Uma rede, um alpendre, um açude…e um chá de canela

chá de canela com nozes

Na minha vida anterior, quando eu estudava linguística em Paris, tive a sorte de frequentar uma universidade com uma das melhores bibliotecas universitárias da Europa. O que tornava essa biblioteca realmente especial pra mim não era o tamanho, mas o fato dela ter uma seção inteira com literatura brasileira e portuguesa em Português. A universidade tinha curso de Português e a ideia era que esses universitários pudessem explorar a literatura lusófona na língua de Camões. Mas acho que quem mais aproveitava era eu, que fazia um curso totalmente diferente, mas que vinha matar a saudade da minha língua e dos meus autores preferidos regularmente. Sempre que a distância da minha terra parecia insuportável, eu me refugiava nessa ala da biblioteca. Eu tinha a impressão que se o autor viesse do Nordeste, o livro matava ainda mais a saudade. Foi durante essa minha fase de obsessão com o Sertão que li, pela primeira vez, ‘Memorial de Maria Moura’, de Rachel de Queiroz.

Alpendres, redes e açudes eram tudo o que eu precisava naquele momento, mas aventuras, botijas, romances contrariados e uma heroína cangaceira deixou tudo ainda mais interessante. Uma passagem do livro ficou marcada pra sempre na minha memória. O livro é maravilhoso, não há dúvidas, mas vejam só, eu já tinha o micróbio da culinária dentro de mim naquela época e fiquei impressionada foi quando Marialva encontrou Valentim pela primeira vez e serviu, no seu alpendre, chá de canela pra ele. Chá de canela! Meus pais são sertanejos, eu fui inúmeras vezes pro interior do RN, onde boa parte da minha família materna ainda mora, mas nunca, nunca tinha ouvido falar de chá de canela. Eu adoro canela, ela é provavelmente a minha especiaria preferida, então fiquei um pouco ressentida. Por que nunca me ofereceram chá de canela nas minhas andanças pelos alpendres?  Será que já não se bebe mais chá de canela no sertão, só café e cachaça?

Curiosamente, não me atrevi a tentar o chá em casa. Primeiro porque eu não tinha ideia de como fazer isso (hoje acho óbvio, mas nunca tinha pensado em ferver os paus de canela) e segundo porque aquele chá ficou associado na minha mente ao Sertão e beber ele em casa me parecia totalmente fora de contexto.

Muitos anos depois eu fui visitar meus amigos Tareq e Sara no campo de Al Arroub, logo depois do nascimento de Watan, o primeiro filho deles. A mãe de Sara estava lá pra ajuda-la com o bebe e adivinha o que ela serviu pra gente? Chá de canela! Imagino que a canela sendo uma especiaria muito popular, vários povos do mundo fazem chá com ela, mas foi surreal provar a bebida que eu tinha associado ao Sertão em um campo de refugiados na Palestina. A vida tem dessas coisas.

A mãe de Sara serve o chá com pedacinhos de nozes, o que aumenta ainda mais o prazer de toma-lo. As nozes absorvem a doçura e o perfume da canela e ficam irresistíveis. E é muito agradável intercalar os goles de chá com a mastigação de uma ou outra noz. Você pode fazer o chá sem as nozes, mas a presença delas aqui deixa a bebida mais especial.

Ainda não consegui degustar um chá de canela numa rede armada em um alpendre do Sertão, olhando um açude e um serrote, como nas minhas fantasias queirozianas, mas não perdi as esperanças. Enquanto isso vou bebendo meu  chazinho em casa, mesmo.

canela

Chá de canela com nozes

A qualidade da canela faz toda a diferença aqui. A primeira vez que fiz esse chá usei uma canela ruim e mesmo depois do uma noite de molho e de ter deixado ferver por quase uma hora, a bebida continuava insípida. Na segunda vez, meros 4 minutos de fervura (depois da noite de molho) foram suficientes pra fazer um chá bem forte. Se sua canela em pau não exalar um aroma relativamente forte, ela provavelmente está velha demais e não serve pra fazer esse chá. Canela é ótima pra esquentar o corpo (esse chá é perfeito no inverno) e como ela tem propriedades antibacterianas, expectorantes e anti-inflamatórias, esse chá dá uma forcinha ao seu corpo durante gripes e resfriados.

30g de canela em pau de ótima qualidade

Nozes

Cubra a canela com 2x de água e deixe de molho durante uma noite. No dia seguinte transfira tudo pra uma panela pequena e acrescente mais 1x de água. Deixe ferver alguns minutos, coberto. Prove o líquido regularmente e quando estiver forte o suficiente pro seu gosto, desligue o fogo (aqui em casa fervi a canela durante 4 minutos, mas esse tempo varia de acordo com a qualidade da sua canela). Como essa bebida tem um sabor intenso, é melhor servi-la em copinhos pequenos, como se faz aqui na Palestina. Polvilhe cada copo com as nozes picadas grosseiramente (uso 1cc por copo). Não precisa adoçar, pois a canela já é doce o suficiente. Rende 6 porções pequenas.

