Jardins da Comuna – Ep 6

Lembram da luta pra salvar os jardins operários de Aubervilliers, a cidade na periferia norte de Paris onde moro? Um oficial de justiça esteve na ocupação semana passada e deu um ultimato: os lotes devem ser liberados até o dia 15 de julho. Estou acompanhando daqui, com o coração na mão, as ações de resistência das camaradas que ficaram defendendo esse território, incluindo Anne, minha esposa.

Então hoje, um dia muito importante pra essa luta, vim dar continuidade a transcrição da série “Jardins da Comuna”, minha colaboração com o o podcast Antinomia, do Coletivo Anarquista Terra Livre sobre a resistência popular pra salvar as últimas terras agrícolas da segunda cidade mais pobre da França. E, olha como são as coisas, no que é talvez o último dia da ocupação de pé, o episódio compartilhado fala sobre o dia em que começamos a ocupar as hortas.

Episódio 6 – Manifestação e Ocupação dos Jardins

A última semana foi cheia de atividades, emoções fortes e as primeiras vitórias do movimento de defesa dos Jardins Operários. Mas deixa eu começar contando como foi a manifestação no sábado passado.

Nos reunimos na frente da prefeitura de Aubervilliers às 9h30 pra começar os preparativos: testar o equipamento de som, colocar faixas no local, distribuir panfletos… A polícia chegou ainda mais cedo e nos acompanhou durante todo o dia, mas se manteve à distância. 

Naquele momento só tinha o coletivo de defesa dos jardins, as jardineiras e jardineiros em luta, e camaradas do outro coletivo do qual faço parte, a Brigada de Solidariedade Popular, que vieram com faixas de apoio e nossas bandeiras pretas e vermelhas.

Mas ao poucos as pessoas começaram a chegar, moradoras de Auberviliers, mas também dos municípios vizinhos.… e em pouco tempo a praça da prefeitura tinha ficado pequena pra acolher tanta gente. 

Às 11h começamos a marcha que terminaria nos Jardins, onde faríamos um piquenique nos lotes ameaçados. 

Bem, esse era o plano, mas na véspera fomos notificadas que o presidente da associação que gere os jardins operários, aquele mesmo que gosta mais de concreto e cimento do que de árvore e passarinho e que ninguém sabe como foi parar ali, tinha avisado a polícia que entraríamos ilegalmente nos jardins no sábado. “Ilegalmente” porque ELE tinha proibido. Então começamos a manifestação sem saber como ela terminaria. 

Durante a madrugada, uma equipe tinha feito uma ação anti-publicidade. As propagandas ao longo do trajeto da manifestação (nos pequenos outdoors e nas laterais dos pontos de ônibus) tinham sido substituídas por cartazes denunciando a destruição anunciada das Olimpíadas no nosso distrito e dando nome aos culpados. Foi uma alegria pros olhos (e pras câmeras das jornalistas presentes no evento) descobrir as mensagens, algumas cheias de humor como: “As Olimpíadas são uma merda, a gente prefere os nossos jardins”.

Vocês escutarão agora trechos da manifestação de sábado. 

Aqui as pessoas falam “Solidariedade com os jardineiros” / No próximo áudio ouvimos:

“Nenhum, nenhum jardim destruído” / E, o meu preferido, que significa: “Grand Paris, estrume, nós vamos te compostar”. Grand Paris é a construtora do Estado que quer destruir a todo custo os jardins operários.

Eu estava na equipe que abriria a porta e guiaria a manifestação pra dentro dos jardins, mas só depois de ter recebido o sinal verde da equipe “segurança”, cuja missão era avaliar a situação e decidir, de acordo com a quantidade de policiais presentes no local e do número de manifestantes, se a relação de força estava do nosso lado. Se tudo desse certo, faríamos uma corrente humana ao redor dos lotes ameaçados, mostrando que estávamos ali pra proteger aquela terra. E, ao mesmo tempo, uma equipe montaria uma barricada na frente do canteiro de obras, no local por onde as máquinas entram, pra lembrar que estamos comemorando os 150 anos da Comuna de Paris e pra chatear a construtora quando ela tentasse retomar as obras na segunda.

Quando nos aproximamos dos jardins a equipe “segurança” deu o sinal verde pra ação e, com o aval das jardineiras presentes na manifestação, colocamos o plano em prática. Fomos pra frente da manifestação e começamos a caminhada rumo aos policiais posicionados na esquina dos jardins.

Conseguimos passar pelos policiais sem problema, mas na porta dos jardins estava o presidente da associação, que nos impediu fisicamente de entrar. Eu estava preparada pra enfrentar a polícia, mas não imaginei que teria que lidar com aquela criatura também. Nesse momento as jardineiras tiveram que intervir, e, depois de uma conversa exaltada, a única alternativa foi empurrar o presidente dali, missão executada com coragem por uma das lideranças da resistência nos jardins, enquanto outro jardineiro abria a porta pra nós. 

À partir dali comecei a puxar o pessoal pra dentro do jardim, formando a corrente humana, e só depois de atravessar a porta e dar alguns passos percebi que eu não era a primeira pessoa da fila. Na minha frente, guiando toda aquela gente, estava uma criança sozinha, que não tinha mais de 10 anos. 

Enquanto isso, do lado de fora, a barricada era construída. A equipe barricada também fez a gentileza de trancar essa entrada com uma corrente pesada, o que significa que na Segunda-feira a construtora perderia uma parte do dia tentando colocar as máquinas pra dentro dos jardins. 

