossas, ambos recheados com legumes. E mais tofu. De sobremesa eu pediria um bolo com várias camadas. Algo cremoso, gorduroso, crocante, um pouco de tudo. A gente fez todas as revoluções do mundo? (Respondo que sim, já que estamos sonhando. E que, de todo jeito, quando ele estiver velhinho o aquecimento global vai estar tão intenso que provavelmente já estaremos plantando cacau na França.) Então esse bolo seria de chocolate.

Que conselhos você daria às pessoas que querem se tornar veganas? Os três conselhos que, na sua opinião, são os mais importantes.  

1- Se aproximar de outras pessoas que sejam veganas por razões antisepecistas e, se possível, se organizar em um grupo ou coletivo com elas. Isso é muito importante.

2- Aprender a se alimentar bem. Isso também é muito importante. Reserve um tempo pra aprender as bases da nutrição, do que o seu corpo precisa e descobrir a imensidão de possibilidades no mundo vegetal. Em seguida se divirta cozinhando e provando novos sabores. Não coma só abobrinha cozida na água! Você não vai conseguir ter sustento desse jeito. E não esqueça de tomar a sua B12! Se informe e veja como é gostoso se alimentar bem. 

3- Entenda que, pra algumas pessoas, existem obstáculos pra aderir à pratica vegana que vão além do especismo. O especismo é o obstáculo principal e esmagador, mas no dia-a-dia de muita gente pode ter outras razões que as impedem de ir pro lado vegano da força. É importante não desprezar essas pessoas, não olha-las com superioridade e tentar entender essas razões. Isso é essencial pra poder avançar. Não esqueça que o verdadeiro inimigo é o especismo. A luta é contra ele e aí, nesse caso, não daremos trégua!

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