Jardins da Comuna – Ep 3 e 4

Ep 3—“Devastação 2024”

(áudio passarinhos cantando)

No último episódio falei sobre a orquestra de passarinhos que anima os Jardins Operários e eu não podia deixar de trazer essa melodia pra vocês. Mas estamos na periferia norte de Paris, então o canto dos pássaros, incluindo do galo que mora nos jardins, vem acompanhado do barulho de  carros, buzinas e das construções ali por perto. 

Eu comecei a frequentar os Jardins Operários no meio do ano passado, quando o Coletivo de Defesa dos Jardins foi criado. Não é difícil entender a importância dessas hortas na segurança alimentar das famílias que cultivam ali, mas só quando passei a conversar com as jardineiras e jardineiros, pude ter noção do que os jardins realmente significam pra elas. E isso vai muito além da possibilidade de ter verduras frescas na mesa. 

Alan, um dos jardineiros, contou que antes de conseguir um lote, o que aconteceu há pouco mais de um ano, ele nunca tinha plantado, apesar do pai, que vive no campo, sempre ter cultivado uma horta. Hoje ele divide o lote com o irmão. Perguntei então como ele tinha aprendido a plantar. “Eu passei longas horas no telefone com o meu pai.” ele respondeu. O acesso à terra, mesmo se tratando de um lote pequeno no meio de um centro urbano, conectou Alan com suas raízes e estreitou a relação dele com o pai camponês, que hoje transmite seus conhecimentos pros dois filhos que moram na cidade. O lote de Alan é um dos 18 lotes que a prefeitura quer destruir  à partir do final do mês.

Enquanto eu ouvia essa história, no lote da frente um operário aposentado, imigrante português, pegava na enxada. A temperatura estava muito acima do que é considerado normal nessa época do ano, nos lembrando que a mudança climática já é uma realidade, então aquele senhor de idade avançada estava arando a terra sem camisa, sua pele morena exposta ao sol que brilhava com força. A cena me fez esquecer, por alguns segundos, que estávamos a apenas 2km Paris. 

Alguns lotes mais adiante, outro operário aposentado e imigrante, aguava um canteiro de favas. Me aproximei do lote e percebi que eram as mesmas favas que eu via nos campos palestinos, as deliciosas favas que eu comia quando morava lá. Minha empolgação foi tamanha que falei “ful” quase gritando. “Como é que você chamou as favas?” o jardineiro perguntou. “Ful. É ‘fava’ em árabe.” respondi. Ele colocou o regador no chão e disse: “Também é “fava” em Cabila.” Vários jardineiros e jardineiras são Cabilas, o povo da Cabília, um território nas montanhas do norte da Argélia. Ele perguntou como eu preparava as favas (resposta: cozidas e misturadas com tahina, limão e cominho, como aprendi na Palestina).  Perguntei como ELE preparava as favas (resposta: no vapor e servidas com cuscuz de trigo). “Daqui a um mês elas estarão prontas pra serem colhidas” – ele disse. “Vou guardar umas pra você”. Agradeci e segui o meu caminho pensando que daqui a UM mês os tratores estariam nos jardins, destruindo uma parte dos lotes.

É difícil caminhar pelas hortas sem pensar na ameaça que paira em cima delas. Todas as árvores do estacionamento colado aos jardins, onde será construída a piscina de treinamento pras Olimpíadas de Paris de 2024, foram destruídas. Esse estacionamento também abrigava uma oficina informal, ganha pão precário de alguns jovens do bairro, e era o lar de várias pessoas sem domicílio, que dormiam dentro dos seus carros (um fenômeno cada vez mais comum no distrito) ou em barracas armadas na estreita faixa de grama no fundo do estacionamento. Árvores cortadas, pessoas expulsas, carros retirados, espaço cercado e um vigia, acompanhado por um cachorro, presente no local, dia e noite. 

Mas a luta pela preservação dos jardins continua. A organização do primeiro protesto em defesa dos jardins operários, que acontecerá dia 17 de abril, avança a todo o vapor. Assim como a solidariedade entre diferentes coletivos em luta.

