A terra das laranjas tristes

Eu estava voltando pra casa no final da manhã quando me deparei com um poster de Ghassan Kanafani na entrada de um dos maiores CoHabs aqui da minha cidade. Há tempos penso em compartilhar um texto dele no blog e vi esse encontro inesperado como um sinal de que eu tinha que fazer isso hoje.

Ghassan Kanafani foi um escritor e militante palestino, expulso de sua terra natal pelas tropas sionistas quando ainda era criança (durante a Nakba, entre 1947-1948), que lutou durante toda a sua vida pela liberdade e autodeterminação do povo palestino, contra o colonialismo e o imperialismo. Kanafani foi assassinado em 1972 pelo Mossad, o serviço secreto israelense, quando tinha apenas 36 anos. Se algum dia você tiver a sorte de encontrar um dos romances dele no seu caminho, não perca essa oportunidade de mergulhar na literatura palestina. Mas o texto que traduzi (do Francês) pra vocês é o começo de um conto, inspirado na sua história pessoal, chamado “A terra das laranjas tristes”. Nesse conto acompanhamos uma criança que é forçada a deixar sua cidade, Jafa, no litoral palestino, e se torna refugiada no Líbano.

Esse conto me fez chorar todas as vezes que o li. Entrevistei várias pessoas que sobreviveram a Nakba, a “catástrofe”, quando as tropas sionistas fizeram uma limpeza étnica da Palestina, pra criar o futuro Estado de Israel, e dois terços da população do país se tornou refugiada. Ouvi-las sempre enchia meu coração de tristeza e revolta, mas, como expliquei acima, esse conto mostra o processo de perder seu lar, sua terra, seu país, tudo que te é caro e se tornar refugiada através dos olhos de uma criança e a tragédia é contada com uma imensa delicadeza. Só lendo pra entender.

A terra das laranjas tristes

Quando partimos de Jafa para Acre, não havia sensação de tragédia. Parecia uma viagem anual para passar o feriado em outra cidade. Nossa estada em Acre não me surpreendeu: talvez, por ser jovem, estivesse até feliz com isso, pois a viagem me fez faltar à escola…

No entanto, na noite do grande ataque à Acre a situação ficou mais clara.

Aquela noite foi difícil para você e para mim.

Foi, penso eu, uma noite cruel, passada entre o silêncio rígido dos homens e as invocações das mulheres. Minha espécie, você e eu, éramos jovens demais para entender o significado de toda essa história. Naquela noite, no entanto, alguns fios da história se acenderam.

De manhã, enquanto os judeus recuavam ameaçando e fumegando, um grande caminhão estacionou em frente à nossa porta.

Coisas leves, principalmente roupas de cama, foram jogadas no caminhão, rápida e histericamente. Eu estava encostado na velha parede da casa e vi sua mãe entrar no caminhão, depois sua tia, depois os pequenos e então seu pai começou a colocar você e seus irmãos no carro, por cima da bagagem.

Então ele me agarrou no canto onde eu estava e, levantando-me acima de sua cabeça, me depositou no compartimento de metal em forma de gaiola acima da cabine do motorista, onde encontrei meu irmão Riad sentado em silêncio.

O veículo deu partida antes que eu pudesse encontrar uma posição confortável. Acre desapareceu aos poucos nas curvas da estrada que subia em direção a Rass El-Naqoura.

O tempo estava um pouco nublado e uma sensação de frio invadiu meu corpo.

Riad, com as costas apoiadas na bagagem e as pernas na beirada do compartimento de metal, estava sentado muito quieto, olhando ao longe.

Eu ia sentado em silêncio, o queixo entre os joelhos e os braços entrelaçados.

Um após o outro, os pomares de laranjeiras desapareceram e o veículo subiu ofegante sobre o chão úmido…

Ao longe, o som de tiros de canhão soava como uma despedida.

Rass El-Naqoura surgiu no horizonte, envolta em uma névoa azulada e o veículo parou de repente.

As mulheres saíram de trás das bagagens, desceram e atravessaram na direção de um vendedor de laranjas, sentado na beira da estrada.

Ao voltarem com as laranjas, o som de seus soluços nos alcançou.

Só então as laranjas ficaram claras para mim: cada uma dessas frutas grandes e saudáveis ​​era algo a ser apreciado.

Seu pai saiu do lado do motorista, pegou uma laranja, olhou para ela em silêncio e começou a chorar como uma criança indefesa.

Em Rass El-Naqoura, nosso veículo se juntou a muitos outros semelhantes.

Os homens começaram a entregar suas armas aos policiais que estavam ali para isso.

Então chegou a nossa vez. Vi pistolas e metralhadoras jogadas sobre uma grande mesa, vi a longa fila de grandes veículos entrando no Líbano, deixando para trás as estradas sinuosas da terra das laranjas e então também chorei amargamente.

Sua mãe ainda olhava silenciosamente para as laranjas e todas as laranjeiras que seu pai havia deixado para os judeus brilhavam nos olhos dele. Como se todas aquelas belas árvores que ele havia comprado uma a uma estivessem refletidas em seu rosto… E em seus olhos, as lágrimas, que ele não conseguiu esconder do policial, brilharam.

Quando, à tarde, chegamos a Saida, tínhamos nos tornamos refugiados.

(Texto traduzido por mim, do Francês. Esse é apenas o início do conto “A terra das laranjas tristes”, de Ghassan Kanafani, publicado em 1963.)

PS Na foto acima vemos, ao lado da imagem de Ghassan Kanafani, cartazes pedindo a liberação de Salah Hamouri, um prisioneiro político franco-palestino. Hamouri é advogado e trabalha na organização de defesa de prisioneiros políticos palestinos Adameer. Vítima da repressão israelense há anos, ele se encontra mais uma vez em “detenção administrativa”. “Detenção administrativa” é algo utilizado frequentemente por Israel contra o povo palestino e significa ser preso ou presa sem acusação formal e sem julgamento, por tempo indeterminado.

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