Sobre couve, descolonizar a alimentação e ressignificar relações

Essa é uma história em duas partes que mostra como plantar uma horta, mesmo bem pequena, num cantinho do meu quintal, trouxe várias reflexões e transformações na minha vida. A primeira parte está aqui e vem acompanhada da receita de um caldo verde. A segunda aparecerá no próximo post.

Lembram dos Jardins Operários e da luta pra preservar esses lotes, cultivados há mais de 100 anos por operários e operárias da periferia de Paris, quase todas imigrantes, do combo de destruição formado pela especulação imobiliária, gentrificação e Olimpíadas de Paris de 2024? Tem até uma série que fiz junto com os camaradas do podcast Antinomia, da Biblioteca Terra Livre, narrando esse luta que ainda é um dos centros da minha militância aqui na França. Pois bem, um dos operários migrantes que teve seu lote e sua horta destruídas é português. Hugo veio pra França quando era jovem e hoje, com mais de 60 anos, segue trabalhando duro na construção civil pra sustentar a família. Ele foi o operário que mais participou da resistência e a ocupação começou no lote dele, que ele colocou à nossa disposição assim que passamos pra ação direta. Foram quatro meses de ocupação dos jardins, antes da polícia expulsar todo mundo e destruir as cabanas e nossas hortas, e me tocava ver como Hugo e Lucas, outro operário português que cultiva um lote na parte dos jardins que não estava ameaçada (tem um episódio inteiro do podcast com Lucas), faziam questão de se juntar às militantes que ocupavam o jardim no final do dia, mesmo depois de terem passado longas horas trabalhando nos canteiros de obras. Foram muitos jantares compartilhados no lote dele e esses são as melhores lembranças que guardo dos meses de ocupação.

No lote de Hugo, onde ficava o coração da ocupação, tinha muita couve. Dá pra identificar facilmente a origem das e dos operários cultivando cada pedaço de terra pelo tipo de legume plantado ali. Assim que consegue um pedacinho de terra, as imigrantes tentam trazer de volta um pouco de sua terra plantando as coisas que tinham costume de comer em casa. O pessoal da África do Norte (principalmente do Marrocos, Argélia e Tunísia) planta muita fava. As pessoas chinesas plantam bastante couve chinesa e acelga. E a turma portuguesa, como era de se esperar, planta couve. Preparei muitas refeições na ocupação com as couves de Hugo e elas alimentaram nossos corpos em resistência. Um dia ele disse que ia fazer um caldo verde pra nós, mas pra que eu e as pessoas vegetarianas/veganas da ocupação pudéssemos degustá-lo também, ele prometeu fazer sem os animais usados na receita tradicional. Ele preparou um caldeirão de caldo verde, 100% vegetal, e também alimentou muitos corpos em resistência naquele dia.

Isso tudo foi em 2021. Pula pra 2022 e pro nosso projeto de horta no quintal. Quase todas as sementes que plantamos aqui vieram dos Jardins Operários. Tanto dos lotes destruídos quanto dos lotes que ainda existem e que seguem alimentando trabalhadoras e trabalhadores imigrantes da periferia. E era muito importante que na minha horta tivesse couve, pois é um dos meus vegetais preferidos. As sementes vieram das couves de Hugo, do lote que já não existe mais. Foi o primeiro vegetal que ficou pronto pra ser colhido na nossa horta, que também tem tomates, batatas, ervilhas, favas, beterraba, jerimum… Mas as couves foram as primeiras a nos alimentar e seguem nos nutrindo há dois meses. Duas ou três vezes por semana colho um punhado de folhas e como maravilhada com a generosidade dessa planta.

Uns dias atrás Hugo passou aqui por casa, junto com Lucas. Nossa descarga está com um problema de vazamento e pedimos ajuda pra ele, que em pouco tempo estava aqui pra ver qual era o problema. Nossa amizade hoje vai além do jardim e é a segunda vez que ele vem na nossa casa consertar algo que não conseguimos resolver sozinhas, pois exige conhecimento específico. Ele nunca cobra a ajuda e quando a gente insiste ele diz: “Compre uma garrafa de vinho pra mim e tá ótimo!”.