20 comentários em “Uma rede, um alpendre, um açude…e um chá de canela

  1. Adoro chá, adoro canela. Perfeito, eu acho. Mas terei de esperar para fazer. Tínhamos ontem, aqui em Uruguaiana, RS, 40° C à sombra, marcados no termômetro. Não sei descrever a sensação térmica. Só estando aqui para entender. Choveu e hoje está fresco. Adoro chá de gengibre também. Em Porto Alegre, num restaurante indiano vegan serviram após o almoço aquele chá picante, delicioso. Foi meu primeiro contato com chá de gengibre (e com chutney). Peguei uma receita na internet e no inverno passado não economizei no chá de gengibre. No próximo vou alternar com o de canela. De quebra a gente perfuma a casa. Os aromas de uma cozinha cheia de temperos, ervas e especiarias tornam a casa um lugar mais agradável e os humores mais fáceis.

  2. Eu sempre botei canela em pó no chá, depois de pronto, por falta de imaginação. E o pó incomoda ao beber, a gente pode tossir. Chá de cravo, maçã, gengibre, todos levam um pouco. Depois eu passei a coar. Agora vou atrás de canela em pau pra ver se a coisa pega.

    E falando em imaginação, nem com muita Rachel, Graciliano e Guimarães Rosa debaixo do nariz, o meu sertão imaginário inclui um serrote. Fiquei realmente curiosa pra saber o que ele significa.

    Mas ó: tem um autor sergipano que eu acho que vale a pena, se um dia você cruzar com esse livro: Coivara da memória, de Francisco Dantas. Resisti até ode pude, porque me recuso sempre a ler o que me mandam (espírito indômito de araque, só quer fazer o contrário do que empurram). E só li ano passado. Hoje entendo porque o povo elogia tanto Chico Dantas, a quem já vi pessoalmente um monte de vezes. Tem um capítulo sobre o roseiral da avó que me traz lágrimas só de lembrar.

    E tome chá pra acalmar coração…

      1. Ah, esse serrote é OUTRA vista! Aqui não tem muito disso não. O lugar mais alto do estado deve ser a Serra de Itabaiana, e nem é uma cadeia de montanhas. É mais baixo que os morros que entremeiam a cidade do Rio. Quero é saber quando finalmente nos conheceremos pessoalmente, porque tenho de deixar tofu guardado pra feijoada. E hoje já tenho mais umas cartinhas na manga. Aprendi a mexer com polpa espremida de caju pra fazer moquecas e pratos salgados afins.

  3. Aliás… Eu vi isso outro dia: http://g1.globo.com/se/sergipe/estacao-agricola/videos/t/edicoes/v/aprenda-a-fazer-coxinha-de-caju/2370582/, mas fico besta de alguém chamar receita de fritura de saudável só porque trocou a galinha por caju. E no fim, o infeliz ainda dizer pra botar caldo de galinha, estragando o resto de saúde do prato. Além disso eles trocam as fotos da farinha de rosca pela de trigo.

    MAS, como nem tudo é treva, fica o modo simples de transformar caju em desfiado pra comida salgada. E ainda se aproveita o suco. Quer coisa melhor pra alguém que mora em Sergipe?
    =)

    1. Minha única tentativa de preparar um prato salgado com o caju foi frustrada, mas queria muito aprender essa tecnica direitinho. Você faz com no vídeo? Fico bom ou com o travo característico do caju (que adoro, mas não em pratos salgados)?

      1. Desta última vez eu fui mais persistente com o escorrer: escorri bem, lavei, botei limão e lavei o excesso de novo. Depois refoguei no alho, azeite e sal antes dos outros temperos. E ó… eu achei decente. Vou aperfeiçoar o método até enganar os carnívoros.

  4. Canela com nozes? Nunca imaginaria esta combinação num chá. Já fiz canela com maçã, mas imagino que sentir o crocante da noz quando se bebe o chá deva ser delicioso…Estou sem nozes em casa, senão já ia correndo para a cozinha. Aqui está um frio danado! Uma chávena deste chá e um bom livro é tudo o que queria agora. Fiquei curiosa para ler este livro de Raquel de Queirós, o único que li dela foi O Quinze. Vamos ver se encontro na biblioteca.
    Bjos

  5. O convite para degustar um bom chá de canela deitada em uma rede num alpendre olhando o açude tá feito a partir de agora, basta vir ao Brasil e visitar sua família no interior do RN que vc desfrutará esse momento q vc considera maravilhoso. Bjos

  6. Aqui curtindo seu blog, que descobri tardiamente, mas nunca tarde. Comentando um monte de coisas na cabeça. Esse decidi comentar aqui.
    Esse post me lembrou uma viagem que fiz com vovó e uns amigos dela, quando fomos assistir a Paixão de Cristo. No caminho, de Moreno para Nova Jerusalém, fui me embriagando de chá de cravo e canela. Ficou na memória. Mas colocando uma laranjinha tb fica mto bom. rs.
    Saudades!

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