No último episódio também expliquei que o Coletivo de Defesa dos Jardins Operários faz parte, junto com outros coletivos locais de resistência ecológica, de um coletivo mais amplo que federa as lutas contra as Olimpíadas de Paris de 2024 no distrito. Esse coletivo se chama “Saccage 2024”. “Saccage”, em Francês, significa “pilhagem”, mas também “devastação”. E é exatamente esse o legado das Olimpíadas de Paris aqui no distrito 93: a pilhagem da natureza que deixará um território devastado. Chegou a hora de mobilizar a solidariedade internacional e por isso eu gostaria de terminar esse episódio lendo alguns trechos do chamado feito pelo coletivo “Saccage 2024”.

“Somos um conjunto de coletivos, moradores e associações que se juntaram há vários meses para denunciar e resistir à destruição, a poluição, as expulsões, a especulação imobiliária e a vigilância das massas impostas pela realização das Olimpíadas de Paris em 2024. Fomos despossuídos da possibilidade de decidir coletivamente sobre o que nos rodeia, enquanto os beneficiários da especulação imobiliária tremem de impaciência, com o apoio e a orientação do Estado.

Diante da catástrofe ecológica e social que vivemos atualmente, continuar construindo projetos gigantescos e desnecessários é um crime. Diante da devastação econômica, ecológica, social e democrática, continuaremos resistindo contra cada litro de concreto derramado, cada mentira do Estado, cada pedaço de espaço público privatizado, cada pessoa despejada e cada intromissão securitária nas nossas comunidades. 

Convidamos todas as pessoas e coletivos.. indignados com essas violências, a se organizar pra defender nossos territórios, a se federar e a resistir usando a estratégia que quiserem. Convidamos todas as pessoas e grupos solidários à nossa luta a imaginar e a realizar eventos esportivos festivos e de dimensão humana, verdadeiramente ecológicos e populares. Nossa indignação é forte, é linda, é esperançosa e não estamos dispostos a nos calar tão cedo.” 

Ep 4- Com a palavra, as jardineiras e jardineiros dos Jardins Operários

Depois de ter explicado o contexto da luta dos Jardins Operários na cidade de Aubervilliers, hoje eu gostaria de dar a palavra a algumas das pessoas que cultivam ali. Ninguém melhor que elas pra contar sobre o que os jardins significam e por que resistir à destruição de uma parte dos lotes é tão importante. Com a palavra, as jardineiras e jardineiros de Aubervilliers.

“A minha ligação com jardins é antiga. Quando eu ainda estava no Marrocos fiz parte de uma associação de proteção da natureza. O importante é participar de algo coletivo. Aqui se criam laços sociais, mas é também o nosso lazer, ja não temos uma casa de campo. E depois tem o aprendizado, aprendi muito. Sou um jardineiro marginal que gosta de fazer experiências! Eu cultivo vegetais antigos dos quais não falamos mais, tomates peculiares que você não encontra em outro lugar. Por trás do concreto, existem grandes potências. Devemos protestar. Queremos deixar algo pra a comunidade. Não é pra mim, é pra todos. A pessoa que estava neste lote antes de mim deixou um material aqui, trabalhou a terra, e eu farei o mesmo. A terra não é nossa. “ Mohammed

“Comemos muitas coisas da nossa horta: batata, tomate, uva, figo, ervilha, vagem, cenoura … e todos os anos mudamos as plantações. Também alimentamos os nossos netos e acima de tudo é orgânico. Não tem veneno. O sabor não é o mesmo de quando você compra no mercado. A gente relaxa um pouco aqui e esquece a cidade ” Lotfi

“Pra nós os jardins podem ser resumidos em duas palavras: liberdade e partilha. Este é o espaço onde podemos respirar. Todo jardineiro sabe que ter árvores traz frescor pros jardins e principalmente pra cidade. As pessoas nos prédios altos do outro lado da rua nos dizem: este é o nosso pulmão. “ Ursula