Alguns dias depois do episódio da descarga (ainda estou devendo o vinho a Hugo!) eu estava sentada no chão da sala com Anne, olhando pra couve na nossa horta e pensando em como eu ia prepará-la pro almoço. Naquele momento me dei conta de algo. Boa parte da minha militância antiespecista consiste em chamar a atenção das pessoas no Brasil sobre a que ponto nossa alimentação foi colonizada e convidá-las a resistir através da valorização da nossa cultura alimentar. Muito se fala da importância de descolonizar a mente, mas isso não vai acontecer enquanto não tivermos descolonizado o estômago. Mas acontece que a couve que eu estava admirando na minha horta, um vegetal tão associado à culinária portuguesa, logo, do colonizador, tinha adquirido outro significado pra mim no contexto atual onde me encontro. Ela tinha chegado até a mim através de um português que não representa mais o colonizador. Aqui, na periferia de Paris, somos, ele e eu, imigrantes. E trabalhadores pobres sobrevivendo em empregos que francês não quer fazer. E tanto ele quanto eu buscamos, no plantio da horta, nas couves, uma maneira de sentir um pouco da nossa casa mais perto. A couve é o elo que nos une aos nossos territórios respectivos, embora eles estejam em continentes diferentes. E diante da couve, da tentativa de reencontrar um pouco de nós nessa terra estrangeira hostil, onde não somos tratados como o povo local, nos tornamos iguais. Não colonizada e colonizador, mas duas existências que se encontram na solidariedade forte que se cria entre pessoas marginalizadas. Procurando o sabor de casa, o sabor do pertencimento, num prato de couve.

Caldo bem verde

Sim, é a versão vegetal da famosa receita portuguesa. Sobre quantidades: adapte pro seu gosto. Eu uso mais couve do que batata e por isso chamo o meu caldo verde de “bem verde”. Você pode fazer o contrário ou usar metade-metade. Capricho no alho, porque é o que vai perfumar o caldo e sou generosa com a pimenta e o limão. 

Couve

Batata

Alho

Azeite

Sal e pimenta preta

Limão (opcional)

Descasque (ou não) as batatas e corte em pedaços grandes. Retire os talos das folhas de couve, pique os talos bem miúdo. Coloque as folhas empilhadas, enrole tudo bem apertado, formando um grande charuto, e corte o mais fino possível (uma faca grande e bem afiada é essencial). Pique ou amasse o alho. 

Aqueça um pouco de azeite numa panela adaptada à quantidade de caldo que você estiver fazendo. Doure o alho e os talos da couve por alguns segundos. Junte as batatas e cubra tudo com água suficiente pra cozinhar as batatas com bastante sobra, afinal isso é um caldo, mas não exagere (sempre é possível acrescentar mais água depois). Salgue, cubra a panela e deixe cozinhar em fogo alto até as batatas começarem a se desfazer. Nesse momento junte a couve, baixe o fogo e deixe cozinhar mais alguns minutos (a couve cozinha rápido, principalmente se tiver sido cortada bem fina). Se tiver pouca água nesse ponto, junte mais um pouco, mas eu confesso que gosto do meu caldo com pouco líquido. 

Quando a couve tiver murchado e a cor estiver mais escura, tá pronto. Tempere com bastante pimenta preta (melhor se for moída na hora), prove e corrija o sal. Use as costas de uma colher pra amassar grosseiramente as batatas. O objetivo não é fazer um purê, apenas engrossar um pouco o caldo. Esprema um pouco de limão por cima e sirva regado com azeite (seja generosa).

Um comentário em “Sobre couve, descolonizar a alimentação e ressignificar relações

  1. Que bonito ver a couve junto com vocês em resistência pelos jardins de Aubervilliers! É uma delícia ler teu blog e ganhar tanta ideia pra comer bem, gostoso, saudável e livre de exploração.

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