Depois teve pique-nique, visita do jardim e discursos de outros coletivos em luta contra a destruição da natureza. A gente pensou que se 300, 400 pessoas viessem pra manifestação, poderíamos dizer que tinha sido um sucesso. Mas cerca de 1200 pessoas apareceram! Fomos embora com o coração inchado de alegria, deixando nossas bandeiras plantadas nos lotes ameaçados e, no meio deles, uma enorme bandeira vermelha em homenagem à Comuna. Foi a primeira vitória do nosso movimento.

A manifestação do dia 17 não foi um final, e sim um início. Desde então estamos cada vez mais presentes nos jardins, preparando os próximos passos.

Então aqui vai um resumo do que aconteceu essa semana.

Domingo, Mediapart, um site francês de informação independente, publicou uma investigação sobre a SOLIDEO, a empresa pública responsável pela construção das obras das Olimpíadas de Paris de 2024. Essa investigação expôs o racismo, homofobia e sexismo na comunicação interna das pessoas dirigindo as obras das Olimpíadas, o que ilustra perfeitamente a ideologia da galera que impõe esses grandes projetos inúteis e ecocidas aqui na periferia. 80% das obras das olimpíadas de Paris serão construídas no distrito Seine-Saint-Denis, onde fica Aubervilliers, Pois, como já falei nos outros episódios, as olimpíadas são de Paris, mas a destruição acontece na periferia da cidade, onde a maior parte da população é racializada e vem da imigração. Anne Hidalgo, prefeita de Paris e presidente da SOLIDEO, ainda não se pronunciou sobre o ocorrido.

E a cereja desse bolo desprezível foi ouvir a mesma SOLIDEO dizer que está se preparando pra conter os “eco-djihadistas” que se organizam contra as Olimpíadas no distrito Seine-Saint-Denis. Depois de “anarco-ecolo” e “terroristas verdes”, que era como os nossos inimigos nos tratavam até então, agora temos também “eco-djihadistas” ou, como acrescentar uma dose de islamofobia ao racismo ambiental do Estado francês. 

Segunda feira, Hugo, um dos jardineiros cujo lote está ameaçado de destruição (aquele onde tem cerejeiras e galinhas que eu visitei no último episódio) cedeu seu lote pro nosso coletivo, pra que a gente possa cultivar a terra e organizar oficinas e encontros ali. Ele veio anunciar isso durante a reunião do coletivo e foi recebido com uma salva de palmas que fez ele corar. 

Durante a reunião, olhei ao meu redor pra observar quem estava ali conosco. Uma das jardineiras cortava uma pera pra filha, que tem 3 anos. Um camarada que também milita comigo na Brigada de Solidariedade Popular, se balançava de um lado pro outro pra ninar seu bebê de 2 meses, que ele carregava amarrado no peito. Outra jardineira pedia a palavra enquanto seus cabelos grisalhos voavam ao vento. Do meu lado Sylvie, a artista do coletivo, registrava a cena numa aquarela, o que ela faz com frequência durante as reuniões. Essas são as perigosas “eco-djihadistas” que o Estado francês está se preparando pra combater.

Terça feira começamos as instalações pra receber as visitas: criamos um espaço pras conversas e palestras, limpamos o banheiro de uma cabana, construimos um banheiro seco em outra…

Na Quarta, abrimos oficialmente as portas dos jardins pro público e a primeira atividade foi um encontro com garis em luta aqui no distrito, garis que trabalham com coleta de lixo de grandes obras e que provavelmente vão transportar o lixo gerado pela construção do centro aquático que ameaça os 19 lotes dos jardins operários. Também fizemos um inventário de todas as árvores ameaçadas de destruição, com a ajuda de Marie, uma das jardineiras. 

Esse primeiro dia de atividades nos jardins foi intenso, com muita gente vindo de outras cidades pra se juntar à nossa luta. E, o melhor momento do dia: uma mulher apareceu na porta dos jardins com o filho e a filha pequenas e quando abri a porta as crianças começaram a cantar “queremos abóboras, não concreto”, uma das palavras de ordem da manifestação de sábado.

Mas naquela mesma tarde aconteceu, ali mesmo, uma reunião do presidente da associação com as empresas responsáveis pela construção do centro aquático. Eu fiquei responsável por abrir a porta durante uma boa parte da tarde e pude ver essa galera toda chegar. Vou poupar vocês da troca de frases extremamente desagradável que tive com o presidente, mas deixa eu contar uma coisa engraçada. 

A representante de Grand Paris, a construtora do Estado que quer destruir os jardins e que a gente quer compostar, apareceu na porta quando eu estava lá. Eu a cumprimentei e perguntei se ela tinha vindo pra reunião. Ela me olhou de cima pra baixo e respondeu com desprezo: “Certamente não pra mesma reunião que você.” Fiquei uns segundos sem entender a razão daquela hostilidade gratuita, mas aí lembrei que eu estava usando um boné do MST e uma camiseta das mulheres zapatistas. 

Contarei sobre a segunda vitória, que tem um impacto material ainda maior que a primeira, no próximo episódio.

Mas antes de me despedir, quero dividir algo que Dolores, a principal liderança dos jardins, compartilhou com a gente durante uma das reuniões da semana. O lote dela faz fronteira com a rua e da calçada dá pra vê-la plantando lá dentro. “Depois da manifestação de sábado -ela disse- quando as pessoas passam lá fora e me veem, elas levantam o punho e sorriem.”

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