“Quem me ensinou a plantar? Foi a minha mãe, o meu avô, o meu tio. Meu avô me ensinou a podar parreiras, meu tio a cultivar a terra, a usar adubos naturais, a respeitar as estações na hora de plantar… Eu sou uma pessoa que gosta de estar na natureza. Me dá muito prazer ver as plantas crescerem. Planto minhas sementinhas, minhas ervilhas, minhas favas… aí um dia eu chego pra minha esposa e falo: “Querida, minhas favas já estão deste tamanho!”. E ela diz: “Você parece criança com essa sua horta!” Está vendo aquelas plantas brotando ali? São violetas brancas que mamãe tinha no jardim dela e sou muito apegado a elas. Plantei um lírio real do lado, que é lindo, e também veio do jardim de mamãe. Uma irmã minha mora na Córsega e eu trouxe flores da casa dela, trouxe árvores de lá e plantei aqui. Tudo no meu lote tem uma história. E eles vão destruir esses lotes. Tem árvores ali atrás que eu plantei. Outras árvores tem 70, 80 anos. Cerejeiras, ameixeiras, árvores onde eu fiz enxertos. Ver as escavadeiras passar por cima delas, você tem noção do que isso significa? Eu não quero estar aqui quando isso acontecer, não quero ver isso. ” Gérard C

“Estamos numa planície que desde o século 13 foi um lugar privilegiado pra plantar, pois aqui tinha um pântano, então era um lugar naturalmente irrigado. Havia uma tradição de plantar vegetais grandes, como cenoura, nabo… as “verduras do pobre”. Precisamos preservar essa memória agrícola. Esse lugar nos conta a agricultura do passado e a condição operária do passado, mas também nos ajuda a pensar o futuro. As pessoas que querem destruir os jardins estão reproduzindo padrões do velho mundo, quando na verdade temos que nos aproximar de um modelo de cidade habitável, que nos oferece a possibilidade de sobreviver, se tiver um lockdown, se houver escassez de alimentos… Aqui em Aubervilliers eu tive dificuldades pra conseguir alimentos durante o primeiro lockdown. Esse jardim me permite comer. Pra mim é muito importante ter comida orgânica e local. Gosto de colocar as mãos na terra, plantar, ter uma conexão com a natureza. Nos falam de compensação ecológica. Isso são palavras de tecnocratas! Não tem caminhão de mudança pras minhocas que vivem no meu lote. “ Viviane

“Aqui é cheio de vida. No verão a gente chega às 10 , 11 da manhã e consegue ficar até as 10h , 11h da noite, é uma maravilha. Um jardim é essencial. O concreto não deve vencer. Existe uma nova doença, a concretinite. Cuidado com a concretinite! Quando você vê uma cerejeira na primavera, quando ela está toda florida, eu e a minha esposa chamamos isso de ‘promessa’. Eu estou aqui embaixo da minha cerejeira, embaixo de uma promessa.” Gérard M.

“Existem muitas questões iminentes em termos de destruição da biodiversidade, das espécies, da terra. Com o aquecimento global e a poluição, não podemos continuar assim. Essa mudança será coletiva, criativa, unida e eu quero participar dela no tempo que me resta. Eu me sinto responsável pela terra … A terra é uma responsabilidade coletiva. Você não pode dizer ‘não podemos fazer nada’. Cultivar esse horta é muito importante para mim, mas defender os jardins operários é ainda mais importante. Eles continuarão aqui depois que eu partir.” Dolorès

“Confesso que os jardins me salvaram a vida. Graças à atividade física, sim, mas também graças a todo o resto. Todos os dias eu venho até aqui, todos os dias, há 30 anos eu cultivo esse lote. Pelo prazer de estar aqui, de bater papo com os amigos. Quando descobri que teria que ir embora do meu lote … foi uma catástrofe para mim.” Brahim

“Faz dois anos e meio que os jardins mudaram completamente a minha vida. Aqui tem a alegria de ver as plantas crescerem. Cada pequeno botão que floresce é a vida que brota em mim. Mas também aconteceu algo que eu nunca esperei, que é o prazer de estar com outras pessoas. Quando eu soube que o meu lote seria destruído, foi um choque. Eu disse a mim mesma: ‘Não podemos lutar, tem questões econômicas enormes por trás’. Já comecei achando que tinha perdido. Mas depois de ver toda a mobilização ao nosso redor, passei a pensar que no final das contas, talvez a gente tenha uma chance. No dia em que as escavadeiras chegarem, vou me acorrentar à minha cerejeira e dali não sairei.” Élise 

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